TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL
ACÓRDÃO
AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL ELEITORAL Nº 0600080-95.2024.6.15.0017 – CAMPINA GRANDE – PARAÍBA
Relator: Ministro André Ramos Tavares
Agravante: Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) – Municipal
Advogado: Olimpio de Moraes Rocha – OAB: 14599/PB
Agravado: José Artur Melo de Almeida
Advogados: Daniel Thadeu Moura Duarte dos Santos – OAB: 13160/PB e outros
AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ELEIÇÕES 2024. PREFEITO. REPRESENTAÇÃO. PROPAGANDA ELEITORAL IRREGULAR. REDES SOCIAIS. VEICULAÇÃO DE GESTO ASSOCIADO À SUPREMACIA BRANCA. COMPORTAMENTO REPROVÁVEL NO CONTEXTO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO. VEDAÇÃO À DISCRIMINAÇÃO. COMBATE AO RACISMO. LIMITES À LIBERDADE DE EXPRESSÃO. ART. 57-D, § 2º, DA LEI Nº 9.504/97. MULTA. PROVIMENTO.
1. Trata-se de agravo interposto contra a inadmissão de recurso especial manejado em face de acórdão pelo qual o Tribunal Regional Eleitoral da Paraíba (TRE/PB) manteve a improcedência de representação na qual se aponta a irregularidade de propaganda eleitoral veiculada em rede social tendo em vista o uso de símbolo de ódio associado a grupos de supremacia branca.
2. O agravante afirma, em síntese, que a utilização na propaganda de símbolos de ódio, ainda que de maneira velada ou dissimulada, produz efeitos nocivos e fomenta atitudes preconceituosas e discriminatórias, em afronta à Constituição do Brasil e contrariedade à jurisprudência deste Tribunal Superior acerca dos limites à liberdade de expressão.
3. Infirmados os fundamentos da decisão de inadmissão, dá-se provimento ao agravo e passa-se à análise do recurso especial, nos termos do art. 36, § 4º, do Regimento Interno do Tribunal Superior Eleitoral.
4. A Ordem Constitucional vigente atribui ampla centralidade ao combate à discriminação e ao racismo. No âmbito internacional, o Brasil é signatário das principais normas voltadas à antidiscriminação e recebeu recomendações do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, que reconheceu a necessidade de maior ação estatal contra a discriminação racial no país.
5. A aplicação desse robusto arcabouço normativo pressupõe a compreensão de que, na atualidade, o racismo também se manifesta em comportamentos sutis e, à primeira vista, inofensivos. Dessa forma, o Poder Judiciário deve reconhecer a ilicitude de manifestações, contra uma leitura excessivamente permissiva supostamente lastreada na “dubiedade”, bem como contra leituras que possam ser sugeridas como “singelas”, mas que contêm o preconceito e a discriminação em seu cerne.
6. O gesto veiculado pelo candidato, cuja análise é objeto destes autos, está fortemente relacionado à supremacia branca e consta da lista de símbolos de ódio de renomada organização não governamental internacional.
7. O argumento de que o símbolo seria mera representação do número de urna do recorrido (30) não é minimamente verossímil, uma vez que tal gesto não é utilizado socialmente para representar esse numeral. Em outras palavras, a estratégia de comunicação do recorrido não seria essa se seu objetivo realmente fosse a divulgação de sua candidatura de forma eficaz e indene de dúvidas. De fato, é justamente o caráter impreciso e ambíguo do gesto que denuncia a mensagem inaceitável que o candidato busca passar.
8. A liberdade constitucional de expressão e a manifestação de pensamento pela internet não tutelam qualquer ato de comunicação, independentemente de conteúdo e contextos. Nesse sentido, como já afirmei: “Essa liberdade de difundir e propagar de maneira exponencial e instantânea encontra as limitações tradicionais e, certamente, novas limitações, que se fazem presentes em virtude do potencial lesivo que o instrumental tecnológico representa para a sociedade como um todo” (TAVARES, André Ramos. A Nova Matrix: Direito (re)programado na civilização plataformizada. São Paulo: Etheria, 2024, p. 271).
9. Ademais, o TSE consolidou o entendimento de que a multa prevista no art. 57-D, caput, § 2º, da Lei nº 9.504/97 é aplicável “nos casos de discurso de ódio, de ideias contrárias à ordem constitucional e ao Estado Democrático e de mensagens injuriosas, difamantes ou mentirosas” (Rp 0601562-20/DF, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJe de 26.6.2023).
10. A partir de todos esses fundamentos, conclui-se que o recorrido veiculou propaganda eleitoral irregular em suas redes sociais, haja vista a exibição de símbolo de ódio associado a grupos de supremacia branca. Em vista da gravidade e da reprovabilidade da infração, considera-se que a multa deve ser aplicada em patamar máximo, no valor de R$ 30.000,00 (trinta mil reais) (art. 57-D, § 2º, da Lei nº 9.504/97).
11. Além disso, nos termos do art. 40 do Código de Processo Penal (CPP) e conforme pedido constante do recurso, deve-se encaminhar cópia deste acórdão à Procuradoria-Geral Eleitoral, a fim de que avalie a potencial repercussão criminal dos atos do recorrido.
12. Agravo e recurso especial providos.
Acordam os ministros do Tribunal Superior Eleitoral, por unanimidade, em dar provimento ao agravo e ao recurso especial, a fim de condenar o recorrido ao pagamento de multa no valor de R$ 30.000,00 (trinta mil reais), e de determinar o encaminhamento de cópia deste acórdão à Procuradoria-Geral Eleitoral, nos termos do voto do relator.
Brasília, 5 de maio de 2025.
MINISTRO ANDRÉ RAMOS TAVARES – RELATOR
RELATÓRIO
O SENHOR MINISTRO ANDRÉ RAMOS TAVARES: Senhora Presidente, trata-se de agravo interposto pelo Diretório Municipal de Campina Grande/PB do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) contra a inadmissão de recurso especial manejado em face de acórdão pelo qual o Tribunal Regional Eleitoral da Paraíba (TRE/PB) manteve a improcedência de representação ajuizada em desfavor de José Artur Melo de Almeida, candidato ao cargo de prefeito do referido município nas Eleições 2024, por propaganda eleitoral irregular consubstanciada na veiculação em rede social de suposto símbolo de ódio associado a grupos de supremacia branca.
Eis a ementa do acórdão regional:
RECURSO ELEITORAL. PROPAGANDA ELEITORAL IRREGULAR. GESTO ALEGADAMENTE ASSOCIADO À SUPREMACIA BRANCA. IMPROCEDÊNCIA EM PRIMEIRO GRAU. AUSÊNCIA DE PROVAS CABAIS. IRRESIGNAÇÃO. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA. RECURSO DESPROVIDO.
- Verifica-se dos autos que a parte recorrente apresentou, ainda que de maneira sucinta, suas alegações e fundamentos pelos quais entende merecer reforma a sentença combatida. Portanto, não há que se falar em ofensa ao princípio da dialeticidade recursal na espécie.
- A legislação eleitoral brasileira veda expressamente a propaganda que veicule preconceito de raça ou classes, conforme dispõe o artigo 243, inciso I, do Código Eleitoral.
- Não havendo nos autos provas suficientes para estabelecer a conexão entre o gesto realizado pelo candidato e a ideologia supremacista, a manutenção da sentença de improcedência é medida que se impõe.
- Para além de não ter sido comprovado pela parte representante fundamentos sólidos para suas alegações, o representado demonstra de maneira bastante clara e lógica as interpretações alusivas às imagens combatidas, sintetizando que nada mais apontam do que a simbologia do seu número de campanha.
- Recurso desprovido. (ID nº 162703612)
No recurso especial (ID nº 162703620), fundamentado nos arts. 276, I, a, do Código Eleitoral e 121, § 4º, I, da Constituição do Brasil, o recorrente alega que:
i) houve ofensa aos arts. 5º, XLII, da Constituição do Brasil, 243, I, do Código Eleitoral (CE) e 9º-E, IV, da Res.-TSE nº 23.610/2019, bem como afronta à Lei nº 7.716/89, uma vez que, embora o Tribunal de origem “tenha reconhecido a ocorrência de propaganda eleitoral assemelhada ao gesto de supremacismo, entendeu que o ato publicado pelo recorrido não teria gravidade suficiente para ensejar sanções mais severas” (fls. 2-3);
ii) “o uso de símbolos de ódio, ainda que de forma velada ou dissimulada, tem o mesmo efeito danoso, incitando preconceitos e segregação. Dessa forma, mesmo que o gesto tenha sido utilizado de maneira ‘descuidada’, a conduta permanece ilegal e altamente reprovável” (fl. 4);
iii) “a jurisprudência do TSE já reconheceu a responsabilidade objetiva em casos semelhantes, conforme o julgamento do Recurso Especial Eleitoral nº 18.543, no qual o uso de símbolos extremistas foi considerado suficiente para ensejar a sanção de cassação” (fl. 4);
iv) “a publicação do gesto de supremacismo branco, atingindo milhares de visualizações em poucas horas, conforme demonstrado, configura um verdadeiro ataque à igualdade racial e não pode ser tratada como algo inocente ou ambíguo” (fl. 4);
v) “o acórdão argumenta que o gesto realizado pelo candidato representa um símbolo neutro amplamente utilizado, como ‘ok’ ou ‘está tudo bem’, e que não há provas suficientes para associá-lo à supremacia branca. No entanto, a interpretação de símbolos não é fixa e depende do contexto cultural e político em que são inseridos. O mesmo gesto pode ter significados diferentes em ambientes distintos, e em um período eleitoral, gestos ambíguos associados a movimentos de ódio devem ser tratados com rigor” (fl. 5);
vi) “a jurisprudência sobre liberdade de expressão aponta que, embora a manifestação de pensamento seja livre, ela deve ser limitada quando fere outros direitos fundamentais, como a dignidade humana e a igualdade racial” (fl. 6); e
vii) há precedentes de outros tribunais a partir dos quais se verifica que o Estado brasileiro “não tolera incitação ao preconceito, ao ódio, ao fascismo e ao racismo, conforme o recorrido fez” (fl. 10).
Ao final, requer o provimento do apelo para que o recorrido seja condenado ao pagamento de multa e à exclusão da propaganda eleitoral de suas redes sociais. Além disso, postula que “sejam oficiadas as autoridades criminais competentes para apuração do ilícito descrito” (fl. 11).
O Presidente do TRE/PB inadmitiu o recurso especial com fundamento nas Súmulas nº 24 e nº 27/TSE (ID nº 162703625).
No presente agravo (ID nº 162703626), o insurgente sustentou a inaplicabilidade dos óbices sumulares indicados na decisão de admissibilidade e reiterou as principais razões de seu recurso especial.
O agravado apresentou contrarrazões (ID nº 162703624 e nº 162703632), nas quais sustenta, em síntese, que: i) a matéria não está prequestionada; ii) não é possível conhecer do apelo por divergência jurisprudencial; iii) o autor busca rediscutir a matéria fático-probatória; iv) o gesto em questão alude ao número de urna do representado (Partido Novo – 30), e não à supremacia branca; e v) a Res.-TSE nº 23.610/2019 e o respeito à liberdade de expressão impõem que a Justiça Eleitoral interfira de forma mínima sobre os conteúdos divulgados por candidatos na internet.
A Procuradoria-Geral Eleitoral opina pelo não conhecimento ou, superados os óbices, pelo não provimento do recurso em parecer assim ementado:
Eleições 2024. Agravo em recurso especial. Propaganda eleitoral irregular.
Não apontamento, de forma clara e precisa, do dispositivo legal violado. Deficiência da fundamentação. Súmula nº 27/TSE.
A Corte de origem concluiu pela regularidade da propaganda, em razão da ausência de provas robustas capazes de demonstrar que o gesto do recorrido tenha sido utilizado com o viés de supremacia ariana, para configurar a divulgação de ideais supremacistas, de modo a ensejar a prática de racismo.
Concluir, como pretende a parte, que o contexto dos autos configura o ilícito, demandaria revolvimento fático-probatório. Incidência da Súmula nº 24/TSE.
Não conhecimento ou, superados os óbices, não provimento do recurso. (ID nº 163211709)
É o relatório.
VOTO
O SENHOR MINISTRO ANDRÉ RAMOS TAVARES (relator): Senhora Presidente, o agravo e o recurso especial são tempestivos e foram interpostos por advogado habilitado nos autos (ID nº 162703474).
1. Análise do agravo.
Infirmados os fundamentos da decisão de inadmissão, dou provimento ao agravo e, com base no art. 36, § 4º, do Regimento Interno do Tribunal Superior Eleitoral, passo ao julgamento do recurso especial.
2. Análise do recurso especial.
Conforme relatado, discute-se se a propaganda veiculada nas redes sociais de candidato ao cargo de prefeito de Campina Grande/PB nas Eleições 2024 contém símbolo de ódio associado a grupos de supremacia branca.
O Tribunal de origem manteve a sentença de improcedência da representação por entender que “inexiste flagrante propósito de que a propaganda eleitoral combatida tenha sido destinada a intentar qualquer associação a ideologias racistas ou discriminatórias”. Confira-se:
Conforme relatado, trata-se, na origem, de representação por propaganda eleitoral irregular ajuizada pelo PSOL - PARTIDO SOCIALISMO E LIBERDADE contra JOSÉ ARTUR MELO DE ALMEIDA, candidato a prefeito em Campina Grande/PB.
De acordo com o narrado na exordial, "No dia 20/08/2024, o Representado, candidato a Prefeito de Campina Grande, em sua conta oficial no Instagram, sob o perfil @bolinhaprefeito30, publicou um vídeo de propaganda eleitoral em que alguém realiza gestos amplamente reconhecidos como símbolos de supremacismo branco."
A imagem alvo da temática trazida na inicial é a seguinte:
Ao proceder com o exame dos autos, o douto Juízo Zonal concluiu inexistir na presente representação provas capazes de apontar qualquer correlação entre o gesto atribuído ao representado e a ideologia adotada por grupos extremistas, conforme intentado pela parte representante.
Por oportuno, transcrevo a decisão de Sua Excelência, no que mais interessa:
[...]
Pois bem, a conclusão a que chegou a magistrada de primeiro grau não comporta qualquer reparo.
Com efeito, para além de não ter sido comprovado pela parte representante fundamentos sólidos para suas alegações, o representado demonstra, de maneira bastante clara e lógica, as interpretações alusivas às imagens combatidas, sintetizando que nada mais apontam do que a simbologia do seu número de campanha, qual seja: 30.
É de todo compreensível que, em período de campanha eleitoral, os candidatos procedam com a divulgação e massificação de seu nome e número de urna das formas mais diversificadas possíveis.
De fato, as imagens são nítidas e claras em demonstrar a correlação direta entre o candidato recorrido e o seu número de campanha, não demonstrando ser razoável maiores digressões acerca de infindáveis interpretações, sem qualquer evidenciação direta com as temáticas alusivas ao pleito eleitoral que se avizinha.
Portanto, não vislumbro que o gesto em debate se refira à expressão "White Power", ou seja, "Poder Branco" em inglês.
Nesse sentido, compreendo que inexiste flagrante propósito de que a propaganda eleitoral combatida tenha sido destinada a intentar qualquer associação a ideologias racistas ou discriminatórias.
[...]
Em suma, após análise dos elementos constantes dos autos, é de simples averiguação que o recurso interposto não merece provimento, tendo sido acertada a decisão proferida pelo Juízo sentenciante.
Isto posto, em harmonia com o parecer ministerial, VOTO pelo DESPROVIMENTO do recurso, com a manutenção da sentença proferida pelo Juízo de 1º grau. (ID nº 162703611)
A despeito dos fundamentos adotados pelo TRE/PB, entendo que a decisão de origem merece reforma pelas razões que passo a expor.
Em primeiro lugar, é necessário reconhecer a ampla centralidade que o combate à discriminação e ao racismo recebem na Ordem Constitucional vigente. O art. 3º da Constituição do Brasil define como objetivo fundamental da República a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Por sua vez, o art. 5º estabelece a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, bem como tipifica o racismo como crime inafiançável e imprescritível (inciso XLII).
Como já expus anteriormente, “[n]o Brasil, a Lei n. 7.716, de 1989, estabeleceu como crime os casos de racismo. Pela Constituição brasileira, o racismo é crime inafiançável e imprescritível (art. 5º, XLII), dada a gravidade de seu impacto no rompimento do tecido social e na dignidade das pessoas envolvidas” (TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 23. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2025, p. 398).
No âmbito internacional, além de ser signatário de normas que tratam da antidiscriminação de forma ampla – como o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Decreto nº 591/92) e o Pacto de San José da Costa Rica (Decreto nº 678/92) –, o Brasil ratificou a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (Decreto nº 65.810/69) e a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância (Decreto nº 10.932/2022), esta internalizada como emenda constitucional, visto que foi aprovada conforme o procedimento previsto no art. 5º, § 3º, da Constituição do Brasil.
Além das normas acima mencionadas, ressalto as manifestações do Sistema Interamericano de Direitos Humanos em casos relacionados à discriminação racial no Brasil. Em Simone Diniz vs. Brasil1, por exemplo, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos expediu, entre outras, as seguidas recomendações ao país: i) “realizar as modificações legislativas e administrativas necessárias para que a legislação anti-racismo seja efetiva”; e ii) “adotar e instrumentalizar medidas de educação dos funcionários de justiça e da polícia a fim de evitar ações que impliquem discriminação nas investigações, no processo ou na condenação civil ou penal das denúncias de discriminação racial e racismo”.
Em suma, os casos que envolvem discriminação por motivo de raça merecem especial atenção, uma vez que o arcabouço jurídico mencionado impõe ao Estado brasileiro o dever de combater e prevenir o racismo de forma incisiva e inequívoca. Esses casos merecem, ainda, envidar esforços na educação dos funcionários da Justiça, a fim de efetivamente evitar e combater essas práticas odiosas.
Em segundo lugar, é necessário compreender que o racismo também se manifesta em comportamentos sutis e, à primeira vista, inofensivos. A propósito, ensina Sylvia da Silveira Nunes:
Em uma sociedade abertamente racista, a discriminação não costuma apresentar ambiguidades. No entanto, em uma sociedade democrática, as ideias racistas estão em conflito com as normas não racistas da democracia. O racismo sutil existe provavelmente porque os países que se dizem democráticos já têm uma norma antirracista clara. (NUNES, Sylvia da Silveira. Racismo Contra Negros: sutileza e persistência. Revista de Psicologia Política, São Paulo, v. 14, n. 29, p. 101-121, abr. 2014)
Nesse contexto, o Poder Judiciário deve reconhecer a ilicitude de manifestações, contra uma leitura excessivamente permissiva supostamente lastreada na “dubiedade”, bem como contra leituras que possam ser sugeridas como “singelas”, mas que contêm o preconceito e a discriminação em seu cerne. Sobre o tema, saliento o alerta constante do Protocolo para Julgamento com Perspectiva Racial do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), instituído pela Res.-CNJ nº 598/2024:
A construção de um repertório jurisprudencial racialmente informado deve ser permanente. O racismo se reatualiza diante de cada limite que lhe é imposto. Disso decorre que o seu enfrentamento deve estar igualmente aberto a ser continuamente atualizado e aprimorado.
Em terceiro lugar, o gesto veiculado pelo candidato está fortemente relacionado à supremacia branca e consta da lista de símbolos de ódio da Anti-Defamation League (ADL)2, organização não governamental internacional fundada em 1913 que tem amplo histórico de combate a variadas formas de discriminação e preconceito.
Além disso, a vinculação supremacista do referido símbolo tornou-se centro de polêmica nacional, com discussão amplamente conhecida no Brasil após sessão realizada no Senado Federal em 24.3.2021, na qual um assessor especial para assuntos internacionais da presidência da República foi filmado enquanto fazia o mesmo gesto adotado em 20.8.2024 pelo recorrido deste feito.
O caráter preconceituoso do símbolo foi imediatamente reconhecido e gerou investigação interna no âmbito do Senado Federal3, além de ampla repercussão midiática nos principais veículos de comunicação do país, entre eles Folha de S. Paulo4, Portal g1 (Jornal Nacional)5 e UOL6.
Ademais, a notoriedade do caso – e, consequentemente, do símbolo – não se esvaiu poucos dias após a divulgação inicial. Como o referido assessor especial foi processado criminalmente por seu gesto, o trâmite da ação penal foi amplamente noticiado pela mídia até a condenação do réu, ocorrida em dezembro de 20247.
Em quarto lugar, o argumento de que o símbolo seria mera representação do número de urna do recorrido (30 – Partido Novo) não é minimamente verossímil.
No contexto de uma campanha eleitoral, os candidatos buscam pautar sua comunicação pública pela absoluta clareza, especialmente no que diz respeito ao número que os eleitores devem utilizar para apoiar a candidatura nas urnas.
A despeito desse pressuposto, a propaganda em análise não evidencia referido número, mas apenas exibe uma mão que executa o símbolo controverso e gira para apresentá-lo em sua integralidade. Vejam-se as imagens:
Considerando que esse gesto não é utilizado socialmente para representar o número 30, não se mostra razoável esperar que os eleitores fizessem a associação entre o vídeo e o número de urna do candidato.
Em outras palavras, o símbolo em comento não faria parte da estratégia de comunicação do recorrido se seu objetivo realmente fosse a divulgação de sua candidatura de forma eficaz e indene de dúvidas. De fato, é justamente o caráter impreciso e ambíguo do gesto que denuncia, a meu ver, a mensagem inaceitável que o candidato busca passar.
Em quinto lugar, a liberdade constitucional de expressão e a manifestação de pensamento pela internet não tutelam qualquer ato de comunicação, independentemente de conteúdo e contextos. Nesse sentido, como já afirmei: “Essa liberdade de difundir e propagar de maneira exponencial e instantânea encontra as limitações tradicionais e, certamente, novas limitações, que se fazem presentes em virtude do potencial lesivo que o instrumental tecnológico representa para a sociedade como um todo” (TAVARES, André Ramos. A Nova Matrix: Direito (re)programado na civilização plataformizada. São Paulo: Etheria, 2024, p. 271).
Ademais, o TSE consolidou o entendimento de que a multa prevista no art. 57-D, caput, § 2º, da Lei nº 9.504/97 é aplicável “nos casos de discurso de ódio, de ideias contrárias à ordem constitucional e ao Estado Democrático e de mensagens injuriosas, difamantes ou mentirosas” (Rp 0601562-20/DF, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJe de 26.6.2023 – grifei). No mesmo sentido, a Rp 0601752-80/DF, Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJe de 4.12.2023.
A propósito, transcrevo os referidos dispositivos:
Art. 57-D. É livre a manifestação do pensamento, vedado o anonimato durante a campanha eleitoral, por meio da rede mundial de computadores - internet, assegurado o direito de resposta, nos termos das alíneas a, b e c do inciso IV do § 3o do art. 58 e do 58-A, e por outros meios de comunicação interpessoal mediante mensagem eletrônica.
[...]
§ 2º A violação do disposto neste artigo sujeitará o responsável pela divulgação da propaganda e, quando comprovado seu prévio conhecimento, o beneficiário à multa no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) a R$ 30.000,00 (trinta mil reais).
No mesmo sentido, ao tratar da propaganda partidária, o Código Eleitoral dispõe o seguinte: “Art. 243. Não será tolerada propaganda: I - de guerra, de processos violentos para subverter o regime, a ordem política e social ou de preconceitos de raça ou de classes [...]”.
A partir de todos esses fundamentos, concluo que o recorrido veiculou propaganda eleitoral irregular em suas redes sociais, haja vista a exibição de símbolo de ódio associado a grupos de supremacia branca.
Em vista da gravidade e da reprovabilidade da infração, considero que a multa deve ser aplicada em patamar máximo, no valor de R$ 30.000,00 (trinta mil reais) (art. 57-D, § 2º, da Lei nº 9.504/97).
Além disso, nos termos do art. 40 do Código de Processo Penal (CPP) e conforme pedido constante do recurso, deve-se encaminhar cópia deste acórdão à Procuradoria-Geral Eleitoral, a fim de que avalie a potencial repercussão criminal dos atos do recorrido.
Ante o exposto, voto no sentido de dar provimento ao agravo e ao recurso especial, a fim de condenar o recorrido ao pagamento de multa no valor de R$ 30.000,00 (trinta mil reais), e de determinar o encaminhamento de cópia deste acórdão à Procuradoria-Geral Eleitoral.
É como voto.
3. Referências.
1 – Disponível em:
https://www.cidh.org/annualrep/2006port/BRASIL.12001port.htm. Acesso em 18.3.2025.
2 – Disponível em:
https://www.adl.org/resources/hate-symbol/okay-hand-gesture. Acesso em 18.3.2025.
3 – Disponível em:
https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/2021/03/25/pacheco-pede-investigacao-do-gesto-de-assessor-do-planalto. Acesso em 18.3.2025.
4 – Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021/03/senador-considera-obsceno-gesto-de-assessor-do-planalto-e-pede-sua-expulsao-da-casa.shtml. Acesso em 18.3.2025.
5 – Disponível em:
https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2021/03/25/policia-legislativa-vai-investigar-gesto-de-assessor-da-presidencia-em-sessao-no-senado.ghtml. Acesso em 18.3.2025.
6 – Disponível em:
https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2021/03/24/senador-chama-policia-apos-suposto-gesto-de-supremacista-branco-de-martins.htm. Acesso em 18.3.2025.
7 – Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2024/12/filipe-martins-ex-assessor-de-bolsonaro-e-condenado-por-gesto-supremacista-branco.shtml. Acesso em 18.3.2025.
VOTO-VOGAL
O SENHOR MINISTRO ANDRÉ MENDONÇA:
1. Trata-se de agravo no recurso especial eleitoral contra decisão da Presidência do Tribunal Regional Eleitoral da Paraíba (TRE/PB), que inadmitiu recurso especial eleitoral interposto contra acórdão que manteve a improcedência do pedido formulado em Representação por Propaganda Irregular.
2. O eminente Relator, Ministro André Ramos Tavares, traz à colação "voto no sentido de dar provimento ao agravo e ao recurso especial, a fim de condenar o recorrido ao pagamento de multa no valor de R$ 30.000,00 (trinta mil reais), e de determinar o encaminhamento de cópia deste acórdão à Procuradoria-Geral Eleitoral".
3. Adotando, no mais, o percuciente relatório apresentado pelo Ministro Relator, passo ao voto.
4. Inicialmente, verifico que o TRE/PB inseriu no acórdão recorrido (ID 162703611) as imagens que a parte recorrente alega serem alusivas à expressão "white power" ("poder branco" em inglês), o que caracterizaria, conforme a tese recursal, propaganda eleitoral ilícita, pois violadora de normas constitucionais, legais e regulamentares. Assim, não se tratando de revisitar as premissas fáticas assentadas no acórdão regional, também supero o óbice do enunciado nº 24 da Súmula do TSE para dar provimento ao agravo e conhecer do recurso especial.
5. Quanto ao mérito do apelo nobre, extraio do acórdão recorrido a seguinte passagem:
"Com efeito, para além de não ter sido comprovado pela parte representante fundamentos sólidos para suas alegações, o representado demonstra, de maneira bastante clara e lógica, as interpretações alusivas às imagens combatidas, sintetizando que nada mais apontam do que a simbologia do seu número de campanha, qual seja: 30.
É de todo compreensível que, em período de campanha eleitoral, os candidatos procedam com a divulgação e massificação de seu nome e número de urna das formas mais diversificadas possíveis.
De fato, as imagens são nítidas e claras em demonstrar a correlação direta entre o candidato recorrido e o seu número de campanha, não demonstrando ser razoável maiores digressões acerca de infindáveis interpretações, sem qualquer evidenciação direta com as temáticas alusivas ao pleito eleitoral que se avizinha." (ID 162703611; grifo nosso)
6. De fato, o exame isolado do gesto em questão não parece revelar – acima de qualquer dúvida razoável –, que o recorrido tenha agido com o dolo específico de promover ideologia racial supremacista, abominável sob qualquer aspecto ou direção no Estado Democrático de Direito. Aliás, a repulsa constitucional à prática do racismo é tamanha que o poder constituinte originário a excepcionou, juntamente com a ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado Democrático, da cláusula geral de prescritibilidade que rege os demais delitos (art. 5º, incisos XLII e XLIV, da CF/88).
7. Entretanto, o que chama a atenção neste caso – e lembrando que, por estarmos aqui na seara eleitoral, o standard probatório exigido não alcança o mesmo rigor daquele necessário para uma condenação criminal –, foi a justificativa apresentada pelo recorrido, que deflui do trecho acima transcrito, no sentido de que o gesto em questão teria por finalidade a divulgação do número "30", relativo à sua candidatura.
8. Referida justificativa, a meu juízo, não passa pelo crivo de observação ordinária do cotidiano – isto é, pelas regras de experiência comum de que trata o art. 375 do CPC –, visto ser absolutamente inusual, para não dizer inexistente, a associação entre o gesto feito pelo recorrido e o número "30". Ainda que, de fato, esse tenha sido o seu número na urna eleitoral, é indubitável que a correlação entre gesto e número, por não ser extraível do cotidiano dos brasileiros, soa implausível.
9. Assim, considerando que a explicação feita pelo recorrido não se revela consentânea com as regras de experiência comum, entendo que, in casu, deve prevalecer a solução trazida pelo eminente Relator, a qual, por prestigiar a efetividade dos direitos fundamentais, promove de forma mais adequada o exercício regular e responsável da propaganda eleitoral.
10. Com estes fundamentos, acompanho o Relator.
É como voto.
EXTRATO DA ATA
AREspE nº 0600080-95.2024.6.15.0017/PB. Relator: Ministro André Ramos Tavares. Agravante: Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) – Municipal (Advogado: Olimpio de Moraes Rocha – OAB: 14599/PB). Agravado: José Artur Melo de Almeida (Advogados: Daniel Thadeu Moura Duarte dos Santos – OAB: 13160/PB e outros).
Decisão: O Tribunal, por unanimidade, deu provimento ao agravo e ao recurso especial, a fim de condenar o recorrido ao pagamento de multa no valor de R$ 30.000,00 (trinta mil reais), e de determinar o encaminhamento de cópia deste acórdão à Procuradoria-Geral Eleitoral, nos termos do voto do relator.
Composição: Ministras Cármen Lúcia (Presidente) e Isabel Gallotti, Ministros Nunes Marques, André Mendonça, Antonio Carlos Ferreira, Floriano de Azevedo Marques e André Ramos Tavares.
Vice-Procurador-Geral Eleitoral: Alexandre Espinosa Bravo Barbosa.
SESSÃO ORDINÁRIA VIRTUAL DE 25.4 A 5.5.2025.