TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL

ACÓRDÃO

AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL Nº 0600814-85.2022.6.00.0000 – BRASÍLIA – DISTRITO FEDERAL


Relator: Ministro Benedito Gonçalves

Representante: Partido Democrático Trabalhista (PDT) – Nacional

Advogados: Walber de Moura Agra – OAB: 757-B/PE e outros

Representados: Jair Messias Bolsonaro e outro

Advogados: Tarcisio Vieira de Carvalho Neto – OAB: 11498/DF e outros

 

 

AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ELEIÇÕES 2022. ELEIÇÃO PRESIDENCIAL. CANDIDATO À REELEIÇÃO. REUNIÃO COM CHEFES DE MISSÕES DIPLOMÁTICAS. PALÁCIO DA ALVORADA. ANTEVÉSPERA DAS CONVENÇÕES PARTIDÁRIAS. DISSEMINAÇÃO DE INFORMAÇÕES FALSAS A RESPEITO DO SISTEMA ELETRÔNICO DE VOTAÇÃO. ANTAGONIZAÇÃO INSTITUCIONAL COM O TSE. COMPARATIVO ENTRE PRÉ-CANDIDATURAS. ASSOCIAÇÃO DE EVENTUAL DERROTA DO PRIMEIRO INVESTIGADO À OCORRÊNCIA DE FRAUDE. ESTRATÉGIAS DE MOBILIZAÇÃO POLÍTICO-ELEITORAL. TV BRASIL. REDES SOCIAIS. AMPLA REPERCUSSÃO PERANTE A COMUNIDADE INTERNACIONAL E O ELEITORADO. SEVERA DESORDEM INFORMACIONAL. DESVIO DE FINALIDADE NO USO DE BENS E SERVIÇOS PÚBLICOS E DE PRERROGATIVAS DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. GRAVIDADE. VIOLAÇÃO À NORMALIDADE ELEITORAL E À ISONOMIA. USO INDEVIDO DE MEIOS DE COMUNICAÇÃO. ABUSO DE PODER POLÍTICO. RESPONSABILIDADE PESSOAL DO PRIMEIRO INVESTIGADO. PROCEDÊNCIA PARCIAL. INELEGIBILIDADE. DETERMINAÇÕES.

1. Trata-se de Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) destinada a apurar a ocorrência de abuso de poder político e uso indevido de meios de comunicação, em virtude de reunião realizada em 18/07/2022, no Palácio da Alvorada.

2. O evento contou com a presença de embaixadoras e embaixadores de países estrangeiros, que assistiram à apresentação do primeiro investigado, então Presidente da República e pré-candidato à reeleição, a respeito do sistema eletrônico de votação e da governança eleitoral brasileira. Houve transmissão pela TV Brasil e pelas redes sociais do primeiro investigado.

3. Na hipótese, o autor alega que houve desvio de finalidade eleitoreiro, resultante do uso de bens e serviços e das prerrogativas do cargo em favor da iminente candidatura à reeleição. Alega, também, que houve difusão de fatos sabidamente falsos relativos ao sistema eletrônico de votação e ataques à Justiça Eleitoral, estratégia destinada a mobilizar o eleitorado por força de grave “desordem informacional”, atentatória à normalidade do pleito.

4. Em contrapartida, os investigados refutam qualquer relação entre o evento de 18/07/2022 e as eleições, enxergando no discurso uma legítima manifestação, em salutar “diálogo institucional” com o TSE. Afirmam ainda que qualquer efeito do discurso teria sido prontamente neutralizado por nota pública do Tribunal, sendo a conduta incapaz de ferir bens jurídicos eleitorais.

I - Preliminares

Preliminar de incompetência da Justiça Eleitoral (suscitada pelos investigados). Não conhecida.

5. Alegação rejeitada em decisão interlocutória já referendada pelo Plenário do TSE. Em benefício da racionalidade do processo e sem prejuízo às partes, submeteu-se de imediato ao órgão colegiado o exame de questões que pudessem levar à extinção do processo sem resolução do mérito.

6. Ocorrência de preclusão pro iudicato, no âmbito do TSE, sem impacto na recorribilidade para instância superior.

Questão prejudicial de “redelimitação da demanda” (suscitada pelos investigados). Não conhecida.

7. As questões prejudiciais de violação à estabilização da demanda e à decadência já foram objeto de decisão interlocutória referendada pelo Plenário do TSE. A Corte, por unanimidade, admitiu ao exame fato superveniente apresentado pelo autor como desdobramento dos fatos alegados na inicial, reservando-se ao mérito avaliar se a alegação procede.

8. Impossibilidade de reexame da decisão pelo mesmo órgão colegiado, nos moldes já apontados.

Preliminar de ilegitimidade passiva ad causam do segundo investigado (suscitada pelos investigados). Rejeitada.

9. Ação proposta no curso do processo eleitoral, com observância à Súmula nº 38/TSE, cujo enunciado estabelece que “[n]as ações que visem à cassação de registro, diploma ou mandato, há litisconsórcio passivo necessário entre o titular e o respectivo vice da chapa majoritária”.

10. Ainda que a chapa investigada tenha sido derrotada, não há perda da condição de legitimado passivo, que decorre do vínculo formado entre os candidatos para o específico pleito ou do interesse processual, que permitiu ao segundo investigado exercitar ampla defesa.

Preliminar de nulidade processual decorrente da determinação de diligências complementares (suscitada pelos investigados). Rejeitada.

11. A atuação do Corregedor para determinar diligências, de ofício ou a requerimento das partes posteriormente à audiência de instrução é prevista expressamente no procedimento da AIJE (art. 22, VI a IX, LC nº 64/1990).

12. A estabilização da demanda não acarreta uma blindagem do debate processual contra fatos que possam influir no julgamento, uma vez que há disposições legais expressas no sentido de que o órgão julgador leve em consideração fatos constitutivos, modificativos ou extintivos supervenientes ao ajuizamento (art. 493, CPC) e, ainda, fatos públicos e notórios e circunstâncias, ainda que não alegadas pelas partes, que preservem a lisura eleitoral (art. 23, LC nº 64/1990).

13. A adequada aplicação dos dispositivos citados se dá como regra de instrução, ou seja, mediante prévia submissão ao contraditório de fatos e provas admitidos ao processo, o que foi feito. Entendimento que se amolda ao decidido na ADI nº 1082/STF (Rel. Min. Marco Aurélio, DJe de 30.10.2014).

14. Requisitados à Casa Civil documentos relativos à preparação do evento de 18/07/2022, os investigados se opuseram à diligência, ao argumento de que se tratava de “delegação de poder instrutório a grupo político beneficiário de eventual procedência da ação”, a permitir “um relatório sujeito a toda sorte de subjetivismos”.

15. A decisão foi mantida, tendo em vista que a requisição de documentos constitui meio legal de prova, sendo dever dos agentes públicos a que ela se destina prestarem informações completas, autênticas e fidedignas. A dinâmica é inerente aos princípios republicano e da impessoalidade.

16. A Casa Civil forneceu os documentos públicos que atendiam aos parâmetros da solicitação, sem apresentar sobre eles qualquer juízo de valor. Os investigados não apontaram qualquer ilegalidade in concreto e se utilizaram da prova para deduzir alegações em sua defesa.

17. Todos os elementos admitidos ao debate processual no curso da instrução possuem estrita correlação com a causa de pedir estabilizada. Sua força probante deve ser examinada no julgamento de mérito.

Requerimento de reabertura da instrução (formulado pelos investigados). Indeferido.

18. Na última audiência de inquirição de testemunhas, o advogado da defesa fez menção à denúncia apresentada pelo Ministério Público Eleitoral contra quatro pessoas acusadas de hackeamento que deixou instável o aplicativo e-título no pleito de 2020.

19. Deferiu-se a juntada da notícia jornalística, datada de 24/03/2023, da qual consta que o fato não tem relação com a segurança do sistema de votação.

20. A requisição do inquérito sigiloso em que foi apurado o episódio, referido apenas de passagem em pergunta do advogado dos investigados, é medida desproporcional. Caracterizados a impertinência e, mesmo, o viés protelatório do requerimento, é dever do Relator indeferir a produção da prova.

21. A dispensa de oitiva de testemunha indicada pelo juízo, após a coleta de outros três depoimentos convergentes sobre o mesmo fato, não induz nulidade. Os próprios investigados dispensaram três das testemunhas que arrolaram, pelo mesmo fundamento.

II - Mérito

Premissas de julgamento

22. O abuso de poder político se caracteriza como o ato de agente público (vinculado à Administração ou detentor de mandato eletivo) praticado com desvio de finalidade eleitoreira, que atinge bens e serviços públicos ou prerrogativas do cargo ocupado, em prejuízo à isonomia entre candidaturas.

23. O uso indevido de meios de comunicação, tradicionalmente, caracteriza-se pela exposição midiática desproporcional de candidata ou candidato. A compreensão se amolda ao paradigma da comunicação de massa (um-para-muitos), marcado pela concentração do poder midiático em poucos veículos com particular capacidade de influência sobre a sociedade.

24. A gravidade é elemento típico das práticas abusivas, que se desdobra em um aspecto qualitativo (alto grau de reprovabilidade da conduta) e outro quantitativo (significativa repercussão em um determinado pleito). Seu exame exige a análise contextualizada da conduta, que deve ser avaliada conforme as circunstâncias da prática, a posição das pessoas envolvidas e a magnitude da disputa.

25. As práticas ilícitas e sua forma de aferição ganham novos contornos no atual paradigma comunicacional, que é o da comunicação em rede (muitos-para-muitos). O aumento do tráfego de informações a partir de fontes múltiplas traz aspectos positivos, mas também faz crescer os ruídos e a dificuldade de checagem da veracidade de dados factuais. A expansão do discurso de ódio e da desinformação e a monetização de conteúdos falsos a serem consumidos por bolhas cativas são exemplos de fatores que podem degradar o debate público.

26. A premissa da abordagem da matéria é a ampla liberdade de manifestação do pensamento na internet, o que é plenamente compatível com o controle e a punição a novas formas de praticar condutas abusivas na sociedade em rede.

27. Nesse cenário, o TSE firmou entendimento no sentido de que “o uso de aplicações digitais de mensagens instantâneas, visando promover disparos em massa, contendo desinformação e inverdades em prejuízo de adversários e em benefício de candidato, pode configurar abuso de poder econômico e/ou uso indevido dos meios de comunicação social para os fins do art. 22, caput e XIV, da LC 64/90” (AIJEs nº 0601986-80 e nº 0601771-28, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJE de 22/08/2022).

28. O Tribunal também assentou a tese de que “a transmissão ao vivo de conteúdo em rede social, no dia da eleição, contendo divulgação de notícia falsa e ofensiva por parlamentar federal, em prol de seu partido e de candidato, configura abuso de poder de autoridade e uso indevido de meio de comunicação, sendo grave a afronta à legitimidade e normalidade do prélio eleitoral” (RO-El nº 0603975-98, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJE de 10/12/2021).

29. No segundo julgado, cassou-se o diploma de deputado estadual que, no dia do pleito de 2018, fizera live disseminando falso relato de apreensão de urnas fraudadas. Na caracterização dos elementos típicos do abuso, foram considerados: a) a credibilidade inspirada pela fonte, por se tratar de parlamentar; b) o alinhamento do discurso com estratégia político-eleitoral; c) o severo descompromisso com a verdade, eis que utilizados simples relatórios de substituição de urna para persuadir o eleitorado a acreditar na existência de fraude sistêmica e a não aceitar o resultado das urnas; d) a incompatibilidade do comportamento com a expectativa de conduta do agente público; e e) a exploração da imunidade parlamentar para reforçar a credibilidade das declarações falsas.

30. Em síntese, o abuso de poder midiático e político pode se configurar, em tese, mediante a divulgação de informações falsas sobre o sistema eletrônico de votação, feita por detentor de mandato eletivo, apta a produzir impactos sobre pleito específico. Considerada a posição preferencial da liberdade de expressão, há ônus elevados para o reconhecimento do ilícito, especialmente em uma eleição presidencial.

31. Em diversos campos jurídicos, reconhece-se que a palavra pode provocar dano a bens jurídicos de dimensão imaterial. Nesse sentido, citam-se o dano moral individual e coletivo e os crimes contra a honra. Destaca-se que a injúria racial, hoje equiparada ao racismo, tem pena majorada se o crime for cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou de publicação de qualquer natureza, inclusive em redes sociais e na internet.

32. A política é essencialmente performada por discursos. A palavra é o instrumento de governantes e parlamentares para transformar a realidade. Se assim é no campo da licitude, o mesmo ocorre quando se resvala para os ilícitos eleitorais.

33. Exatamente em razão da grande relevância da performance discursiva para o processo eleitoral e para a vida política, não é possível fechar os olhos para os efeitos antidemocráticos de discursos violentos e de mentiras que coloquem em xeque a credibilidade da Justiça Eleitoral.

34. Na atualidade, não há como negar que a desinformação é capaz de deteriorar o debate público e influir severamente sobre o processo de tomada de decisões.

35. Em primeiro lugar, estudos neurocientíficos demonstram que o novo paradigma comunicacional está produzindo transformações no cérebro. Reações rápidas, superficiais e pouco refletidas ocorrem diante do excesso de estímulos exteriores apresentados em alta velocidade. Os comportamentos, em geral, passam a ser afetados pela dinâmica de hiperestímulo a prazeres sensoriais, ligados a emoções básicas, em especial o medo e a raiva. 

36. Em segundo lugar, pesquisas empíricas comprovam que o fenômeno das fake news, instalado nesse cenário, produziu efeitos políticos em larga escala. Notícias falsas possuem maior capacidade de intensificar o tráfego para sites, canais e perfis que as divulgam, e permitem promover engajamento político a partir não de pautas propositivas, mas da mobilização de paixões. Por suas características inflamáveis, essa mobilização acaba por direcionar um sentimento de inconformismo, nem sempre bem elaborado individualmente, para uma ação coletiva antissistema e antidemocrática. Seu uso foi rapidamente incorporado a ações estratégicas de grande impacto, como o Brexit, no Reino Unido.

37. Em terceiro lugar, a desordem informacional acarreta uma grave crise de confiança, que abala uma distribuição do trabalho cognitivo, que é essencial para o desenvolvimento das sociedades humanas. A contínua contestação de fontes de conhecimento especializado e o repúdio às instituições não tornam as pessoas mais autônomas e críticas. Surgem grupos orientados pela mobilização em torno de crenças, em que cada pessoa supre com um componente passional (o pertencimento ao grupo) a falta de um suporte epistêmico (validação de conteúdo) para a tomada de decisões. As fontes “alternativas” provocam um curto-circuito na chamada normatividade de coordenação (que nos ensina em quem confiar), que acaba por  degradar a normatividade epistêmica (que nos diz em que conteúdo confiar).

38. A responsabilidade de candidatas e candidatos pelas informações que divulgam observa o modelo da accountability. Ou seja, ao se habilitarem para concorrer às eleições, essas pessoas se sujeitam a ter suas condutas rigorosamente avaliadas com base em padrões democráticos, calcados na isonomia, na normalidade eleitoral, no respeito à legitimidade dos resultados e na liberdade do voto.

39. Essa avaliação rigorosa não recai apenas sobre o agir em sentido estrito – como realizar uma carreata, ou custear despesas eleitorais. Ela incide também sobre a prática discursiva. Candidatas e candidatos exercem um importante papel na coordenação do conhecimento, ao disputar a confiança de eleitoras e eleitores para que sejam convencidos a agir de um determinado modo: apoiar pautas, engajar-se na campanha, convencer outras pessoas e, enfim, votar da forma sugerida.

40. Para atingir esse objetivo, é lícito que emitam opiniões e interpretem fatos de acordo com sua visão e inclinação políticas. Mas lhes é vedado utilizar informações falsas como ferramenta de mobilização política, como estratégia de domínio do debate público ou, no limite, para criar riscos de ruptura democrática.

41. No caso da pessoa ocupante do cargo de Presidente da República, o padrão de conduta democrática a ser observado é integrado pela responsabilidade pessoal por zelar pelo livre exercício dos demais Poderes, pelo exercício dos direitos políticos e pela segurança interna do país (art. 85, II, III e IV, da Constituição).

Fixação da moldura fática

42. A prova dos autos atesta, de forma inequívoca, que a reunião de 18/07/2022 no Palácio da Alvorada foi planejada pessoalmente pelo primeiro investigado como uma “resposta” à Sessão Informativa para Embaixadas, realizada pelo TSE em 30/05/2022. Na ocasião, o então Presidente do TSE estimulou os presentes a buscarem informações sérias e confiáveis sobre o sistema eletrônico de votação e ressaltou a importância das missões de observação internacional.

43. Testemunhas da defesa, ocupantes de altos cargos no governo do primeiro investigado, declararam que não houve envolvimento da Casa Civil, do Ministério das Relações Exteriores e da Assessoria Especial da Presidência da República. Os relatos, de meros espectadores, são uníssonos em informar que não foram chamados a discutir a abordagem e que desconheciam o teor da apresentação que seria feita.

44. O ex-Chanceler brasileiro observou o ineditismo da reunião envolvendo um Presidente da República e ressaltou que a temática não era afeta à política externa. O Ministro-Chefe da Casa Civil qualificou o evento como “evitável” e “superdimensionado”.

45. Os documentos requisitados à Casa Civil demonstram a magnitude do evento e a celeridade com que foram adotadas as providências para a realização do encontro. Entre os dias 13 e 17/07/2022 (dos quais apenas três eram úteis), o Cerimonial da Presidência disparou quase uma centena de convites dirigidos a Chefes de Missões Diplomáticas e outros 21 a outras autoridades brasileiras. Diversas unidades foram acionadas para fins logísticos e para o indispensável aparato de segurança envolvido.

46. No discurso proferido em 18/07/2022, o primeiro investigado, de forma expressa, declarou falsamente que as Eleições 2018 foram marcadas pela manipulação de votos, que havia risco de que o fato se repetisse em 2022 e que era interesse do TSE manter um sistema sujeito a fraudes e inauditável, a fim de permitir a adulteração do resultado em favor de candidato adversário. Houve, ainda, expresso desencorajamento ao envio de missões de observação internacional e hiperdimensionamento da participação das Forças Armadas para integrar Comissão de Transparência do TSE.

47. O primeiro investigado, no discurso, adotou explícita antagonização com o TSE, incentivando o descrédito a informações oficiais oriundas do Tribunal. Para tanto, valeu-se de afirmações insidiosas sobre Ministros desta Corte e atacou a competência do seu corpo técnico, afirmando falsamente que uma investigação em curso na Polícia Federal conteria prova da prática de fraude eleitoral e da desídia dos servidores.

48. A análise do IPL nº 135/2019 demonstra que o primeiro investigado não tinha em seu poder elemento mínimo relacionado à manipulação de votos ou a qualquer tipo de fraude eleitoral. A investigação versava sobre usual ataque a redes informatizadas, aos moldes dos que sofrem diversas instituições.

49. Além disso, não se tratava de um novo achado, mas de fato falso que o primeiro investigado, juntamente com o Deputado Federal Filipe Barros, havia divulgado em live de 04/08/2021. O teor das declarações foi desmentido em nota pública do TSE e o vazamento da investigação sigilosa rendeu o indiciamento de Mauro Cid, ajudante de ordens da Presidência durante o governo do primeiro investigado.

50. No ponto possivelmente de maior tensionamento do discurso, o então Presidente da República, em leitura distorcida de sua competência privativa para “exercer o comando supremo das Forças Armadas” (art. 84, XIII, da Constituição), enxerga-se como militar em exercício, à frente das tropas. A abordagem desconsidera uma conquista democrática, de incomensurável importância simbólica no pós-ditadura, que é a sujeição do poderio militar brasileiro a uma máxima autoridade civil democraticamente eleita.

51. O discurso, em diversos momentos, insinua uma perturbadora interpretação das ideias de “autoridade suprema do Presidente da República”, “defesa da Pátria” e “garantia da lei e da ordem” (art. 142 da Constituição). Com base nelas, o primeiro investigado adota a narrativa de que as Forças Armadas estavam comprometidas com a missão de debelar uma “farsa” que estaria sendo gestada no TSE. Essa visão se mostrou impermeável a qualquer argumento técnico ou decisão negocial do Tribunal que embasou o não acolhimento pontual de sugestões na Comissão de Transparência.

52. O primeiro investigado verbalizou insistentemente o desejo por eleições transparentes e por resultados autênticos. Essa afirmação somente pode ser compreendida no contexto das afirmações de que as Eleições 2018 foram marcadas pela fraude e que medidas para estancá-la, como o voto impresso e as propostas dos militares, eram alvo de resistência por parte de forças que conspiravam contra sua reeleição, ameaçando a paz, a soberania e a democracia.

53. Conforme a dinâmica própria às fake news, essa mensagem mobiliza sentimentos negativos capazes de produzir engajamento consistente na internet. Dispara-se um gatilho de urgência, no sentido de que algo precisa ser feito para impedir que o risco venha a se consumar. Esse pensamento intrusivo deixou latente a indagação sobre “o que fazer”. O primeiro investigado não deu uma resposta explícita a essa pergunta. Mas desenhou um cenário desolador que estreitava o leque de alternativas.

54. Para fechar o arco dos sentidos inscritos nesse discurso, salienta-se que o primeiro investigado inicia sua fala em 18/07/2022 dizendo que “até o momento, não fez nada fora das quatro linhas da Constituição”. Porém, ao longo da exposição, são acionados os sentimento de desesperança e de urgência, propensos a ampliar a margem de tolerância com ações que viessem a ser ditas necessárias para debelar fraudes eleitorais. 

55. O discurso se encerra sem nenhuma proposição às embaixadoras e aos embaixadores, a não ser a insistente oferta do primeiro investigado em compartilhar seus slides e, ainda, cópias do IPL nº 1361/2018. O objetivo era rechaçar o TSE como fonte fidedigna de informações e conquistar adeptos para a crença disseminada, sem nenhuma prova, de que o sistema eletrônico de votação adotado no Brasil não era capaz de assegurar que o eleito nas Eleições 2022 seria quem de fato recebesse mais votos.

56. O evento contou com cobertura ao vivo da TV Brasil, emissora pertencente ao conglomerado da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), empresa pública que integra a Administração Pública Federal Indireta. É presumível que houve necessidade de algum ajuste às pressas na grade da programação, considerada a curta antecedência com que foi designado o evento. A gravação ficou disponível nas redes sociais da emissora até a ordem judicial para que fosse retirada do ar, em 23/08/2022.

57. Houve, também, transmissão do evento pelas redes sociais do primeiro investigado. As visualizações no Facebook e no Instagram, no momento da propositura da ação, ultrapassavam um milhão, contabilizadas somente aquelas diretamente nos citados perfis do candidato à reeleição. Houve, portanto, deliberado direcionamento do conteúdo para alcançar simpatizantes (seguidores) do já notório pré-candidato à reeleição.

58. O conteúdo da mensagem divulgada perante embaixadoras e embaixadores, portanto, não ficou restrito ao Palácio da Alvorada. O uso dos meios de comunicação, no caso em tela, criou uma multidão de espectadores, os quais puderam assistir ao primeiro investigado, na condição de Chefe de Estado, dirigir-se a uma prestigiosa plateia de Chefes de Missão Diplomática.

59. Essa dimensão performativa cumpre também função pragmática. Isso porque reforça a percepção de que o primeiro investigado tinha autoridade para tratar do tema, ao ponto de ser ouvido, respeitosamente, pela comunidade internacional.

60. O exame minucioso do discurso de 18/07/2022, em seu contexto, demonstra que a fala teve conotação eleitoral, sob tríplice dimensão: a) tratou-se de risco de fraude nas Eleições 2022; b) houve promoção pessoal e do governo do primeiro investigado, identificado com valores do povo brasileiro, em contraponto ao “outro lado”, associado a retrocessos e reputado como desprovido de apoio popular; c) narrou-se uma imaginária conspiração de Ministros do TSE para fazer com que um iminente adversário, já à época favorito em pesquisas pré-eleitorais, fosse eleito Presidente da República.

61. A narrativa apresentada no discurso estabelece-se em um contínuo com episódios anteriores, ocorridos no ano de 2021. Os elementos conspiratórios cultivados ao longo do tempo foram acionados pelo primeiro investigado, em 18/07/2022, ao evocar denúncias que vinha fazendo, há ao menos um ano, a respeito de supostas fraudes eleitorais.

62. Destacam-se, entre os fatos evocados, lives realizadas entre julho e agosto de 2021, quando o primeiro investigado explorou fortemente informações falsas a respeito do sistema eletrônico de votação no contexto de tramitação da PEC nº 135/2019. No ápice, chegou a afirmar que houve um acordo com um hacker para desviar 12 milhões de votos em 2018, o que, em sua narrativa fantasiosa, explicaria por que o primeiro investigado não foi eleito no primeiro turno.

63. Nessas ocasiões, o primeiro investigado se fez acompanhar de Anderson Torres, então Ministro da Justiça e da Segurança Pública (29/06/2021) e do Deputado Filipe Barros (04/08/2021), que endossaram o discurso de que haveria provas de fraudes eleitorais, produzidas pela Polícia Federal e pelo próprio TSE. Para essa finalidade, as autoridades distorceram relatórios técnicos de auditoria e o IPL nº 1361/2018. Ademais, análises precárias foram divulgados como material técnico, contra o aconselhamento de peritos da Polícia Federal, que haviam sido levados ao Palácio do Planalto a fim de que deles se extraísse declaração no sentido de que havia prova da fraude eleitoral, o que foi veementemente negado pelos policiais.

64. As lives foram transmitidas nas redes sociais do primeiro investigado e, ao menos em duas ocasiões, pela emissora Jovem Pan, durante o programa Os Pingos nos Is, normalizando um estado de paranoia injustificada e tornando familiar a prática discursiva que viria a ser exercitada pelo primeiro investigado em 18/07/2022.

65. Assim, a mensagem divulgada em 18/07/2022 não constituiu um fato esporádico, mas um importante marco na estratégia comunicacional do primeiro investigado com suas bases políticas, assegurando sua mobilização permanente.

66. Essa prática discursiva moldou um pensamento conspiracionista que se conservou latente e foi acionado com facilidade às vésperas do período eleitoral de 2022.

67. Não há como dar guarida à tese de que o primeiro investigado buscou travar um diálogo institucional na reunião de 18/07/2022. Sua fala foi um monólogo composto por conteúdos técnicos falsos e ataques insidiosos a reputações. O objetivo era esgarçar a confiabilidade do sistema de votação e da própria instituição que tem a atribuição constitucional de organizar eleições.

68. Tampouco é possível acolher a alegação de que teria havido, no discurso, mera defesa da necessidade de transparência eleitoral, respaldada pela liberdade de expressão e pelo interesse público. No contexto da narrativa, o suposto desejo por “transparência” era posto como inatingível, tendo em vista que eventual vitória do adversário, desde então à frente nas pesquisas, era tratada como suficiente para “comprovar” a fraude. O negacionismo se mostrava irredutível, a despeito de dados empíricos, consensos políticos e decisões técnicas que sustentam a robustez dos mecanismos de transparência já existentes.

69. Por fim, é também insubsistente a tese de que havia uma disposição de aceitação pacífica dos resultados pelo primeiro investigado. Os fatos apurados demonstram que um pensamento conspiratório, segundo o qual uma fraude seria engendrada pelo próprio TSE para entregar resultados eleitorais inautênticos, foi sendo normalizada pelo primeiro investigado e por seu entorno, com forte influência sobre o eleitorado. O então Presidente da República não fez qualquer gesto público que refletisse a pessoal aceitação dos resultados eleitorais de 2022 como legítimos. Manteve ativado, assim, o prognóstico trágico sobre o risco de fraude, que havia apresentado à comunidade eleitoral e ao eleitorado em 18/07/2022, em um perigoso flerte com o golpismo.

Subsunção dos fatos às premissas de julgamento

70. A “prova robusta”, necessária para a condenação em AIJE, equivale ao parâmetro da prova “clara e convincente” (clear and convincing evidence).

71. A tríade para apuração do abuso – conduta, reprovabilidade e repercussão – se perfaz diante de: a) prova de condutas que constituem o núcleo da causa de pedir; e b) elementos objetivos que autorizem: b.1) estabelecer um juízo de valor negativo a seu respeito, de modo a afirmar que são dotadas de alta reprovabilidade (gravidade qualitativa); e b.2) inferir com necessária segurança que essas condutas foram nocivas ao ambiente eleitoral (gravidade quantitativa).

72. Sob essa ótica:

72.1 restou comprovado que o primeiro investigado concebeu, planejou e mandou executar o evento de 18/07/2022 como uma reação a evento do TSE, uma atípica reunião em que o Presidente da República, com o objetivo de antagonizar com o Tribunal, apresentou a chefes de Missão Diplomática desconfiança sobre as urnas eletrônicas e desencorajou o envio de missões de observação internacional;

72.2 a análise integral do discurso proferido pelo primeiro investigado em 18/07/2022 no Palácio da Alvorada demonstra que foi disseminada severa desordem informacional a respeito do sistema eletrônico de votação e graves ataques a Ministros do TSE, com vistas a abalar a confiabilidade na governança eleitoral brasileira;

72.3 a reunião teve nítida finalidade eleitoral, mirando influenciar o eleitorado e a opinião pública nacional e internacional;

72.4 a prática discursiva exercitada em 18/07/2022 converge com a adotada na campanha dos investigados, que explorou os ataques à credibilidade das urnas eletrônicas e do TSE para mobilizar bases eleitorais;

72.5 comprovou-se, com riqueza de detalhes, que a estrutura pública da Presidência e as prerrogativas do cargo de Presidente da República foram direcionadas em favor da candidatura dos investigados;

72.6 os números relativos ao alcance do vídeo na internet não deixam dúvidas de que a transmissão pela TV Brasil e pelas redes sociais potencializou a difusão do discurso de 18/07/2022 e, com isso, da desinformação divulgada pelo primeiro investigado; e

72.7 é possível concluir com a segurança necessária que a estratégia de descredibilização das urnas eletrônicas e os ataques à Justiça Eleitoral contribuíram significativamente para fomentar um ambiente de não aceitação dos resultados das Eleições 2022.

73. Está configurado nos autos o uso indevido de meios de comunicação, perpetrado pessoalmente pelo primeiro investigado mediante difusão massiva de gravíssima desordem informacional sobre o sistema eletrônico de votação e a governança eleitoral brasileira, na reunião de 18/07/2022 no Palácio da Alvorada, que foi convocada e protagonizada pelo então Presidente da República e pré-candidato à reeleição, transmitida em suas redes sociais e pela TV Brasil.

74. Restou demonstrado, ainda, que o primeiro investigado negligenciou relevantes premissas simbólicas da relação entre os Poderes da República e explorou, no interesse exclusivo de sua estratégia eleitoral, prerrogativas do cargo, bens e serviços empregados para viabilizar um evento que teve por único fim veicular discurso extremamente danoso à normalidade eleitoral.

75. Assim, também se conclui pela ocorrência do abuso de poder político, praticado de forma pessoal pelo primeiro investigado, que concebeu, definiu e ordenou que se realizasse, em tempo recorde, evento estratégico para sua pré-campanha, no qual fez uso de sua posição de Presidente da República, de Chefe de Estado e de “comandante supremo” das Forças Armadas para potencializar os efeitos da massiva desinformação a respeito das eleições brasileiras apresentada à comunidade internacional e ao eleitorado.

76. A disponibilidade para candidatar-se pressupunha o compromisso com a preservação da normalidade eleitoral, da isonomia, da legitimidade e da liberdade do voto. Além disso, o cargo ocupado exigia-lhe respeitar a missão institucional da Justiça Eleitoral, abster-se de difundir pensamentos intrusivos capazes de perturbar o exercício de direitos políticos e, ainda, contribuir para que as eleições transcorressem em um ambiente pacífico e seguro. Esses deveres foram descumpridos.

77. Sob a ótica da accountability, a condição de Presidente da República candidato à reeleição era incompatível com os comportamentos adotados, por meio dos quais o primeiro investigado promoveu severo esgarçamento do tecido democrático. Desse modo, o primeiro investigado é pessoalmente responsável pelos ilícitos praticados.

78. Não foram comprovadas condutas ilícitas imputáveis pessoalmente ao segundo investigado.

III. Dispositivo

79. Preliminar de incompetência da Justiça Eleitoral e prejudicial de “redelimitação” da demanda não conhecidas.

80. Preliminar de ilegitimidade passiva ad causam do segundo investigado e alegação de nulidade processual rejeitadas.

81. Requerimento de reabertura da instrução indeferido.

82. Pedido julgado parcialmente procedente, para condenar o primeiro investigado, Jair Messias Bolsonaro, pela prática de abuso de poder político e de uso indevido de meios de comunicação nas Eleições 2022 e, em razão de sua responsabilidade direta e pessoal pela conduta ilícita praticada em benefício de sua candidatura à reeleição para o cargo de Presidente da República, declarar sua inelegibilidade por 8 (oito) anos seguintes ao pleito de 2022.

83. Cassação do registro de candidatura dos investigados prejudicada, exclusivamente em virtude de a chapa beneficiária das condutas abusivas não ter sido eleita, sem prejuízo de reconhecer-se os benefícios eleitorais ilícitos auferidos por ambos os investigados.

84. Comunicação imediata da decisão à Secretaria da Corregedoria-Geral Eleitoral para que, independentemente da publicação do acórdão, promova a devida anotação no histórico de Jair Messias Bolsonaro, no Cadastro Eleitoral, da hipótese de restrição a sua capacidade eleitoral passiva.

85. Determinação de envio de comunicações à Procuradoria-Geral Eleitoral, ao Tribunal de Contas da União e aos Relatores, no STF, dos Inquéritos nos 4878/DF e 4879/DF e da Petição nº 10.477/DF, para ciência e providências que entenderem cabíveis.

 

Acordam os ministros do Tribunal Superior Eleitoral, por unanimidade, em não conhecer da preliminar de incompetência da Justiça Eleitoral, rejeitar a preliminar de ilegitimidade passiva de causa do segundo investigado e a alegação de nulidade processual e indeferir o requerimento de reabertura de instrução. Por maioria, em não conhecer da prejudicial de “redelimitação” da demanda, nos termos do voto do relator, vencido, neste ponto, o Ministro Raul Araújo.

No mérito, por unanimidade, em julgar improcedente o pedido para absolver o investigado Walter Souza Braga Netto, e por maioria, vencidos os Ministros Raul Araújo e Nunes Marques, julgar parcialmente procedente o pedido para condenar o primeiro investigado, Jair Messias Bolsonaro, pela prática de abuso de poder político e pelo uso indevido de meios de comunicação, e declarar sua inelegibilidade por 8 (oito) anos seguintes ao pleito de 2022, deixando de aplicar a cassação do registro de candidatura dos investigados, exclusivamente em virtude de a chapa beneficiária das condutas abusivas não ter sido eleita. Por fim, determinar a comunicação imediata, nos termos do voto do relator, à Secretaria da Corregedoria-Geral Eleitoral, para que, independentemente da publicação do acórdão, promova a devida anotação do histórico de Jair Messias Bolsonaro, no cadastro eleitoral, da hipótese de restrição a sua capacidade eleitoral passiva. À Procuradoria-Geral da República, para análise de eventuais providências na esfera penal. Ao Tribunal de Contas da União, considerando-se o comprovado emprego de bens e recursos públicos na preparação do evento em que se consumou o desvio de finalidade eleitoreira. E, ao Ministro Alexandre de Moraes, na condição de relator do STF, dos Inquéritos nos 4.878 e 4.879; ao Ministro Luiz Fux, na condição de relator da Petição 10.477, para ciência e providências que entenderem cabíveis, nos termos do voto do relator.

 

Brasília, 30 de junho de 2023.

 

MINISTRO BENEDITO GONÇALVES –  RELATOR  

 

RELATÓRIO

 

O SENHOR MINISTRO BENEDITO GONÇALVES: Obrigado, Presidente. Saúdo inicialmente Vossa Excelência, Presidente deste Tribunal, Ministro Alexandre de Moraes; nossa Vice-Presidente, Ministra Cármen Lúcia; Ministro Nunes Marques; Ministro Raul Araújo; Ministro Floriano; Ministro André; e o nosso servidor, na pessoa do nosso Diretor; e o Ministério Público Eleitoral, na pessoa do nosso Professor Paulo Gonet; e saudação inicialmente aos advogados que farão uso da palavra em defesa dos seus constituintes, e a todos os advogados aqui presentes.

Outra saudação também, que se encontram no Plenário – está aqui a informação – aos estudantes do Ensino Médio da Escola Comunitária de Campinas, São Paulo, e do Curso de Direito da Faculdade Santa Lúcia de Mogi, São Paulo. Sejam bem-vindos.

Presidente, permita-me, antes da leitura específica do relatório, eu fazer algumas considerações preliminares. Esse relatório foi juntado aos autos em 1º de junho deste ano, mesma data em que fiz o pedido de inclusão em pauta, prontamente atendido por Vossa Excelência. Embora o teor do relatório seja público desde aquela data, é muito oportuno que o julgamento desta AIJE seja iniciado por ele, como será, e isso permitirá dar amplo conhecimento do trâmite do processo a todas e todos que acompanham a sessão.

Adianto que, na leitura, irei me abster de detalhar as questões que já foram objeto de decisões interlocutórias submetidas ao crivo deste Colegiado. Também darei máxima objetividade à abordagem dos demais pontos. Farei isso, porém, com o cuidado de ser didático e de bem refletir as alegações de fato e de direito que compuseram o debate em contraditório. Como nós sabemos, o relatório não apresenta nenhuma conclusão do relator sobre o mérito, somente o que foi feito, instruído, coletado, na maior fidedignidade aos fatos e ao Direito, aqui tratada.

Passo ao relatório especificamente, Presidente.

Senhor Presidente, trata-se de ação de investigação judicial eleitoral ajuizada pelo Diretório Nacional do Partido Democrático Trabalhista contra Jair Messias Bolsonaro, à época candidato à reeleição para o cargo de Presidente da República, e Walter Souza Braga Netto, candidato a Vice-Presidente da República, por suposta prática de abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação.

A ação tem como causa de pedir fática o alegado desvio de finalidade de reunião havida no dia 18/07/2022, na qual o primeiro réu, no exercício do cargo de Presidente da República, teria se utilizado de encontro com embaixadores de países estrangeiros para atacar a integridade do processo eleitoral, especialmente disseminando “desordem informacional” relativa ao sistema eletrônico de votação. Aponta-se que o discurso se insere em estratégia de campanha voltada para o descrédito ao sistema eletrônico de votação e que o evento contou com cobertura da Empresa Brasil de Comunicações (EBC), sendo amplamente divulgado nas redes sociais do candidato à reeleição, potencializando o efeito danoso das declarações proferidas na condição de Chefe de Estado.

A petição inicial contempla as seguintes alegações de fato (ID 157940943):

a) a ocorrência da reunião com os embaixadores é fato público e notório;

b) a tônica do evento foi a de questionamento da integridade do processo eleitoral e das instituições da República, “especificamente o TSE e seus Ministros”;

c) o Presidente candidato à reeleição, pessoalmente, afirmou a possibilidade de que os resultados do pleito pudessem ser comprometidos por fraudes no sistema de votação;

d) foi literalmente afirmado pelo primeiro investigado, entre outras informações falsas, que, em 2018, as urnas trocaram o dígito 7 pelo 3, transformando o voto no “17” (número de Jair Bolsonaro) em “13”; que o sistema brasileiro de votação é “inauditável”; que a apuração é realizada por empresa terceirizada e não pode ser acompanhada; que o TSE teria admitido que, em 2018, “invasores puderam [...] trocar votos entre candidatos”;

e) no discurso, foram também feitas insinuações sobre suposta interferência eleitoral e defesa de “terroristas” por parte de Ministros do STF, bem como associado à “esquerda” o atentado sofrido por Bolsonaro em 2018;

f) o discurso obteve amplo alcance, pois a reunião foi transmitida pela TV Brasil, ligada à Empresa Brasil de Comunicação, e o vídeo foi veiculado nas redes sociais do primeiro investigado, alcançando, até a propositura da ação, aproximadamente 589.000 e 587.000 visualizações (respectivamente, no Facebook e no Instagram);

g) o então Presidente do TSE, Ministro Edson Fachin, agências de checagem e veículos de imprensa apontaram o caráter falso das afirmações lançadas contra o sistema de votação;

h) o discurso foi retirado da plataforma YouTube por iniciativa da empresa, que informou que “a política de integridade eleitoral do YouTube proíbe conteúdo com informações falsas sobre fraude generalizada, erros ou problemas técnicos que supostamente tenham alterado o resultado de eleições anteriores, após os resultados já terem sido oficialmente confirmados”;

i) o evento foi utilizado inegavelmente para fins eleitorais, pois o candidato à reeleição difundiu a gravação de discurso em que ataca a Justiça Eleitoral e o sistema eletrônico de votação, o que converge com estratégia de sua campanha.

Quanto à capitulação jurídica dos fatos, o autor sustenta que houve violação aos arts. 37, § 1º, da Constituição, 73, I, da Lei nº 9.504/97 e 22 da LC nº 64/1990, com base nas seguintes teses:

a) a conduta caracteriza desvio de finalidade no exercício do poder discricionário outorgado ao agente público, que foi utilizado para a consecução de fins eleitoreiros;

b) o uso da condição funcional de Presidente da República para, em manifesto desvio de finalidade, reunir embaixadores de países estrangeiros e difundir fake news contra o processo eleitoral amolda-se ao abuso de poder político;

c) foi também utilizado o aparato estatal em favor da candidatura, pois a reunião foi realizada no Palácio da Alvorada e, ainda, transmitida pela TV Brasil, ligada a empresa pública;

d) o alcance do ato praticado com desvio de finalidade foi amplificado pela divulgação do conteúdo sabidamente inverídico nas redes sociais;

e) “por figurar como Chefe de Estado, as falas do Senhor Jair Messias Bolsonaro têm capacidade de ocasionar uma espécie de efervescência nos seus apoiadores e na população em geral”, o que foi explorado, na hipótese, em “matéria de alta sensibilidade perante o eleitorado”;

f) conforme fixado no RO nº 0603975-98 (Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJE de 10/12/2021), a disseminação de ataques infundados ao processo eleitoral por meio de redes sociais caracteriza o uso indevido dos meios de comunicação;

g) a conduta possui alto grau de reprovabilidade e alcançou parcela significativa do eleitorado, revestindo-se de gravidade (aspectos qualitativo e quantitativo).

Por fim, no que diz respeito às provas, o autor:

a) inseriu na petição inicial links de internet e prints, destacando-se postagens nas redes sociais do primeiro investigado, transmissão do canal da TV Brasil no YouTube e sites de notícias, com vistas a conferir suporte à narrativa fática;

b) apresentou protesto genérico pela produção de provas;

c) protocolizou pendrive contendo o vídeo objeto de apuração da AIJE, o que foi certificado pela Secretaria (ID 157942663), que fracionou o conteúdo da mídia em seis partes sequenciais para juntada aos autos (ID 157957944).

Foi juntada procuração outorgada aos advogados que subscrevem a petição inicial (ID 157940944).

O investigante formulou requerimento de tutela de urgência, que foi deferido por meu antecessor, Min. Mauro Campbell Marques, para determinar a imediata retirada do conteúdo das redes sociais do primeiro investigado e da Empresa Brasil de Comunicação no Facebook, no Instagram e no YouTube, sob pena de multa de R$10.000,00 (dez mil reais). A decisão foi referendada pela Corte, à unanimidade, em 30/08/2022 (IDs 157951424 e 157984156).

No que diz respeito ao cumprimento da decisão liminar:

a) a Google Brasil declarou que o vídeo já havia sido tornado indisponível pelo responsável pela postagem, mas que foi possível à empresa adotar medidas para preservar o conteúdo (ID 157961443);

b) a Empresa Brasil de Comunicação informou que excluiu os conteúdos (ID 157961477);

c) o Facebook Brasil informou que excluiu o conteúdo e que procedeu à sua preservação, ainda que não tenha constado ordem expressa nesse sentido e que o material já tenha sido juntado aos autos, razão pela qual requer que seja declarado o integral cumprimento da ordem (ID 157962283).

Certificou-se nos autos, em 25/10/2022, o cumprimento do mandado de citação do primeiro investigado e a expedição de citação por correio para o segundo investigado (IDs 157961240 e 157961242).

Os investigados apresentaram contestação conjunta em 29/10/2022 (ID 157977291).

Suscitaram preliminares de:

a) exigência de formação de litisconsórcio passivo necessário com a União, ao argumento de que seu patrimônio jurídico foi afetado pela decisão de retirada de conteúdo produzido e publicado pela TV Brasil, canal vinculado à empresa pública EBC, o que acarreta a “incindibilidade da relação jurídica entre a União e os eventos descritos na petição inicial”;

b) incompetência da Justiça Eleitoral, uma vez que o ato descrito foi praticado pelo investigado na condição de Chefe de Estado, no regular desempenho da função privativa de manter relações com Estados estrangeiros (art. 84, VII, CF/88), sem qualquer relação com a disputa entre candidatos.

No mérito, argumentam, quanto aos fatos, que:

a) na hipótese dos autos, foi praticado “ato de governo”, insuscetível de controle jurisdicional sob a ótica do “fim político” e da soberania, inexistindo ato eleitoral, uma vez que “[n]ão se cuidou de eleições! Não se pediu votos! Não houve ataque a oponentes! E não houve a apresentação comparativa de candidaturas!”;

b) o evento constou de agenda oficial, previamente publicizada, sendo inclusive expedido convite para o então Presidente do TSE, Min. Edson Fachin, “não sendo crível que o primeiro Investigado convidasse destacado membro da própria Justiça Especializada para testemunhar evento de conotação eleitoral”;

c) o “público-alvo da exposição”, formado por representantes de países estrangeiros, “sequer detinha cidadania e capacidade ativa de sufrágio”;

d) “uma leitura imparcial e serena” do discurso do primeiro investigado revela “falas permeadas de conteúdos técnicos, que buscam debater um tema importante (transparência do processo eleitoral), dispostas ao longo de mais de 1h (uma hora) de apresentação [...] no afã de contrapor ideias e dissipar dúvidas sobre a transparência do processo eleitoral”;

e) “a má-fé de determinados setores da imprensa” levou a cobertura do evento a tratar “uma proposta de aprimoramento do processo democrático como se se tratasse de ataque direto à democracia”, quando na verdade se tratou de “um convite ao diálogo público continuado para o aprimoramento permanente e progressivo do sistema eleitoral e das instituições republicanas”;

f) trechos do discurso, que permitiriam sua adequada contextualização e compatibilidade com valores expressos pela OEA ao promover missões de observação eleitoral, “foram (maliciosamente) omitidos da inicial”;

g) o Tribunal de Contas da União fez recomendações para aprimoramento da segurança e da transparência do sistema eletrônico de votação (TC nº 014.328.2021-6) e o próprio TSE criou a Comissão de Transparência Eleitoral (Portaria TSE nº 578/2021), o que ilustra a licitude de apresentar “questionamentos (pontos duvidosos!), postos às claras”;

h) o Presidente do TSE, em 31/05/2022, realizou reunião com a comunidade internacional “a pretexto de fornecer ‘informações sérias e verdadeiras sobre a tecnologia eleitoral brasileira’ [...] a despeito de, como devido respeito, não estar legitimado constitucionalmente para tanto”, o que pode ser considerado um “evento assemelhado” ao discutido nos autos.

As teses jurídicas foram contrapostas da seguinte forma:

a) um ato de governo, por sua própria natureza, não pode ser enquadrado como abuso de poder político ou uso indevido dos meios de comunicação;

b) encontra-se resguardada pela liberdade de expressão “a exposição de pontos de dúvidas à comunidade internacional, em evento público constante de agenda oficial de Chefe de Estado soberano, no afã de aprimorar o processo de fiscalização/transparência do processo eleitoral”;

c) não há, nos autos, “provas contundentes do prejuízo ao processo eleitoral”, mas apenas “considerações vagas e imprecisas acerca da eventual gravidade do discurso apresentado aos embaixadores”;

d) “o debate público foi completo”, uma vez que, após a legítima exposição do ponto de vista do Chefe de Estado à comunidade internacional, o Presidente do TSE “emitiu nota pública reativa de esclarecimento” por meio da qual rebateu, com ampla publicidade, um total de 20 (vinte) pontos apresentados pelo Investigado”;

e) “qualquer possibilidade – ainda que remota e inventiva – de lesão à legitimidade das eleições foi prontamente estancada pela Justiça Eleitoral”, tendo em vista a ampla divulgação da nota do TSE pelos meios de comunicação, “com alcance social igual ou maior” e “com emprego de termos duros e cáusticos até mesmo para discursos jornalísticos”;

f) aplica-se à espécie a “teoria dos diálogos institucionais”, acolhida pela jurisprudência do STF (ADI nº 4650, Rel. Luiz Fux, DJ de 24/02/2016), que repudia a existência de instituição detentora do monopólio do sentido e do alcance das normas, devendo os pronunciamentos da Suprema Corte serem tomados como “última palavra provisória”.

A iniciativa probatória dos réus, nessa fase, consistiu em:

a) requerimento de oitiva de quatro testemunhas, a saber: Carlos Alberto Franco França, Ministro das Relações Exteriores; Flávio Augusto Viana Rocha, Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República; Ciro Nogueira Lima Filho, Ministro-Chefe da Casa Civil; e João Henrique Nascimento de Freitas, Assessor-Chefe do Presidente da República;

b) prova documental composta por relatório de auditoria do TCU; relatório da análise, pelo TSE, das sugestões da Comissão de Transparência indicando acolhimento de 72,7% das propostas; Carta Democrática Interamericana (CID-OEA); notícias jornalísticas sobre a nota do TSE emitida após a reunião.

Foram juntadas procurações outorgadas pelos investigados aos subscritores da peça de defesa (IDs 157977297 e 157977298).

Com vistas a assegurar o pleno contraditório em torno das questões e requerimentos a serem examinados por ocasião do saneamento do processo, as partes foram intimadas, abrindo-se prazo comum de 3 dias para que o autor se manifestasse sobre as preliminares suscitadas na contestação e os réus justificassem o requerimento de prova testemunhal, indicando os pontos fáticos controvertidos a serem dirimidos pelos respectivos depoimentos (ID 158045220).

A réplica do autor acrescentou ao debate processual os seguintes argumentos (ID 158067068):

a) inexiste litisconsórcio passivo necessário com a União em razão do simples fato de a TV Brasil haver albergado o vídeo, sendo a remoção de conteúdos ilícitos decorrência do art. 9º-A da Res.-TSE nº 23.610/2019;

b) a Justiça Eleitoral é competente para examinar a difusão de fake news “intimamente ligadas ao pleito” e que foram praticadas com “desvirtuação da atuação legítima estatal para confortar ânimos eleitorais e escusos do Chefe de Estado”;

c) a “teoria do ato de governo” não pode ser utilizada para “lançar uma espécie de verniz imunizante sobre as falas do Senhor Jair Messias Bolsonaro, que não tem o poder de tudo poder”, sendo legítimo pleitear o controle jurisdicional sobre conduta que representa agressão à integridade do processo eleitoral;

d) o primeiro investigado é responsável por conferir à reunião viés eleitoral, estando configurada a hipótese de abuso de poder político, ante o uso da condição funcional, em manifesto desvio de finalidade com impacto sobre as Eleições 2022.

Por sua vez os réus justificaram o requerimento de prova testemunhal nos seguintes termos (ID 158072327):

a) é necessário expor a dinâmica do evento questionado, falas e comentários dos presentes;

b) o rol de testemunhas denota “a possibilidade de conhecimento dos fatos sequiosos de esclarecimento, frente às relevantes funções desempenhadas por cada uma das pessoas indicadas”;

c) a prova não ostenta caráter protelatório, “inclusive porque postulada até como modicidade, eis que não postulado, como de direito, sequer o número máximo de 06 (seis) testemunhas, previsto em lei (art. 22, V, da LC nº 64/90)”.

Proferiu-se, então, decisão de saneamento e organização do processo, na qual foram dirimidas questões processuais, fixados os pontos controvertidos e, com base nestes, apreciados os requerimentos de prova. Destaco da referida decisão (ID 158487960):

a) registro da formação válida do processo, com ênfase para o comparecimento espontâneo do segundo investigado ao apresentar defesa conjunta antes da juntada do aviso de recebimento (art. 239, § 1º, do CPC);

b) registro da regularidade representação das partes, por advogadas e advogados aos quais foram outorgadas procurações;

c) declaração do devido e tempestivo cumprimento da decisão liminar em que se ordenou às redes sociais e à TV Brasil remover conteúdos no prazo assinalado e conservá-los durante o curso da ação;

d) constatação da tempestividade dos atos processuais até então práticos, razão pela qual foram analisadas todas as manifestações e documentos apresentados;

e) rejeição das preliminares de incompetência da Justiça Eleitoral e de ausência de formação de litisconsórcio passivo necessário com a União, ambas suscitadas pelos réus;

f) delimitação das questões de fato, a acarretar a estabilização da demanda (art. 329, II, do CPC), sem prejuízo da admissão, à controvérsia, da obrigatória consideração de fatos supervenientes (art. 493 do CPC) ou diretamente relacionados com a causa de pedir já estabilizada, uma vez que “[n]ão decorre dessa medida a blindagem do debate processual contra alegações e documentos que possam influir no julgamento da causa”, apresentando-se os “contornos gerais da matéria controvertida sobre a qual recairá a prova” nos seguintes termos:

“Na hipótese dos autos, o substrato fático que motivou a propositura da AIJE é a realização de reunião do Presidente da República com embaixadores de países estrangeiros no Palácio da Alvorada, no dia 18/07/2022, bem como sua ampla divulgação, pela TV Brasil e pelas redes sociais do primeiro representado. Na ocasião, o primeiro investigado realizou exposição em que abordou o sistema eletrônico de votação brasileiro e fez referência a Ministros do STF.

Esses fatos quedaram incontroversos ao final da fase postulatória. A autora juntou mídia contendo vídeo da realização do discurso. Não houve objeção, por parte dos réus, à autenticidade ou integridade do material.

A controvérsia fática recai sobre as circunstâncias em que a reunião foi realizada e em que ocorreu sua divulgação nas redes.

O autor afirma que o primeiro réu, atuando com desvio de finalidade, utilizou-se do encontro com chefes de missões para atacar a integridade do processo eleitoral, especialmente disseminando “desordem informacional” relativa ao sistema eletrônico de votação e fazendo insinuações sobre a conduta de Ministros que presidiram o TSE. Além disso, argumenta que o discurso tem aderência à estratégia de campanha do candidato à reeleição para mobilizar suas bases por meio de fatos sabidamente falsos, devendo-se levar em conta que a transmissão pelas redes sociais fez com que a mensagem chegasse ao eleitorado.

De sua parte, os investigados refutam qualquer relação entre o evento e o pleito de 2022. Defendem que a reunião se ateve à sua finalidade pública, uma vez que, segundo sua narrativa, o Presidente da República, no exercício da liberdade de expressão, expôs seu ponto de vista sobre o sistema de votação para convidados que nem mesmo eram eleitores. Ressaltam que a fala fez parte de um diálogo institucional sobre tema de interesse público, devendo ser lida em cotejo com anterior evento do TSE (em que o Ministro Edson Fachin, então seu Presidente, se dirigiu a membros da comunidade internacional) e com nota em que o tribunal rebateu as afirmações feitas por Jair Bolsonaro na reunião do Palácio do Alvorada.”

g) delimitação das questões de direito, com a seguinte fundamentação:

“Embora seja de rigor afirmar que o réu se defende dos fatos e não da qualificação jurídica dada a estes, é certo que as particularidades das ações eleitorais exigem que, ao ter início a fase instrutória, tenha-se plena ciência das questões de direito que serão relevantes para o deslinde do feito. Isso porque, em Direito Eleitoral, uma mesma conduta pode ser capitulada sob a ótica de ilícitos diversos, com consequências distintas.

Tais ilícitos possuem elementos típicos próprios que influem na iniciativa probatória das partes. Por exemplo, o que é suficiente para demonstrar que foi realizada propaganda irregular, punível com multa mediana, pode não bastar para a condenação por conduta vedada ou por uso indevido de meios de comunicação. Do mesmo modo, e com especial interesse para a AIJE, cada modalidade abusiva possui características próprias, que devem ser levadas em conta ao longo da instrução.

No caso vertente, as teses jurídicas deduzidas pelo autor encontram-se bem delimitadas. Imputa-se aos investigados a prática de abuso de poder político, ante o alegado desvio de finalidade no exercício de suas funções de Presidente da República e no uso de bens públicos, e de uso indevido de meios de comunicação, que teria sido perpetrado pela utilização de redes sociais, inclusive de empresa pública, para difundir conteúdo sabidamente falso acerca do sistema eletrônico de votação.

Ao longo da exposição, o autor menciona ainda a violação aos arts. 37, § 1º da Constituição, 73, I, da Lei 9.504/97 e 9º-A da Res.-TSE 23.610/2019, que descrevem condutas passíveis, em tese, de se amoldar às práticas abusivas descritas no art. 22 da LC 64/90.

Ao refutar a configuração dos ilícitos em comento, os investigados, além de se oporem à ocorrência do desvio de finalidade e do uso das redes para divulgar fake news, afirmam que os fatos não são graves o suficiente para afetar os bens jurídicos tutelados pela AIJE. Em particular, alegam que a publicação da nota do TSE, com ampla repercussão midiática, teria neutralizado eventuais impactos da fala dirigida pelo primeiro investigado aos embaixadores.

Assim, a gravidade da conduta, sob o ângulo qualitativo (grau de reprovabilidade) e quantitativo (repercussão no contexto do pleito específico) é ponto controvertido cuja análise deverá ser balizada pelos elementos probatórios coligidos aos autos.”

h) cotejo dos requerimentos de prova com os pontos controvertidos, sob a ótica da pertinência e utilidade, o que conduziu ao deferimento da oitiva de todas as quatro testemunhas arroladas pelos réus, justificada como meio para conhecimento da dinâmica do evento, “falas e comentários dos presentes”, com destaque para a importância de que os fatos fossem descritos sob a ótica de autoridades que desempenhavam “relevantes funções” no governo findo em 2022;

i) designação de audiência para oitiva das testemunhas;

j) submissão da rejeição das preliminares suscitadas pelos investigados a referendo em plenário, tendo em vista que, caso acolhidas, poderiam levar à extinção do feito, antecipando-se, para a mesma oportunidade a realização de sustentação oral sobre a matéria.

A rejeição das preliminares foi referendada, por unanimidade, na sessão de 13/12/2022. Transcrevo o teor da ementa do acórdão respectivo (ID 158550654):

“AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ELEIÇÕES 2022. PRESIDENTE. PRELIMINARES. REJEIÇÃO. QUESTÕES EM TESE APTAS A ACARRETAR DECISÃO TERMINATIVA. COLEGIALIDADE. RACIONALIDADE PROCESSUAL. IMEDIATA SUBMISÃO À CORTE.

ATO DE GOVERNO. ALEGADO DESVIO DE FINALIDADE EM FAVOR DE CANDIDATURA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ELEITORAL. UNIÃO. PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PÚBLICO. ILEGIMIIDADE PASSIVA. LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO. INEXISTÊNCIA. DECISÃO INTERLOCUTÓRIA REFERENDADA.

1. Trata-se de ação de investigação judicial eleitoral (AIJE) destinada a apurar a ocorrência de abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação, ilícitos supostamente perpetrados em decorrência do desvio de finalidade da reunião do Presidente da República com embaixadores de países estrangeiros, a fim de favorecer sua candidatura à reeleição.

2. Concluída a fase postulatória, proferiu-se decisão de saneamento e organização do processo, com o objetivo assegurar que a fase instrutória seja iniciada em ambiente de estabilidade jurídica, resolvidas todas as questões pendentes.

3. No decisum, foram rejeitadas duas preliminares suscitadas pelos investigados.

4. Como regra geral, as questões resolvidas por decisão interlocutória, no procedimento do art. 22 da LC nº 64/90, não são recorríveis de imediato. Nessa hipótese, o reexame pelo Colegiado fica diferido para a sessão em que for julgado o mérito e somente ocorre se a parte o requerer em alegações finais (art. 19, Res.-TSE nº 23.478/2016; art. 48, Res.-TSE nº 23.608/2019).

5. A aplicação da regra às ações de investigação judicial eleitoral foi reafirmada no julgamento da AIJE nº 0601969-65 (Rel. Min. Jorge Mussi, DJE de 08/05/2020), quando o TSE declarou preclusa a possibilidade de a parte, silente nas alegações finais, rediscutir decisão em que o Relator indeferiu provas.

6. A sistemática prestigia a celeridade, mas, para que atinja seu objetivo, deve ser aplicada sempre com respeito à racionalidade processual. Desse modo, não se justifica que toda a instrução seja desenvolvida enquanto está pendente de exame pela Corte questão preliminar capaz de, em tese, levar à extinção do processo sem resolução do mérito.

7. Nessa linha, é conveniente ao bom andamento deste feito e à estabilidade do processo eleitoral que a Corte desde logo avalie se, tal como se concluiu na decisão saneadora, ação proposta é efetivamente viável.

PRELIMINAR DE INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ELEITORAL. REJEITADA.

8. A Justiça Eleitoral é competente para apurar desvios de finalidade de atos praticados por agentes públicos, inclusive por Chefe de Estado, quando da narrativa se extrair que o mandatário se valeu do cargo para produzir vantagens eleitorais para si ou terceiros. Entender o contrário seria criar uma espécie de salvo-conduto em relação a desvios eleitoreiros ocorridos, justamente, no exercício do feixe de atribuições mais sensível do Presidente da República.

9. Na hipótese dos autos, os requisitos para a definição da competência do TSE foram devidamente delimitados pela parte autora. Narra-se que o Presidente da República, utilizando-se de seu cargo, convocou reunião com embaixadores de países estrangeiros, mas, agindo com desvio de finalidade, teria passado a atacar a integridade do sistema eleitoral, em estratégia amoldada à de sua campanha, beneficiando-se, ainda, da ampla repercussão da transmissão do evento pela TV Brasil.

10. Os argumentos trazidos pelos investigados, no sentido de que atos de governo não se sujeitam a controle jurisdicional, pressupõem que inexista o desvirtuamento para fins eleitorais, matéria a ser examinada no mérito.

PRELIMINAR DE NÃO FORMAÇÃO DE LITISCONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO COM A UNIÃO. REJEITADA.

11. É pacífica a jurisprudência no sentido da impossibilidade de pessoas jurídicas figurarem no polo passivo da AIJE. Nos intensos debates desta Corte sobre o tema do litisconsórcio passivo necessário, essa premissa jamais foi alterada. O que se vem discutindo é se deve, ou não, ser exigida a inclusão, no polo passivo, dos responsáveis pela prática abusiva – portanto, de pessoas físicas passíveis de suportar inelegibilidade. Precedentes.

12. À luz de todo o arcabouço doutrinário e jurisprudencial para preservar a isonomia entre candidatos à reeleição e seus adversários, recusa-se a ideia de que haja uma “relação jurídica incindível” entre a União e o Presidente da República a impor que o ente federado litigue, na AIJE, ao lado do candidato.

13. Além da indevida mescla de interesses públicos e privados que deriva dessa proposta, seu acolhimento comprometeria, em definitivo, a celeridade e a economicidade, ao forçar a atuação processual de entes federados, autarquias, empresas públicas e fundações em toda e qualquer ação em que se apure finalidade eleitoral ilícita de atos praticados em nome do Poder Público.

14. Assim, mesmo que a União e a Empresa [Brasil] de Comunicação entendessem que a remoção de vídeo gravado pela TV Brasil acarretou prejuízo ao seu patrimônio, não se tornariam litisconsortes necessários dos investigados. Ressalte-se que, no caso, nem mesmo isso ocorreu, pois aquelas pessoas jurídicas de direito público não adotaram qualquer medida voltada para assegurar a veiculação do material.

CONCLUSÃO.

15. Rejeitadas as preliminares suscitadas pelos investigados, conclui-se pela viabilidade da AIJE proposta.

16. Decisão interlocutória referendada.”

A primeira audiência para oitiva de testemunha foi realizada em 19/12/2022, quando foi tomado o depoimento de Carlos Alberto Franco França, então Ministro das Relações Exteriores (IDs 158533126 e 158533127).

Em 13/01/2023, o autor promoveu a juntada de documento novo, consistente em imagens de minuta de decreto de Estado de Defesa, cujo original havia sido apreendido, no dia anterior, pela Polícia Federal na residência de Anderson Torres – ex-Ministro da Justiça e Segurança Pública do governo de Jair Bolsonaro – durante diligência determinada pelo Ministro Alexandre de Moraes no âmbito do Inquérito nº 4879, que tramita no STF. Requereu, ainda, que fosse solicitadas “cópias oficiais dos documentos pertinentes à busca e apreensão em apreço, especificamente os que dizem respeito à minuta do decreto descrito em linhas anteriores” (ID 158553894).

Os requerimentos foram deferidos em decisão interlocutória na qual expressamente consignada a aderência do fato superveniente à demanda em curso, em especial no que diz respeito à correlação do discurso com a eleição e ao aspecto quantitativo da gravidade. Destaco trecho em que foi explicado o ponto (ID 158554507):

“Tem-se, em síntese, que as partes controvertem sobre: a) a relação entre o evento realizado em 18/07/2022 e as eleições ocorridas no mesmo ano; b) caso estabelecida essa correlação, a gravidade da conduta, no aspecto qualitativo (o discurso em si) e quantitativo (repercussão no contexto eleitoral).

Com base na fixação da matéria fática e jurídica controvertida, já se deferiu, nos presentes autos, prova testemunhal requerida pela parte ré. Note-se que essa prova foi pleiteada, a despeito de se ter acesso à íntegra do discurso proferido por Jair Bolsonaro, porque os investigados sustentaram a relevância de expor outros fatores relativos à dinâmica do evento, tais como “falas e comentários dos presentes” e, ainda, a ótica de autoridades que desempenhavam “relevantes funções” no governo.

A justificativa mostrou aderência à tese defensiva que se dirige ao aspecto qualitativo da gravidade, uma vez que, segundo os investigados, as circunstâncias do evento, a serem relatadas pelas testemunhas, demonstrariam a sua regularidade, vez que estaria inserido em um “diálogo institucional” entre o TSE e o Poder Executivo. Desse modo, deferi a prova, consignando que “[n]a presente ação, constata-se que a disputa de narrativas tem por objeto o contexto do evento (reunião com embaixadores) e, não, sua existência.

De igual forma, constato que os fatos ora trazidos a juízo pela parte autora possuem aderência aos pontos controvertidos, em especial no que diz respeito à correlação do discurso com a eleição e ao aspecto quantitativo da gravidade.

Conforme se observa, a tese da parte autora, desde o início, é a de que o discurso realizado em 18/07/2022 não mirava apenas os embaixadores, pois estaria inserido na estratégia de campanha do primeiro investigado de “mobilizar suas bases” por meio de fatos sabidamente falsos sobre o sistema de votação. Na petição ora em análise, alega que a minuta de decreto de Estado de Defesa, ao materializar a proposta de alteração do resultado do pleito, “densifica os argumentos que evidenciam a ocorrência de abuso de poder político tendente promover descrédito a esta Justiça Eleitoral e ao processo eleitoral”.

Constata-se, assim, a inequívoca correlação entre os fatos e documentos novos e a demanda estabilizada, uma vez que a iniciativa da parte autora converge com seu ônus de convencer que, na linha da narrativa apresentada na petição inicial, a reunião realizada com os embaixadores deve ser analisada como elemento da campanha eleitoral de 2022, dotado de gravidade suficiente para afetar a normalidade e a legitimidade das eleições e, assim, configurar abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação.

A decisão foi objeto de pedido de reconsideração, no qual os réus afirmaram que foram violadas a estabilização da demanda e a consumação de decadência (ID 158557843). Após ouvir a parte autora (ID 158560428), indeferi o pedido, mantendo a decisão por seus fundamentos, e fixei orientação a ser aplicada às AIJEs das Eleições 2022 em situações semelhantes (ID 158622380).

Tendo em vista o caráter prejudicial das questões suscitadas, cujo acolhimento poderia impactar na instrução, remeti ao Plenário o exame dos fundamentos adotados e da orientação fixada. Ambos os pontos foram referendados na sessão de 14/02/2023, o que constou em acórdão assim ementado (ID 158704139):

“AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ELEIÇÕES 2022. PRESIDENTE. JUNTADA DE DOCUMENTO NOVO. FATOS SUPERVENIENTES.  ADMISSIBILIDADE. DESDOBRAMENTO DE FATOS QUE COMPÕEM A CAUSA DE PEDIR. PEDIDO DE RECONSIDERAÇÃO. DECADÊNCIA. VIOLAÇÃO À ESTABILIZAÇÃO DA DEMANDA. INOCORRÊNCIA. QUESTÕES PREJUDICIAIS REJEITADAS. DECISÃO REFERENDADA.

1. Trata-se de decisão em que, rejeitadas as prejudiciais de decadência e de violação à estabilização da demanda, indeferiu-se pedido de reconsideração formulado contra a admissibilidade de documento novo juntado aos autos durante a fase de instrução.

2. Nesta AIJE, apura-se abuso de poder político e uso indevido de meios de comunicação, ilícitos supostamente praticados em reunião de 18/07/2022 ocorrida no Palácio da Alvorada, quando o então Presidente da República, primeiro investigado, proferiu discurso lançando suspeitas de fraude nas urnas eletrônicas e acusações de parcialidade de Ministros do TSE. O evento contou com a presença de embaixadores de países estrangeiros e foi transmitido pela TV Brasil e nas redes sociais do candidato à reeleição.

3. A causa de pedir da AIJE é delimitada pelos contornos fáticos e jurídicos que permitam a compreensão da demanda, não se exigindo que a parte autora, ao postular em juízo, tenha pleno domínio de todos os fatos que podem influir no julgamento e os descreva em minúcias.

4. Na hipótese, a causa de pedir contempla a imputação de que o discurso proferido em 18/07/2022 se insere em uma estratégia de campanha do primeiro réu, de difundir fatos sabidamente falsos relativos ao sistema eletrônico de votação, para mobilizar seu eleitorado por força de grave “desordem informacional” atentatória à normalidade do pleito.

5. Em contrapartida, os investigados refutam qualquer relação entre o evento de 18/07/2022 e as eleições, enxergando no discurso uma legítima manifestação, em salutar “diálogo institucional” com o TSE, afirmando ainda que qualquer efeito do discurso teria sido prontamente neutralizado por nota pública do tribunal.

6. Diante disso, na decisão de organização e saneamento do processo, consignou-se que os fatos constitutivos (o evento, o discurso e seu conteúdo) são incontroversos e que as partes disputam a narrativa sobre o significado e o impacto eleitoral do episódio. Ressaltou-se que, em matéria de abuso de poder, o exame da gravidade da conduta, sob o ângulo qualitativo e quantitativo, reclama especial atenção para a análise de elementos contextuais.

7. O documento novo ora trazido aos autos consiste em minuta de decreto de Estado de Defesa apreendida pela Polícia Federal na residência do ex-Ministro da Justiça e da Segurança Pública, Anderson Torres, no dia 12/01/2023, durante diligência determinada pelo Ministro Alexandre de Moraes no âmbito do Inquérito nº 4879, que tramita no STF.

8. É inequívoco que o fato de o ex-Ministro da Justiça do governo do primeiro investigado ter em seu poder uma proposta de intervenção no TSE e de invalidação do resultado das eleições presidenciais possui aderência aos pontos controvertidos, em especial no que diz respeito à correlação entre o discurso e a campanha e ao aspecto quantitativo da gravidade.

9. A decadência obsta a dedução de ilícitos inteiramente novos, sendo fator de estabilidade política e jurídica. No entanto, apresentada a demanda de modo tempestivo, os fatos supervenientes que guardem relação com a causa de pedir, mesmo que não alegados pelas partes, devem ser obrigatoriamente considerados no julgamento (art. 493, CPC; art. 23, LC 64/90).

10.  Desse modo, não se pode interpretar a estabilização da demanda como um recorte completo e irreversível na realidade fenomênica. Essa ideia acarreta um descolamento tal dos fatos em relação a seu contexto que chega a impedir o órgão judicante de levar em conta circunstâncias que gradativamente se tornem conhecidas ou potenciais desdobramentos das condutas em investigação.

11. Ressalte-se que, no caso dos autos, o que a autora pretende discutir são eventos que se conectam a partir do eixo central da narrativa, segundo a qual o discurso na reunião com embaixadores mirava efeitos eleitorais ilícitos. O próprio teor do discurso do Presidente, que livremente escolheu os tópicos que desejava abordar, oferece uma clara visão sobre o fluxo de eventos – passados e futuros – que podem, em tese, corroborar a imputação da petição inicial.

12. Ao lado dessas considerações gerais, deve-se ter em conta que o resultado das eleições presidenciais de 2022, embora fruto legítimo e autêntico da vontade popular manifestada nas urnas, se tornou alvo de ameaças severas. Passado o pleito, a diplomação e até a posse do novo Presidente da República, atos desabridamente antidemocráticos e insidiosas conspirações tornaram-se episódios corriqueiros. São armas lamentáveis do golpismo dos que se recusam a aceitar a prevalência da soberania popular e que apostam na ruína das instituições para criar um mundo de caos onde esperam se impor pela força.

13. Os acontecimentos se sucedem de forma vertiginosa. Mas o devido processo legal tem, entre suas virtudes, a capacidade de decantar os fatos e possibilitar seu exame analítico. É isso que deve guiar a instrução das AIJEs, pois é central à consolidação dos resultados das Eleições 2022 averiguar se esse desolador cenário é, ou não, desdobramento de condutas em apuração nas diversas ações. Esse debate não pode ser silenciado ou inibido por uma artificial separação entre as causas de pedir e a realidade fenomênica em que se inserem.

14.  Os temas das ações propostas são de conhecimento público. Não há segredo de justiça. As decisões de admissibilidade, de concessão de tutela inibitória e de saneamento, bem como outras de caráter interlocutório, têm contemplado cuidadoso delineamento das matérias em discussão.

15. Tendo em vista o prestígio à celeridade, à economia processual e à boa-fé objetiva, entendo prudente que, especificamente no que diz respeito às AIJEs relativas às eleições presidenciais de 2022, seja fixado um parâmetro seguro e objetivo que dispense, a cada fato ou documento específico, uma nova decisão interlocutória que revolva todos os fundamentos ora expostos.

16. Orientação a ser aplicada em situações semelhantes, no sentido de que a estabilização da demanda e a consumação da decadência não impedem que sejam admitidos no processo e considerados no julgamento elementos que se destinem a demonstrar desdobramentos dos fatos originariamente narrados, a gravidade (qualitativa e quantitativa) da conduta que compõe a causa de pedir ou a responsabilidade dos investigados e de pessoas do seu entorno, tais como: a) fatos supervenientes à propositura das ações ou à diplomação dos eleitos, ocorrida em 12/12/2022; b) circunstâncias relevantes ao contexto dos fatos, reveladas em outros procedimentos policiais, investigativos ou jurisdicionais ou, ainda, que sejam de conhecimento público e notório; e c) documentos juntados com base no art. 435 do CPC.

17. Mantido o indeferimento do pedido de reconsideração.

18. Decisão interlocutória referendada.”

No ínterim entre a rejeição do pedido de reconsideração e seu referendo em plenário, foi realizada a segunda audiência para oitiva de testemunhas arroladas pelos réus. Em 08/02/2023 (ID 158628231), foram ouvidos Ciro Nogueira Lima Filho, ex-Ministro Chefe da Casa Civil (ID 158629232), e Flávio Augusto Viana Rocha, ex-Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência (ID 158628233). Os investigados desistiram da oitiva de João Henrique Freitas (ID 158626938), inicialmente prevista para a mesma data.

Concluída a produção da prova requerida na fase postulatória, sobreveio decisão em que determinei diligências complementares, de ofício, nos termos dos incisos VI a IX do art. 22 da LC nº 64/1990 (ID 158764809).

No decisum, ressaltei que os citados dispositivos impõem ao relator da AIJE assegurar, de ofício ou a requerimento das partes, o esgotamento da instrução probatória, mediante requisições, oitivas e outras providências que atendam ao interesse público na elucidação de possíveis práticas abusivas. Ponderei a necessidade de se atentar para o caráter complementar dessa atividade, preservando a objetividade da apuração. Ainda, fiz referência à necessidade de que o art. 23 da LC nº 64/1990 seja considerado regra de instrução, reconhecendo a indispensabilidade de que, diante de fatos e circunstâncias relevantes identificados pelo magistrado, sejam estes previamente apresentados, concedendo-se às partes oportunidade para se pronunciar a respeito.

Com essas balizas, procedi à análise das providências a serem adotadas, extraindo do discurso proferido por Jair Messias Bolsonaro em 18/07/2022 e das circunstâncias da realização e da divulgação do evento o referencial para avaliar quais diligências são efetivamente relevantes ao deslinde do feito. Consignei, com apoio em transcrição literal e contínua do discurso dirigido aos embaixadores de países estrangeiros, que:

a) as críticas dirigidas contra o sistema eletrônico de votação tiveram como fio condutor a reiterada referência a Inquérito no qual a Polícia Federal teria concluído que hackers tiveram acesso a “diversos códigos-fonte” e teriam sido capazes de “alterar nomes de candidatos, tirar voto de um, transferir para outro”;

b) a fala possui marcadores cronológicos, que conectam passado, momento presente e projeções para o futuro:

b.1) a alegada fraude ocorrida em 2018, passando pela advertência de que não poderia ter havido eleições em 2020 antes da “apuração total” do ocorrido;

b.2) a própria urgência de endereçar a mensagem aos embaixadores de países estrangeiros, na iminência do período eleitoral de 2022; e, por fim,

b.3) a enfática reivindicação, somente compreensível nesse arco narrativo alarmista, de que as Eleições 2022 fossem “limpas, transparentes, onde o eleito realmente reflita a vontade da sua população”;

c) fatos relacionados ao primeiro daqueles marcadores – “b.1” supra – passaram-se em 2021, quando teve início no TSE o Inquérito Administrativo nº 0600371-71, instaurado pelo Corregedor-Geral Eleitoral para apurar condutas praticadas em lives conduzidas pelo então Presidente Jair Messias Bolsonaro e que, em tese, poderiam caracterizar disseminação de informações falsas a respeito do sistema eletrônico de votação com potenciais danos às Eleições 2022;

d) constam do referido Inquérito Administrativo degravações de lives realizadas em:

d.1) 29/07/2021, em que Jair Messias Bolsonaro dividiu a transmissão com Eduardo Gomes da Silva e, ao final, com o então Ministro da Justiça e da Segurança Pública, Anderson Gustavo Torres;

d.2) 04/08/2021, ocasião em que o primeiro investigado e o Deputado Filipe Barros, com transmissão da Jovem Pan durante o programa “Os Pingos nos Is”, divulgaram Inquérito da Polícia Federal e, com base nele, teceram afirmações sobre adulteração de votos nas Eleições 2018, discurso que voltou a ser ventilado perante os embaixadores em 2022, com a declaração “eu tive acesso a esse inquérito no ano passado [2021] e divulguei”;

 d.3) 12/08/2021, após a rejeição da “PEC do voto impresso”, em que o então Presidente volta a afirmar que hackeamento haveria atingido o computador “que conta os votos, que faz a apuração” e cogita que “o acordo com esses hackers seria de desviar 12 milhões de votos do candidato Jair Messias Bolsonaro, sumir com 12 milhões de votos”, ao mesmo tempo em que declara: “não tenho provas [...], mas alguma coisa aconteceu”;

e) os depoimentos das três testemunhas da defesa até então ouvidas, que declararam não ter envolvimento na realização do evento de 18/07/2022, seja pessoalmente ou por meio dos órgãos sob sua gestão (Casa Civil, Ministério das Relações Exteriores e Assessoria Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência), contrastou com o relevo dos cargos desempenhados e, mais especificamente, com expressa referência de Jair Messias Bolsonaro no sentido de que Carlos Alberto Franco França, seu Ministro das Relações Exteriores, encaminharia “extrato” da reunião às Embaixadas e disponibilizaria a eventuais interessados a íntegra do Inquérito da Polícia Federal;

f) oportuna a oitiva de pessoas que foram ouvidas no IA nº 0600371-71, a fim de que pudessem ser inquiridas em juízo e com respeito ao contraditório;

g) cabível, portanto, a determinação das seguintes diligências complementares, de ofício:

g.1) juntada de documentos, extraídos do Inquérito nº 0600371-71;

g.2) expedição de ofício ao Ministro-Chefe da Casa Civil, requisitando-se informações consolidadas sobre a participação de órgãos do Governo Federal na preparação, realização e difusão do encontro realizado no Palácio da Alvorada em 18/07/2022, solicitando-lhe, para tanto, que, além da consulta a seus registros, estenda a comunicação ao Ministério das Relações Exteriores, à Assessoria Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência, à Assessoria de Cerimonial e demais órgãos acaso envolvidos na organização do evento, em prazo hábil para a consolidação; e

g.3) oitiva de testemunhas, para deporem sobre fatos devidamente delimitados, nos seguintes termos:

“a) Anderson Gustavo Torres, ex-Ministro da Justiça e da Segurança Pública, a respeito de sua contribuição e participação na live de 29/07/2021, seu eventual envolvimento na reunião de 18/07/2022 e circunstâncias relativas ao decreto de Estado de Defesa apreendido em sua residência, no dia 12/01/2023:

b) Eduardo Gomes da Silva, Coronel reformado, a respeito de sua contribuição e participação na live de 29/07/2021;

c) Ivo de Carvalho Peixinho e Mateus de Castro Polastro, servidores da Polícia Federal, para tratar sobre as circunstâncias em que foram envolvidos na live de 29/07/2021”.

Na decisão, ainda determinei a juntada da transcrição dos depoimentos colhidos nas audiências de 19/12/2022 e 08/02/2023, devendo os documentos ser gravados com sigilo até o julgamento de mérito, permitindo-se acesso estritamente às partes e ao Ministério Público Eleitoral. As transcrições constam dos IDs 158766494, 158766495 e 158766496.

Concedeu-se vista dos documentos às partes e ao MPE, permitida a formulação de novos requerimentos de provas, compatíveis com a etapa processual em curso. Quanto ao ponto, em atenção ao caráter complementar dessas diligências, adverti as partes de que requerimentos protelatórios estariam sujeitos a multa, nos seguintes termos:

“Adianto que os requerimentos acaso formulados serão analisados de forma rigorosa, somente se deferindo aqueles que tenham sua pertinência e utilidade objetivamente demonstrada, a partir da estrita vinculação aos fatos específicos que se pretende provar, e que não estejam cobertos pela preclusão. Nesse sentido, advirto as partes, desde logo, que, caso evidenciado o caráter protelatório de qualquer requerimento, inclusive em virtude da abstração ou amplitude da justificativa da prova, será aplicada multa por litigância de má-fé, em montante proporcional à circunstância concreta.

(Com destaques no original)

Em 16/03/2023, realizou-se a terceira audiência de oitiva de testemunhas, sendo ouvidos Anderson Gustavo Torres, ex-Ministro da Justiça e da Segurança Pública (ID 158835189), e os policiais federais Ivo de Carvalho Peixinho (ID 158835190) e Mateus de Castro Polastro (ID 158835192), que haviam sido convocados ao Palácio do Planalto para reunião que precedeu a live de 29/07/2021. Eduardo Gomes não foi ouvido, uma vez que não foi possível localizá-lo nos endereços que constam no Cadastro Eleitoral (IDs 158774250 e 158789869).

No que diz respeito à iniciativa de produção de diligências complementares, a Procuradoria-Geral Eleitoral e o Partido Democrático Trabalhista (PDT) expressaram seu desinteresse na produção de outras provas (IDs 158786167 e 158794439).

Por sua vez, os investigados requereram (ID 158797364):

a) a oitiva de testemunhas, justificada com base em fatos específicos relacionados à causa que poderão por elas ser elucidados:

a.1) Filipe Barros, Deputado Federal que “foi relator da PEC que tratava do Voto Impresso (id. 158764856, p. 12) e participou, ativamente, com o Presidente e Investigado Jair Messias Bolsonaro, no programa ‘Pingo nos is’”, sendo ainda “quem, primeiramente, obteve o acesso ao Inquérito Policial 1361/2018-4/DF”;

a.2) Guilherme Fiuza, Augusto Nunes e Ana Paula Henkel, “jornalistas responsáveis pela condução do programa ‘Pingos nos is’, que poderão elucidar as reais e efetivas razões de se realizar o programa com esse tema específico”, por serem as pessoas que “efetivamente participaram da entrevista realizada com o Investigado Jair Bolsonaro em 04/08/2021, e, por conseguinte, poderão contribuir com efetivos esclarecimentos sobre o contexto em que surgiu o interesse jornalístico sobre o tema versado no Inquérito Policial 1361/2018-4/DF, sobre as atitudes dos Investigados face aos fatos e sobre os bastidores do programa, não capturados, por óbvio, por meio de simples degravação”; e

a.3) o Ex-Deputado Federal Major Vitor Hugo, que “esteve presente na transmissão e poderá, destarte, esclarecer contexto, sentido, motivação e desenvolvimento da live”, acrescendo que “face à vedação de depoimento pessoal do primeiro Investigado em sede de AIJE, a testemunha mencionada é a única testemunha habilitada, em tese, a prestar os esclarecimentos ora tidos como essenciais para a comprovação da tese principal da defesa”;

b) a requisição de documentos, destinados a “demonstrar que as preocupações do investigado Jair Messias Bolsonaro não eram infundadas, mas eram decorrência (i) de investigação efetiva levada a cabo pela Polícia Federal, em atenção a pedido formulado por este C. TSE e (ii) da fiscalização desenvolvida pelo Tribunal de Contas da União sobre o tema das eleições”, a saber:

b.1) à Delegacia da Polícia Federal em Brasília, dos termos de depoimentos colhidos ao longo das investigações no Inquérito Policial 1361/2018-4/DF e, se existente, do relatório final produzido;

b.2) ao Supremo Tribunal Federal:

b.2.1) da complementação das cópias do Inquérito 4878/DF, contendo os desdobramentos processuais da investigação das circunstâncias de divulgação do Inquérito Policial nº 1361/2018-4/DF desde 21/02/2022;

b.2.2) de cópia da Petição nº 10.477/DF, que se refere à apuração de notícia crime a respeito do mesmo fato que compõe a causa de pedir desta AIJE e que conta com parecer, da PGR, pelo arquivamento; e

b.2.3) de “informações relativas a referida ‘minuta de decreto de Estado de Defesa’, especialmente no que concerne ao resultado dos exames periciais (contendo os nomes das pessoas com digitais em referido documento) e aos termos dos depoimentos prestados pelo Senhor ANDERSON TORRES no âmbito das investigações realizadas naquela Corte”.

Na mesma oportunidade, os investigados interpuseram agravo interno contra a decisão que determinou, de ofício, a realização de diligências complementares, sustentando que (ID 158797358):

a) o recurso é cabível, “mesmo diante da regra geral de recorribilidade diferida quanto a decisões interlocutórias em matéria eleitoral”, pois aos processos originários do tribunal deve ser aplicado o art. 36, § 8º, do Regimento Interno do TSE, para permitir a insurgência imediata;

b) a decisão agravada não atendeu às balizas fixadas na ADI nº 1082/STF a respeito da instrução suplementar permitida ao Corregedor e promoveu “indevida correção na deficiente atuação processual do Autor, determinando diligências jamais requeridas pelo Autor, em adiantado momento processual, mesmo que tais providências pudessem ter sido pleiteadas, a tempo e modo, eis que não derivam de efetivo ‘achado fortuito’ nem são alusivas a elementos ocorridos no futuro (vg, lives e programa jornalístico do ano de 2021)”;

c) a requisição de documentos dirigida à Casa Civil envolveu “intimação de Ministro do Presidente Lula (grupo político adversário ferrenho dos investigados!), para empreender elástica atuação probatória prospectiva, em sua pasta e em quaisquer outros órgãos federais, na perspectiva ostensiva de aferir a ‘participação de órgãos do Governo Federal na preparação, realização e difusão do encontro realizado no Palácio [da Alvorada], em 18/07/2022”, o que caracteriza “delegação de poder instrutório a grupo político beneficiário de eventual procedência da ação”, devendo-se observar que:

c.1) a oitiva das testemunhas arroladas pela defesa na contestação, devidamente compromissadas, comprovou “o não envolvimento direto dos órgãos de maior pertinência temática ao evento (Casa Civil, MRE e SAJ)”, o que é relevante para afastar a imputação de abuso de poder político e não pode ser reputado “instrução defeituosa” a ser suprida pela requisição de documentos à Casa Civil;

c.2) a solicitação, genérica e abrangente, de localização de suposta (e inexistente) prova documental”, dirigida “ao atual Ministro-Chefe da Casa Civil do governo petista – que, à época do ocorrido, longe dos fatos, era Governador do Estado da Bahia”, disparou “a consulta a documentos de diversos órgãos governamentais e a consolidação unilateral e casuística de seus (pretendidos) achados, em relatório sujeito a toda sorte de subjetivismos”, possibilitando “ao adversário político a engenhosa apresentação analítica de eventuais achados fortuitos”; e

c.3) “a prerrogativa de realização de verdadeira devassa, em arquivos federais, abre ensejo à edição conveniente de elementos probatórios e viabiliza, inclusive, o descarte seletivo de provas desfavoráveis à sanha persecutória, com mácula indelével à imparcialidade na construção da materialidade da instrução probatória”;

d) em decisão anterior, que admitiu a juntada da minuta de decreto de Estado de Defesa, consumou-se tratamento anti-isonômico às partes, uma vez que “restou facultado ao autor juntar quaisquer documentos que repute como pertinentes a amparar sua pretensão, estando estes desde já admitidos, sem necessidade de decisão interlocutória que homologue o seu (tardio) ingresso”, privilégio que alcançaria, “provas ainda nem produzidas, de fatos desdobráveis ad aeternum, e que não orientaram a linha defensiva vertida na contestação, bem como o requerimento de provas, considerando os fatos efetivamente expostos na exordial, a tempo e a modo”;

e) a citada decisão ainda violou o contraditório substancial, pois em lugar de reabrir o prazo de contestação de cinco dias, ou de assegurar prazo equivalente a este com base no art. 329 do CPC, concedeu-se três dias para a manifestação;

f) também houve violação ao contraditório durante a sessão de 14/02/2023, uma vez que se negou aos réus a oportunidade de realizar sustentação oral relativo ao pedido de reconsideração, em contrariedade a determinação expressa do Relator;

g) a determinação da oitiva de Anderson Torres, “para além de impertinente, ostenta pouca ou nenhuma utilidade processual”, tanto porque a testemunha se encontra sob a custódia do Estado e amparada pelo princípio da não autoincriminação, quanto porque o depoimento sobre sua participação em live de 29/07/2021, ocorrido mais de um ano antes da eleição, já foi prestado à Corregedoria-Geral Eleitoral;

h) embora a petição inicial já contivesse referência à live protagonizada pelo primeiro investigado em 2021, a parte autora não requereu a produção de provas em relação ao fato, quer no ajuizamento da AIJE ou ao pleitear a juntada da minuta de decreto de Estado de Defesa;

i) a determinação de juntada de documentos oriundos do Inquérito Administrativo nº 0600371-71 não atendeu aos limites do art. 23 da LC nº 64/1990, por referir-se a fatos que não se inserem ao conceito doutrinário de “fato simples”;

j) a advertência de que eventuais requerimentos de prova de caráter protelatório ensejariam multa por litigância de má-fé contém “tom de verdadeira ameaça às partes”, que atenta contra as garantias do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, bem como contra a prerrogativa profissional da advocacia, “a partir de inusual advertência de multa (já aplicada em valores verdadeiramente milionários!), acabando por desestimular a atuação das partes e do advogados no processo, receosos de reprimenda desproporcional e incompatível com os fins que efetivamente justificariam penalidades inibitórias de comportamento protelatório dos agentes processuais”.

Com esses argumentos, requereram:

a) “a revogação das diligências complementares determinadas, diante do desacerto na utilização das prerrogativas concedidas pela LC nº 64/1990, fora das balizas ditadas pela ADI nº 1082/STF e não guiadas pelo respeito ao contraditório, ao dever de fundamentação e à garantia da imparcialidade e segurança jurídica”;

b) “o afastamento da ameaça incomum e injustificada de multa, por litigância de má-fé, no que toca à eventual inadequação de indicação de prova testemunhal, permitindo-se o pleno exercício”.

Apreciei as manifestações dos investigados em decisão única, na qual: a) deferi todos os requerimentos de diligências complementares e, b) conhecendo o agravo interno como pedido de reconsideração, o indeferi (ID 158811502).

No que diz respeito ao vício formal da insurgência contra a determinação das diligências complementares de ofício, salientei o não cabimento do agravo interno, com suporte nas normas vigentes (arts. 19 da Res.-TSE nº 23.478/2016; 48 da Res.-TSE nº 23.608/2019; 36, § 6º, do Regimento Interno do TSE; e 932, I, do CPC). Destaquei que, conforme metodologia aplicada nesta ação, foram submetidas de imediato à Corte a rejeição de preliminares e questões prejudiciais – matérias cujo acolhimento extinguiriam a ação, total ou parcialmente – e a orientação que pautou o exame das diligências complementares. O capítulo foi concluído com os seguintes fundamentos:

“Percebe-se, assim, que o agravo interno é cabível para devolver ao colegiado o exame da decisão em que o relator, nos limites da delegação do Regimento Interno, substitui a atuação da Corte e julga monocratimente o recurso ou o pedido em ação originária – adentrando ou não o mérito, mas sempre com o intuito de exaurir a competência do TSE.

Essa não é a hipótese de decisão interlocutória proferida pelo Corregedor ao determinar a produção de provas. Nesse caso, na condição de Relator da AIJE, incumbe-lhe por lei processar e instruir o feito, preparando-o para o julgamento, que adiante se dará em Plenário ou, nas hipóteses autorizadas pelos §§ 6º e 7º do RITSE, por decisão monocrática. No curso da instrução o Corregedor deverá avaliar situações em que seja recomendável, ainda que não imperativo submeter ao Plenário questões incidentais.

Aliás, o ponto já foi tratado no feito ora em exame, quando consignei que, a par da irrecorribilidade imediata das decisões interlocutórias, na hipótese específica de rejeição de preliminares que em tese podem levar à extinção do feito, a racionalidade e a economia processual recomendavam levar a decisão a referendo. O enfrentamento da matéria pela Corte se destinava a assegurar que a atividade instrutória somente tivesse início caso assentada a admissibilidade da ação. [...]

A Corte também voltou a ser consultada durante a tramitação desta ação, mais uma vez por iniciativa deste Relator, a fim de avaliar se a diretriz instrutória consignada na decisão que admitiu ao debate processual fato superveniente. Naquele momento, os réus haviam apresentado pedido de reconsideração, que foi indeferido de forma fundamentada. Teve-se então o cuidado de extrair dessa fundamentação balizas objetivas relativas à aplicação conjugada do art. 23 da LC nº 64/1990 e do art. 329 do CPC e de levá-la a Plenário antes de que fosse dada sequência ao trâmite processual, já que a orientação se aplicaria à etapa seguinte, justamente relativa às diligências complementares (art. 22, VI a IX, LC nº 64/1990.

Assim, não há respaldo para a alegação dos réus de que o art. 36, § 8º do RITSE afasta a aplicação dos art. 19, da Res.-TSE 23.478/2016 e 48, da Res.-TSE 23.608/2019 à AIJE, formulada ao argumento de que a lógica da irrecorribilidade imediata teria sido concebida para “processos típicos, originados em primeira instância”, evitando a remessa de autos ao tribunal em razão de agravo de instrumento.

Em verdade, está-se diante de regras concebidas para evitar interrupções no fluxo dos atos processuais de qualquer ação eleitoral, em qualquer fase, em plena compatibilidade com a função de relatoria em ação originária. A sistemática, conforme visto, é compatível com a possibilidade de o Corregedor optar, diante de questões preliminares ou prejudiciais que conduziam a uma encruzilhada procedimental, por submeter ao Colegiado o caminho que traçou, para que este seja confirmado ou refutado, prestigiando-se à segurança jurídica e o fluxo lógico entre etapas procedimentais.

No momento, como se nota, não está em jogo definir se a ação será extinta ou se prossegue, resolver questão prejudicial ou fixar orientação plenária. A decisão agravada apenas concretizou a atuação deste Relator como responsável por dirigir e ordenar a instrução, inclusive no que diz respeito à produção da prova, nos termos do art. 932, I, CPC, e atento às particularidades das ações eleitorais, conforme arts. 22, VI a IX e 23 da LC nº 64/1990.

O agravo interno é, portanto, manifestamente inadmissível.”

Uma vez conhecido o agravo interno como pedido de reconsideração, os argumentos ventilados pelos réus foram objeto de exame. Transcrevo trechos da fundamentação adotada para rejeitar as alegações de vícios processuais, de “delegação de poderes instrutórios” a grupo adversário, e de constrangimento ao exercício da advocacia:

“[...] observada a metodologia de máximo prestígio ao contraditório e ao dever de fundamentação, recebo a petição ID 158797358 como pedido de reconsideração e o examino, desde já registrado, pelos fundamentos acima expostos, a desnecessidade de submeter a presente decisão a referendo.

O pedido abarca, em parte, pontos já fulminados pela preclusão temporal, lógica e consumativa. É que, conforme relatado, a admissibilidade da juntada da minuta de decreto de Estado de Defesa e o entendimento pela inexistência de violação à estabilização da demanda ou de alteração da causa de pedir são pontos decididos anteriormente e referendados em Plenário. Não há espaço para rediscutir esses pontos e, menos ainda, para questionar o prazo que havia sido assinalado para a manifestação dos investigados a respeito do documento.

Com efeito, os três dias assinalados – que, diga-se, são superiores ao prazo de dois dias previsto no art. 44, § 4º da Res.-TSE nº 23.608/2019 para manifestação sobre documentos juntados no curso da instrução nas representações especiais – foram devidamente utilizados pelos réus para se contrapor à força probante do documento e, ainda, para formular pedido de reconsideração. Silente a parte à época, não há ensejo, a essa altura, para reivindicar que o prazo fosse maior.

Além disso, a pretensão de que fosse observada simetria com o prazo de contestação, concedendo cinco dias para falar sobre o documento com fundamento no art. 329 do CPC, apenas denota a insistência na tese, já refutada, de que teria havido ampliação da causa de pedir.

Os réus também se insurgem contra as balizas fixadas para a aplicação dos arts. 435 e 493 do CPC em conjugação com o art. 23 da LC nº 64/1990, e que foram referendadas pela Corte. Rememoro que as diretrizes aprovadas pelo colegiado se assentam na premissa de que “a estabilização da demanda não acarreta uma blindagem do debate processual contra fatos que possam influir no julgamento”, uma vez que “há disposições legais expressas no sentido de que o magistrado leve em consideração fatos constitutivos, modificativos ou extintivos supervenientes ao ajuizamento (art. 493, CPC) e, ainda, fatos públicos e notórios e circunstâncias, ainda que não alegadas pelas partes, que preservem a lisura eleitoral (art. 23, LC nº 64/90). [...]

Os investigados afirmam que a orientação redunda em tratamento anti-isonômico às partes, pois, em sua visão, teria sido franqueada à autora a juntada até mesmo de “provas ainda nem produzidas, de fatos desdobráveis ad aeternum, e que não orientaram a linha defensiva vertida na contestação”. A assertiva tem conotação incompatível com o modo de condução deste processo, uma vez que todas as decisões e despachos evidenciam o extremo rigor na manutenção da ordem e da regularidade da tramitação.

A metodologia aplicada às AIJEs das Eleições 2022 envolve uma rotina de saneamento e de diálogo constante, resultando em determinações judiciais delimitadas com precisão, fundamentadas de forma exauriente e que permitem às partes compreender cada passo do trâmite processual. Nesse sentido, o que se definiu em Plenário é a adequação, em tese, da admissibilidade não apenas de fatos supervenientes que constituam desdobramentos da causa de pedir, como também elementos que demonstrem a gravidade da conduta ou a responsabilidade do investigado e de pessoas em seu entorno.

Essa fórmula diz respeito à análise da pertinência da prova à causa de pedir. Não está indicado em qualquer ponto que a partir dela se permitirá um prolongamento ad aeternum da instrução, pois não foram abandonados outros parâmetros que devem ser conjugados na organização da atividade probatória, inclusive a preclusão.

Não há também respaldo para concluir que essa fórmula privilegia a parte autora. Ao réu também importa ter a oportunidade de trazer ao debate processual fatos que digam respeito aos desdobramentos da causa de pedir, à gravidade da conduta e à responsabilidade do investigado e de pessoas em seu entorno. Tanto assim que os investigados, neste feito, requereram a juntada de parecer da PGR, produzido em março de 2023, que indicaria a ausência de indícios de prática de crime em decorrência do discurso proferido por Jair Messias Bolsonaro na reunião de 18/07/2022.

No que diz respeito à negativa de sustentação oral pela parte ré em 14/02/2023, trata-se de ato da Presidência, que não está submetido a revisão pelo Corregedor.

Passando-se aos argumentos propriamente relacionados ao conteúdo da decisão que determinou, de ofício, a realização de diligências complementares, constata-se que o renitente inconformismo dos agravantes com os contornos conferidos à aplicação do art. 23 da LC nº 64/1990 se somou ao desagrado com a aplicação dos incisos VI a IX do art. 22 da mesma lei, para conduzir a afirmações hiperbólicas que desenhariam um cenário de parcialidade do juízo.

Primeiramente, cabe rememorar que a atuação do Corregedor para determinar diligências de ofício ou a requerimento das partes, posteriormente à audiência de instrução é prevista expressamente no procedimento da AIJE. A decisão questionada pelos investigados foi bastante explícita a esse respeito, conforme se lê do trecho a seguir transcrito: [...]

Teve-se, então, o cuidado de, em conformidade à melhor técnica processual, assegurar que a regra de julgamento   com base em fatos notórios e circunstâncias não alegadas pelas partes (art. 23 da LC nº 64/1990) fosse necessariamente associada a uma regra de instrução (art. 22, VI a IX, da mesma lei). Ou seja: se é possível julgar com base naqueles elementos, é obrigatório que eles sejam previamente inseridos no processo, permitindo às partes e ao MPE se manifestarem a seu respeito e, quando for cabível, requererem provas. Reforça-se, com isso, a garantia de não-surpresa, em pleno respeito ao contraditório efetivo. [...]

Os investigados enxergaram na determinação de ofício das diligências complementares uma “indevida correção na deficiente atuação processual do Autor”, eis que seu objeto seriam provas que não foram pretendidas pelo investigante e que aportariam aos autos em momento tardio.

Não está caracterizada, porém, atuação tardia, mas, sim, medida ajustada perfeitamente ao momento que para ela foi previsto no art. 22, VI a IX da LC nº 64/1990, ou seja, após a audiência de instrução. Tampouco há “correção” da atividade da parte autora, eis que é dever do Corregedor, à luz das provas produzidas até a audiência de instrução, avaliar se há diligências necessárias para o deslinde da controvérsia. Este é o comando legal que se impõe ao Relator da AIJE, e que foi estritamente cumprido.

Nesse sentido, após a avaliação do estágio processual do feito, constatou-se haver pontos de dúvida que poderiam ser dirimidos por diligências complementares. Isso porque os termos do discurso proferido por Jair Messias Bolsonaro na reunião de 18/07/2022 com os embaixadores de países estrangeiros e a prova oral produzida em razão de requerimento da parte ré suscitaram questões de relevo para o deslinde da controvérsia.

Por exemplo, na reunião, o primeiro investigado expressamente incumbiu o então Ministro das Relações Exteriores, Carlos França, a repassar o material da apresentação aos embaixadores, enfatizando ainda que o Ministro também poderia enviar a íntegra do inquérito da Polícia Federal em que, segundo o ex-Presidente, “um hacker falou que tinha havido fraude por ocasião das eleições”. Ocorre que Carlos França, ouvido como testemunha da defesa, negou o envio de material e declarou não ter participado de forma significativa do evento. As duas outras testemunhas da defesa também negaram envolvimento substancial na preparação ou realização da reunião, embora arroladas pelos réus por deterem “particular conhecimento” sobre aspectos da dinâmica do evento.

Nesse cenário, a pertinência da requisição da prova documental aos órgãos governamentais que foram encabeçados pelas testemunhas da defesa – destinada a aferir se tiveram, ou não o envolvimento que a princípio foi sugerido tanto pela fala de Jair Bolsonaro no dia do evento quanto pela justificativa de seu arrolamento – não representa qualquer desbordo dos poderes instrutórios do Relator. Há expressa previsão legal de que o Corregedor pode requisitar documentos de ofício, e assim foi feito. Acrescente-se que a diligência não foi determinada com vista a um resultado pré-definido e pode muito bem ser concluída, como sustentam os réus, com a inexistência de documentos a respeito.

Relembre-se que a orientação plenária fixada em 14/02/2023 contempla três eixos: a) desdobramentos dos fatos originariamente narrados; b) gravidade (qualitativa e quantitativa) da conduta que compõe a causa de pedir; e c) responsabilidade dos investigados e de pessoas de seu entorno. Por isso, não se sustentam as objeções dos investigados à juntada de cópias do IA 0600371-71 ou à atenção dada às lives protagonizadas pelo primeiro investigado em 2021 e expressamente referidas no discurso proferido por Jair Messias Bolsonaro no Palácio [da Alvorada] em 18/07/2022.

Os réus se mostraram especialmente afligidos pelo fato de que a requisição de documentos dirigida à Casa Civil será cumprida por Ministro nomeado pelo atual Presidente da República, que venceu a chapa encabeçada pelo primeiro investigado, no pleito de 2022. Chegam a prever uma “elástica atuação probatória prospectiva, em sua pasta e em quaisquer outros órgãos federais”, que, no momento da consolidação, permitirá “ao adversário político a engenhosa apresentação analítica de eventuais achados fortuitos”, congregados em “um relatório sujeito a toda sorte de subjetivismos”. A isso denominaram “delegação de poder instrutório a grupo político beneficiário de eventual procedência da ação”, o que seria mais um elemento a denotar a parcialidade na condução do processo.

Sabe-se, porém, que a requisição é o meio usual pelos quais os órgãos públicos compartilham entre si documentos que estão em seu poder, impondo-se aos agentes públicos responsáveis o dever de prestar informações completas, autênticas e fidedignas. Isso independe do grupo que se encontre no exercício do poder político e é, mesmo, inerente ao princípio republicano é à impessoalidade.

Governantes, ministros, secretários e demais servidores públicos devem zelar pela integridade dos documentos sob sua guarda e cumprir de forma escorreita a determinação judicial para exibi-los, não lhes sendo lícito usar da requisição como meio para beneficiar ou prejudicar um candidato. Essa obrigação se impõe aos integrantes do atual governo federal, como também se aplicaria se o ex-Presidente tivesse sido reeleito. Descabe partir da premissa de que, ante uma requisição judicial, agentes estatais deliberadamente adulterarão ou ocultarão documentos públicos, a fim de ludibriar o juízo e produzir benefício ilegal para uma das partes, em franco atentado à dignidade da Justiça, prática de improbidade e incursão em conduta criminosa.

Ademais, qualquer relatório informativo que acompanhe os documentos eventualmente compartilhados será submetida ao crivo do contraditório. As partes e o MPE terão a faculdade de apontar o valor que, entendem, deva ser dado às informações. A disputa narrativa, inerente ao devido processo legal, será assegurada. Vieses poderão ser contestados, e, no limite, caso se entenda por indício de falsidade ou ocultação, poderão ser solicitadas as medidas processuais cabíveis, e que reforçam o controle do correto desempenho das funções estatais. Essa dinâmica, que se aplica à sucessão do poder no menor dos municípios brasileiros, se nele tramitar ação que impute ilícito ao Prefeito que não se reelegeu, igualmente rege a AIJE ajuizada no contexto da disputa do mais alto cargo do Poder Executivo brasileiro.

 A requisição não se dirige a um “grupo político” e tampouco transfere poder instrutório a ser exercido com “toda sorte de subjetivismos”. Também irrelevante que à época dos fatos o atual Ministro Chefe da Casa Civil não estivesse no governo federal e não tenha pessoal ciência do que se passou. Aquela autoridade não foi intimada como testemunha. Foi oficiada para, exercendo seu papel de coordenação dos demais Ministérios (que foi bem descrito em juízo pela testemunha Ciro Nogueira, anterior ocupante do cargo), reunir a documentação oficial – pertencente ao Estado Brasileiro, e, não, a um ou outro governo – que, acaso existente, possa elucidar as circunstâncias da preparação, da realização e da divulgação do encontro do dia 18/07/2022.

Os réus asseveraram, ainda no que diz respeito à requisição dirigida ao Ministro-Chefe da Casa Civil, que a solicitação foi “genérica e abrangente”, disparando “a consulta a documentos de diversos órgãos governamentais e a consolidação unilateral e casuística de seus (pretendidos) achados”. É afirmação que não encontra eco na determinação, objetiva, de que sejam prestadas “informações consolidadas sobre a participação de órgãos do Governo Federal na preparação, realização e difusão do encontro realizado no Palácio [da Alvorada], em 18/07/2022”. O objeto está perfeitamente delimitado e o êxito da incumbência somente depende de existir devida catalogação documental nos órgãos potencialmente envolvidos e de a diligência ser cumprida de forma eficiente.

Do mesmo modo, não há como interpretar a referência à necessária consolidação de documentos pela Casa Civil para envio à CGE como “prerrogativa de realização de verdadeira devassa, em arquivos federais”, que “abre ensejo à edição conveniente de elementos probatórios e viabiliza, inclusive, o descarte seletivo de provas desfavoráveis à sanha persecutória, com mácula indelével à imparcialidade na construção da materialidade da instrução probatória”. Simplesmente, descabe interpretar uma ordem judicial corriqueira, de compilação documental, como aval para o cometimento de ilegalidades com a gravidade descrita.

Certo é que todas essas elucubrações a respeito de supostos comportamentos ilegais são inservíveis para a finalidade de obstar a produção da prova. Em momento adequado, os réus terão oportunidade de se manifestar a respeito do resultado da diligência e, se assim entenderem, a vista do que concretamente for remetido a este juízo, e não a partir de ilações, poderão apontar deficiência, incompletude ou mesmo irregularidades graves no cumprimento da medida.

A determinação da oitiva de Anderson Torres foi classificada pelos réus como impertinente e inútil, pois a testemunha se encontra sob a custódia do Estado e amparada pelo princípio da não autoincriminação e, ainda, já teria prestado depoimento perante a Corregedoria sobre sua participação em live de 29/07/2021.

A primeira razão de insurgência se mostra inteiramente superada pelos fatos. Anderson Torres, embora sob custódia do Estado e tendo direito ao silencio para não se autoincriminar, foi ouvido em juízo no dia 16/03/2023 e optou por responder a todas as perguntas que lhe foram dirigidas. A inquirição foi feita pelo juiz instrutor, pelos autores, pelos réus e pelo representante do MPE. O depoimento transcorreu em perfeita normalidade, observadas todas as garantias inerentes à condição da testemunha de investigado em inquérito criminal.

O segundo argumento, que sugere a repetição inútil de ato já realizado, desconsidera que a primeira oitiva de Anderson Torres na CGE ocorreu no âmbito de inquérito administrativo, sem a participação das partes que litigam nesta AIJE. A nova coleta do depoimento, em contraditório, com oportunidade para a testemunha falar livremente e corroborar declarações anteriores, retificá-las ou explicá-las, bem se sabe, não é um preciosismo, mas importante reforço na qualidade da prova.

O último aspecto a ensejar objeção pelos réus foi a advertência de que eventuais requerimentos de prova de caráter protelatório ensejariam multa por litigância de má-fé. Enxergaram na decisão “tom de verdadeira ameaça às partes” e ofensa ao legítimo exercício da advocacia.

Na verdade, na atual sistemática do CPC, a advertência prévia está longe de ser uma ameaça. Consiste em desdobramento dos princípios da cooperação e da não-surpresa e, em algumas situações, até mesmo em dever do magistrado (art. 77, IV e VI, c/c §1º; art. 78, § 1º). A descrição de conduta em tese passível de gerar sanção processual permite às partes orientar sua atuação com base em parâmetros prévios, evitando comportamentos discrepantes da boa-fé objetiva.

No caso, a advertência consistiu em indicar que as partes (não somente os réus, como também o autor) deveriam atentar para o caráter complementar das diligências a serem requeridas neste momento processual, demonstrando de forma objetiva a pertinência e a utilidade da prova, “a partir da estrita vinculação aos fatos específicos que se pretende provar. Detalhou-se, ainda, que o caráter protelatório dos requerimentos poderia decorrer da formulação de requerimento abstrato ou amparado em justificativa amplíssima. Por fim, sem fixar valor prévio para eventual descumprimento, consignou-se que esta seria “proporcional à circunstância concreta”, caso praticado o ato protelatório.

O teor da advertência é compatível com a premissa da boa-fé objetiva e com os deveres das partes e de seus procuradores, em especial o de “não produzir provas e não praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou à defesa do direito” (art. 77, III). Mais que isso, denota o rigor que se tem adotado nesta ação para assegurar que o procedimento siga fluxo regular, a salvo de turbações, pari passu com a máxima amplitude do contraditório. Não há, então, nenhuma colisão entre franquear o requerimento de prova e advertir a parte de que esta oportunidade, complementar, deve ser exercitada com especial atenção ao momento processual e de forma cuidadosa o suficiente para viabilizar o exame do requerimento de prova.

Mencione-se que, longe de produzir efeito intimidatório, a advertência parece ter contribuído para a necessária objetividade da formulação a respeito de diligências complementares de interesse dos réus. O tema será abordado no próximo tópico.

Os fundamentos declinados conduzem ao indeferimento do pedido de reconsideração, devendo ser mantidas tanto as diligências complementares determinadas de ofício quanto a advertência contra condutas protelatórias das partes, plenamente compatível com fase atual.”

(com destaques no original)

Em inquirição iniciada em 27/03/2023 e concluída em 28/03/2023, colheram-se os depoimentos das testemunhas Filipe Barros, Deputado Federal (ID 158843587), Vitor Hugo, ex-Deputado Federal (ID 158843586), e Augusto Nunes, apresentador do programa “Os Pingos nos Is” (ID 158863333). Houve desistência, pelos investigados, da oitiva de Guilherme Fiúza e Ana Paula Henkel (ID 158863332).

As requisições e solicitações de documentos, pelo juízo e pelos investigados foram integralmente cumpridas, constando dos autos:

a) documentos extraídos do Inquérito nº 0600371-71 (ID 158764855);

b) prova documental requisitada à Casa Civil (IDs 158839073 a 158851459);

c) cópia integral do Inquérito Policial nº 1361/2018-4/DF, atualmente em trâmite sigiloso na 10ª Vara Federal de São Paulo/SP sob o número 5007377-27 (ID 158850900);

d) cópias dos Inquéritos nos 4878/DF e 4879/DF, em trâmite no STF sob Relatoria do Min. Alexandre de Moraes, inclusive resultado dos exames periciais realizados na “minuta de decreto de Estado de defesa” (IDs 158835933 e 158839056);

e) juntada de cópia integral da Petição nº 10.477/DF, em trâmite no STF sob Relatoria do Min. Luiz Fux (ID 158871511).

Tendo em vista a conclusão das diligências complementares relativas à prova documental requisitada a outros órgãos, abriu-se vista às partes e ao Ministério Público Eleitoral, nos termos do art. 44, § 4º, da Res.-TSE nº 23.608/2019 (ID 158852019).

Em resposta, o autor limitou-se a requerer o prosseguimento do feito (ID 158880544).

Por sua vez, os réus formularam novos requerimentos, a saber (ID 158881918):

a) juntada de matéria jornalística da CNN de 24/03/2023, relativa ao “recebimento de denúncia concernente a invasão hacker de sistemas (periféricos) do TSE, por ocasião das eleições municipais do ano de 2020”, “a fim de que o d. Corregedor avalie a necessidade de abertura de vista específica à parte contrária e ao d. órgão ministerial sobre o aludido documento”;

b) envio de ofício ao juízo responsável pela investigação do fato noticiado pela CNN, a fim de que “encaminhe cópia integral do inquérito (eis que já efetivada a denúncia) ao crivo do il. Corregedor e a consequente juntada aos autos, para ciência e manifestação das partes e do parquet eleitoral”;

c) juntada de postagem de autoria do “Sr. Carlos Lupi, enquanto presidente do PDT – Nacional, realizada em data recente, 27/05/2021 (contemporânea às lives trazidas aos autos pelo d. juízo), acompanhada do vídeo respectivo, que ostenta o seguinte trecho verbal: ‘Sem a impressão do voto, não há possibilidade de recontagem. Sem a recontagem, a fraude impera. Confira meu recado defendendo eleições honestas e verdadeiramente democráticas.’”;

d) oitiva de Eduardo Gomes da Silva, a princípio determinada pelo juízo, uma vez que “além da pertinência, já divisada àquela altura pelo juízo, inclusive quanto à submissão de elementos probatórios colhidos em caráter inquisitorial ao crivo do contraditório, cumpre enfatizar que alegações de Eduardo Gomes da Silva, prestadas extra autos, foram utilizadas, por diversas vezes e de forma expressa, para indagação de outras testemunhas do Juízo, notadamente os peritos federais Ivo de Carvalho Peixinho e Mateus de Castro Polastro”.

A Procuradoria-Geral Eleitoral informou “que analisará a prova documental produzida nos autos, incluindo a compartilhada pelo Juízo da 10ª Vara Criminal de São Paulo/SP e aquela apresentada pela Casa Civil, por ocasião da manifestação a que se refere o art. 22, XIII, da Lei Complementar n. 64/1990” (ID 158882219).

Os requerimentos de novas diligências requeridas pelos investigados foram parcialmente deferidos, apenas para aceitar-se a juntada de prova documental relativa a fatos mencionados na audiência. Quanto aos demais requerimentos, que restaram indeferidos, explicou-se o seguinte (ID 158886314):

“[...] a presente AIJE contou com amplo prestígio à iniciativa probatória das partes, associado à minudente análise da pertinência objetiva das diligências a serem determinadas.

Com isso, foi possível conjugar contraditório e celeridade, conduzindo-se o procedimento com estrita observância ao diálogo processual, à boa-fé objetiva, ao princípio da não surpresa e ao dever de fundamentação. Em pouco mais de 3 meses, foram realizadas cinco audiências e requisitados todos os documentos, inclusive procedimentos sigilosos, relacionados aos fatos relevantes para deslinde do feito. Saliente-se que foi deferida a oitiva de nove testemunhas da defesa e, em razão da desistência dos investigados, ouvidas seis delas. Foram ouvidas ainda 3 testemunhas por determinação do juízo, sempre com a necessária delimitação dos fatos que seriam objeto do depoimento.

Aberta vista a respeito dos documentos produzidos, a parte ré juntou documentos relativos a pontos tangenciados nas audiências de 27 e 28/03/2023 e manifestou interesse em novas diligências, a saber: requisição de inquérito relativo a ataque hacker a sistemas periféricos da Justiça Eleitoral em 15/11/2020 e oitiva de Eduardo Gomes da Silva.

No que diz respeito à denúncia ofertada pelo MPE em razão do ataque de 15/11/2020, os próprios investigados admitem que se tratou de exemplo utilizado na audiência, durante a inquirição de Filipe Barros, para lhe indagar “se esse tipo de situação contribuiria, de alguma forma e em tese, para a compreensão de que a matéria atinente ao aprimoramento da votação eletrônica, em sentido amplo, estaria a merecer debate público, revestido de interesse jornalístico”, “ao que assentiu conclusivamente a testemunha”.

Tratou-se, portanto, de uma conjectura, ilustrada pela matéria divulgada em 24/03/2023 e utilizada para fazer uma pergunta à testemunha. Esta, por sua vez, apenas emitiu uma opinião, concordando com a sugestão de que “esse tipo de situação contribuiria, de alguma forma e em tese” para estimular a defesa do “aprimoramento da votação eletrônica”. O teor da notícia da CNN relatado na audiência não foi posto em dúvida pela parte autora, pelo MPE ou pelo juiz instrutor e, ainda assim, os réus diligenciaram por juntar cópia da matéria, que demonstra que a informação dos advogados foi fidedigna ao fato noticiado (ID 158881919).

Nesse cenário, o pretendido acesso a autos da referida investigação é manifestamente desproporcional ao contexto em que a notícia da CNN foi mencionada, como simples elemento ilustrativo da pergunta formulada em audiência. Assevera-se que a requisição de informações sobre investigações em curso, o que já foi deferido neste feito em mais de uma ocasião, não pode ser trivializada, exigindo sempre avaliar se o conhecimento de fatos sensíveis e diligências estratégicas é mesmo essencial para a solução da controvérsia. No caso, a resposta é negativa, eis que adentrar os detalhes da denúncia é algo que extrapola a correlação estabelecida pelos próprios investigados ao se referir à matéria da CNN.

Quanto ao manifestado interesse na oitiva de Eduardo Gomes da Silva, que havia sido arrolada pelo juízo, é de se observar que a relevância desse depoimento em juízo ficou prejudicada em razão das declarações de Anderson Gustavo Torres, Ivo Peixinho e Mateus Polastro, suficientes ao esclarecimento da reunião prévia à live de 29/07/2021. A conclusão não é diferente daquela que levou os réus a desistirem de três das testemunhas que haviam arrolado. Assim, tendo em vista que Eduardo Gomes da Silva acabou não sendo localizado, descabe persistir na prova, que a essa altura seria meramente redundante.

Por fim, os documentos juntados pelos réus, relacionados a ocorrências da audiência, não desafiam nova vista à contraparte e à PGE, pois poderão ser objeto de exame nas alegações finais e no parecer, na linha já indicada pelos próprios sujeitos processuais em suas manifestações nesta fase.

Conclui-se, assim, que o rico acervo probatório reunido nos autos, que foi formado com ampla participação das partes e do MPE, esgota as finalidades da instrução, razão pela qual cumpre encerrar a presente etapa processual.”

(Com destaques no original)

Nesses termos, a instrução foi encerrada, expedindo-se intimações: a) às partes, para apresentarem alegações finais no prazo comum de dois dias, e b) ao Ministério Público Eleitoral, para apresentar parecer nos dois dias imediatamente subsequentes ao término do prazo de alegações finais, independentemente de nova intimação.

Determinou-se a juntada imediata, sob sigilo, das transcrições dos depoimentos colhidos nas audiências de 16, 27 e 28/03/2023. Os depoimentos constam dos IDs 158886321, 158886322, 158886323 e 158886324.

Os investigados apresentaram alegações finais, requerendo, sucessivamente: a) a extinção do processo sem resolução de mérito, por incompetência da Justiça Eleitoral; b) a extinção do feito somente em relação ao segundo investigado, que seria parte ilegítima; c) a redelimitação da demanda, excluindo-se “os fatos e eventuais ‘provas’ oriundos da indevida extensão da causa de pedir, bem como aqueles derivados da inadequação da atuação probatória empreendida pelo Juízo, eis que se revelou excessiva”; e d) o julgamento de improcedência do pedido (ID 158914533).

Suscitam, primeiramente, questões processuais, inclusive já decididas em Plenário, por entender que também estas podem ser renovadas em alegações finais, com base no art. 48 da Res.-TSE nº 23.608/2019. Com isso:

a) reiteram preliminar de incompetência da Justiça Eleitoral para a análise de atos praticados na condição de Chefe do Executivo, afirmando que os depoimentos colhidos em audiência corroboraram a tese de que na reunião com os embaixadores não se tratou sobre eleições em sentido estrito e não houve pedido de votos, comparação entre candidaturas ou ataques a oponentes;

b) retomam a objeção à admissão da juntada da minuta do decreto de estado de defesa, com fundamento em alegada violação à estabilização da demanda, ao princípio da congruência, ao contraditório e à segurança jurídica;

c) reafirmam que a decisão que determinou a realização de diligências complementares foi ilegal e consubstanciou tratamento anti-isonômico às partes, uma vez que seu teor:

c.1) destoou das balizas fixadas na ADI nº 1082/STF a respeito da instrução suplementar permitida ao Corregedor, provendo indevida correção na deficiente atuação processual do Autor, determinando, sem apresentar a necessária fundamentação, a complementação de provas que deveriam ter sido por ele requeridas a tempo e modo;

c.2) violou o contraditório substancial, pois em lugar de reabrir o prazo de contestação de cinco dias ou de assegurar prazo equivalente a este com base no art. 329 do CPC, concedeu três dias para a manifestação;

c.3) procedeu a uma indevida “delegação de poder instrutório” ao requisitar documentos à Casa Civil, confiando ao Ministro do Executivo, adversário político do investigado Jair Bolsonaro, “a realização de busca ampla e abrangente, sem critérios objetivamente predefinidos”; e

c.4) afrontou a segurança jurídica ao se utilizar da regra prevista no art. 23 da LC nº 64/1990 para determinar a realização de diligências que não guardavam qualquer relação com a causa de pedir originária e, com isso, promover a ampliação objetiva da demanda;

d) persistem na necessidade de oitiva de Eduardo Gomes da Silva – cuja oitiva, determinada de ofício, foi reputada redundante após os depoimentos de Anderson Torres, Ivo de Carvalho Peixinho e Mateus de Castro Polastro – e na requisição de cópia de inquérito cuja instauração foi noticiada pela CNN em 24/03/2023 e mencionada pelo advogado de defesa na audiência, argumentando que a prova é necessária para corroborar “uma das principais teses de defesa, a saber, a legitimidade do debate público travado pelo investigado Jair Messias Bolsonaro acerca do sistema eletrônico de votação, sempre em prol do progressivo aprimoramento dos meios disponíveis”;

e) suscitam a ilegitimidade passiva ad causam do segundo investigado, “diante da ausência de imputação pelo Autor da respectiva participação, direta ou indireta, nos atos questionados, inviabilizando-se, assim, a aplicação da (personalíssima) sanção de inelegibilidade na espécie (por fato de terceiro), única possível de aplicação frente ao insucesso da chapa no pleito eleitoral presidencial de 2022”;

Quanto ao mérito, sustentam que:

a) as provas documental e testemunhal produzidas demonstraram que nas lives realizadas nos dias 29/07/2021 e 05/08/2021, assim como na entrevista concedida ao programa televisivo “Os Pingos nos Is”, o primeiro investigado adentrou, de forma legítima, “o debate sobre a conformação atual do sistema eleitoral” e sobre os “melhoramentos desejáveis no sistema eletrônico de coleta de votos”;

b) seu comportamento pautou-se pela “eminente boa-fé, franqueza e abertura do diálogo institucional travado entre uma série de atores institucionais da República, dentre os quais o Primeiro Investigado, enquanto então Presidente do Brasil”, tendo como pano de fundo dos debates de Comissão Especial da Câmara dos Deputados em que se debatia proposta de Emenda Constitucional “com vistas a benfazejas alterações do sistema eletrônico de votação”;

c) as manifestações do primeiro investigado nas referidas lives e na entrevista respeitaram os limites da liberdade de convicção pessoal, que não pode ser taxada fraudulenta, uma vez que “a antinomia ‘verdadeiro-falso’ só cabe a juízos de fato, espécie linguística distinta de uma opinião”, e que “conforme os termos da lógica filosófica, atribuir veracidade ou falsidade a um juízo de valor constitui erro categorial, a se concluir ser item impassível de controle jurisdicional”;

d) não houve divulgação de informação falsa, pois relatou-se, “de modo assaz sintético, aliás, a existência de um episódio, nos idos de 2018, de ataque hacker aos sistemas de informatização de toda a Justiça Eleitoral – incluindo Tribunais Regionais Eleitorais de um número de Estados da Federação e o próprio E. Tribunal Superior Eleitoral”;

e) a informação se baseou em subsídios concretos obtidos a partir da análise do teor do Inquérito Policial nº 1361/2018-4SR/PF/DF, que não estava gravado com sigilo, e das informações fornecidas pelos peritos Ivo de Carvalho Peixinho e Mateus de Castro Polastro sobre possíveis vulnerabilidades do sistema eletrônico de votação, o que foi confirmado no depoimento prestado pelos policiais federais;

f) referidos policiais foram convidados a comparecer ao Palácio do Planalto “(pelos canais hierárquicos apropriados, mediante procedimento regular, afastando-se ação extra legem) para explicar, com técnica e cientificidade, possíveis vulnerabilidades do sistema eletrônico de votação adotado no Brasil”, em procedimento inteiramente regular, sem “abuso de funções sou poder”;

g) os depoimentos prestados pelos peritos permitem afirmar “serem verossímeis os motivos a basear todo o debate sobre segurança das urnas eletrônicas sem jamais, contudo, frise-se, duvidar da integridade institucional da Justiça Eleitoral ou da boa-fé de sua conduta”;

h) “não se crê agora, nem em tempo algum, terem sido vulneradas as urnas eletrônicas no pleito de 2018 ou, com efeito, de 2022 – ou em qualquer outra eleição, geral ou local”, pois o TSE assume “postura leal e institucionalmente irmanada com a genuína proteção da democracia” e “frequentemente faz rigorosos (e públicos) testes de segurança nos receptáculos eletrônicos de votos, adotando com presteza e diligência ímpares medidas fundadas de aprimoramento sugeridas, sempre com abundante zelo e elogiável competência”;

i) o depoimento do Deputado Filipe Barros explicitou circunstâncias regulares em que recebeu o Inquérito Policial nº 1361/2018-4SR/PF/DF, para fins de estudo na Comissão Especial da Câmara dos Deputados;

j) o depoimento prestado pelo Embaixador Carlos Alberto França e os documentos apresentados pela Casa Civil, formada em grande parte por convites, corroboram a afirmação de que a reunião com os embaixadores consistiu em um evento oficial, que constou da agenda oficial do Presidente da República, para o qual foram convidados representantes de Estados estrangeiros – que sequer detinham capacidade ativa de sufrágio –, para uma exposição de perfil diplomático de interesse das relações exteriores do Brasil;

k) o caráter oficial do evento, que configurou típico ato de governo, também é confirmado pelo fato de terem sido convidados o Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, assim como os chefes do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, do Tribunal Superior do Trabalho e do Tribunal de Contas da União, além de altas autoridades dos três poderes da República;

l) a documentação apresentada pela Casa Civil também comprovou a trivialidade da organização de “evento simples, verdadeiramente ‘franciscano’”, que teve um custo total correspondente ao módico montante de R$12.214,12 (doze mil duzentos e quatorze reais e doze centavos);

m) as testemunhas Ciro Nogueira Lima Filho e Flávio Augusto Viana Rocha, então Ministro-Chefe da Casa Civil e Secretário Especial de Assuntos Estratégicos, respectivamente, confirmaram que o evento não teve cunho eleitoral ou partidário e que nele se buscou debater o importante tema da transparência do processo eleitoral, sem a veiculação de pedido de votos, de comparação de governos ou de exposição de plataformas governamentais ou sociais;

n) a Procuradoria-Geral da República, entendendo pela atipicidade das condutas atribuídas a Jair Bolsonaro e enfatizando a importância de um debate público sobre temas eleitorais relevantes, manifestou-se pelo arquivamento de notitia criminis apresentada ao Supremo Tribunal Federal que, com base no mesmo fato, objetiva apurar a prática dos crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L do CP), incitação de animosidade das Forças Armadas contra os poderes constitucionais (art. 286, parágrafo único, do CP) e de responsabilidade (art. 85, II a V, da CF);

o) em diversos momentos do discurso de 18/07/2022, o primeiro investigado enfatizou seu desejo por eleições limpas e pela correção de falhas, para que “o ganhador seja aquele que realmente seja votado”, o que demonstra que “não houve qualquer hostilidade antidemocrática ao sistema eleitoral no evento”;

p) a análise da gravidade da conduta deve ser feita de forma contextualizada, considerando as seguintes circunstâncias, que demonstram a inexistência de significação eleitoral:

p.1) as dúvidas do primeiro investigado sobre a segurança do processo eleitoral, compartilhadas por parcela significativa da população, estavam fundamentadas em documentos oficiais que lhe foram entregues;

p.2) poucos dias antes da reunião com os embaixadores o Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, “a despeito de, com o devido respeito, não estar legitimado constitucionalmente para tanto”, convocou reunião com a comunidade internacional “a pretexto de fornecer ‘informações sérias e verdadeiras sobre a tecnologia eleitoral brasileira’”;

p.3) o primeiro investigado “expôs, às claras, sem rodeios, em linguagem simples, fácil e acessível, em rede pública, quais seriam suas dúvidas e os pontos que – ao seu sentir – teriam potencial de comprometer a lisura do processo eleitoral”, em “diálogo aberto”;

p.4) o Tribunal Superior Eleitoral emitiu nota pública de esclarecimento, à qual foi dada ampla publicidade, rebatendo 20 (vinte) pontos apresentados pelo investigado durante a reunião, inclusive por parte dos órgãos de imprensa;

p.5) com a reação imediata “qualquer possibilidade – ainda que remota e inventiva – de lesão à legitimidade das eleições foi prontamente estancada pela Justiça Eleitoral que, ademais, se valeu da oportunidade para prestar relevantes esclarecimentos públicos e reforçar, ainda mais, a certeza de integridade do sistema eleitoral do Brasil”;

p.6) “não houve qualquer autopromoção, crítica a adversários ou considerações de caráter eleitoral-partidário no evento, como sustentaram, sob juramento, em uníssono, as testemunhas que compareceram ao evento”;

q) a minuta de decreto de Estado de Defesa não pode ser admitida como prova, pois “não consubstancia verdadeiramente ‘documento’, eis que não assinado, não apresenta identificação de que o produziu, não apresenta destinatário, bem como não identifica efetiva intenção e realidade/materialidade de seu conteúdo”;

r) laudo pericial realizado no documento atesta que este “jamais foi sequer tocado pelo primeiro investigado”, sendo identificadas digitais que levam a concluir pela “contaminação” do material e pela “quebra da cadeia de custódia da prova”, gerando sua nulidade para todos os fins;

s) ainda que seja considerada como prova, a minuta de decreto não é apta a comprovar qualquer ilegalidade, pois trata-se de documento apócrifo e inidôneo, que não foi retirado a residência de Anderson Torres e que nunca foi levado ao conhecimento do então Presidente da República, inexistindo notícia “de qualquer ato praticado no contexto da realidade fenomênica para sua consecução”, como a necessária oitiva prévia do Conselho da República do Conselho de Defesa Nacional;

t) as provas compartilhadas pelo Supremo Tribunal Federal demonstram que não houve quebra de sigilo por parte do investigado ou de terceiros quando da divulgação de documentos constantes do Inquérito Policial nº 1361/2018-4/DF, pois o referido procedimento não tramitava sob sigilo e não continha documentos sigilosos;

u) é infundada a pretensão de que as lives realizadas em 2021, a reunião com os Embaixadores promovida em 2022, os fatos apurados no Inquérito nº 4878/DF e a denominada minuta de decreto de Estado de Defesa sejam considerados em conjunto, pois “[o]s fatos não são passíveis de concatenação entre si, seja por não possuírem natureza idêntica (falas em lives de opinião versus pronunciamento como Chefe de Estado), seja pelo extenso decurso temporal entre um e outro” e, ainda, porque o investigado não teve qualquer participação nos últimos fatos, que são posteriores à eleição, inexistindo possibilidade lógica ou temporal de que tenham interferido na liberdade do sufrágio ou na legitimidade do pleito; e

v) a pronta reação do TSE em contrapor as opiniões manifestadas na reunião impugnada e a propositura desta demanda, com a concessão de liminar determinando a retirada do vídeo da reunião das redes sociais do investigado e da plataforma da EBC, retiraram a possibilidade de que o discurso proferido aos embaixadores produzisse danos à normalidade e à lisura do pleito, não havendo gravidade, sob a perspectiva quantitativa, apta a configurar a alegada conduta abusiva.

Havendo gravado suas alegações finais com sigilo, os investigados justificaram a medida tendo em vista que “substancial parcela do caderno probatório utilizada como substrato de defesa encontra-se protegida por segredo de justiça” (ID 158914531).

Em vista da justificativa apresentada, a manutenção do sigilo foi confirmada em despacho, no qual ainda se determinou à Secretaria Judiciária colocar a íntegra dos autos em sigilo provisório, até que apresentadas as alegações finais do autor e o parecer do Ministério Público, momento no qual, gravadas individualmente essas manifestações, deveria ser levantado o sigilo dos autos. Na oportunidade, salientou-se “o dever de todos que produzirem ou acessarem as alegações finais e o parecer de preservar as informações sigilosas transcritas ou avaliadas nas referidas peças.”  (ID 158916745).

Na sequência, vieram aos autos as alegações finais do investigante (ID 158917113), manifestação que se conclui com o requerimento de que os pedidos sejam julgados procedentes, para declarar os investigados inelegíveis. Colhem-se os seguintes argumentos:

a) as falas do primeiro investigado na reunião de 18/07/2022 confirmam que “[a] tônica do encontro foi a de soerguer protótipos profanadores da integridade do processo eleitoral e das instituições da República, especificamente o TSE e seus Ministros”, sendo que “o Senhor Jair Messias Bolsonaro criou uma ambiência propícia para a propagação de toda sorte de desordem informacional ao asseverar, por diversas vezes, que o sistema eletrônico de votação é receptivo a fraudes e invasões que, sob a ótica do delírio presidencial, podem comprometer a fidedignidade do resultado das eleições brasileiras”;

b) o discurso, que converge com estratégia de campanha, foi transmitido pela TV Brasil, pertencente à EBC (empresa pública, nos termos da Lei nº 11.652/2008), e pelas redes sociais do primeiro investigado, obtendo expressivo alcance na difusão de informações falsas já reiteradamente desmentidas pelo TSE e por agências independentes de checagem desde 2018;

c) a convergência entre o episódio e a “pauta política” do candidato já foi reconhecida pelo TSE no julgamento da a RP nº 0600549-83, de Relatoria da Min. Maria Cláudia Bucchianeri, relativa aos mesmos fatos tratados nesta AIJE, o que resultou em condenação do primeiro investigado por propaganda eleitoral antecipada, a confirmar o desvio de finalidade eleitoreira do evento;

d) Jair Messias Bolsonaro questionou a integridade do sistema eleitoral brasileiro por, pelo menos, 23 (vinte e três) vezes durante o ano de 2021, o que foi comprovado por meio dos documentos oriundos do Inquérito Administrativo nº 0600371-71 que se encontram nesta AIJE;

e) a difusão de desordem informacional dessa natureza constitui “modus operandi do primeiro investigado”, que deliberadamente utilizou “os ataques ao sistema eleitoral e a esta JE como estratégia de campanha para auferir dividendos eleitorais de parcela da população que passou a desacreditar na confiabilidade do processo de votação”, um “caminho [...] palmilhado para atingir o ápice da difusão de fake News nos período próximo ao início da propaganda eleitoral”;

f) a conduta é grave, pois, “para além de esgarçar o tecido social, mina a essência do Estado Democrático de Direito”, como drástica consequência de uma “manipulação de informação” que “não está dentro do espectro da liberdade de expressão nem tampouco de ‘atos de governo’”;

g) “[a] proliferação de desordem informacional não se presta a construir pontes para diálogos, muito menos para aperfeiçoar sistemas, institutos ou instituições”, tratando-se na realidade de conteúdo desinformativo de grande potencial ofensivo, agravado pelo “uso de todo o aparato estatal para se beneficiar dos efeitos da veiculação do evento telado”;

h) a documentação apresentada pela Casa Civil demonstra que a organização da reunião com os embaixadores, na qual foi proferido o discurso impugnado nesta AIJE, envolveu a adoção de providências por parte da Secretaria de Administração da Secretaria-Executiva da Casa Civil da Presidência da República, do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República e do Ministério de Relações Exteriores e do Gabinete Pessoal do Presidente da República, que, por sua vez, demandaram diversos outros departamentos, além de ter contado com a cobertura da TV Brasil;

i) já está evidente, desde que a desmonetização de canais que propagavam notícias falsas produzidas pelo primeiro investigado foi determinada no Inquérito Administrativo nº 0600371-71, que esses ataques intensos às instituições eram estratégicos e que “para manter a adesão, o apoio dos seus apoiadores e a posterior ‘viralização’ das falas, o primeiro investigado tinha que agir de modo bélico, lastreado em sensacionalismo e inverdades, como sempre agiu, senão não iria alcançar o estado de ebulição do seu eleitorado”;

j) a “teoria do ato de governo” não torna o ato insuscetível de controle do Poder Judiciário, uma vez que não é compatível com o Estado Democrático de Direito “selar autoridades em sacrários inacessíveis, nem tampouco imunizar atuações governamentais que agridam de forma intensa o regime democrático e a confiabilidade do sistema eletrônico de votação”;

k) é insubsistente a tese de que o público-alvo do evento não ostentava “capacidade ativa de sufrágio”, uma vez que a ocasião foi planejada com desvio de finalidade, utilizando-se da TV Brasil e das redes sociais do então Presidente da República “para que inúmeras páginas e perfis compartilhassem as mídias” e, ainda, para “buscar adesão de países estrangeiros para que, se porventura um golpe de Estado fosse instaurado, obtivesse apoio, já que o processo de votação não seria confiável e estaria eivado de fraude”;

l) o vídeo do evento violou a política de integridade eleitoral do Youtube, sendo, por isso, removido por iniciativa da plataforma, o que corrobora o desvio de finalidade do evento alegadamente voltado para o interesse público, e, por conseguinte, o uso do aparato estatal, que abarca a transmissão da TV Brasil e as instalações do Palácio da Alvorada, em favor da campanha;

m) os depoimentos prestados por Flávio Augusto Viana Rocha, Carlos Alberto França e Ciro Nogueira Lima comprovaram que o governo brasileiro, diretamente ou pelo Ministério das Relações Exteriores, nunca recebeu questionamentos formais acerca da integridade do processo eleitoral brasileiro, seja por governos estrangeiros, seja por organismos internacionais, tampouco houve demanda por parte de embaixadores para conhecer o sistema eleitoral brasileiro, o que revela o “caráter insólito” da iniciativa inédita e pessoal do investigado Jair Bolsonaro;

n) do ponto de vista das relações internacionais do Brasil, “a imprestabilidade da reunião foi tanta – o que seria o contrário caso o interesse para sua realização tivesse sido idôneo –, que as embaixadas participantes sequer deram algum retorno sobre o ato, o que denota o total desinteresse”;

o) o depoimento prestado por Anderson Torres foi contraditório, revelou postura omissiva do então Ministro da Justiça – que, mesmo de posse da “minuta do golpe”, não adotou providências para apurar fatos “gravíssimos” – e autoriza concluir que a minuta era a “materialização da última fase de um plano milimetricamente traçado para derrubar o Estado Democrático de Direito”, o qual remete ao teor do discurso de 18/07/2022;

p) as provas carreadas aos autos convergem no sentido de que não houve quebra da integridade do processo eleitoral que pudesse justificar as alegadas dúvidas sobre a idoneidade e confiabilidade das urnas, destacando-se que os depoimentos prestados por Anderson Torres e pelos peritos da Polícia Federal comprovaram que, a despeito das afirmações feitas por Jair Bolsonaro na live realizada em julho de 2021 e na reunião com os embaixadores, nenhum dos elementos constantes dos relatórios da Polícia Federal e do Inquérito Policial por ele mencionados permitiam a conclusão da existência de fraude nas Eleições 2018;

q) as testemunhas Augusto Nunes, Ciro Nogueira Filho e Filipe Barros “foram uníssonas ao asseverarem que nunca tiveram ciência a respeito da existência de fraudes nas urnas eletrônicas”;

r) na perspectiva do uso indevido dos meios de comunicação, “é inegável que a veiculação de vídeos que carregam matéria de alta sensibilidade perante o eleitorado, mormente quando se trata de fatos sabidamente inverídicos, em redes sociais, possui reprovabilidade suficiente para caracterizar a gravidade do ato”, tratando-se de condutas que “abalaram de forma intensa a normalidade e a legitimidade do pleito”, apresentando-se como “efeito mais palpável e perceptível do discurso [...] o que ocorreu em Brasília no último 08/01/2023”;

s) os fatos e as circunstâncias que restaram demonstrados se subsomem aos parâmetros delimitados no julgamento do RO nº 0603975-98, tanto no aspecto qualitativo, ante a intensa reprovabilidade da conduta, quanto no aspecto quantitativo, em vista dos massivos dados de audiência apurados e do efeito multiplicador que certamente ampliou o alcance do discurso;

t) o discurso impugnado nesta AIJE deve ser sopesado não apenas no contexto do pleito, mas também considerando os graves fatos ocorridos no período pós-eleitoral, como: a “cruzada antidemocrática” que os apoiadores do investigado Jair Bolsonaro iniciaram após o resultado do pleito; a ação intentada pelo Partido Liberal (PL) com o objetivo de invalidação de votos; a invasão das sedes do Supremo Tribunal Federal, do Congresso Nacional e do Palácio do Planalto por “vândalos” em 08/01/2023; e a minuta do decreto de estado de defesa apreendida na residência de Anderson Torres – fatos já “batizados” pelo “contraditório substancial”; e

u) o desvio eleitoral do uso da reunião com os embaixadores, com o aproveitamento de toda a montagem e estrutura do evento para fins de divulgá-lo como pauta de campanha, não é mensurável pelo valor empregado (R$12.214,12), sendo evidente a prática de conduta vedada (art. 73, I, da Lei nº 9.504/1997) e o “uso desvirtuado do poder político”.

A Procuradoria-Geral Eleitoral ofereceu parecer no qual opina pela parcial procedência da ação, a fim de que seja declarada a inelegibilidade somente de Jair Messias Bolsonaro em razão de abuso de poder político e de uso indevido dos meios de comunicação, e pela “absolvição do candidato a Vice-Presidente a quem não se aponta participação no caso. Embasa a manifestação nos seguintes pontos (ID 158931404):

a) o TSE reconheceu, ao julgar procedentes quatro representações por propaganda eleitoral extemporânea com base nos mesmos fatos – incluindo-se uma proposta pelo Ministério Público Eleitoral – “que o pronunciamento do Presidente da República destoava da verdade e que servia a propósitos eleitoreiros”, assentando conclusão sobre a matéria fática que se repete nesta ação;

b) naquela ocasião, a PGE já havia assinalado que o discurso de 18/07/2022 integrava “um conjunto de assertivas que compõe o propósito de desacreditar a legitimidade do sistema de votação digital que será empregado nas eleições vindouras e que tem sido adotado desde 1996”, o que, embora não fosse novidade no histórico do primeiro investigado, ocorreu, daquela vez, “em período próximo das eleições, veiculando noções que já foram demonstradas como falsas, sem que o representado haja mencionado os desmentidos oficiais e as explicações dadas constantemente no passado”;

c) à época da realização da reunião com os embaixadores, a Proposta de Emenda à Constituição destinada a implementar o comprovante impresso de votação já havia sido rejeitada pelo Congresso Nacional, o que, juntamente com a constatação de “desmentidos de índole oficial e baseados em dados técnicos não foram mencionados, nem contraditados”, repele a versão “do propósito republicano de contribuir para a melhoria das instituições”;

d) o discurso também procurou incutir na audiência formada por embaixadores “a errada impressão de que o processo de votação é obscuro, insuscetível de gerar confiança e aparelhado para manipulações de resultado em favor de um candidato e em detrimento de outro”, o que não é inócuo sequer considerando a audiência presencial, pois teve o intuito de descredibilizar perante a comunidade internacional o futuro resultado das eleições, em momento no qual as pesquisas eleitorais indicavam vantagem de um adversário;

e) os ataques a Ministros do TSE, no qual se destaca a insinuação de que o então Presidente do tribunal era também “responsável” pelo restabelecimento da elegibilidade de Lula, têm “o indubitável propósito de associar a direção da Justiça Eleitoral aos interesses de um dos candidatos”, por meio de descontextualização e distorção de fundamentos adotados pelo STF para anular processos criminais por questões processuais;

f) ante a severa dissociação dos fatos, “[n]ão há como ouvir o discurso e o admitir no domínio normativo da liberdade de expressão”, percebendo-se que “as assertivas proferidas se voltam para animar parcela do eleitorado” e a retratar Jair Messias Bolsonaro “como fustigado pelo sistema vigente”;

g) sob a ótica do abuso de poder, a “escusa do propósito republicano de contribuir para a melhoria das instituições [...] é descabida e não se sustenta em fundamento que impressione”, não obstante a “dedicada e industriosa defesa” arguir que “o intuito do investigado terá sempre sido o de contribuir para o debate em torno de tema de inequívoca relevância democrática”, pois a proposta de voto impresso já havia sido rejeitada pelo Congresso Nacional e o que se tinha era “o Chefe de Estado dizendo, nessa qualidade, para brasileiros e autoridades de países com embaixadores no país, que não se podia acreditar na legitimidade do processo eleitoral”;

h) “[m]esmo com as medidas cautelares adotadas neste processo alguns dias depois de realizado o encontro, o episódio ingressou no ambiente da disputa eleitoral e se difundiu”, sendo que “[b]astaria, na realidade, a sua ocorrência e a notícia respectiva para que a gravidade qualitativa do evento se positivasse”;

i) a gravidade dos fatos, em seu aspecto qualitativo, reforça-se porque o discurso objeto da ação “ecoou” episódios anteriores, em que o primeiro investigado apressadamente divulgou “como fatos certos o que eram especulações sem base idônea, sabidas inverdades ou conclusões desavindas do seu contexto”, em uma “linha de denúncia” que culminava em induzir uma “crença de que as tramas no sistema eleitoral se ordenaram a favorecer a candidatura da oposição”, destacando-se da referência ao ataque hacker ocorrido na rede do Tribunal Superior Eleitoral em 2018 que:

i.1) não foram abordados detalhes técnicos que indicavam que a invasão teve como alvo apenas sistemas administrativos e não era apta a forjar dados essenciais ao sistema de votação, apuração e totalização de votos, extraindo dos fatos conclusão que deles não se deduz;

i.2) insinuou-se que o Tribunal Superior Eleitoral tinha se negado a fornecer elementos cruciais à apuração da invasão, enquanto os elementos constantes do Inquérito Policial, ao qual o primeiro investigado teve pleno acesso, demonstravam que o TSE encaminhou à Polícia Federal logs relevantes para a investigação;

i.3) os pronunciamentos oficiais do Tribunal Superior Eleitoral quanto ao alcance da atuação do hacker foram distorcidos, afirmando-se falsamente que o TSE teria reconhecido que os sistemas de apuração e de totalização haviam sido invadidos e que os resultados das Eleições 2018 poderiam ter sido adulterados;

j) as distorções e inverdades repetidas pelo investigado Jair Bolsonaro por ocasião da reunião com os embaixadores e às insinuações de que a Justiça Eleitoral teria o intuito de beneficiar o candidato adversário influenciaram indevidamente parte do eleitorado a desconfiar do sistema eleitoral, o que se confirmou por fatos notórios, “alguns violentos, de inconformismo com os resultados das eleições presidenciais, em que se lhes atribuía a pecha de ilegítimos e fraudulentos”;

k) a tese de “ato de governo” não torna o ato insindicável pelo Poder Judiciário”, mesmo porque, no caso, “o aspecto de ato de Estado que se quis atribuir ao evento, na realidade, concorre para a caracterização da irregularidade”;

l) a prova documental indica que “o tema do voto impresso efetivamente ocupou a atenção do então postulante a novo mandato de Presidente da República desde bem antes das eleições”, sendo que o primeiro investigado, ao sustentar a “tese de que eleições corretas e legítimas seriam somente aquelas em que houvesse sistema de voto escrito paralelo ao digital”, associava conceitos como “eleições limpas” e “voto democrático e transparente” à existência do comprovante físico e imputava má-fé às pessoas que não endossassem sua visão;

m) “[o] discurso a autoridades diplomáticas estrangeiras, que pretendia também alcançar autoridades brasileiras e que se voltava a impressionar, à toda evidência, a população em geral, culmina com avisos sobre a iminência de fraude, sempre associada ao voto digital, indicando que o sistema vigente estaria disposto para forjar resultado eleitoral favorável ao candidato do partido de esquerda, que desde sempre despontava como o seu principal oponente”;

n) o prestígio e a imponência do cargo de Presidente da República, o teor do discurso e a proximidade cronológica com as eleições convergem, no evento de 18/07/2022, para “gerar impacto e a inquietar ânimos pessimistas com relação à legitimidade do pleito que já vinham sendo exasperados em outros pronunciamentos”;

o) “[o]bjetivamente, o discurso atacou as instituições eleitorais, e ao tempo que dava motivo para indisposição do eleitorado com o candidato adversário, que seria o beneficiário dos esquemas espúrios imaginados, atraía adesão à sua posição de candidato acossado pelas engrenagens obscuras do tipo de política a que ele seria estranho”;

p) sucedeu-se ao ajuizamento desta AIJE e mesmo às eleições “uma inédita mobilização de parcelas da população que rejeitavam aberta e publicamente o resultado do pleito, por não serem legítimas”, sendo notórios os acampamentos e manifestações que reuniram “pessoas convictas de que as eleições haviam sido fraudadas”, estando “ainda muito presentes e nítidas as imagens do dia 8 de janeiro último de destruição e de acintosa violência aos Poderes constituídos”, tudo a constituir “expressiva exposição” da gravidade do discurso contra a confiabilidade do sistema de votação eletrônica;

q) as questões procedimentais suscitadas nas alegações finais já foram objeto de decisões do Relator ratificadas por unanimidade em Plenário;

r) a conclusão pela configuração do abuso de poder político e pelo uso indevido de meios de comunicação, a acarretar a inelegibilidade do primeiro investigado, não atrita com manifestação da Procuradoria-Geral da República, perante o STF, no sentido de não estar configurada conduta criminal em decorrência do discurso; e

s) ausente discussão acerca da participação do segundo investigado, candidato a Vice-Presidência, nos atos abusivos, a ação deve ser julgada improcedente em relação a ele.

Posteriormente à apresentação do parecer ministerial, os investigados requereram que fosse reconsiderada a determinação de sigilo aposto àquele e às alegações finais, a fim de que as manifestações fossem submetidas ao “escrutínio público” e, ainda, afirmando que teria ocorrido “vazamento ilegal” dos conteúdos sigilosos (ID 15893317).

Nada houve a prover em relação ao requerimento, tendo em vista que o fundamento da determinação (feita a partir de provocação dos próprios investigados) era evitar que a publicidade das alegações finais e do parecer – peças que, por sua natureza, discutem as provas produzidas na instrução – permitissem, por via transversa, a exposição pública do teor de informações que estão reservadas ao conhecimento das partes, do MPE e do juízo até o julgamento do processo. Ressaltou-se, mais uma vez, o dever de todos os sujeitos processuais agirem em conformidade a esse objetivo, o que, conforme já indicado, não impede a divulgação pública de argumentos apresentados pelas partes e pelo Ministério Público (ID 158934588).

As providências relativas ao sigilo foram cumpridas de forma escorreita e célere pela Secretaria Judiciária, estando certificadas nos IDs 158914542, 158917702 e 158931203. 

Na sequência, proferiu-se decisão de inadmissibilidade da intervenção de terceiro como amicus curiae, modalidade incabível na espécie e que, no caso, fora apresentada por quem expressamente declarou que seus “argumentos” – a saber: uma “fábula escrita a duas mãos com o ChatGPT” – “podem não ser os melhores”. Tendo em vista a inadequação formal, jurídica e de linguagem da manifestação, confessadamente sabida pelo peticionário – advogado que se utilizou da capacidade postulatória no PJe para conduta incompatível com as prerrogativas da profissão – determinei o desentranhamento da peça e apliquei ao peticionário multa por litigância de má-fé, equivalente a dois salários mínimos, a ser redobrada em caso de reincidência em conduta temerária (ID 158938227).

Consigna-se ainda que foi encartado aos autos, por iniciativa dos investigados, petição denominada “recurso extraordinário”, dirigido contra o acórdão de ID 158704139, em que a Corte referendou a decisão que admitiu documento novo e fato superveniente. A petição é formalmente endereçada ao Ministro Alexandre de Moraes, Presidente do TSE, ao qual se requer “após a colheita de contrarrazões e admitido o inconformismo ora manifestado, sejam os autos encaminhados ao C. STF para competente julgamento” (ID 158764011).

Registra-se por fim que, em atenção aos fundamentos da aposição de sigilo às alegações finas e ao parecer do Ministério Público Eleitoral, não foram incluídas neste relatório trechos literais das transcrições de depoimentos e de documentos sigilosos, os quais constaram das três peças referidas, sem prejuízo de se apresentar as conclusões do autor, dos réus e da Procuradoria-Geral Eleitoral acerca da força probante do material produzido ao longo da instrução.

É o relatório.

 

PARECER

 

O DOUTOR PAULO GUSTAVO GONET BRANCO (vice-procurador-geral eleitoral): Exmo. Sr. Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Ministro Alexandre de Moraes.

Exma. Sra. Vice-Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Ministra Cármen Lúcia.

Exmo. Sr. Ministro Nunes Marques.

Exmo. Sr. Corregedor-Geral e relator do feito, Ministro Benedito Gonçalves.

Exmo. Sr. Ministro Raul Araújo.

Exmo. Sr. Ministro Floriano de Azevedo Marques.

Exmo. Sr. Ministro André Ramos Tavares.

Dignos Advogados aqui presentes, que cumprimento na pessoa do ínclito e admirado Dr. Tarcisio Vieira de Carvalho.

Doutor João Paulo Oliveira.

Senhoras e senhores.

As particularidades fáticas do caso já foram apresentadas de modo exaustivo. E isso me permite resumir o parecer do Ministério Público Eleitoral juntado aos autos atendo-me às linhas principais da discussão da causa.

A ação foi proposta contra o então Presidente da República e o seu Vice, que concorreram à reeleição. Todos os fatos descritos e apurados dizem respeito a condutas apenas do primeiro. Não se atribui ao candidato a Vice-Presidente nenhuma participação nos eventos que motivaram a investigação. Como não há mandato a cassar, adianto desde logo que o Ministério Público se manifesta pela improcedência da ação de investigação contra Walter Souza Braga Netto.

A acusação contra o candidato a Presidente da República atribui a ele abuso de poder político, indicando desvio de finalidade em reunião com embaixadores no Palácio da Alvorada, ocorrida em julho de 2022.

A inicial relata que esse evento foi mais um de mais de uma dezena de outros em que o mesmo discurso de combate ao sistema de votação e apuração digital foi desfechado. A inicial também conta que houve transmissão do encontro por rede de televisão estatal, bem como veiculação nas redes pessoais do investigado.

O êxito da ação de investigação judicial eleitoral proposta, no que imputa abuso de poder político ao investigado, depende da reunião de 4 elementos:

1. A condição de agente público do sujeito da conduta;

2. O desvio de finalidade de situação vinculada ao cargo em que o sujeito está investido;

3. A busca de vantagem para a situação eleitoral do candidato; e

4. A gravidade da conduta para afetar a legitimidade do processo eleitoral.

Todos esses elementos estão estampados nos autos.

A inicial também apresenta outra causa de pedir, a utilização indevida de meios de comunicação social – que está imbricada, na espécie, no contexto cognitivo do abuso do poder político.

O primeiro elemento para se configurar o abuso de poder político está presente de modo inequívoco.

O segundo e o terceiro elementos se interpenetram na sua conotação. O aproveitamento arbitrário da situação propiciada pelo desempenho de função pública se revela pela desnaturação de ato oficial em acontecimento fundamentalmente eleitoreiro.

Vejamos como os fatos se ajustam a essa moldura.

O Presidente da República, nessa qualidade, atuando como Chefe de Estado, convidou formalmente, os mais altos representantes diplomáticos estrangeiros acreditados no país, bem como diversas autoridades brasileiras, ao Palácio da Alvorada. Ali, ouviram comunicação sobre a falta de confiabilidade do sistema eletrônico de votação e apuração adotado pelo Tribunal Superior Eleitoral. O Presidente alertou que, sob esse sistema, se estava na iminência de se realizarem eleições viciadas e ilegítimas, maliciosamente dirigidas para beneficiar o seu principal adversário.

O discurso ganhou difusão nacional, por meio de sistema de televisionamento público federal e por meio de reprodução em redes sociais do investigado. O discurso, portanto, também se dirigiu ao conjunto dos eleitores brasileiros, e não apenas a representantes diplomáticos, que, evidentemente, não possuem capacidade eleitoral ativa.

Não se nega que o Presidente da República, no exercício da sua atribuição constitucional de “manter relações com Estados estrangeiros” (art. 84, VII), pode reunir o corpo diplomático credenciado em Brasília para relatar fatos de gravidade nacional com repercussão internacional.

Não se duvida, tampouco, de que há margem de discricionariedade política bastante ampla para o Presidente da República decidir sobre o que, a seu ver, é assunto interno suficientemente relevante e inquietante para ensejar a preocupação das potências estrangeiras e justificar a solenidade da exposição.

Ocorre que esse poder não é ilimitado. Também aqui incidem os limites constitucionais da impessoalidade e da moralidade que guiam toda a gestão dos assuntos da República. Mesmo em atos políticos como esse, há balizas que, desrespeitadas, levam à deformidade do desvio de poder, do desvio de finalidade. O desvio de finalidade não é predicado negativo apenas de atos administrativos em sentido estrito, mas também pode também depreciar atos políticos.

A reunião, portanto, comporta a análise de déficit de legitimidade por desvio de finalidade.

A conclusão a que os autos conduzem é a de que o evento, não obstante a sua primeira aparência, foi deformado em instrumento de manobra eleitoreira, traduzindo o desvio de finalidade.

O conteúdo falso dos ataques desferidos na reunião.

A reunião aconteceu exclusivamente para que fossem ouvidas palavras de desconfiança e descrédito com relação ao sistema eleitoral eletrônico gerido pelo Tribunal Superior Eleitoral, com sugestões, ainda, desmerecedoras lançadas a integrantes da Corte.

Já são conhecidas as passagens significativas do pronunciamento do Presidente da República. Elas foram – e isso é de ser acentuado – apreciadas pelo Tribunal, no julgamento da representação que a Procuradoria-Geral Eleitoral ajuizou por propaganda ilícita. O Plenário do TSE, por unanimidade, nos dois últimos dias de setembro do ano passado, afirmou que todas essas recriminações assacadas fugiam à verdade e serviam a propósitos inadmissíveis.

Diante dessa avaliação tão recente das palavras do ora investigado, não é o caso de, nesta exposição oral, em que alguma brevidade se impõe, retomar a cada uma delas. O parecer escrito as reproduz e identifica, para cada qual, o contraponto que lhes escancara a inverdade.

Basta, portanto, que se recorde que o acórdão do TSE descobriu nas acusações feitas durante a reunião:

Fatos anteriormente já desmentidos e carentes de qualquer tipo de prova idônea. Fatos insistentemente rebatidos por esta Corte Superior, sem que exista qualquer elemento indiciário novo apto a afastar as explicações já apresentadas.

O acórdão extraiu outra conclusão essencial para esta causa ao dizer:

A deslegitimação do sistema, a partir da construção de fatos falsos, forjados para conferirem estímulos artificiais de endosso a opiniões pessoais, é comportamento que já não se insere no legítimo direito à opinião, dúvida, crítica e expressão, descambando para a manipulação desinformativa, via deturpação fática, em grave comprometimento da liberdade de “informação”, e com aptidão para corroer a própria legitimidade do pleito eleitoral.

Tem-se, portanto, assentado que a reunião foi arregimentada para que a comunidade internacional, por meio de representantes diplomáticos, e os cidadãos brasileiros, por meio da divulgação por televisão e pela internet do evento, fossem expostos a alegações inverídicas, agrupadas para afetar a confiança no sistema de votação vigente.

Liberdade de expressão?

Dadas essas circunstâncias, não há como acolher o argumento de que o Presidente da República estaria exercendo o direito de liberdade de expressão, movido pelo propósito de debater melhorias no sistema eleitoral.

É bem sabido que a garantia constitucional encontra limite na verdade fenomênica. Por isso que não cabe dar socorro a assertivas propositadamente desencontradas da realidade. Se não for assim, perde sentido a elevação da liberdade de expressão e de informação ao cimo da estrutura jurídica do país.

É certo também que os consensos sobre os contornos da realidade podem sofrer aprimoramentos. As revoluções científicas consistem justamente na quebra auspiciosa de paradigmas. Mas, não é nada de sublime desse gênero o que se vê retratado nos autos.

Quem se volta contra o que se acha estabelecido como fato real, o interlocutor há de assumir o ônus de apresentar evidências que justifiquem o dissenso, não cabendo o desprezo gracioso e desmotivado dos elementos de convicção contrários. A responsabilidade do participante do debate público democrático sobe tanto mais de ponto quando o que afirma é capaz de lançar descrédito sobre instituição nuclear para a existência democrática, como é o sistema de votação para a escolha dos que representam a vontade política do titular da soberania.

Relançar aos cidadãos proposições que abalam a legitimidade do pleito eleitoral, às vésperas da sua realização, que já foram desmentidas – já haviam sido desmentidas – e sem a exposição de novas bases que as fundamentem, não é contribuir para o progresso das estruturas da democracia, mas é degradá-la ardilosamente, pela destruição da confiança de que o sistema depende. 

O que se tem pormenorizado nos autos é a ocorrência de pronunciamento, que teve em mira vasto público, e em que se repetiram assertivas insubsistentes, voltadas para incutir desassossego quanto à correspondência dos resultados oficiais do pleito com a efetiva vontade popular.

Todo o discurso buscou produzir a errada impressão de que o processo de votação é obscuro, insuscetível de confiança, aparelhado para manipulação de resultados e para forjar uma vitória do adversário do autor do pronunciamento, que seria a vítima dessas cavilações.

Um discurso dessa ordem não compõe o domínio normativo da liberdade de expressão.

A vantagem eleitoral

O discurso, ao mesmo tempo que ensejava indisposição do eleitorado para com o candidato opoente, que seria o suposto beneficiário dos esquemas espúrios imaginados, despertava apoio à posição do Presidente da República, como candidato acossado por sinistras engrenagens, típicas da espécie de política a que ele seria estranho.

A circunstância de essas palavras haverem sido vertidas com solenidade, pelo Chefe de Estado, perante a comunidade dos representantes diplomáticos estrangeiros, induzia o cidadão a conferir ainda maior verossimilhança às acusações infundadas, em prejuízo da clareza da verdade.

A reunião para propagar notícias falsas e conclusões falaciosas não respondeu, assim, a razões de Estado que justificariam a cerimônia. O intuito foi apenas e nitidamente eleitoreiro.

Está caracterizado que o candidato à reeleição se valeu da sua situação funcional de Presidente da República, para, mediante notícias que sabia ou deveria saber serem desavindas da verdade, obter a atenção e a adesão de eleitores. Está caracterizado o uso da função pública para benefício eleitoral indevido. Enfim, a desconexão do ato com algum propósito legítimo exibe o desvio de finalidade.

O segundo e o terceiro elementos característicos do abuso de poder estão demonstrados.

O quarto elemento, o da gravidade da conduta, pode ser enxergado sob dois ângulos.

A impugnação do sistema de votação e apuração empreendida pelo Presidente da República, com argumentos desautorizados pelos fatos, nas condições vistas, apresenta gravidade em si mesma.

O discurso, que reiterava outros tantos, é apto, por si, para perturbar a tranquilidade institucional que deve ambientar as eleições no sistema democrático. A desconfiança quanto à fidelidade do resultado apurado à efetiva manifestação de vontade do eleitor é causa de estremecimento do apoio popular à própria existência das eleições. A normalidade e a legitimidade das eleições ficam atingidas. O sistema representativo desacreditado solapa a base da opção fundamental do constituinte por um Estado Democrático de Direito. Críticas, mais do que temerárias, críticas sabidamente infundadas, ao funcionamento do sistema de votação, incorporam esse risco, revelando-se assim de ressaltada gravidade.

Essa avaliação tem o abono do Supremo Tribunal Federal. Na TPA 39, a gravidade ínsita a ataque infundado contra o sistema de votação foi realçada no voto do Ministro Gilmar Mendes, quando disse:

O discurso de ataque sistemático à confiabilidade das urnas eletrônicas, (...), não pode ser enquadrado como tolerável em um Estado democrático de Direito, no qual se propugna o sufrágio universal pelo voto direto e secreto como direito fundamental qualificado como cláusula pétrea, especialmente por um pretendente a cargo político (...).

Tal conduta ostenta gravidade ímpar (...) pode comprometer o pacto social em torno das eleições.

(...)

Aceitar como normal ou legítimo esse discurso de deslegitimação do resultado das urnas volta-se, analisando o retrospecto histórico da nossa República, contra a própria Constituição Federal de 1988, a qual juramos proteger.

Bastaria essa perspectiva – esse primeiro ângulo de visão – para que a gravidade do evento se desse a conhecer. Esse elemento, contudo, ganha também marcada dimensão por outro modo de ver – quando se levam em conta acontecimentos posteriores à reunião, circunstâncias que o Tribunal entendeu que compõem o âmbito de cognoscibilidade desta AIJE.

A propósito, essa decisão da Corte nada tem de revolucionária do ponto de vista processual.

É bem sabido que o juiz pode – e deve – levar em consideração fatos supervenientes ao ajuizamento da ação que interfiram no julgamento do mérito, na forma do que comanda o art. 493 do Código de Processo Civil.

Isso é assim, tendo em vista que a sentença deve refletir o estado de fato da lide no momento da entrega da prestação jurisdicional; por isso o juiz deve levar em consideração o chamado fato superveniente.

O que não se admite é o conhecimento de fatos alheios à lide como definida pelo pedido e pela causa de pedir. Foi esse o contexto que se viu presente em julgado outro, bem conhecido, relacionado com as eleições de 2014. Aqui, contudo, não se traz a estudo fato desvinculado das balizas da controvérsia como gizadas inicialmente. Nada obsta que fatos ocorridos depois da inicial possam ser contemplados, na medida em que confirmam o que o investigante tinha como de possível ocorrência. Esses fatos, se antes estavam no plano da potencialidade, passam, adiante, ao campo da atualidade, sem se desgrudarem do fato-base que animou a propositura da demanda.

Sob esse ângulo, tem-se que o chamado à desconfiança nas eleições não rendeu ao candidato a maioria dos votos, mas provocou reações de desabrida e descomedida desconfiança de parcela da população sobre a legitimidade dos resultados das urnas, como jamais se viu desde o advento da Constituição de 1988.

É notório que, depois das eleições, aconteceu uma inédita mobilização de populares que rejeitavam aberta e publicamente o resultado do pleito, recusando-lhe legitimidade. Acampamentos de pessoas pedindo medidas de ruptura da ordem constitucional, manifestações violentas de rua e bloqueio de rodovias foram promovidos por pessoas que aderiram à ideia da ilegitimidade das eleições. Estão ainda presentes e nítidas as imagens do dia 8 de janeiro último de destruição e de acinte aos Poderes constituídos.

O discurso contra a confiabilidade do sistema de votação eletrônica – mesmo que não visasse a esses resultados específicos – não poderia ter mais expressiva revelação do seu infesto potencial antidemocrático.

Igualmente sob esse segundo ângulo, se exibe a gravidade das circunstâncias – o 4º e último elemento caracterizador do abuso de poder político.

Ao ver do Ministério Público, portanto, estão reunidos todos os elementos definidores do abuso de poder político de que o candidato investigado é acusado.

A conclusão do parecer se conforta em precedente do TSE de 2021, caso Franceschini, em que se definiu que ataques ao sistema eletrônico de votação podem configurar abuso de poder político “e/ou uso indevido dos meios de comunicação quando redes sociais são usadas para esse fim” (RO-EI 0603975-98, DJe 1-.12.2021).

O precedente ressalta a outra hipótese de procedência da ação, atinente ao uso indevido dos meios de comunicação, que também concorre para o desfecho de procedência da demanda, já que o discurso encontrou divulgação em redes sociais da internet ligadas ao investigado.

O pedido de condenação do primeiro investigado à pena que ainda resta cabível de inelegibilidade merece acolhida.

Obrigado pela atenção.

 

SUSPENSÃO DO JULGAMENTO

 

O SENHOR MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES (presidente): Agradeço ao eminente Vice-Procurador-Geral Eleitoral, Professor Paulo Gustavo Gonet Branco, que falou em nome do Ministério Público.

Em virtude do horário, em face da sessão que temos eu, Ministra Cármen Lúcia e Ministro Nunes Marques, no Supremo Tribunal Federal, eu suspendo o julgamento, que prosseguirá na sessão da próxima terça-feira, às 19h, iniciando-se com o voto do relator, Ministro Benedito Gonçalves.

 

PROCLAMAÇÃO DO RESULTADO (provisório)

 

O SENHOR MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES (presidente): Após a leitura do relatório e a realização das sustentações orais, o julgamento foi suspenso.

 

EXTRATO DA ATA 

 

AIJE nº 0600814-85.2022.6.00.0000/DF. Relator: Ministro Benedito Gonçalves. Representante: Partido Democrático Trabalhista (PDT) – Nacional (Advogados: Walber de Moura Agra – OAB: 757-B/PE e outros). Representados: Jair Messias Bolsonaro e outro (Advogados: Tarcisio Vieira de Carvalho Neto – OAB: 11498/DF e outros).

Usaram da palavra, pelo representante, Partido Democrático Trabalhista (PDT) – Nacional, o Dr. Walber de Moura Agra;  pelos representados, Jair Messias Bolsonaro e Walter Souza Braga Netto, o Dr. Tarcisio Vieira de Carvalho Neto; e  em nome do Ministério Público Eleitoral, o Dr. Paulo Gustavo Gonet Branco, Vice-Procurador-Geral Eleitoral.      

Decisão: Após a leitura do relatório e a realização das sustentações orais, o julgamento do processo foi suspenso.

Composição: Ministros Alexandre de Moraes (presidente), Cármen Lúcia, Nunes Marques, Benedito Gonçalves, Raul Araújo, Floriano de Azevedo Marques e André Ramos Tavares.

Vice-Procurador-Geral Eleitoral: Paulo Gustavo Gonet Branco.

 

SESSÃO ORDINÁRIA REALIZADA EM REGIME HÍBRIDO EM 22.6.2023.

 

VOTO

 

O SENHOR MINISTRO BENEDITO GONÇALVES (relator): Obrigado, Presidente.

Cumprimento Vossa Excelência, Presidente desse Tribunal, Ministro Alexandre de Moraes; bem como nossa Vice-Presidente, Ministra Cármen Lúcia; Ministro Nunes Marques; Ministro Raul Araújo; Ministro Floriano; Ministro André; Ministério Público nessa assentada, pelo nosso Procurador-Geral Eleitoral, nosso Doutor Carlos, conhecido nosso do STJ; nossos servidores, senhores advogados, principalmente os advogados que aqui defendem os investigados e autores desta Aije.

Como Vossa Excelência, Presidente, já anunciou, dando continuidade ao julgamento. E, para esclarecer, a minuta do voto que foi distribuída contém 382 (trezentas e oitenta e duas) páginas, distribuídas antecipadamente aos Ministros. E, para facilitar o estudo, eu fiz um resumo, mas como a matéria, ela, para ser tratada, depende de uma extensão maior, eu ainda estratifiquei esse resumo, que foi entregue a Ministros, nesta Corte, para acompanhar. Faço referência às posições ali fundamentadas no voto originário. Vou fazer alguns títulos e alguns pontos e vou avançar, para que nós possamos render o julgamento.

Conforme relatado, versam os autos da AIJE – ajuizada pelo Diretório Nacional do Partido Democrático Trabalhista contra Jair Messias Bolsonaro, então candidato à reeleição para o cargo de Presidente da República, e Walter Souza Braga Netto, então candidato a Vice-Presidente da República – sobre suposta prática de abuso de poder político e de uso indevido dos meios de comunicação, decorrente de alegado desvio de finalidade eleitoreiro de reunião havida no Palácio da Alvorada no dia 18/07/2022.

Alega-se que o primeiro investigado, no exercício do cargo de Presidente da República, teria se utilizado de encontro com embaixadoras e embaixadores de países estrangeiros para atacar a integridade do processo eleitoral, especialmente disseminando “desordem informacional”, em convergência com estratégia de campanha consistente em mobilizar suas bases por meio de contínuos ataques infundados à credibilidade do processo eleitoral. Aponta-se que o evento foi transmitido pela TV Brasil e que o vídeo foi amplamente divulgado nas redes sociais do candidato à reeleição, potencializando o efeito danoso das declarações proferidas na condição de Chefe de Estado.

De início, registro que os investigados suscitaram questões preliminares em suas alegações finais, que passo a abordar.

I – Preliminares

1. Preliminar de incompetência da Justiça Eleitoral (suscitada pelos investigados)

Os investigados alegam que o art. 48 da Res.-TSE nº 23.608/2019 torna possível rediscutir, “por ocasião do julgamento”, todas as questões resolvidas em decisões interlocutórias. O dispositivo em comento prevê, como regra, que tais decisões não se sujeitam a preclusão, de modo que as partes podem requerer seu reexame “por ocasião do julgamento”. Transcrevo a íntegra do dispositivo:

“Art. 48. As decisões interlocutórias proferidas no curso da representação de que trata este capítulo não são recorríveis de imediato, não precluem e deverão ser novamente analisadas pela juíza ou pelo juiz eleitoral ou pela juíza ou pelo juiz auxiliar por ocasião do julgamento, caso assim o requeiram as partes ou o Ministério Público Eleitoral em suas alegações finais.

Parágrafo único. Modificada a decisão interlocutória pela juíza ou pelo juiz eleitoral ou pela juíza ou pelo juiz auxiliar, será reaberta a fase instrutória, mas somente serão anulados os atos que não puderem ser aproveitados, determinando-se a subsequente realização ou renovação dos que forem necessários.”

(Sem destaques no original.)

Conforme se observa, a regra pressupõe uma situação em que a decisão interlocutória proferida pelo Relator esteja sendo levada a conhecimento do Colegiado pela primeira vez no momento do julgamento final. A preclusão referida no dispositivo é a temporal, a significar que a possibilidade de exame em plenário do acerto ou desacerto das decisões do relator permanece aberta até o julgamento final, desde que a parte cumpra seu ônus de requerer o exame nas alegações finais.

O dispositivo, porém, não afasta outro tipo de preclusão, a pro judicato, que impede qualquer órgão julgador de decidir novamente as matérias que já decidiu (art. 505, CPC). Assim, se a Corte, em momento anterior, examinar o teor de uma decisão interlocutória, evidentemente fica prejudicada a aplicação do art. 48 da Res.-TSE nº 23.608/2019.

No caso dos autos, como é sabido, isso ocorreu em duas ocasiões. O Plenário do TSE já decidiu pela rejeição das preliminares que poderiam levar à extinção do processo sem resolução de mérito e das questões prejudiciais que tinham impacto na definição do curso da instrução.

Com efeito, este Relator, pautado pela racionalidade do processo e pelo respeito ao encadeamento lógico das etapas processuais, teve a iniciativa de levar as matérias imediatamente a referendo. Houve o cuidado de explicitar que o procedimento serviria justamente para resolver questões processuais pendentes antes que se iniciasse a instrução. Mencione-se, à luz da boa-fé objetiva, que os investigados em momento algum se opuseram à metodologia adotada, dela fazendo bom e oportuno uso, inclusive quando seu pedido de reconsideração foi prontamente analisado pela Corte, a despeito do não cabimento de agravo interno.

Do acórdão em que se referendou a rejeição da preliminar em comento, constaram não apenas fundamentos para afirmar a competência da Justiça Eleitoral, como também uma exposição didática da metodologia que estava sendo empregada em benefício da gestão processual:

“AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ELEIÇÕES 2022. PRESIDENTE. PRELIMINARES. REJEIÇÃO. QUESTÕES EM TESE APTAS A ACARRETAR DECISÃO TERMINATIVA. COLEGIALIDADE. RACIONALIDADE PROCESSUAL. IMEDIATA SUBMISÃO À CORTE.

ATO DE GOVERNO. ALEGADO DESVIO DE FINALIDADE EM FAVOR DE CANDIDATURA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ELEITORAL. UNIÃO. PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PÚBLICO. ILEGIMIIDADE PASSIVA. LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO. INEXISTÊNCIA. DECISÃO INTERLOCUTÓRIA REFERENDADA.

2. Concluída a fase postulatória, proferiu-se decisão de saneamento e organização do processo, com o objetivo assegurar que a fase instrutória seja iniciada em ambiente de estabilidade jurídica, resolvidas todas as questões pendentes.

3. No decisum, foram rejeitadas duas preliminares suscitadas pelos investigados.

4. Como regra geral, as questões resolvidas por decisão interlocutória, no procedimento do art. 22 da LC nº 64/90, não são recorríveis de imediato. Nessa hipótese, o reexame pelo Colegiado fica diferido para a sessão em que for julgado o mérito e somente ocorre se a parte o requerer em alegações finais (art. 19, Res.-TSE nº 23.478/2016; art. 48, Res.-TSE nº 23.608/2019).

5. A aplicação da regra às ações de investigação judicial eleitoral foi reafirmada no julgamento da AIJE nº 0601969-65 (Rel. Min. Jorge Mussi, DJE de 08/05/2020), quando o TSE declarou preclusa a possibilidade de a parte, silente nas alegações finais, rediscutir decisão em que o Relator indeferiu provas.

6. A sistemática prestigia a celeridade, mas, para que atinja seu objetivo, deve ser aplicada sempre com respeito à racionalidade processual. Desse modo, não se justifica que toda a instrução seja desenvolvida enquanto está pendente de exame pela Corte questão preliminar capaz de, em tese, levar à extinção do processo sem resolução do mérito.

7. Nessa linha, é conveniente ao bom andamento deste feito e à estabilidade do processo eleitoral que a Corte desde logo avalie se, tal como se concluiu na decisão saneadora, ação proposta é efetivamente viável.

PRELIMINAR DE INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ELEITORAL. REJEITADA.

8. A Justiça Eleitoral é competente para apurar desvios de finalidade de atos praticados por agentes públicos, inclusive por Chefe de Estado, quando da narrativa se extrair que o mandatário se valeu do cargo para produzir vantagens eleitorais para si ou terceiros. Entender o contrário seria criar uma espécie de salvo-conduto em relação a desvios eleitoreiros ocorridos, justamente, no exercício do feixe de atribuições mais sensível do Presidente da República.

9. Na hipótese dos autos, os requisitos para a definição da competência do TSE foram devidamente delimitados pela parte autora. Narra-se que o Presidente da República, utilizando-se de seu cargo, convocou reunião com embaixadores de países estrangeiros, mas, agindo com desvio de finalidade, teria passado a atacar a integridade do sistema eleitoral, em estratégia amoldada à de sua campanha, beneficiando-se, ainda, da ampla repercussão da transmissão do evento pela TV Brasil.

10. Os argumentos trazidos pelos investigados, no sentido de que atos de governo não se sujeitam a controle jurisdicional, pressupõem que inexista o desvirtuamento para fins eleitorais, matéria a ser examinada no mérito.

[...]

CONCLUSÃO.

15. Rejeitadas as preliminares suscitadas pelos investigados, conclui-se pela viabilidade da AIJE proposta.

16. Decisão interlocutória referendada.

(Sem destaques no original.)

O voto de Relatoria, ao qual a Corte aderiu de forma unânime, apresentou os seguintes fundamentos para rechaçar a alegada incompetência da Justiça Eleitoral e, assim, reafirmar que esta justiça especializada é, evidentemente, a instância própria para examinar imputações de abuso decorrentes do desvio eleitoreiro do poder político:

“2. Preliminar de incompetência da Justiça Eleitoral (suscitada pelos réus)

Os investigados argumentam que a reunião com embaixadores consistiu em ato praticado na condição de Chefe de Estado, sem qualquer relação com o pleito, no regular desempenho da função privativa de manter relações com países estrangeiros, o que torna a Justiça Eleitoral incompetente para examinar a matéria.

A se acolher a tese proposta, restaria inviabilizado todo e qualquer controle de práticas abusivas perpetradas por meio de atos privativos do Chefe de Estado, erigindo uma espécie de salvo-conduto em relação a desvios eleitoreiros ocorridos no exercício, justamente, do feixe de atribuições mais sensível do Presidente da República.

Não há dúvidas, porém, que o art. 22 da LC 64/90, ao estabelecer que cabe ao Corregedor-Geral Eleitoral instaurar investigação judicial eleitoral “para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder [...] de autoridade”, atribuiu à Justiça Eleitoral a competência para sindicar, sob o prisma da lisura do pleito, todos os atos administrativos praticados por agentes públicos no exercício de seus cargos e dentro de suas esferas de competência, inclusive os que tenham natureza político-institucional, desde que haja indícios do desvirtuamento do poder em prol de candidaturas.

Com efeito, os eleitos não titularizam o poder estatal para uso de acordo com interesses particulares, mas, sim, o ostentam para cumprir finalidades públicas. Mesmo na hipótese de atos discricionários, não se supõe que seja lícito ao mandatário empregar suas prerrogativas para produzir vantagens eleitorais, para si ou terceiros. O elemento nuclear do abuso de poder político ou de autoridade, conforme a jurisprudência deste Tribunal, é o ato do agente público que, valendo-se de condição funcional e em manifesto desvio de finalidade, desequilibra a disputa em benefício de sua candidatura ou de terceiros (RO 1723-65/DF, Rel. Min. Admar Gonzaga, DJE de 27/2/2018 e REspE 468-22/RJ, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJE de 16/6/2014, dentre outros).

Em outras palavras, é premissa primeira do abuso de poder político, apto a atrair a competência da Justiça Eleitoral, o ato praticado na condição de agente público. A este requisito se acresce a necessidade de que a petição inicial descreva o elemento desviante, ou seja, o fator que denota que a conduta se afastou do regular exercício das atribuições do cargo. E, por fim, esse elemento desviante deve possuir contornos eleitorais, uma vez que o objeto da AIJE não se confunde com o da ação de improbidade ou de outros procedimentos que possam ser ajuizados para punir irregularidades administrativas desprovidas de conotação eleitoral.

Na hipótese dos autos, os requisitos para a definição da competência do TSE foram devidamente delimitados pela parte autora, que narra que o Presidente da República, utilizando-se de seu cargo, convocou reunião com embaixadores de países estrangeiros, mas, agindo com desvio de finalidade, teria passado a atacar a integridade do sistema eleitoral, em estratégia amoldada à de sua campanha, beneficiando-se, ainda, da ampla repercussão da transmissão do evento pela TV Brasil.

Os investigados, ao arguir a incompetência da Justiça Eleitoral, não refutaram a aderência dessa causa de pedir à conduta típica do abuso de poder político. O que fazem é avançar sobre aspectos meritórios. Defendem que se está diante de ato de governo, cujo “fim político” não está sujeito a controle jurisdicional, e que se deu em cumprimento a agenda pública do Presidente. Enfatizam, ainda, que não houve pedido de votos ou ataque a oponentes. Buscam, em síntese, que se reconheça a intangibilidade dos fatos, ao argumento de que o exercício de poder político ocorreu dentro dos limites constitucionais.

Ocorre que sendo a Justiça Eleitoral a única competente para se pronunciar sobre a existência, ou não, de desvio de finalidade com conotação eleitoral e, sendo o caso, sobre sua gravidade no contexto de uma determinada eleição, tem-se inequivocamente delineada a competência deste Tribunal para resolver a controvérsia.

Portanto, rejeito a preliminar de incompetência da Justiça Eleitoral.”

Tem-se, portanto, que o TSE, por seu órgão colegiado, já assentou a competência da Justiça Eleitoral para julgar o feito presente.

Essa decisão não é afetada pelo argumento, trazido nas alegações finais, de que os depoimentos colhidos em audiência demonstrariam que a reunião de 18/07/2022 não teve caráter eleitoral. Isso porque é nítido que a prova mencionada se refere a um ponto fático controvertido e deve ser analisada no exame de mérito, ao qual se chegará exatamente porque a Justiça Eleitoral tem competência pare análise da matéria.

Conclui-se que a pretensão de revolvimento da questão é incabível neste momento, razão pela qual não conheço da preliminar.

Na hipótese de vir a ser conhecida pela maioria da Corte, nesta assentada, o caso é de rejeitá-la, conforme fundamentos já lançados.

2. Questão prejudicial de “redelimitação da demanda” (suscitada pelos investigados)

Nas alegações finais, os investigados também reavivaram sua objeção à juntada da minuta de decreto de estado de defesa apreendida pela Polícia Federal, no dia 12/01/2023, na residência do ex-Ministro da Justiça e da Segurança Pública Anderson Torres. Asseveram que foram violadas a estabilização da demanda, o princípio da congruência, o contraditório e a segurança jurídica.

Quanto ao tema, rememoro que, ao final da fase postulatória, proferiu-se decisão de saneamento e organização do processo, na qual se indicou como pontos incontroversos: a) a realização do evento em que o primeiro investigado, então Presidente da República dirigiu-se a embaixadoras e embaixadores de países estrangeiros para apresentar sua visão sobre o sistema eletrônico de votação brasileiro; b) o teor do discurso proferido; c) a transmissão do evento pela TV Brasil e pelas redes sociais do primeiro investigado.

Pontuou-se, em seguida, que as partes controvertem sobre o alegado desvio de finalidade eleitoreira e sobre a gravidade de eventual conduta irregular, tanto sob a ótica qualitativa (reprovabilidade da conduta) quanto sob a ótica quantitativa (repercussão no contexto eleitoral).

A controvérsia estava, portanto, perfeitamente delimitada quando se fixou a pertinência de fato superveniente – a apreensão da minuta de decreto pela Polícia Federal, após os atos antidemocráticos ocorridos em Brasília em 08/01/2023 – e deferiu-se a juntada do documento aos autos. Consignou-se na decisão respectiva que há inequívoca “correlação entre os fatos e documentos novos e a demanda estabilizada”, especialmente por ser ônus da autora convencer que “a reunião realizada com os embaixadores deve ser analisada como elemento da campanha eleitoral de 2022, dotado de gravidade suficiente para afetar a normalidade e a legitimidade das eleições e, assim, configurar abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação” (ID 158554507).

O decisum foi objeto de pedido de reconsideração no qual os réus formularam as alegações, ora repetidas, de que teriam sido violadas a estabilização da demanda e a consumação de decadência (ID 158557843). O pedido de reconsideração foi indeferido, oportunidade em que também se fixou orientação a ser aplicada às AIJEs das Eleições 2022 em situações semelhantes (ID 158622380).

Aplicou-se, então, a metodologia já entabulada quando da rejeição das preliminares, submetendo-se ao colegiado, de imediato, a decisão que indeferiu o pedido de reconsideração. Em 14/02/2023, a Corte, novamente por unanimidade, confirmou que os limites da controvérsia, que já estavam fixados em decisão de saneamento e organização do processo, comportavam o conhecimento de fato superveniente, consistente na apreensão de minuta de decreto de estado de defesa na residência de Anderson Torres.

Foi também corroborada a orientação que pavimentaria a determinação das diligências complementares. Transcrevo, mais uma vez, a ementa do referido acórdão (ID 158704139):

“AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ELEIÇÕES 2022. PRESIDENTE. JUNTADA DE DOCUMENTO NOVO. FATOS SUPERVENIENTES.  ADMISSIBILIDADE. DESDOBRAMENTO DE FATOS QUE COMPÕEM A CAUSA DE PEDIR. PEDIDO DE RECONSIDERAÇÃO. DECADÊNCIA. VIOLAÇÃO À ESTABILIZAÇÃO DA DEMANDA. INOCORRÊNCIA. QUESTÕES PREJUDICIAIS REJEITADAS. DECISÃO REFERENDADA.

[...]

3. A causa de pedir da AIJE é delimitada pelos contornos fáticos e jurídicos que permitam a compreensão da demanda, não se exigindo que a parte autora, ao postular em juízo, tenha pleno domínio de todos os fatos que podem influir no julgamento e os descreva em minúcias.

4. Na hipótese, a causa de pedir contempla a imputação de que o discurso proferido em 18/07/2022 se insere em uma estratégia de campanha do primeiro réu, de difundir fatos sabidamente falsos relativos ao sistema eletrônico de votação, para mobilizar seu eleitorado por força de grave “desordem informacional” atentatória à normalidade do pleito.

5. Em contrapartida, os investigados refutam qualquer relação entre o evento de 18/07/2022 e as eleições, enxergando no discurso uma legítima manifestação, em salutar ‘diálogo institucional’ com o TSE, afirmando ainda que qualquer efeito do discurso teria sido prontamente neutralizado por nota pública tribunal.

6. Diante disso, na decisão de organização e saneamento do processo, consignou-se que os fatos constitutivos (o evento, o discurso e seu conteúdo) são incontroversos e que as partes disputam a narrativa sobre o significado e o impacto eleitoral do episódio. Ressaltou-se que, em matéria de abuso de poder, o exame da gravidade da conduta, sob o ângulo qualitativo e quantitativo, reclama especial atenção para a análise de elementos contextuais.

7. O documento novo ora trazido aos autos consiste em minuta de decreto de Estado de Defesa apreendida pela Polícia Federal na residência do ex-Ministro da Justiça e da Segurança Pública, Anderson Torres, no dia 12/01/2023, durante diligência determinada pelo Ministro Alexandre de Moraes no âmbito do Inquérito nº 4879, que tramita no STF.

8. É inequívoco que o fato de o ex-Ministro da Justiça do governo do primeiro investigado ter em seu poder uma proposta de intervenção no TSE e de invalidação do resultado das eleições presidenciais possui aderência aos pontos controvertidos, em especial no que diz respeito à correlação entre o discurso e a campanha e ao aspecto quantitativo da gravidade.

9. A decadência obsta a dedução de ilícitos inteiramente novos, sendo fator de estabilidade política e jurídica. No entanto, apresentada a demanda de modo tempestivo, os fatos supervenientes que guardem relação com a causa de pedir, mesmo que não alegados pelas partes, devem ser obrigatoriamente considerados no julgamento (art. 493, CPC; art. 23, LC 64/90).

10. Desse modo, não se pode interpretar a estabilização da demanda como um recorte completo e irreversível na realidade fenomênica. Essa ideia acarreta um descolamento tal dos fatos em relação a seu contexto que chega a impedir o órgão judicante de levar em conta circunstâncias que gradativamente se tornem conhecidas ou potenciais desdobramentos das condutas em investigação.

11. Ressalte-se que, no caso dos autos, o que a autora pretende discutir são eventos que se conectam a partir do eixo central da narrativa, segundo a qual o discurso na reunião com embaixadores mirava efeitos eleitorais ilícitos. O próprio teor do discurso do Presidente, que livremente escolheu os tópicos que desejava abordar, oferece uma clara visão sobre o fluxo de eventos – passados e futuros – que podem, em tese, corroborar a imputação da petição inicial.

12. Ao lado dessas considerações gerais, deve-se ter em conta que o resultado das eleições presidenciais de 2022, embora fruto legítimo e autêntico da vontade popular manifestada nas urnas, se tornou alvo de ameaças severas. Passado o pleito, a diplomação e até a posse do novo Presidente da República, atos desabridamente antidemocráticos e insidiosas conspirações tornaram-se episódios corriqueiros. São armas lamentáveis do golpismo dos que se recusam a aceitar a prevalência da soberania popular e que apostam na ruína das instituições para criar um mundo de caos onde esperam se impor pela força.

13. Os acontecimentos se sucedem de forma vertiginosa. Mas o devido processo legal tem, entre suas virtudes, a capacidade de decantar os fatos e possibilitar seu exame analítico. É isso que deve guiar a instrução das AIJEs, pois é central à consolidação dos resultados das Eleições 2022 averiguar se esse desolador cenário é, ou não, desdobramento de condutas em apuração nas diversas ações. Esse debate não pode ser silenciado ou inibido por uma artificial separação entre as causas de pedir e a realidade fenomênica em que se inserem.

14.  Os temas das ações propostas são de conhecimento público. Não há segredo de justiça. As decisões de admissibilidade, de concessão de tutela inibitória e de saneamento, bem como outras de caráter interlocutório, têm contemplado cuidadoso delineamento das matérias em discussão.

15. Tendo em vista o prestígio à celeridade, à economia processual e à boa-fé objetiva, entendo prudente que, especificamente no que diz respeito às AIJEs relativas às eleições presidenciais de 2022, seja fixado um parâmetro seguro e objetivo que dispense, a cada fato ou documento específico, uma nova decisão interlocutória que revolva todos os fundamentos ora expostos.

16. Orientação a ser aplicada em situações semelhantes, no sentido de que a estabilização da demanda e a consumação da decadência não impedem que sejam admitidos no processo e considerados no julgamento elementos que se destinem a demonstrar desdobramentos dos fatos originariamente narrados, a gravidade (qualitativa e quantitativa) da conduta que compõe a causa de pedir ou a responsabilidade dos investigados e de pessoas do seu entorno, tais como: a) fatos supervenientes à propositura das ações ou à diplomação dos eleitos, ocorrida em 12/12/2022; b) circunstâncias relevantes ao contexto dos fatos, reveladas em outros procedimentos policiais, investigativos ou jurisdicionais ou, ainda, que sejam de conhecimento público e notório; e c) documentos juntados com base no art. 435 do CPC.

17. Mantido o indeferimento do pedido de reconsideração.

18. Decisão interlocutória referendada.”

(Sem destaques no original.)

Desse modo, não há dúvidas de que o TSE já decidiu, por seu colegiado, que a admissão do fato superveniente e do documento novo estritamente correlacionados à causa de pedir não violou a estabilização da demanda ou a decadência. A Corte também corroborou a diretriz para análise da pertinência de novas diligências.

Transcrevo passagens da fundamentação do voto de relatoria, inteiramente endossado pelo Colegiado:

“Nos termos do art. 487, II, do Código de Processo Civil, consumada a decadência, deve o órgão jurisdicional, de ofício ou a requerimento da parte, extinguir o processo com resolução do mérito.

A decadência é instituto de direito material, que corresponde ao perecimento de um direito não exercitado em um determinado prazo. Na civilística, incide sobre direitos potestativos, que correspondem ao poder de seu titular de interferir na esfera jurídica alheia por mera declaração unilateral de vontade.

No âmbito do Direito Eleitoral, ao se transpor o instituto para as ações sancionadoras, é necessário ter em vista que os direitos tutelados têm natureza difusa. Os legitimados ativos, nesses casos, não se valem da jurisdição para impor um ato de vontade unilateral, mesmo porque não são os titulares do poder de cassar mandatos ou de aplicar inelegibilidade. Agem como ‘representantes adequados’, aos quais a lei incumbiu a função de submeter ao controle jurisdicional a análise de condutas que se desviem dos parâmetros democráticos e republicanos que norteiam as eleições.

Por outro lado, é certo que os efeitos de uma decisão que conclua pela prática de ilícitos graves incidem sobre a esfera jurídica dos réus de modo imperativo, sem depender de qualquer ato de aceitação ou de cumprimento forçado. Proferida a condenação, opera-se a mudança do status jurídico dos responsáveis e beneficiários, uma vez que são disparadas as consequências legais da cassação ou da declaração de inelegibilidade, mesmo que não requeridas expressamente.

O fundamento para a propositura de uma ação eleitoral sancionadora, portanto, não é um direito cujos efeitos dependem somente da atuação do titular no tempo devido. O fundamento é, sim, a existência de circunstâncias fáticas suficientes para disparar o controle jurisdicional, sendo que a aplicação das sanções ocorre de forma imperativa quando se conclui, após a tramitação do processo em contraditório, pela configuração das práticas ilícitas.

Desse modo, ao contrário de um direito potestativo, insuscetível de discussão por quem suportará as consequências de seu exercício (ex.: o divórcio, o direito de arrependimento do consumidor, o pedido de demissão do empregado, a desfiliação partidária), a imputação de um ilícito eleitoral não é, em si, suficiente para produzir efeitos. No curso da ação, todos os elementos constitutivos, extintivos ou modificativos da base fática e jurídica estarão em análise.

Decorre disso que a causa de pedir da AIJE, da AIME e das representações especiais é delimitada pelos contornos fáticos e jurídicos que permitam a compreensão da demanda, não se exigindo que a parte autora, ao postular em juízo, tenha pleno domínio de todos os fatos que podem influir no julgamento da causa e os descreva em minúcias. O contraditório é um espaço dinâmico, dentro do qual argumentos e provas podem ser apresentados, por todas as partes, com vistas a convencer da ocorrência ou não do ilícito narrado.

Decerto, caso fosse ônus do autor apresentar de antemão todos os componentes de um ilícito eleitoral – conhecimento que, em regra, apenas os responsáveis pela prática terão – o controle jurisdicional seria inviabilizado. A petição inicial teria que evidenciar algo como um “ilícito líquido e certo” que, instantaneamente, propiciasse cabal conclusão quanto a sua existência, gravidade e responsabilidade.

Um entendimento desse tipo não encontra abrigo na jurisprudência do TSE, que, ao contrário, estatui que ‘[a] abertura de investigação judicial eleitoral demanda a indicação de provas, indícios e circunstâncias da suposta prática ilícita, não sendo exigível prova pré-constituída dos fatos alegados’ (RO nº 1588-36, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJE de 24/11/2015).

Por isso, quando se cogita da decadência da propositura de ações eleitorais sancionadoras, descabe traçar paralelos rígidos com a incidência do instituto no Direito Civil. Na verdade, o nomen iuris deve ser visto com reservas, sendo certo que o que mais interessa é que se compreenda a finalidade e a abrangência da fixação de um prazo peremptório para o ajuizamento das ações.

Com efeito, a decadência em Direito Eleitoral remete a um termo fatal, exíguo, para inaugurar controvérsias em torno das condutas que possam ter vulnerado determinado pleito. Conforme uníssona doutrina, esse é um elemento relevante para a estabilidade política, pois propicia encerrar o procedimento de escolha de mandatários, sabendo-se quais comportamentos atrairão o controle jurisdicional. Ou seja: a decadência para a propositura de ações eleitorais sancionadoras não fulmina a vontade de um sujeito, mas a sindicabilidade de condutas ilícitas.

No caso da AIJE, a data da diplomação é o limite a ser observado para que se postule à Corregedoria a investigação de práticas abusivas (REspEl nº 357-73, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJE de 03/08/2021). O marco decadencial evita que o armazenamento tático de informações e mesmo a manipulação de narrativas sobre fatos passados sirvam a estratégias de ocasião, definidas ao sabor de alianças, distensões e rupturas no curso dos mandatos e, vale dizer, do exercício da oposição. 

Identificada, portanto, a finalidade da estipulação de prazo decadencial para a propositura da AIJE, cumpre explicitar a abrangência das restrições que então decorrem para a atuação dos legitimados ativos.

Em primeiro lugar, é certo que nenhuma nova ação desse tipo poderá ser ajuizada após a data da diplomação.

Na hipótese do pleito presidencial de 2022, esse termo final recaiu em 12/12/2022. Registro que foram ajuizadas, no período, 31 AIJEs, sendo que 10 foram extintas, dada sua inviabilidade processual, e se encontram arquivadas. Seguem em curso 21 ações, das quais 5 foram ajuizadas contra a chapa eleita e 16 contra a chapa vencida no 2º turno. A presente ação foi proposta em 19/08/2022, assim, no que diz respeito a esse primeiro ponto, não há dúvidas de que a parte autora observou o prazo decadencial aplicável.

Em segundo lugar, a consumação da decadência impõe um limite específico às ações em curso: é vedado ampliar sua causa de pedir fática, já que isso representaria verdadeira burla à impossibilidade de instauração de procedimentos novos. Há, portanto, um reforço às regras processuais da estabilização da demanda, uma vez que a causa de pedir da AIJE não poderá ser alterada por vontade da autora ou consenso das partes se superado o termo final da decadência.

No entanto, conforme já se expôs em decisões neste feito (IDs 15848796 e 158554507), a estabilização da demanda não acarreta uma blindagem do debate processual contra fatos que possam influir no julgamento. Ao contrário. Há disposições legais expressas no sentido de que o magistrado leve em consideração fatos constitutivos, modificativos ou extintivos supervenientes ao ajuizamento (art. 493, CPC) e, ainda, fatos públicos e notórios e circunstâncias, ainda que não alegadas pelas partes, que preservem a lisura eleitoral (art. 23, LC nº 64/90).

Veja-se que, acima, destacou-se a diferença substancial entre um direito potestativo, autoevidente e inoponível, e a imputação de ilícito eleitoral, que somente produz seus efeitos legais se seus elementos fáticos e jurídicos forem demonstrados em juízo. Salientou-se que a decadência opera de formas distintas nas duas situações, sendo que, no caso da AIJE, obsta-se a sindicabilidade da conduta reputada abusiva. Simples constatar, da conjugação dessas duas assertivas, que uma AIJE proposta a tempo e modo dispara a apuração do abuso de poder que se extrai da narrativa apresentada, o que, considerada a finalidade do processo, comporta o exame de todos os fatos que possam influir no julgamento.

A condenação por abuso de poder, como é sabido, exige não apenas a comprovação do fato constitutivo, que compõe a causa de pedir. É indispensável analisar sua gravidade sob a ótica qualitativa – grau de reprovabilidade – e quantitativa – impacto no contexto de um pleito específico (AIJE nº 0601864-88, Rel. Min. Jorge Mussi, DJE de 25/9/2019). Também se deve avaliar se houve benefício a determinada candidatura, bem como a dimensão da responsabilidade de cada investigado, uma vez que a declaração de inelegibilidade tem natureza personalíssima.

Sendo assim, inegável que o debate na AIJE não é encapsulado em uma simples pergunta sobre a ocorrência de um fato constitutivo, a ser respondida apenas com “sim” ou “não”. Inúmeras questões concorrem para o exame da configuração do abuso de poder e para a fixação das consequências por sua prática.

Não se pode agregar a uma ação em curso uma causa de pedir inédita. Porém, sempre deverão ser examinados, inclusive de ofício, os ‘fatos simples, contíguos, instrumentais à formação da convicção necessária a julgar a demanda conformada pelas partes’ (PEREIRA, Luiz Fernando Casagrande. Demandas Eleitorais: estabilização, fatos novos e decadência. Resenha Eleitoral, Florianópolis, SC, v. 22, n. 1, pp. 17–34, 2018).

Por isso, não há como dar guarida à ideia de que a delimitação da causa de pedir provoca um recorte completo e irreversível na realidade fenomênica, gerando um descolamento tal dos fatos em relação a seu contexto que chega a impedir o órgão judicante de levar em conta circunstâncias que gradativamente se tornem conhecidas ou potenciais desdobramentos das condutas em investigação.

Na prática, diferenciar a indevida extrapolação da causa de pedir da salutar agregação de fatos e circunstâncias relevantes para o deslinde da causa é tarefa mais singela do que pode parecer à primeira vista. A jurisprudência do TSE tem se mostrado consistente nesse mister, alcançando um ponto de maturidade em que se tem contornos bem claros quanto aos efeitos da estabilização da demanda fática e jurídica.

Na sempre citada AIJE nº 1943-58 (Rel. Min. Herman Benjamin, Rel. designado Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJE de 12/09/2018), a causa de pedir fática dizia respeito ao uso de recursos oficialmente doados por partidos políticos à chapa Dilma-Temer em 2014 que, embora tivessem sido declarados à Justiça Eleitoral nos anos de 2012 e 2013, teriam fonte originária ilícita (reserva formada a partir de superfaturamento de contratos celebrados entre empreiteiras e a Petrobrás). O TSE, por maioria, recusou que a ação servisse para discutir fatos inteiramente novos, concernentes à imputação de ‘caixa 2’ (recursos de empresas doados à margem de contabilização oficial, para custeio de despesas eleitorais).

Estava-se, então, diante de dois ilícitos autônomos, com elementos próprios. As condutas eram, inclusive, dissociadas no tempo (doações recebidas e declaradas pelos partidos em 2012 e 2013 e que constituiriam uma reserva financeira, de um lado, e ‘caixa 2’ de campanha em 2014, de outro). Os fatos posteriores não se apresentavam como desdobramentos dos primeiros, tampouco serviam para adensar ou corroborar a narrativa da petição inicial. Cada um dos episódios, por si, demandaria instrução própria, a fim de se concluir pela ocorrência ou não de abuso de poder econômico. Desse modo, consumada a decadência, não era possível inserir na ação em curso a segunda causa de pedir.

O TSE, em outro caso, reconheceu que o tribunal regional violou os limites da demanda estabilizada, não sob a ótica dos fatos, mas da capitulação jurídica. Isso porque, ajuizada representação para apurar captação ilícita de sufrágio (art. 41-A, Lei nº 9.504/97), proferiu-se condenação por captação ilícita de recursos (art. 30-A, Lei nº 9.504/97), que somente foi ventilada em alegações finais. Confira-se trecho da ementa (RO-El nº 0601788-58, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJE de 19/09/2022):

ELEIÇÕES 2018. RECURSO ORDINÁRIO. REPRESENTAÇÃO ELEITORAL. CANDIDATO AO CARGO DE DEPUTADO ESTADUAL. APREENSÃO DE VULTOSA QUANTIA, EM DINHEIRO, EM VEÍCULO UTILIZADO NA CAMPANHA ELEITORAL. AGENDA MANUSCRITA E SANTINHOS. ALEGAÇÃO DE NULIDADES. [...] ALTERAÇÃO DA CAUSA DE PEDIR. ACOLHIMENTO. RECURSO ORDINÁRIO PROVIDO.

1. Na origem, o MPE ajuizou representação, embasada no art. 41–A da Lei nº 9.504/1997, por captação ilícita de sufrágio em desfavor de Carlos Avalone Junior, eleito deputado estadual de Mato Grosso no pleito de 2018, e pugnou pela procedência do pedido a fim de que fossem aplicadas as sanções previstas no mencionado dispositivo legal.

2. O TRE/MT, rejeitando as preliminares arguidas, entendeu que não houve alteração da causa de pedir e julgou procedente o pedido formulado na representação para reconhecer que o representado incidiu na prática de captação ilícita de recursos, condenando–o à penalidade de cassação de seu mandato de deputado estadual, com fundamento no § 2º do art. 30–A da Lei nº 9.504/1997. Decretou, ademais, a perda dos valores apreendidos em favor da União.

[...]

6. No caso, o MPE, verificando não haver elementos probatórios que denotassem a prática da captação ilícita de sufrágio (art. 41–A da Lei nº 9.504/1997), pugnou, em alegações finais, pela condenação pela prática do ilícito descrito no art. 30–A da Lei das Eleições.

[...]

8. Embora o Enunciado nº 62 da Súmula do TSE estabeleça que ‘[...] os limites do pedido são demarcados pelos fatos imputados na inicial, dos quais a parte se defende, e não pela capitulação legal atribuída pelo autor’, no caso, houve uma verdadeira alteração do ilícito imputado ao recorrente.

[...]

10. Modifica a causa de pedir, afrontando–se o disposto no art. 329 do CPC, o pedido do autor da representação, formulado em alegações finais, para condenar o réu com base nas acusações de captação e gastos ilícitos de recursos na campanha eleitoral, consistente na movimentação de recursos fora da conta de campanha, sem a identificação da origem, na omissão de despesa com pessoal na prestação de contas e na extrapolação do limite de gastos, condutas estas passíveis de atrair a incidência de eventual sanção prevista no art. 30–A da Lei nº 9.504/1997.

[...]

(Sem destaques no original.)

Ambos os precedentes acima referidos foram lembrados pelos investigados ao pedir que fosse reconsiderada a decisão que declarou a pertinência ao feito da minuta de decreto de Estado de Defesa cujo original foi apreendido pela Polícia Federal na residência de Anderson Torres – ex-Ministro da Justiça e Segurança Pública do governo de Jair Bolsonaro – durante diligência determinada pelo Ministro Alexandre de Moraes no âmbito do Inquérito nº 4879, que tramita no STF.

No entanto, não lhes assiste razão.

Sob a ótica da causa de pedir jurídica, não houve qualquer inovação no caso, em que se apura abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação. Portanto, o segundo precedente citado pelos investigados não guarda relação com o cerne da decisão ora questionada, sendo inservível ao pedido de reconsideração.

Sob o ponto de vista dos fatos que compõem a causa de pedir, o documento revelado em 12/01/2023 se conecta às alegações iniciais da parte autora, no sentido de que o discurso proferido por Jair Messias Bolsonaro no encontro com embaixadores em 18/07/2022 era parte da estratégia de campanha consistente em lançar graves e infundadas suspeitas sobre o sistema eletrônico de votação.

De se notar que o fato constitutivo da imputação (evento e discurso ocorridos em 18/07/2022) é incontroverso. As partes disputam a narrativa referente ao contexto em que se insere o episódio. Esses apontamentos constaram da decisão de saneamento e organização do processo.

Em primeiro lugar, referida decisão contemplou capítulo em que foram criteriosamente delimitadas as questões de fato sobre as quais recairia a prova, prestigiando-se a estabilização da demanda e a racionalidade da iniciativa probatória. Desde então, mencionei que a melhor técnica processual, refletida na doutrina e em precedente do TSE, indica a imperatividade de que sejam admitidas à discussão, na AIJE, alegações de fato que possuam correlação com a demanda estabilizada. Transcrevo trecho:

[...]

Passei, então, à delimitação da controvérsia submetida a juízo nesta AIJE. Nessa etapa, salientei que são incontroversos: a) a realização do evento em que o então Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, dirigiu-se a embaixadores de países estrangeiros para apresentar sua visão sobre o sistema eletrônico de votação brasileiro; b) o teor do discurso proferido; c) a transmissão do evento pela TV Brasil e pelas redes sociais do primeiro representado. Pontuei, em seguida, que a matéria controvertida diz respeito ao contexto desse ato, conforme se lê abaixo:

‘A controvérsia fática recai sobre as circunstâncias em que a reunião foi realizada e em que ocorreu sua divulgação nas redes.

O autor afirma que o primeiro réu, atuando com desvio de finalidade, utilizou-se do encontro com chefes de missões para atacar a integridade do processo eleitoral, especialmente disseminando “desordem informacional” relativa ao sistema eletrônico de votação e fazendo insinuações sobre a conduta de Ministros que presidiram o TSE. Além disso, argumenta que o discurso tem aderência à estratégia de campanha do candidato à reeleição para mobilizar suas bases por meio de fatos sabidamente falsos, devendo-se levar em conta que a transmissão pelas redes sociais fez com que a mensagem chegasse ao eleitorado.

De sua parte, os investigados refutam qualquer relação entre o evento e o pleito de 2022. Defendem que a reunião se ateve à sua finalidade pública, uma vez que, segundo sua narrativa, o Presidente da República, no exercício da liberdade de expressão, expôs seu ponto de vista sobre o sistema de votação para convidados que nem mesmo eram eleitores. Ressaltam que a fala fez parte de um diálogo institucional sobre tema de interesse público, devendo ser lida em cotejo com anterior evento do TSE (em que o Ministro Edson Fachin, então seu Presidente, se dirigiu a membros da comunidade internacional) e com nota em que o tribunal rebateu as afirmações feitas por Jair Bolsonaro na reunião do Palácio do Alvorada.’

(Sem destaques no original.)

Na decisão saneadora, também delimitei questões de direito e, em amplo prestígio ao contraditório, reafirmei o direito das partes de produzirem provas de fatos que possam ter influência na configuração jurídica da conduta descrita. Destaquei que, no caso do abuso de poder, o exame da gravidade da conduta, sob o ângulo qualitativo e quantitativo, reclama especial atenção para a análise de elementos contextuais:

‘5. Delimitação das questões de direito

Embora seja de rigor afirmar que o réu se defende dos fatos e não da qualificação jurídica dada a estes, é certo que as particularidades das ações eleitorais exigem que, ao ter início a fase instrutória, tenha-se plena ciência das questões de direito que serão relevantes para o deslinde do feito. Isso porque, em Direito Eleitoral, uma mesma conduta pode ser capitulada sob a ótica de ilícitos diversos, com consequências distintas.

Tais ilícitos possuem elementos típicos próprios que influem na iniciativa probatória das partes. Por exemplo, o que é suficiente para demonstrar que foi realizada propaganda irregular, punível com multa mediana, pode não bastar para a condenação por conduta vedada ou por uso indevido de meios de comunicação. Do mesmo modo, e com especial interesse para a AIJE, cada modalidade abusiva possui características próprias, que devem ser levadas em conta ao longo da instrução.

No caso vertente, as teses jurídicas deduzidas pelo autor encontram-se bem delimitadas. Imputa-se aos investigados a prática de abuso de poder político, ante o alegado desvio de finalidade no exercício de suas funções de Presidente da República e no uso de bens públicos, e de uso indevido de meios de comunicação, que teria sido perpetrado pela utilização de redes sociais, inclusive de empresa pública, para difundir conteúdo sabidamente falso acerca do sistema eletrônico de votação.

Ao longo da exposição, o autor menciona ainda a violação aos arts. 37, § 1º da Constituição, 73, I, da Lei 9.504/97 e 9º-A da Res.-TSE 23.610/2019, que descrevem condutas passíveis, em tese, de se amoldar às práticas abusivas descritas no art. 22 da LC nº 64/90.

Ao refutar a configuração dos ilícitos em comento, os investigados, além de se oporem à ocorrência do desvio de finalidade e do uso das redes para divulgar fake news, afirmam que os fatos não são graves o suficiente para afetar os bens jurídicos tutelados pela AIJE. Em particular, alegam que a publicação da nota do TSE, com ampla repercussão midiática, teria neutralizado eventuais impactos da fala dirigida pelo primeiro investigado aos embaixadores.

Assim, a gravidade da conduta, sob o ângulo qualitativo (grau de reprovabilidade) e quantitativo (repercussão no contexto do pleito específico) é ponto controvertido cuja análise deverá ser balizada pelos elementos probatórios coligidos aos autos.’

(Sem destaques no original.)

Todos esses aspectos voltaram a ser abordados na decisão ora impugnada, sendo prudente transcrever, na íntegra, os fundamentos que explicam a correlação entre a causa de pedir e os fatos supervenientes trazidos ao processo:

‘Tem-se, em síntese, que as partes controvertem sobre: a) a relação entre o evento realizado em 18/07/2022 e as eleições ocorridas no mesmo ano; b) caso estabelecida essa correlação, a gravidade da conduta, no aspecto qualitativo (o discurso em si) e quantitativo (repercussão no contexto eleitoral).

Com base na fixação da matéria fática e jurídica controvertida, já se deferiu, nos presentes autos, prova testemunhal requerida pela parte ré. Note-se que essa prova foi pleiteada, a despeito de se ter acesso à íntegra do discurso proferido por Jair Bolsonaro, porque os investigados sustentaram a relevância de expor outros fatores relativos à dinâmica do evento, tais como ‘falas e comentários dos presentes’ e, ainda, a ótica de autoridades que desempenhavam ‘relevantes funções’ no governo.

A justificativa mostrou aderência à tese defensiva que se dirige ao aspecto qualitativo da gravidade, uma vez que, segundo os investigados, as circunstâncias do evento, a serem relatadas pelas testemunhas, demonstrariam a sua regularidade, vez que estaria inserido em um ‘diálogo institucional’ entre o TSE e o Poder Executivo. Desse modo, deferi a prova, consignando que ‘[n]a presente ação, constata-se que a disputa de narrativas tem por objeto o contexto do evento (reunião com embaixadores) e, não, sua existência.’

De igual forma, constato que os fatos ora trazidos a juízo pela parte autora possuem aderência aos pontos controvertidos, em especial no que diz respeito à correlação do discurso com a eleição e ao aspecto quantitativo da gravidade.

Conforme se observa, a tese da parte autora, desde o início, é a de que o discurso realizado em 18/07/2022 não mirava apenas os embaixadores, pois estaria inserido na estratégia de campanha do primeiro investigado de “mobilizar suas bases” por meio de fatos sabidamente falsos sobre o sistema de votação. Na petição ora em análise, alega que a minuta de decreto de Estado de Defesa, ao materializar a proposta de alteração do resultado do pleito, ‘densifica os argumentos que evidenciam a ocorrência de abuso de poder político tendente promover descrédito a esta Justiça Eleitoral e ao processo eleitoral’.

Constata-se, assim, a inequívoca correlação entre os fatos e documentos novos e a demanda estabilizada, uma vez que a iniciativa da parte autora converge com seu ônus de convencer que, na linha da narrativa apresentada na petição inicial, a reunião realizada com os embaixadores deve ser analisada como elemento da campanha eleitoral de 2022, dotado de gravidade suficiente para afetar a normalidade e a legitimidade das eleições e, assim, configurar abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação.’

(Sem destaques no original.)

A decisão impugnada, portanto, se mantém por seus próprios fundamentos.

No trâmite das ações originárias que se encontram sob minha relatoria na CGE, tenho conferido máxima primazia à coerência e à não-surpresa. Cabe, então, salientar que os investigados, nesta e em outras AIJEs em trâmite, têm sustentado que estabilização da demanda, associada à consumação da decadência, torna os procedimentos impermeáveis à tentativa das partes autoras de trazer novos fatos ao debate.

É o que se passa, por exemplo, na AIJE nº 0601002-78, em que invocam a tese para impedir que seja levado em consideração comunicado da empresa Stara, de propriedade do corréu Gilson Trennepohl, contendo indícios de assédio eleitoral, pois entendem ausente sua correlação com o fato de o empresário gaúcho ter atuado para enviar tratores ao desfile do Bicentenário da Independência, em Brasília. Também na AIJE nº 0601988-32, que versa sobre atos atentatórios ao sistema eleitoral brasileiro, esforçam-se os investigados para impedir que fatos notórios, como os atos terroristas de 08/01/2023, sejam conhecidos como elementos de persuasão da parte autora.

Essa estratégia de defesa, como facilmente se observa, busca um esvaziamento da legítima vocação da AIJE para tutelar bens jurídicos de contornos muito complexos, como a isonomia, a normalidade eleitoral e a legitimidade dos resultados. O adequado controle jurisdicional na matéria impõe ao órgão julgador perquirir circunstâncias relevantes, fatos públicos e notórios, provas e demais elementos que possibilitem, criteriosamente, avaliar se ocorreu a violação à legislação eleitoral e, em caso positivo, se houve gravidade (quantitativa e qualitativa) e quem foram os responsáveis.

Essa é a essência do procedimento previsto no art. 22 da LC nº 64/90 e, se é verdade que o CPC se aplica supletiva e subsidiariamente para conferir máxima efetividade ao contraditório e a ampla defesa, também é certo que técnicas processuais de racionalização, como a estabilização da demanda, não podem ser manejadas para frustrar o objetivo do processo de promover a efetiva proteção a bens jurídicos basilares para a democracia.

Nessa reflexão, cabe constatar, não sem tristeza, que os resultados das eleições presidenciais de 2022, embora fruto legítimo e autêntico da vontade popular manifestada nas urnas, se tornaram alvo de ameaças severas. Passado o pleito, a diplomação e até a posse do novo Presidente da República, atos desabridamente antidemocráticos e insidiosas conspirações tornaram-se episódios corriqueiros. São armas lamentáveis do golpismo dos que se recusam a aceitar a prevalência da soberania popular e que apostam na ruína das instituições para criar um mundo de caos onde esperam se impor pela força.

A infeliz constatação é que, embora seja de rigor afirmar que a diplomação encerra o processo eleitoral, um clima de articulação golpista ainda ronda as Eleições 2022. Assistimos a atos de terrorismo que atingiram seu ápice nos ataques à sede dos 3 Poderes da República em 08/01/2023. Indícios de desobediência e falta de comando no seio das forças de segurança, bem como de atos e omissões graves de agentes públicos seguem se acumulando. Somam-se o plano para espionar e gravar sem autorização conversa do Presidente do TSE, a ocultação de relatórios públicos que atestavam a lisura das eleições e o patrocínio partidário de “auditoria paralela” e de outras aventuras processuais levianas, tudo para manter uma base social em permanente estado de antagonismo com a Justiça Eleitoral, sem qualquer razão plausível.

Os acontecimentos se sucedem de forma vertiginosa. Mas o devido processo legal tem, entre suas virtudes, a capacidade de decantar os fatos e possibilitar seu exame analítico. É isso que deve guiar a instrução das AIJEs, pois é central à consolidação dos resultados das Eleições 2022 averiguar se esse desolador cenário é desdobramento de condutas imputadas a Jair Messias Bolsonaro, então Presidente da República, e a seu entorno. Esse debate não pode ser silenciado ou inibido por uma artificial separação das causas de pedir nas diversas AIJEs da realidade fenomênica em que se inserem.

Menciono que os temas das ações propostas são de conhecimento público. Não há segredo de justiça. As decisões de admissibilidade, de concessão de tutela inibitória e de saneamento, bem como outras de caráter interlocutório, têm contemplado cuidadoso delineamento das matérias em discussão. Por isso, reafirmo que se mostra tarefa simples, desde que adotadas premissas técnicas adequadas, observar se, em um determinado caso, estamos diante de fatos e documentos a serem admitidos ao debate processual com base nos arts. 435 e 493 do CPC e 23 da LC nº 64/90, ou se, ao contrário, uma ação em curso vem a ser utilizada como receptáculo de demanda inteiramente nova.

Por tais motivos, tendo em vista o prestígio à celeridade, à economia processual e à boa-fé objetiva, entendo prudente que, especificamente no que diz respeito às AIJEs relativas às eleições presidenciais de 2022, seja fixado um parâmetro seguro e objetivo que dispense, a cada fato ou documento específico, uma nova decisão interlocutória que revolva todos os fundamentos ora expostos.

Com efeito, a tese jurídica apresentada pelos investigados – no sentido de que a consideração de fatos e circunstâncias que já não tenham sido descritos na petição inicial, especialmente se posteriores a 12/12/2022, e a admissibilidade de documentos correlatos violam a decadência e a estabilização da demanda – consiste em interpretação profundamente equivocada sobre os institutos mencionados. Pertinente, então, sintetizar as razões para que seja refutada, por meio de orientação a ser aplicada a situações semelhantes.

Assim, a estabilização da demanda e a consumação da decadência não impedem que sejam admitidos no processo e considerados no julgamento elementos que se destinem a demonstrar desdobramentos dos fatos originariamente narrados, a gravidade (qualitativa e quantitativa) da conduta que compõe a causa de pedir ou a responsabilidade dos investigados e de pessoas do seu entorno, tais como: a) fatos supervenientes à propositura das ações ou à diplomação dos eleitos, ocorrida em 12/12/2022; b) circunstâncias relevantes ao contexto dos fatos, reveladas em outros procedimentos policiais, investigativos ou jurisdicionais ou, ainda, que sejam de conhecimento público e notório; e c) documentos juntados com base no art. 435 do CPC.

Reafirma-se que essa orientação diz respeito à admissibilidade dos elementos citados ao debate processual, em cotejo com alegações do autor. Não se estabelece, com isso, juízo prévio sobre o peso que venham a ter na análise do mérito, ocasião na qual serão cotejadas todos os argumentos e provas produzidos pelas partes.

Ante o exposto, rejeito as questões prejudiciais formuladas pelos investigados e, por conseguinte, indefiro o pedido de reconsideração da decisão ID 158554507”.

(Destaques no original.)

Ao definir os pontos acima referidos, o TSE pôde resolver, antes do início da instrução, questões que afetavam os limites nucleares da controvérsia fática. Relembre-se que tema similar permeou o julgamento da AIJE nº 1943-58 (Rel. Min. Herman Benjamin, Rel. designado Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJE de 12/09/2018), relativa às Eleições 2014, mas somente foi examinado quando o feito havia sido levado para julgamento de mérito. O Colegiado teve que, ao mesmo tempo, examinar a matéria prejudicial e votar o mérito, caminho que trouxe algumas naturais dificuldades e que tornou a decisão menos compreensível para a sociedade em geral.

Enfrentando esse grande desafio, o TSE, à época, logrou fixar balizas essenciais a respeito dos limites objetivos da demanda. Com o aprendizado propiciado por esse julgamento precedente, pode-se, nesta AIJE relativa às Eleições 2022, aprimorar os trabalhos da relatoria. As questões pendentes, que poderiam levar a um ou a outro rumo na tramitação, foram equacionadas de imediato, mediante decisão colegiada amparada pela preclusão pro judicato.

Isso favoreceu que a instrução transcorresse de forma objetiva e organizada. As audiências puderam ser realizadas sem dúvidas quanto à utilidade das inquirições, em respeito ao tempo de todos os envolvidos e – diga-se – aos custos operacionais desses atos. As partes e o MPE puderam concentrar suas alegações em temas sabidamente relevantes para o julgamento.

A despeito de todo o exposto, a defesa persistiu na alegação de ampliação da causa de pedir, sendo notória a probabilidade de que esse ponto fosse invocado em grau de recurso com o objetivo de anular o processo. Por isso, é importante enfatizar que a admissibilidade da minuta de decreto de estado de defesa não confronta, não revoga e não contraria a jurisprudência do TSE firmada nas Eleições 2014 a respeito dos limites objetivos da demanda.

Na sempre citada AIJE nº 1943-58, relativa a 2014 (Rel. Min. Herman Benjamin, Rel. designado Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJE de 12/09/2018), a causa de pedir fática dizia respeito a doações recebidas por partidos políticos, declarados à Justiça Eleitoral nos anos de 2012 e 2013, que teriam fonte ilícita e, alegadamente, teriam permitido a esses partidos ao longo dos anos assumir um poderio econômico desproporcional, com reflexos no pleito de 2014. O TSE, por maioria, recusou que essa ação servisse para discutir fatos concernentes à imputação de uso de “caixa 2” para custeio de despesas eleitorais.

Estava-se, então, diante de dois ilícitos autônomos, com elementos próprios. Os fatos posteriores não foram apresentados como desdobramentos dos primeiros, tampouco serviam para adensar ou corroborar a narrativa da petição inicial. Consumada a decadência, o TSE entendeu que não era possível inserir na ação em curso a segunda causa de pedir, que abriria uma nova frente de investigação.

No feito ora em julgamento, conforme já repisado, basta a simples leitura da petição inicial para verificar que o autor imputou aos investigados uma estratégia político-eleitoral assentada em grave desinformação a respeito das urnas eletrônicas e da atuação do TSE. Essa estratégia teria sido posta em prática na reunião de 18/07/2022, mediante uso de bens e serviços públicos e com ampla cobertura midiática.

Ao sustentar que o fato narrado na petição inicial é grave o suficiente para caracterizar abuso, o autor diz, expressamente: “por figurar como Chefe de Estado, as falas do Senhor Jair Messias Bolsonaro têm capacidade de ocasionar uma espécie de efervescência nos seus apoiadores e na população em geral”, notadamente em “matéria de alta sensibilidade perante o eleitorado” (ID 157940943).

A linha de raciocínio foi exposta de forma cristalina e foi consignada na decisão de organização e saneamento do processo, proferida em 08/12/2022. Todos os elementos admitidos aos autos, fossem alegações ou provas, passaram por análise de pertinência com base na demanda já estabilizada.

A minuta de decreto que estava em poder do ex-Ministro da Justiça, na qual era descrito um estado de defesa “no TSE”, justificado por suposta fraude nos resultados da eleição presidencial de 2022, somente veio a ser apreendida em 12/01/2023. O autor afirmou que o episódio evidenciaria os efeitos concretos daquele estado de ânimo coletivo, de descrédito injustificado às urnas, incitado em grande parte pela estratégia de desinformação do primeiro investigado, exercitada na reunião de 18/07/2022.

O argumento é suficiente para demonstrar a correlação entre o fato superveniente e a causa de pedir, nos exatos limites da demanda, que estavam especificados mais de um mês antes.

Portanto, não se alterou a orientação traçada por este Tribunal. O que se tem são duas situações totalmente distintas. No pleito de 2014, o TSE recusou inserir, em uma AIJE em curso, uma causa de pedir inteiramente autônoma. No pleito de 2022, a Corte admitiu que possa ser discutido nesta AIJE um fato posterior ao ajuizamento da ação que foi suscitado para demonstrar a gravidade da conduta narrada na petição inicial. Se o autor tem ou não razão, é tema para examinar no mérito, e não na fase de admissibilidade da prova, que ocorre à luz das alegações das partes (in statu assertionis) relevantes para a solução da controvérsia.

Em síntese, não houve ampliação da causa de pedir. Apenas se preservou a legítima vocação da AIJE para tutelar bens jurídicos de contornos muito complexos, como a isonomia, a normalidade eleitoral e a legitimidade dos resultados. A reunião de 18/07/2022, no Palácio da Alvorada, não é uma fotografia afixada na parede, mas um fato inserido em um contexto. É dentro desse contexto, bem descrito pela petição inicial, que deve ser examinada. Esse foi o entendimento assentado em 14/02/2023, à unanimidade.

Não havendo, portanto, ensejo ao reexame da alegada violação à estabilidade da demanda, não conheço da preliminar.

Se outro for o entendimento da maioria do colegiado, nesta assentada, com os fundamentos expostos, rejeito-a.

3. Preliminar de ilegitimidade passiva ad causam do segundo investigado (suscitada pelos investigados)

As alegações finais foram utilizadas para veicular questão preliminar inédita até o momento: a ilegitimidade passiva do segundo investigado. A defesa sustenta que a ação deve ser extinta em relação a Walter Souza Braga Netto, “diante da ausência de imputação pelo Autor da respectiva participação, direta ou indireta, nos atos questionados, inviabilizando-se, assim, a aplicação da (personalíssima) sanção de inelegibilidade na espécie (por fato de terceiro), única possível de aplicação frente ao insucesso da chapa no pleito eleitoral presidencial de 2022”.

Esta AIJE foi proposta em 19/08/2022, quando a chapa investigada concorria à eleição presidencial. A cassação de registro – ou de eventual diploma, caso aquela se sagrasse vencedora – era efeito cabível para a hipótese de improcedência e, por si, justificou a inclusão do candidato a Vice-Presidente no polo passivo, independentemente de lhe ser imputada participação direta no evento.

Aplica-se à espécie, portanto, a Súmula nº 38/TSE, cujo enunciado estabelece que “[n]as ações que visem à cassação de registro, diploma ou mandato, há litisconsórcio passivo necessário entre o titular e o respectivo vice da chapa majoritária”.

Ainda que a chapa investigada tenha sido derrotada, não há perda da condição de legitimado passivo, que decorre do vínculo formado entre os candidatos para o específico pleito. O interesse processual também se conserva. Foi o que assegurou ao segundo investigado deduzir alegações que considerasse pertinentes, o que lhe permitiria exercer ampla defesa, caso apontado algum fato superveniente em que pudesse estar envolvido.

É certo que há julgados desta Corte em que não se extinguiram ações sancionatórias propostas sem a inclusão do candidato a vice no polo passivo, no caso de chapa vencida e quando a ele não se imputava a conduta ilícita. Todavia, a razão para tanto é que, em tais casos, o vício na formação do polo passivo seria incapaz de comprometer o resultado útil do processo. Desses precedentes não se extrai a conclusão de que uma ação regularmente proposta contra todos os litisconsortes necessários tenha que sofrer extinção parcial à luz de posterior análise do resultado da instrução e do insucesso eleitoral da chapa.

Por fim, tendo em vista o momento em que a alegação veio a ser formulada, bem como a forma como tangencia a análise do resultado da instrução, impende lembrar que o art. 488 do CPC instituiu a primazia do julgamento de mérito em situações como a presente, indicando que “[d]esde que possível, o juiz resolverá o mérito sempre que a decisão for favorável à parte a quem aproveitaria eventual pronunciamento nos termos do art. 485”, que se refere justamente à extinção sem resolução do mérito.

Em síntese, após percorridas todas as etapas processuais e apresentadas sucessivas petições em nome do segundo investigado, litisconsorte necessário na ação, sem que se cogitasse de sua ilegitimidade, não há amparo processual para extinguir parcialmente a ação sem resolução do mérito. Caso acolhida a versão da defesa, haverá ensejo para julgar o pedido improcedente em relação ao candidato a Vice-Presidente, e, não, para excluí-lo do polo passivo.

Com essas considerações, rejeito a preliminar.

4. Preliminar de nulidade processual decorrente da determinação de diligências complementares (suscitada pelos investigados)

Os investigados afirmam que, por este Relator, foi proferida decisão “ilegal e anti-isonômica”, em que se determinou a realização de diligências complementares.

Isso decorreria, em sua visão, dos seguintes vícios:

a) inobservância de balizas fixadas na ADI nº 1082/STF para a prática de atos instrutórios pelo Corregedor, estando ausente fundamentação que justificasse a complementação de provas para “suprir atuação deficiente do autor”;

b) violação ao contraditório substancial, decorrente da fixação de prazo de três dias para manifestação;

c) indevida “delegação de poder instrutório” a adversário político dos investigados, que se consubstanciaria na requisição de documentos à Casa Civil; e

d) afronta à segurança jurídica, tendo em vista que a regra do art. 23 da LC nº 64/1990 teria sido utilizada para determinar a realização de diligências que não guardariam qualquer relação com a causa de pedir originária, o que promoveria nova ampliação objetiva da demanda.

Conforme já mencionado, consolidou-se como orientação plenária, aplicável às AIJE de 2022, que são admissíveis ao processo, para serem considerados no julgamento, elementos que se destinem a demonstrar os desdobramentos dos fatos originariamente narrados na ação, a gravidade (qualitativa e quantitativa) da conduta que compõe a causa de pedir ou a responsabilidade dos investigados e de pessoas do seu entorno.

Essa diretriz amparou a segura aplicação do art. 23 da LC nº 64/1990 como regra de instrução, conjugada ao art. 22, VI a IX, da mesma lei. Desse modo, as diligências complementares, determinadas tanto de ofício quanto a requerimento dos réus, tiveram por base o discurso proferido pelo primeiro investigado em 18/07/2022 e as circunstâncias da realização e da divulgação do evento, dialogando-se com elementos já produzidos na primeira fase da instrução.

A determinação de diligências complementares decorre de poderes legalmente atribuídos ao relator na condução do processo. Por isso, ainda não havia sido submetida ao Plenário. Assim, assiste aos investigados a faculdade de, nas alegações finais, requerer o exame pelo colegiado, como fizeram.

Não obstante, todos os argumentos ora invocados para suscitar a nulidade da decisão constaram de agravo interno (ID 158797358), que foi conhecido como pedido de reconsideração e rejeitado monocraticamente. Por esse motivo, principio por transcrever a fundamentação utilizada para rechaçá-los (ID 158811502):

“O pedido abarca, em parte, pontos já fulminados pela preclusão temporal, lógica e consumativa. É que, conforme relatado, a admissibilidade da juntada da minuta de decreto de estado de defesa e o entendimento pela inexistência de violação à estabilização da demanda ou de alteração da causa de pedir são pontos decididos anteriormente e referendados em Plenário. Não há espaço para rediscutir esses pontos e, menos ainda, para questionar o prazo que havia sido assinalado para a manifestação dos investigados a respeito do documento.

Com efeito, os três dias assinalados – que, diga-se, são superiores ao prazo de dois dias previsto no art. 44, § 4º da Res.-TSE nº 23.608/2019 para manifestação sobre documentos juntados no curso da instrução nas representações especiais – foram devidamente utilizados pelos réus para se contrapor à força probante do documento e, ainda, para formular pedido de reconsideração. Silente a parte à época, não há ensejo, a essa altura, para reivindicar que o prazo fosse maior.

Além disso, a pretensão de que fosse observada simetria com o prazo de contestação, concedendo cinco dias para falar sobre o documento com fundamento no art. 329 do CPC, apenas denota a insistência na tese, já refutada, de que teria havido ampliação da causa de pedir.

Os réus também se insurgem contra as balizas fixadas para a aplicação dos arts. 435 e 493 do CPC em conjugação com o art. 23 da LC nº 64/1990, e que foram referendadas pela Corte. Rememoro que as diretrizes aprovadas pelo colegiado se assentam na premissa de que ‘a estabilização da demanda não acarreta uma blindagem do debate processual contra fatos que possam influir no julgamento’, uma vez que “há disposições legais expressas no sentido de que o magistrado leve em consideração fatos constitutivos, modificativos ou extintivos supervenientes ao ajuizamento (art. 493, CPC) e, ainda, fatos públicos e notórios e circunstâncias, ainda que não alegadas pelas partes, que preservem a lisura eleitoral (art. 23, LC nº 64/90). [...]

Os investigados afirmam que a orientação redunda em tratamento anti-isonômico às partes, pois, em sua visão, teria sido franqueada à autora a juntada até mesmo de “provas ainda nem produzidas, de fatos desdobráveis ad aeternum, e que não orientaram a linha defensiva vertida na contestação”. A assertiva tem conotação incompatível com o modo de condução deste processo, uma vez que todas as decisões e despachos evidenciam o extremo rigor na manutenção da ordem e da regularidade da tramitação.

A metodologia aplicada às AIJEs das Eleições 2022 envolve uma rotina de saneamento e de diálogo constante, resultando em determinações judiciais delimitadas com precisão, fundamentadas de forma exauriente e que permitem às partes compreender cada passo do trâmite processual. Nesse sentido, o que se definiu em Plenário é a adequação, em tese, da admissibilidade não apenas de fatos supervenientes que constituam desdobramentos da causa de pedir, como também elementos que demonstrem a gravidade da conduta ou a responsabilidade do investigado e de pessoas em seu entorno.

Essa fórmula diz respeito à análise da pertinência da prova à causa de pedir. Não está indicado em qualquer ponto que a partir dela se permitirá um prolongamento ad aeternum da instrução, pois não foram abandonados outros parâmetros que devem ser conjugados na organização da atividade probatória, inclusive a preclusão.

Não há também respaldo para concluir que essa fórmula privilegia a parte autora. Ao réu também importa ter a oportunidade de trazer ao debate processual fatos que digam respeito aos desdobramentos da causa de pedir, à gravidade da conduta e à responsabilidade do investigado e de pessoas em seu entorno. Tanto assim que os investigados, neste feito, requereram a juntada de parecer da PGR, produzido em março de 2023, que indicaria a ausência de indícios de prática de crime em decorrência do discurso proferido por Jair Messias Bolsonaro na reunião de 18/07/2022.

[...]

Passando-se aos argumentos propriamente relacionados ao conteúdo da decisão que determinou, de ofício, a realização de diligências complementares, constata-se que o renitente inconformismo dos agravantes com os contornos conferidos à aplicação do art. 23 da LC nº 64/1990 se somou ao desagrado com a aplicação dos incisos VI a IX do art. 22 da mesma lei, para conduzir a afirmações hiperbólicas que desenhariam um cenário de parcialidade do juízo.

Primeiramente, cabe rememorar que a atuação do Corregedor para determinar diligências de ofício ou a requerimento das partes, posteriormente à audiência de instrução é prevista expressamente no procedimento da AIJE. A decisão questionada pelos investigados foi bastante explícita a esse respeito, conforme se lê do trecho a seguir transcrito:

‘Nos termos dos incisos VI a IX do art. 22 da LC nº 64/1990, cabe ao relator da AIJE assegurar, de ofício ou a requerimento das partes, o esgotamento da instrução probatória, mediante requisições, oitivas e outras providências que atendam ao interesse público na elucidação de possíveis práticas abusivas. In verbis:

Art. 22. Omissis

[...]

VI - nos 3 (três) dias subsequentes [à inquirição de testemunhas], o Corregedor procederá a todas as diligências que determinar, ex officio ou a requerimento das partes;

VII - no prazo da alínea anterior, o Corregedor poderá ouvir terceiros, referidos pelas partes, ou testemunhas, como conhecedores dos fatos e circunstâncias que possam influir na decisão do feito;

VIII - quando qualquer documento necessário à formação da prova se achar em poder de terceiro, inclusive estabelecimento de crédito, oficial ou privado, o Corregedor poderá, ainda, no mesmo prazo, ordenar o respectivo depósito ou requisitar cópias;

IX - se o terceiro, sem justa causa, não exibir o documento, ou não comparecer a juízo, o Juiz poderá expedir contra ele mandado de prisão e instaurar processo por crime de desobediência;

(Sem destaques no original.)

Essa atividade possui caráter complementar e exige rigorosa avaliação quanto à utilidade processual das diligências, de modo a que, em prestígio à celeridade, a fase instrutória se prolongue somente pelo tempo necessário a produzir elementos aptos a elucidar pontos fáticos e jurídicos que constituam objeto de controvérsia relevante.’

Teve-se, então, o cuidado de, em conformidade à melhor técnica processual, assegurar que a regra de julgamento com base em fatos notórios e circunstâncias não alegadas pelas partes (art. 23 da LC nº 64/1990) fosse necessariamente associada a uma regra de instrução (art. 22, VI a IX, da mesma lei). Ou seja: se é possível julgar com base naqueles elementos, é obrigatório que eles sejam previamente inseridos no processo, permitindo às partes e ao MPE se manifestarem a seu respeito e, quando for cabível, requererem provas. Reforça-se, com isso, a garantia de não-surpresa, em pleno respeito ao contraditório efetivo. O ponto foi assim desenvolvido:

‘Ademais, quanto à possibilidade da atuação de ofício, deve-se ter em vista que o art. 23 da LC 64/90, impõe que sejam considerados, para o deslinde dessa ação, "fatos públicos e notórios, [...] atentando para circunstâncias ou fatos, ainda que não indicados ou alegados pelas partes, mas que preservem o interesse público de lisura eleitoral". Esse dispositivo, conforme assentado no julgamento da ADI 1082 (Rel. Min. Marco Aurélio, DJe de 30.10.2014), tem sua constitucionalidade vinculada à necessária garantia do contraditório e ao adequado exercício do dever de fundamentação, de modo que, sendo os fatos e circunstâncias relevantes trazidos aos autos pelo magistrado, é indispensável conceder às partes oportunidade para se pronunciar a respeito.

Transcrevo trecho do voto do Relator, naquele feito, que elucida a questão:

[...] para garantir a imparcialidade do Estado e o direito das partes ao devido processo legal, mais segura do que a proibição rígida de produção de provas pelo magistrado é a intransigência concernente à necessidade de fundamentação de todas as decisões judiciais, de acordo com o estado do processo, bem como a abertura de oportunidade para as partes contraditarem os elementos obtidos a partir da iniciativa estatal. São a indispensabilidade de motivação e submissão ao contraditório, nesse caso, os fatores a afastarem o risco de parcialidade e a viabilizarem o controle, a conduzir a eventual reforma ou à detecção de nulidade do ato judicial.

(Sem destaques o original)

A orientação plenária firmada em 14.02.2023, já acima transcrita, confere delimitação ainda mais precisa ao equilíbrio entre interesse público na apuração de ilícitos, imparcialidade estatal e respeito ao devido processo legal. Conforme explicado, os limites objetivos da demanda abarcam os desdobramentos dos fatos originariamente narrados, a gravidade (qualitativa e quantitativa) da conduta que compõe a causa de pedir e a responsabilidade dos investigados e de terceiros, devendo-se atentar para as “circunstâncias relevantes ao contexto dos fatos, reveladas em outros procedimentos policiais, investigativos ou jurisdicionais ou, ainda, que sejam de conhecimento público e notório” (ID 158704139).’

Os investigados enxergaram na determinação de ofício das diligências complementares uma ‘indevida correção na deficiente atuação processual do Autor’, eis que seu objeto seriam provas que não foram pretendidas pelo investigante e que aportariam aos autos em momento tardio.

Não está caracterizada, porém, atuação tardia, mas, sim, medida ajustada perfeitamente ao momento que para ela foi previsto no art. 22, VI a IX da LC nº 64/1990, ou seja, após a audiência de instrução. Tampouco há ‘correção’ da atividade da parte autora, eis que é dever do Corregedor, à luz das provas produzidas até a audiência de instrução, avaliar se há diligências necessárias para o deslinde da controvérsia. Este é o comando legal que se impõe ao Relator da AIJE, e que foi estritamente cumprido.

Nesse sentido, após a avaliação do estágio processual do feito, constatou-se haver pontos de dúvida que poderiam ser dirimidos por diligências complementares. Isso porque os termos do discurso proferido por Jair Messias Bolsonaro na reunião de 18/07/2022 com os embaixadores de países estrangeiros e a prova oral produzida em razão de requerimento da parte ré suscitaram questões de relevo para o deslinde da controvérsia.

Por exemplo, na reunião, o primeiro investigado expressamente incumbiu o então Ministro das Relações Exteriores, Carlos França, a repassar o material da apresentação aos embaixadores, enfatizando ainda que o Ministro também poderia enviar a íntegra do inquérito da Polícia Federal em que, segundo o ex-Presidente, “um hacker falou que tinha havido fraude por ocasião das eleições”. Ocorre que Carlos França, ouvido como testemunha da defesa, negou o envio de material e declarou não ter participado de forma significativa do evento. As duas outras testemunhas da defesa também negaram envolvimento substancial na preparação ou realização da reunião, embora arroladas pelos réus por deterem “particular conhecimento” sobre aspectos da dinâmica do evento.

Nesse cenário, a pertinência da requisição da prova documental aos órgãos governamentais que foram encabeçados pelas testemunhas da defesa – destinada a aferir se tiveram, ou não o envolvimento que a princípio foi sugerido tanto pela fala de Jair Bolsonaro no dia do evento quanto pela justificativa de seu arrolamento – não representa qualquer desbordo dos poderes instrutórios do Relator. Há expressa previsão legal de que o Corregedor pode requisitar documentos de ofício, e assim foi feito. Acrescente-se que a diligência não foi determinada com vista a um resultado pré-definido e pode muito bem ser concluída, como sustentam os réus, com a inexistência de documentos a respeito.

Relembre-se que a orientação plenária fixada em 14/02/2023 contempla três eixos: a) desdobramentos dos fatos originariamente narrados; b) gravidade (qualitativa e quantitativa) da conduta que compõe a causa de pedir; e c) responsabilidade dos investigados e de pessoas de seu entorno. Por isso, não se sustentam as objeções dos investigados à juntada de cópias do IA 0600371-71 ou à atenção dada às lives protagonizadas pelo primeiro investigado em 2021 e expressamente referidas no discurso proferido por Jair Messias Bolsonaro no Palácio [da Alvorada] em 18/07/2022.

Os réus se mostraram especialmente afligidos pelo fato de que a requisição de documentos dirigida à Casa Civil será cumprida por Ministro nomeado pelo atual Presidente da República, que venceu a chapa encabeçada pelo primeiro investigado, no pleito de 2022. Chegam a prever uma “elástica atuação probatória prospectiva, em sua pasta e em quaisquer outros órgãos federais”, que, no momento da consolidação, permitirá “ao adversário político a engenhosa apresentação analítica de eventuais achados fortuitos”, congregados em ‘um relatório sujeito a toda sorte de subjetivismos’. A isso denominaram ‘delegação de poder instrutório a grupo político beneficiário de eventual procedência da ação’, o que seria mais um elemento a denotar a parcialidade na condução do processo.

Sabe-se, porém, que a requisição é o meio usual pelos quais os órgãos públicos compartilham entre si documentos que estão em seu poder, impondo-se aos agentes públicos responsáveis o dever de prestar informações completas, autênticas e fidedignas. Isso independe do grupo que se encontre no exercício do poder político e é, mesmo, inerente ao princípio republicano é à impessoalidade.

Governantes, ministros, secretários e demais servidores públicos devem zelar pela integridade dos documentos sob sua guarda e cumprir de forma escorreita a determinação judicial para exibi-los, não lhes sendo lícito usar da requisição como meio para beneficiar ou prejudicar um candidato. Essa obrigação se impõe aos integrantes do atual governo federal, como também se aplicaria se o ex-Presidente tivesse sido reeleito. Descabe partir da premissa de que, ante uma requisição judicial, agentes estatais deliberadamente adulterarão ou ocultarão documentos públicos, a fim de ludibriar o juízo e produzir benefício ilegal para uma das partes, em franco atentado à dignidade da Justiça, prática de improbidade e incursão em conduta criminosa.

Ademais, qualquer relatório informativo que acompanhe os documentos eventualmente compartilhados será submetido ao crivo do contraditório. As partes e o MPE terão a faculdade de apontar o valor que, entendem, deva ser dado às informações. A disputa narrativa, inerente ao devido processo legal, será assegurada. Vieses poderão ser contestados, e, no limite, caso se entenda por indício de falsidade ou ocultação, poderão ser solicitadas as medidas processuais cabíveis, e que reforçam o controle do correto desempenho das funções estatais. Essa dinâmica, que se aplica à sucessão do poder no menor dos municípios brasileiros, se nele tramitar ação que impute ilícito ao Prefeito que não se reelegeu, igualmente rege a AIJE ajuizada no contexto da disputa do mais alto cargo do Poder Executivo brasileiro.

A requisição não se dirige a um ‘grupo político’ e tampouco transfere poder instrutório a ser exercido com ‘toda sorte de subjetivismos’. Também irrelevante que à época dos fatos o atual Ministro Chefe da Casa Civil não estivesse no governo federal e não tenha pessoal ciência do que se passou. Aquela autoridade não foi intimada como testemunha. Foi oficiada para, exercendo seu papel de coordenação dos demais Ministérios (que foi bem descrito em juízo pela testemunha Ciro Nogueira, anterior ocupante do cargo), reunir a documentação oficial – pertencente ao Estado Brasileiro, e, não, a um ou outro governo – que, acaso existente, possa elucidar as circunstâncias da preparação, da realização e da divulgação do encontro do dia 18/07/2022.

Os réus asseveraram, ainda no que diz respeito à requisição dirigida ao Ministro-Chefe da Casa Civil, que a solicitação foi “genérica e abrangente”, disparando “a consulta a documentos de diversos órgãos governamentais e a consolidação unilateral e casuística de seus (pretendidos) achados”. É afirmação que não encontra eco na determinação, objetiva, de que sejam prestadas “informações consolidadas sobre a participação de órgãos do Governo Federal na preparação, realização e difusão do encontro realizado no Palácio [da Alvorada], em 18/07/2022”. O objeto está perfeitamente delimitado e o êxito da incumbência somente depende de existir devida catalogação documental nos órgãos potencialmente envolvidos e de a diligência ser cumprida de forma eficiente.

Do mesmo modo, não há como interpretar a referência à necessária consolidação de documentos pela Casa Civil para envio à CGE como “prerrogativa de realização de verdadeira devassa, em arquivos federais”, que “abre ensejo à edição conveniente de elementos probatórios e viabiliza, inclusive, o descarte seletivo de provas desfavoráveis à sanha persecutória, com mácula indelével à imparcialidade na construção da materialidade da instrução probatória”. Simplesmente, descabe interpretar uma ordem judicial corriqueira, de compilação documental, como aval para o cometimento de ilegalidades com a gravidade descrita.

Certo é que todas essas elucubrações a respeito de supostos comportamentos ilegais são inservíveis para a finalidade de obstar a produção da prova. Em momento adequado, os réus terão oportunidade de se manifestar a respeito do resultado da diligência e, se assim entenderem, a vista do que concretamente for remetido a este juízo, e não a partir de ilações, poderão apontar deficiência, incompletude ou mesmo irregularidades graves no cumprimento da medida.

A determinação da oitiva de Anderson Torres foi classificada pelos réus como impertinente e inútil, pois a testemunha se encontra sob a custódia do Estado e amparada pelo princípio da não autoincriminação e, ainda, já teria prestado depoimento perante a Corregedoria sobre sua participação em live de 29/07/2021.

A primeira razão de insurgência se mostra inteiramente superada pelos fatos. Anderson Torres, embora sob custódia do Estado e tendo direito ao silêncio para não se autoincriminar, foi ouvido em juízo no dia 16/03/2023 e optou por responder a todas as perguntas que lhe foram dirigidas. A inquirição foi feita pelo juiz instrutor, pelos autores, pelos réus e pelo representante do MPE. O depoimento transcorreu em perfeita normalidade, observadas todas as garantias inerentes à condição da testemunha de investigado em inquérito criminal.

O segundo argumento, que sugere a repetição inútil de ato já realizado, desconsidera que a primeira oitiva de Anderson Torres na CGE ocorreu no âmbito de inquérito administrativo, sem a participação das partes que litigam nesta AIJE. A nova coleta do depoimento, em contraditório, com oportunidade para a testemunha falar livremente e corroborar declarações anteriores, retificá-las ou explicá-las, bem se sabe, não é um preciosismo, mas importante reforço na qualidade da prova.

O último aspecto a ensejar objeção pelos réus foi a advertência de que eventuais requerimentos de prova de caráter protelatório ensejariam multa por litigância de má-fé. Enxergaram na decisão “tom de verdadeira ameaça às partes” e ofensa ao legítimo exercício da advocacia.

Na verdade, na atual sistemática do CPC, a advertência prévia está longe de ser uma ameaça. Consiste em desdobramento dos princípios da cooperação e da não-surpresa e, em algumas situações, até mesmo em dever do magistrado (art. 77, IV e VI, c/c §1º; art. 78, § 1º). A descrição de conduta em tese passível de gerar sanção processual permite às partes orientar sua atuação com base em parâmetros prévios, evitando comportamentos discrepantes da boa-fé objetiva.

No caso, a advertência consistiu em indicar que as partes (não somente os réus, como também o autor) deveriam atentar para o caráter complementar das diligências a serem requeridas neste momento processual, demonstrando de forma objetiva a pertinência e a utilidade da prova, a partir da estrita vinculação aos fatos específicos que se pretende provar. Detalhou-se, ainda, que o caráter protelatório dos requerimentos poderia decorrer da formulação de requerimento abstrato ou amparado em justificativa amplíssima. Por fim, sem fixar valor prévio para eventual descumprimento, consignou-se que esta seria ‘proporcional à circunstância concreta’, caso praticado o ato protelatório.

O teor da advertência é compatível com a premissa da boa-fé objetiva e com os deveres das partes e de seus procuradores, em especial o de ‘não produzir provas e não praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou à defesa do direito’ (art. 77, III). Mais que isso, denota o rigor que se tem adotado nesta ação para assegurar que o procedimento siga fluxo regular, a salvo de turbações, pari passu com a máxima amplitude do contraditório. Não há, então, nenhuma colisão entre franquear o requerimento de prova e advertir a parte de que esta oportunidade, complementar, deve ser exercitada com especial atenção ao momento processual e de forma cuidadosa o suficiente para viabilizar o exame do requerimento de prova.

Mencione-se que, longe de produzir efeito intimidatório, a advertência parece ter contribuído para a necessária objetividade da formulação a respeito de diligências complementares de interesse dos réus. O tema será abordado no próximo tópico.

Os fundamentos declinados conduzem ao indeferimento do pedido de reconsideração, devendo ser mantidas tanto as diligências complementares determinadas de ofício quanto a advertência contra condutas protelatórias das partes, plenamente compatível com a fase atual.”

(Destaques no original.)

Acresço a esses fundamentos a observação de que, posteriormente à determinação das diligências de ofício, também foram realizadas outras, a pedido dos investigados. A defesa arrolou novas testemunhas e solicitou a requisição de procedimentos em curso. Essas provas se correlacionavam às lives de 2021, à minuta de decreto de estado de defesa e aos documentos oriundos do Inquérito Administrativo nº 0600371-71.

O resultado de toda a instrução processual somente confirma a estrita pertinência dos atos instrutórios praticados de ofício e a requerimento dos investigados. Com efeito, diante da vasta documentação e dos detalhados depoimentos que constam dos autos – todos relevantes para elucidar pontos da controvérsia –, impossível dar guarida à alegação de que qualquer prova produzida nesta AIJE tenha sido impertinente.

Ressalte-se, ademais, que nenhuma das especulações que embasaram o temor dos investigados de que haveria desvios no cumprimento da requisição dirigida à Casa Civil se confirmou. Os documentos públicos que atendiam aos parâmetros da solicitação foram fornecidos de forma adequada. A Casa Civil não emitiu sobre eles qualquer juízo de valor. Por fim, não houve apontamento, pelos investigados, de qualquer vício ou suspeita de adulteração no material fornecido.

Os investigados, inclusive, se valeram desse material em sua defesa, para argumentar que foi feita prova de que os valores empregados no evento de 18/07/2022 foram módicos e que a organização não teria destoado do normal. O investigante, a seu turno, afirmou que a quantia gasta não é parâmetro para mensurar o desvirtuamento do poder político.

Inequívoco, pois, que a prova cumpriu sua estrita finalidade de demonstrar fatos relacionados à causa de pedir, permitindo às partes construir teses e indicar o peso que, entendem, deve ser dado a esses fatos no julgamento de mérito.

Ausente, portanto, qualquer argumento que convença da ocorrência de nulidade processual, rejeito a preliminar.

5. Requerimento de reabertura da instrução (formulada pelos investigados)

Último foco de insurgência dos investigados nas alegações finais diz respeito à decisão de encerramento da instrução, em que se dispensou uma prova testemunhal indicada pelo juízo e indeferiu-se requisição de inquérito cuja existência foi noticiada pela CNN em 24/03/2023.

Essas, aliás, foram as únicas diligências indeferidas. Elas haviam sido formuladas já após outros requerimentos de prova complementar, todos integralmente deferidos. Sendo mais específico: já se havia deferido cinco novas inquirições e diversas requisições a pedido dos investigados, na fase complementar. Quando foi dada vista às partes acerca do resultado dessas provas, os réus insistiram para que a instrução prosseguisse, com a oitiva e requisição de mais um inquérito policial.

Os novos requerimentos foram indeferidos com os seguintes fundamentos:

a) desproporcionalidade da requisição de acesso a inquérito sigiloso, referido apenas de passagem em pergunta do advogado dos investigados durante a audiência, para ilustrar a afirmação de que continuavam a surgir informações sobre vulnerabilidades em sistemas da Justiça Eleitoral; e

b) desnecessidade de produção de prova oral que havia sido determinada pelo juízo e cuja relevância se esvaiu em razão da coerência de três depoimentos prestados acerca do mesmo fato.

De se notar que foi deferida a juntada da notícia da CNN comentada pelo advogado na audiência, cuja manchete é a seguinte: “Ministério Público Eleitoral denuncia quatro pessoas por hackear sistema do TSE: ataques ao sistema foram no dia das eleições municipais e prejudicaram acesso ao E-Título”. A matéria informaque “[a] ação afetou a estabilidade do aplicativo e dados sigilosos de servidores públicos foram divulgados ilegalmente”, deixando claro que “[o] ataque, no entanto, não prejudicou o processo eleitoral nem a votação dos representantes dos municípios”.

Na linha de inquirição do advogado, durante a audiência, essa notícia foi comentada com a testemunha Filipe Barros, à qual se perguntou se, em sua opinião, esse tipo de situação demonstraria que “o aprimoramento da votação eletrônica, em sentido amplo, estaria a merecer debate público”. A pergunta foi permitida, na acertada condução do juiz instrutor de intervir minimamente nas inquirições diretas feitas pelas partes.

É evidente que a notícia foi um usada na inquirição como elemento retórico, para estimular a testemunha a verbalizar uma opinião crítica ao sistema eletrônico de votação. Essa opinião, é, inclusive, de conhecimento notório, tendo em vista que o Deputado Filipe Barros foi relator da PEC nº 135/2019, que objetivava implementar o voto impresso. A resposta da testemunha não agregou qualquer esclarecimento de fato sobre o evento no Palácio do Alvorada em 2022 ou sobre as lives de 2021.

A verdade é que a matéria da CNN, de tão aleatória, sequer foi mencionada nas alegações finais para sustentar alguma conclusão de mérito em favor da defesa. E de outro modo não haveria de ser, pois trata-se de uma notícia de 2023, sobre incidente em 2020, que teve por resultado deixar instável o aplicativo e-título e divulgar dados pessoais de servidores.

Ainda assim, os investigados argumentam, nas alegações finais, que o conteúdo do inquérito requisitado “tangencia uma das principais teses de defesa, a saber, a legitimidade do debate público travado pelo investigado Jair Messias Bolsonaro acerca do sistema eletrônico de votação, sempre em prol do progressivo aprimoramento dos meios disponíveis”. Essa construção, porém, carece de organização lógica. Isso porque a investigação recebida em 2023 não poderia servir de prova da motivação de um discurso feito em 2022, no qual sequer foi comentado o fato de 2020.

Ademais, a própria notícia jornalística consigna que a denúncia feita pelo Ministério Público Eleitoral não diz respeito a risco de comprometimento da segurança do sistema eletrônico de votação. Bastou, porém, a menção a “hacker” para que o episódio fosse trazido para alegadamente ilustrar que haveria fortes razões para demandar “melhorias” no funcionamento das urnas eletrônicas.

Não é demais lembrar, então, que esta AIJE não apura a segurança do sistema de votação eletrônico, mas, sim, a conduta do primeiro investigado e as circunstâncias em que decidiu abordar o tema em uma reunião com chefes de missões diplomáticas, faltando dois dias para o início das convenções partidárias.

Reforça-se, então, a absoluta impertinência de se trazer para esta ação um inquérito criminal que não apenas é alheio aos fatos discutidos, como também só poderia ser explorado se fosse para gerar dúvida infundada sobre a segurança das urnas.

No que diz respeito à testemunha Eduardo Gomes da Silva, sua oitiva havia, de início, sido determinada pelo juízo, tendo em vista sua participação na live de 29/07/2021 e na reunião que a precedeu. Considerava-se, principalmente, que Anderson Gustavo Torres, que se encontrava respaldado pelo direito a não se incriminar, poderia deixar de responder a perguntas essenciais. No entanto, essa testemunha se mostrou colaborativa e não se recusou a falar em nenhum momento.,

De outra ponta, os dois peritos que estiveram presentes na reunião prévia à live, quando Eduardo Gomes da Silva tratou do material que seria apresentado, foram uníssonos a respeito dos fatos e prestaram depoimentos convergentes com as declarações colhidas no Inquérito Administrativo nº 0600371-71, tanto por eles quanto pelo próprio Eduardo.

Assim, a oitiva se tornou desnecessária e foi dispensada pelo juízo. Note-se que os réus também desistiram de três testemunhas que haviam arrolado, exatamente por considerar que outras pessoas ouvidas supriram a necessidade de esclarecimento de fatos. Acresça-se que Eduardo Gomes não havia sido localizado nos endereços disponíveis. Encerrar a instrução foi medida que prezou pela celeridade do processo e não acarretou qualquer prejuízo às partes, como se evidencia pela coesa prova testemunhal colhida.

Transcrevo, por fim, os fundamentos apresentados da decisão de encerramento da instrução (ID 158886314):

“[...] a presente AIJE contou com amplo prestígio à iniciativa probatória das partes, associado à minudente análise da pertinência objetiva das diligências a serem determinadas.

Com isso, foi possível conjugar contraditório e celeridade, conduzindo-se o procedimento com estrita observância ao diálogo processual, à boa-fé objetiva, ao princípio da não surpresa e ao dever de fundamentação. Em pouco mais de 3 meses, foram realizadas cinco audiências e requisitados todos os documentos, inclusive procedimentos sigilosos, relacionados aos fatos relevantes para deslinde do feito. Saliente-se que foi deferida a oitiva de nove testemunhas da defesa e, em razão da desistência dos investigados, ouvidas seis delas. Foram ouvidas ainda 3 testemunhas por determinação do juízo, sempre com a necessária delimitação dos fatos que seriam objeto do depoimento.

Aberta vista a respeito dos documentos produzidos, a parte ré juntou documentos relativos a pontos tangenciados nas audiências de 27 e 28/03/2023 e manifestou interesse em novas diligências, a saber: requisição de inquérito relativo a ataque hacker a sistemas periféricos da Justiça Eleitoral em 15/11/2020 e oitiva de Eduardo Gomes da Silva.

No que diz respeito à denúncia ofertada pelo MPE em razão do ataque de 15/11/2020, os próprios investigados admitem que se tratou de exemplo utilizado na audiência, durante a inquirição de Filipe Barros, para lhe indagar “se esse tipo de situação contribuiria, de alguma forma e em tese, para a compreensão de que a matéria atinente ao aprimoramento da votação eletrônica, em sentido amplo, estaria a merecer debate público, revestido de interesse jornalístico”, “ao que assentiu conclusivamente a testemunha”.

Tratou-se, portanto, de uma conjectura, ilustrada pela matéria divulgada em 24/03/2023 e utilizada para fazer uma pergunta à testemunha. Esta, por sua vez, apenas emitiu uma opinião, concordando com a sugestão de que “esse tipo de situação contribuiria, de alguma forma e em tese” para estimular a defesa do “aprimoramento da votação eletrônica”. O teor da notícia da CNN relatado na audiência não foi posto em dúvida pela parte autora, pelo MPE ou pelo juiz instrutor e, ainda assim, os réus diligenciaram por juntar cópia da matéria, que demonstra que a informação dos advogados foi fidedigna ao fato noticiado (ID 158881919).

Nesse cenário, o pretendido acesso a autos da referida investigação é manifestamente desproporcional ao contexto em que a notícia da CNN foi mencionada, como simples elemento ilustrativo da pergunta formulada em audiência. Assevera-se que a requisição de informações sobre investigações em curso, o que já foi deferido neste feito em mais de uma ocasião, não pode ser trivializada, exigindo sempre avaliar se o conhecimento de fatos sensíveis e diligências estratégicas é mesmo essencial para a solução da controvérsia. No caso, a resposta é negativa, eis que adentrar os detalhes da denúncia é algo que extrapola a correlação estabelecida pelos próprios investigados ao se referir à matéria da CNN.

Quanto ao manifestado interesse na oitiva de Eduardo Gomes da Silva, que havia sido arrolada pelo juízo, é de se observar que a relevância desse depoimento em juízo ficou prejudicada em razão das declarações de Anderson Gustavo Torres, Ivo Peixinho e Mateus Polastro, suficientes ao esclarecimento da reunião prévia à live de 29/07/2021. A conclusão não é diferente daquela que levou os réus a desistirem de três das testemunhas que haviam arrolado. Assim, tendo em vista que Eduardo Gomes da Silva acabou não sendo localizado, descabe persistir na prova, que a essa altura seria meramente redundante.

Por fim, os documentos juntados pelos réus, relacionados a ocorrências da audiência, não desafiam nova vista à contraparte e à PGE, pois poderão ser objeto de exame nas alegações finais e no parecer, na linha já indicada pelos próprios sujeitos processuais em suas manifestações nesta fase.

Conclui-se, assim, que o rico acervo probatório reunido nos autos, que foi formado com ampla participação das partes e do MPE, esgota as finalidades da instrução, razão pela qual cumpre encerrar a presente etapa processual.”

(Destaques no original)

Em síntese, a condução desta AIJE observou rigor metodológico, que conciliou o mais amplo respeito às faculdades processuais, a racionalidade e a celeridade. O saneamento foi uma atividade constante, que envolveu dispensar dois atos instrutórios que eram inúteis. Todos os sujeitos processuais participaram ativamente do contraditório, quer na inquirição das nove testemunhas ouvidas ao longo de cinco audiências, quer por manifestações escritas. Foi inteiramente assegurada a vista de documentos e petições, com respeito aos prazos legais e regulamentares.

O processo, é certo, não deve se prolongar ad infinitum. Suas etapas devem se estender pelo tempo necessário para viabilizar a coleta de elementos e alegações que efetivamente contribuam para o deslinde da controvérsia. É o que se fez neste caso.

Tem-se patente que a reabertura da instrução para as finalidades buscadas pelos investigados assume viés protelatório, que não merece acolhida.

Destarte, ausente ofensa à ampla defesa, indefiro o requerimento de reabertura da instrução.

II – Mérito

Superadas as questões preliminares e prejudiciais, e estando as partes devidamente representadas por seus advogados e suas advogadas, o feito se encontra apto para o imediato julgamento de mérito. Informo que, tendo em vista a complexidade e a relevância do caso e o objetivo de propiciar a melhor compreensão dos fundamentos decisórios, o voto foi estruturado em três partes:

1) premissas de julgamento, contemplando a tipificação dos ilícitos à luz dos precedentes das Eleições 2018, os aportes que propiciam o aprofundamento do tema após esses julgados e a dinâmica de proteção aos bens jurídicos eleitorais, com destaque para a metodologia aplicada às AIJEs das Eleições 2022;

2) fixação da moldura fática, organizada com base nos marcos temporais demarcados no discurso proferido pelo primeiro investigado em 18/07/2022, na reunião com os embaixadores: o momento do discurso, as lives realizadas em 2021 e as projeções para o pleito eleitoral iminente; e

3) subsunção dos fatos às premissas de julgamento, discorrendo-se sobre o standard probatório aplicável às ações eleitorais sancionadoras, para então aferir se estão presentes os elementos configuradores do abuso de poder político e do uso indevido dos meios de comunicação.

Passo à fundamentação.

1. Premissas de julgamento

1.1 Tipificação do abuso de poder político e do uso indevido de meios de comunicação: da concepção tradicional aos precedentes das Eleições 2018

O estatuto constitucional dos direitos políticos encontra-se no art. 14 da CR/88, cujo § 9º enuncia a normalidade e a legitimidade das eleições como princípios fundantes do processo eleitoral, a serem resguardados “contra a influência do poder econômico ou do abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta”.

A LC nº 64/1990, em seu art. 22, cuidou de prever a ação de investigação judicial eleitoral como procedimento para “apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político”.

Tendo em vista a abertura do tipo e a abstração dos bens jurídicos tutelados, coube à literatura e à jurisprudência, paulatinamente, construir parâmetros para aferir a ocorrência de desvios e transgressões ao exercício normal do poder, ilícitos aptos a acarretar a cassação de registro ou diploma de candidatas e candidatos beneficiários e a inelegibilidade das pessoas responsáveis pelas condutas.

O abuso de poder político se caracteriza como o ato de agente público (vinculado à Administração ou detentor de mandato eletivo) praticado “mediante desvio de finalidade e com intenção de causar interferência no processo eleitoral” (ZILIO, Rodrigo López. Direito eleitoral. 6. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2018, p. 645). Colhe-se da jurisprudência do TSE que sua configuração é objetiva e ocorre quando “a estrutura da administração pública é utilizada em benefício de determinada candidatura” (RO nº 2650–41, rel. Min. Gilmar Mendes, DJE de 08/05/2017).

Não há um rol taxativo de condutas subsumíveis ao abuso de poder político, mas o art. 73 da Lei nº 9.504/1997, ao elencar “condutas vedadas aos agentes públicos em campanha”, exemplifica hipóteses de desvio de finalidade eleitoreiro. Assim, as condutas típicas descritas nesse artigo podem compor a causa de pedir da AIJE.

O uso indevido de meios de comunicação “caracteriza-se por se expor desproporcionalmente um candidato em detrimento dos demais, ocasionando desequilíbrio na disputa” (AgR-REspe nº 1-76/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, DJE de 15/08/2019; REspEl nº 0600729-60, Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJE de 13/10/2022).

O desequilíbrio da exposição é um parâmetro que foi construído considerando-se a mídia tradicional – rádio, televisão e imprensa escrita. Esses veículos sujeitam-se à disciplina constitucional da “Comunicação Social”, que concilia a liberdade e a responsabilidade jornalística, em um cenário na qual se pressupõe haver significativa concentração das fontes de informação (arts. 220 a 224, CR/88).

A gênese da qualificação dessa modalidade abusiva, portanto, é o paradigma da comunicação de massa (um-para-muitos), em que poucos veículos concentram o poder midiático e, com ele, particular capacidade de influência sobre a sociedade. Se o espaço e a credibilidade de um veículo de comunicação passam a servir para impulsionar uma candidatura ou uma plataforma político-eleitoral, há ensejo para apurar o abuso do poder.

A configuração de qualquer tipo de abuso exige que a conduta descrita na petição inicial seja qualificada como grave. Esse segundo componente é extraído do inciso XVI do art. 22 da LC nº 64/1990, que, alterado pela LC nº 135/2010, passou a prever que “para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam”.

A redação deixa explícito que o resultado do pleito não é, por si, o fator determinante para a condenação por abuso de poder. Desse modo, não são repreensíveis apenas os ilícitos praticados por candidato ou a candidata que tenha tido êxito eleitoral. Também candidaturas vencidas, por qualquer margem de votos, sujeitam-se à responsabilização por atos que vulnerem a isonomia, a normalidade e a legitimidade do pleito.

O dispositivo acima citado tem, porém, outra faceta. Ele demonstra que, para a configuração do abuso, não basta constatar objetivamente o uso da máquina pública ou o favorecimento midiático a uma candidatura. O abuso é um tipo aberto, mas a gravidade é seu elemento componente.

A jurisprudência possui balizas sólidas para a aferição da gravidade, desdobrando-a em dois aspectos: qualitativo (alto grau de reprovabilidade da conduta) e quantitativo (significativa repercussão em um determinado pleito). A orientação consta do acórdão proferido na AIJE nº 0601779-05, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJE de 11/03/2021:

Para se caracterizar o abuso de poder, impõe-se a comprovação, de forma segura, da gravidade dos fatos imputados, demonstrada a partir da verificação do alto grau de reprovabilidade da conduta (aspecto qualitativo) e de sua significativa repercussão a fim de influenciar o equilíbrio da disputa eleitoral (aspecto quantitativo). A mensuração dos reflexos eleitorais da conduta, não obstante deva continuar a ser ponderada pelo julgador, não constitui mais fator determinante para a ocorrência do abuso de poder, agora revelado, substancialmente, pelo desvalor do comportamento.

O peso dado a cada um desses aspectos não observa uma distribuição fixa, pois uma conduta extremamente reprovável, ainda que não tenha logrado grande repercussão, é passível de ser punida. A gravidade será sempre um fator contextualizado, ou seja, avaliado conforme as circunstâncias da prática, a posição das pessoas envolvidas e a magnitude da disputa.

Esses são, em poucas linhas, os parâmetros gerais para aferição do abuso de poder político e do uso indevido dos meios de comunicação. Porém, o Direito Eleitoral Sancionador passa, ao menos a partir de 2012, a ter que se adaptar a um novo paradigma comunicacional: a comunicação em rede (muitos-para-muitos), que traz novos componentes para essa equação.

Esse novo paradigma foi denominado por Manuel Castells como “sociedade em rede” ou “sociedade interativa”. Seu surgimento está associado à difusão da internet, no ano 2000, quando surgem “novas formas de sociabilidade e novas formas de vida urbana, adaptadas ao nosso novo meio ambiente tecnológico” (CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. 14ª reimpressão com novo prefácio. São Paulo: Paz e Terra, 2011, p. 443).

Um traço essencial desse tipo de comunicação é a proliferação de “laços fracos”, que acarretam uma significativa transformação cultural: amplificam-se o relacionamento entre desconhecidos e a circulação de informações, ao passo em que filtros sociais nas interações e custos da produção de conteúdos são reduzidos. Leia-se o trecho:

“A Rede é especialmente apropriada para a geração de laços fracos múltiplos. Os laços fracos são úteis no fornecimento de informações e na abertura de novas oportunidades a baixo custo. A vantagem da rede é que ela permite a criação de laços fracos com desconhecidos, num modelo igualitário de interação, no qual as características sociais são menos influentes na estruturação, ou mesmo no bloqueio, da comunicação. Nesse sentido, a Internet pode contribuir para a expansão dos vínculos sociais numa sociedade que parece estar passando por uma rápida individualização e um ruptura cívica [...] Existem indícios substanciosos de solidariedade recíproca na Rede, mesmo entre usuários com laços fracos entre si. De fato, a comunicação on-line incentiva discussões desinibidas, permitindo a sinceridade.”

(Obra citada, p. 444, sem destaques no original.)

No Brasil, foi a partir de 2012 que as redes sociais começam a se transformar em meios de realização de propaganda eleitoral. Nessa fase ainda incipiente, as características descritas por Castells pareciam de fato prenunciar que o debate público, inclusive a respeito de temas políticos e eleitorais, seria ampliado e democratizado, assegurando a participação de um grande número de pessoas, em diálogo horizontal.

Remonta a essa época o histórico debate travado no julgamento do Recurso na RP nº 1825-24 (Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, Rel. para o acórdão Min. Marcelo Ribeiro, publicado em sessão de 15/03/2012), quando a Ministra Cármen Lúcia, em célebre defesa à liberdade de expressão nas redes, afirmou que “o Twitter é uma conversa que, em vez de se dar numa mesa de bar tradicional, ocorre numa mesa de bar virtual [...], nós vamos impedir que as pessoas sentem-se numa mesa de bar e se manifestem?”.

A observação de Sua Excelência – que hoje novamente honra este Tribunal com sua presença – era inteiramente pertinente àquele contexto de 2012. Ainda não eram perceptíveis os efeitos deletérios das características do novo paradigma, como a difusão de notícias falsas a baixo custo e a proliferação de discurso de ódio em conversas “desinibidas” com contatos virtuais. Por isso, esses problemas não estavam, e nem poderiam estar, em discussão.

Mesmo no atual contexto, a premissa de abordagem da matéria não se perdeu: a regra é a ampla liberdade de manifestação do pensamento na internet. A legislação, aliás, conta hoje com norma expressa no sentido de que as restrições da propaganda eleitoral não se aplicam à “divulgação de posicionamento pessoal sobre questões políticas, inclusive nas redes sociais” (art. 36-A, V, Lei nº 9.504/97).

Porém, no curso da acelerada transformação social propiciada pela popularização da internet e das redes sociais, duas reformas eleitorais, em 2015 e 2017, impuseram um novo olhar sobre o fenômeno. Houve, primeiro, a redução drástica do período de campanha e do uso de meios de propaganda “de rua” (a Lei nº 13.165/2015). Dois anos depois, passou-se a permitir o impulsionamento pago de propaganda por meio de ferramentas digitais disponibilizadas pelos provedores de aplicação de internet (Lei nº 13.488/2017).

Essas modificações intensificaram a migração das campanhas para o mundo digital. E isso ocorreu em um cenário de perda da exclusividade dos tradicionais veículos de comunicação na divulgação de fatos e opiniões com grande alcance. O modelo de comunicação muitos-para-muitos aumentou o tráfego de informações a partir de fontes múltiplas. Há aspectos positivos, sem dúvida. Mas também cresceram os ruídos e a dificuldade de checagem da veracidade de dados factuais.

Recentemente, a monetização de conteúdos se expande como fonte de custeio de canais e blogs em diversas plataformas. Parte deles busca se apresentar à imagem e semelhança de empresas jornalísticas, mas não necessariamente se submetem aos padrões de isenção preconizados pela disciplina constitucional da Comunicação Social. Ao contrário: exploram essa aparência jornalística para agir com total parcialidade e sem compromisso com os fatos.

Nos casos mais extremos, pessoas físicas ou jurídicas fazem uso de sensacionalismo, agressividade e fabricação de conteúdos falsos para reverberar crenças de um público que querem fidelizar. Na lógica da monetização, esses canais descobriram ferramentas poderosas para aumentar a popularidade e o engajamento, produzindo “bolhas” capazes de assegurar a sobrevivência dessas novas mídias.

O novo cenário, inevitavelmente, produziu novas formas de praticar condutas abusivas. Isso exigiu que a jurisdição eleitoral acompanhasse a realidade fenomênica.

Aliás, cabe aqui desde logo assinalar que é salutar para a efetividade do controle judicial que tribunais avaliem como aplicar normas (preexistentes) a fatos (atuais). É a chamada subsunção dos fatos à norma. Por vezes, dela decorre a fixação de teses visando uniformizar a aplicação do Direito a esses novos fatos. Isso não se confunde com a “mudança de entendimento” ou a “viragem jurisprudencial”, em que se altera uma tese jurídica já fixada.

Quando há “viragem jurisprudencial”, a nova tese deve ser aplicada somente a fatos futuros (STF, RE nº 637.485/RJ, Rel. Min Gilmar Mendes, DJE de 21/05/2013). Mas, quando o Direito apenas tenta acompanhar a dinâmica social, descabe cogitar que os fundamentos elaborados para resolver a questão não possam ser aplicados ao pleito em que se verificou o fato apreciado. O contrário seria supor que a ineficiência do controle jurisdicional se tornaria direito daqueles que, a cada eleição, inovam nas formas de cometer práticas ilícitas.

Nesse esforço de acompanhar a velocidade vertiginosa das transformações digitais e seu impacto eleitoral, duas diretrizes fixadas pelo TSE em julgados das Eleições 2018 merecem ser destacadas.

Em primeiro lugar, o TSE, ao julgar as AIJEs nº 0601986-80 e nº 0601771-28 superou qualquer dúvida quanto à possibilidade de que a internet fosse equiparada aos tradicionais veículos de comunicação social para fins de aferição de práticas abusivas. A Corte estabeleceu que: “o uso de aplicações digitais de mensagens instantâneas, visando promover disparos em massa, contendo desinformação e inverdades em prejuízo de adversários e em benefício de candidato, pode configurar abuso de poder econômico e/ou uso indevido dos meios de comunicação social para os fins do art. 22, caput e XIV, da LC 64/90” (Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJE de 22/08/2022).

Naquele caso, examinava-se especificamente o uso, em tese, de disparos em massa de notícias falsas, feitas por uma candidatura contra a chapa adversária. O então Corregedor-Geral Eleitoral e Relator do feito, Min. Luis Felipe Salomão, propôs parâmetros para a aferição da gravidade em casos semelhantes, a saber:

“(a) teor das mensagens e, nesse contexto, se continham propaganda negativa ou informações efetivamente inverídicas; (b) de que forma o conteúdo repercutiu perante o eleitorado; (c) alcance do ilícito em termos de mensagens veiculadas; (d) grau de participação dos candidatos nos fatos; (e) se a campanha foi financiada por empresas com essa finalidade”.

São, como se constata, balizas que conferem densidade aos aspectos qualitativo e quantitativo da gravidade. Essas balizas funcionam como suporte para a análise da conduta, e não como um “checklist” estático. Por exemplo, o abuso de poder midiático não exige necessariamente que se esteja diante de ato típico de propaganda eleitoral, sendo possível aferi-lo ante a constatação de que a mensagem possui outros elementos que permitam identificar seu caráter eleitoral.

Em segundo lugar, o TSE, no RO-El nº 0603975-98, assentou a tese de que “a transmissão ao vivo de conteúdo em rede social, no dia da eleição, contendo divulgação de notícia falsa e ofensiva por parlamentar federal, em prol de seu partido e de candidato, configura abuso de poder de autoridade e uso indevido de meio de comunicação, sendo grave a afronta à legitimidade e normalidade do prélio eleitoral”. Com esse fundamento, cassou diploma de deputado federal que fizera live disseminando falso relato de apreensão de urnas fraudadas e o declarou inelegível (Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJE de 10/12/2021).

Na ocasião, foram abordados os dois ilícitos discutidos neste feito.

No que diz respeito ao uso indevido de meios de comunicação, enfatizou-se que a divulgação de notícias falsas sobre o funcionamento das urnas eletrônicas durante o horário da votação e para grande audiência preenchia os critérios qualitativo e quantitativo da gravidade, ensejando a condenação. Transcrevo trecho da ementa do acórdão sobre o ponto:

19. Os dividendos angariados pelo recorrido são incontroversos. A live ocorreu quando a votação ainda estava aberta no Paraná, ao passo que o acesso à internet ocorre de qualquer lugar por dispositivos móveis, reiterando–se que a transmissão foi assistida por mais de 70 mil pessoas, afora os compartilhamentos do vídeo.

20. O recorrido valeu–se das falsas denúncias para se promover como uma espécie de paladino da justiça, de modo a representar eleitores inadvertidamente ludibriados que nele encontraram uma voz para ecoar incertezas sobre algo que, em verdade, jamais aconteceu. Também houve autopromoção ao mencionar que era Deputado Federal e que a imunidade parlamentar lhe permitiria expor os hipotéticos fatos.

21. Gravidade configurada pela somatória de aspectos qualitativos e quantitativos (art. 22, XVI, da LC 64/90). O ataque ao sistema eletrônico de votação, noticiando–se fraudes que nunca ocorreram, tem repercussão nefasta na legitimidade do pleito, na estabilidade do Estado Democrático de Direito e na confiança dos eleitores nas urnas eletrônicas, utilizadas há 25 anos sem nenhuma prova de adulterações. Além disso, reitere-se a audiência de mais de 70 mil pessoas e, até 12/11/2018, mais de 400 mil compartilhamentos, 105 mil comentários e seis milhões de visualizações.

As circunstâncias do caso concreto foram bem sintetizadas pelo Min. Sérgio Banhos. Em suas palavras,

[...] “a utilização do cargo e o desvio de finalidade são evidentes a partir do momento em que é utilizado o canal oficial do mandatário para propagar notícia que, segundo a prova dos autos: a) apresenta aparência de credibilidade quanto à origem, por ser oriunda de um parlamentar; b) estava alinhada com a estratégia política do partido do então candidato, o PSL; c) era incompatível com a conduta esperada do agente público em face de fatos supostamente criminosos, que seria dar notícia do fato às autoridades competentes (promotor e juiz eleitoral), e/ou aos órgãos correcionais”.

(Sem destaques no original.)

Ao proferir seu voto, o Min. Alexandre de Moraes comparou o caso com os fatos em apuração nos Inquéritos nº 4.781/DF e nº 4.874/DF, nos quais “se revela a existência de uma verdadeira organização criminosa, de forte atuação digital e com núcleos de produção, publicação, financiamento e político, com a nítida finalidade de atentar contra as Instituições, a Democracia e o Estado de Direito”.

Sua Excelência observou que o deputado federal investigado era também delegado de polícia e, ainda assim, de forma inteiramente descomprometida com a verdade, usou de sua posição para, com base em simples relatórios de substituição de urnas em regular procedimento de contingência, “persuadir o eleitorado a acreditar na existência de fraude sistêmica” e a não aceitar o resultado das urnas. Destaco do voto proferido os fundamentos que mostram que a tentativa de descredibilizar o sistema de votação eletrônico e a Justiça Eleitoral não é protegida pela liberdade de expressão:

O sensacionalismo e a insensata disseminação de conteúdo inverídico objetivava incutir na população a crença errônea do comprometimento de todo o processo eleitoral, ferindo valores, princípios e garantias constitucionalmente asseguradas, notadamente a liberdade do voto e o exercício da cidadania.

A liberdade de expressão e o pluralismo de ideias são valores estruturantes do sistema democrático, não permitindo, entretanto, sua utilização como verdadeiro escudo protetivo para a prática de atividades ilícitas, discursos de ódio e incitação contra as Instituições democráticas.

A livre discussão, a ampla participação política e o princípio democrático estão interligados com a liberdade de expressão, tendo por objeto não somente a proteção de pensamentos e ideias, mas também opiniões, crenças, realização de juízo de valor e críticas a agentes públicos, no sentido de garantir a real participação dos cidadãos na vida coletiva, sempre com responsabilidade e com a possibilidade de futura responsabilização por crimes contra a honra e demais práticas ilícitas.

Dessa maneira, tanto são inconstitucionais as condutas e manifestações que tenham a nítida finalidade de controlar ou mesmo aniquilar a força do pensamento crítico, indispensável ao regime democrático quanto aquelas que pretendam enfraquecê-lo, juntamente com suas instituições republicanas; pregando a depreciação do processo democrático, com ataques à lisura do sistema de votação e à JUSTIÇA ELEITORAL, sem um mínimo de provas que lastreiem a sua manifestação.

A hipótese revela a existência de atos concretos, não meras conjecturas ou presunções, aptos a caracterizarem abuso de poder, revestindo-se de gravidade suficiente a afetar a legitimidade e normalidade do pleito. Consoante Jurisprudência desta CORTE SUPERIOR ELEITORAL, a gravidade dos fatos é abstraída da violação dos bens jurídicos tutelados pela norma: normalidade e lisura do pleito, de modo a garantir a vontade livre e consciente do eleitor (REspe 552-16, Rel. Min. ALEXANDRE DE MORAES, DJe de 5/8/2021).

O Recorrido alega que apenas se manifestou sobre fato que já era objeto de investigação no âmbito da Câmara dos Deputados. Contudo, observa-se que o Ofício 037.2018/LID/PSL enviado por ele, na qualidade de líder do PSL, à Min. ROSA WEBER (então Presidente do TSE), não tratava das inverdades alardeadas na transmissão. No documento, o Deputado solicitou tão somente providências genéricas para viabilizar o acompanhamento, em tempo real, da apuração por peritos da Polícia Federal e por determinado corpo técnico das Forças Armadas. Não há remissão a nenhum problema técnico ou fraude específica.

Assim, a gravidade dos fatos é inconteste, porque a conduta revela a vontade livre e consciente de ofender e colocar em dúvida a integridade da democracia e do sistema eleitoral, gerando ruptura no equilíbrio das eleições que estavam em pleno curso no momento da transmissão.

(Sem destaques no original.)

Ponto relevante abordado pelo Min. Alexandre de Moraes diz respeito à impossibilidade de que o exercício do cargo de deputado federal concedesse um salvo-conduto para os ataques infundados à urna eletrônica. Após expor todo o histórico de evolução do instituto da imunidade parlamentar no Brasil, Sua Excelência concluiu que essa garantia, finalística, guarda estrita relação com os debates na Casa Legislativa e com outras ações afetas ao exercício regular das funções parlamentares:

“Na presente hipótese, é fato incontroverso que as palavras, as opiniões e as expressões trazidas na petição inicial pelo Ministério Público Eleitoral foram proferidas em ambiente virtual, fora do recinto parlamentar e sem a presença dos requisitos imprescindíveis para caracterização da inviolabilidade constitucional: (a) ‘nexo de implicação recíproca’ e (b) ‘parâmetros ligados à própria finalidade da liberdade de expressão qualificada do parlamentar’.

As condutas em análise não se enquadram, nem de longe, entre as hipóteses atrativas da incidência da referida imunidade, pois é clarividente não serem manifestações que guardam conexão com o desempenho da função legislativa ou que seja proferida em razão desta.

Efetivamente, nem sequer há ‘nexo de implicação recíproca’, uma vez que as opiniões e as palavras proferidas pelo parlamentar foram externadas em local diverso da sua Casa Legislativa e sem qualquer relação com o exercício do mandato parlamentar.

O parlamentar, em publicação videofonográfica em plataforma digital (‘facebook’), por mais de uma vez, usurpou da sua imunidade parlamentar para divulgar falsamente notícias e relatos extremamente graves, atacando frontalmente a JUSTIÇA ELEITORAL, o sistema eletrônico de votação e a democracia, bem como espalhando execráveis incertezas acerca da higidez das eleições”.

Essa espécie de auto usurpação da imunidade parlamentar foi considerada pelo Min. Luís Roberto Barroso elemento decisivo para a configuração do abuso de poder político. Em sua leitura, a gravidade do fato se acentuou ante a autoridade do emissor da mensagem: um deputado federal que expressamente afirmou que poderia fazer a suposta “denúncia” por estar protegido pela imunidade parlamentar. O então Presidente do TSE destacou sobre o ponto:

“Esse é um precedente grave. O Direito, tanto o Direito Penal quanto o Direito Civil e o Direito Eleitoral tem como um dos seus principais papéis o que se chama “a função de prevenção geral”, que é, muitas vezes, a punição prevista para que as pessoas não tenham um incentivo errado de adotarem aquele comportamento. E, portanto, nós precisamos passar a mensagem clara de que não é possível, no dia das eleições, se difundir falsamente a informação de que as urnas são fraudadas, comprometendo o processo democrático, tirando a credibilidade das eleições e atacando a Justiça Eleitoral.

Portanto, é um precedente grave. Preferiria que nós não tivéssemos que estabelecê-lo, mas se nós passarmos pano na possibilidade de um agente público representativo ir às mídias sociais dizer que o modelo é fraudado, que o candidato está sendo derrotado por manipulação da Justiça Eleitoral, e ficar por isso mesmo, o sistema perde a credibilidade. E, como disse, parte da estratégia antidemocrática é tirar a credibilidade das autoridades eleitorais e do processo eleitoral.

De modo que, sem alegria, mas achando que esse é o papel que cabe à Justiça Eleitoral, firmar um exemplo do que é um comportamento que não pode ser aceito, eu estou acompanhando o relator.

Claramente, nós já estabelecemos no julgamento anterior que as mídias sociais se equiparam aos meios de comunicação social para o fim de identificação do uso indevido dos meios de comunicação social.

E aqui eu tenho também a visão de que, especialmente essa fala que destacou o Ministro Alexandre de Moraes, o abuso dos meios de comunicação social ou o uso indevido dos meios de comunicação social, não teria dúvida, tive um pouco de dúvida da questão do abuso do poder político, mas aqui, esta passagem, me fez inclinar pela posição do relator e eu vou pedir vênia ao público e aos ministros para ser textual. Disse o parlamentar cujo processo está aqui em julgamento:

‘E aqui eu não tenho papa na língua, porque eu tenho uma m[...] que chama imunidade parlamentar para falar. Vota um e aparece o nome do Haddad. Se for um fake, depois eu volto e me retrato, mas eu não vou deixar de falar.’

Portanto, aqui claramente se invoca uma condição especial do parlamentar, que é feito para proteger a sua liberdade de expressão e que é utilizado como escudo para difundir uma falsidade, uma mentira e, portanto, a imunidade parlamentar não pode acobertar a mentira deliberada.

(Sem destaques no original.)

Os julgados acima citados, relativos às Eleições 2018, conformam uma metodologia de análise de possíveis ilícitos eleitorais que exige, em grande medida, revisitar e reavaliar outros julgados que os antecederam. Afinal, decisões que tenham negado a equiparação da internet aos tradicionais meios de comunicação já não se mostram compatíveis com o atual contexto.

Hoje, redes sociais, blogs, canais e aplicativos preponderam como meio de veloz difusão das mensagens de cunho eleitoral e podem ser utilizados para perpetrar ilícitos que produzem efeitos rápidos e capilarizados. Os novos contornos do abuso de poder não atingem apenas o desvio do poder midiático. O uso da internet remodela, também, o abuso de poder político.

As redes sociais expandiram o horizonte de atuação de mandatários. Antes delas, as manifestações de ocupantes de cargos eletivos e de outros agentes públicos ficavam restritas ao ambiente do desempenho de suas funções e somente eram divulgadas em larga escala pela imprensa ou em pronunciamentos oficiais de caráter solene.

Atualmente, essas manifestações integram o cotidiano dos “seguidores”, e até de terceiros, para os quais as falas são replicadas. Isso favorece a interação de figuras políticas com suas bases, mas, tal como se ilustra pelo episódio discutido no RO-El nº 063975-98, também acentua os danos decorrentes de práticas desviantes.

Em síntese, os precedentes das Eleições 2018 permitem afirmar que o abuso de poder midiático e político pode se configurar, em tese, mediante a divulgação de informações falsas sobre o sistema eletrônico de votação feita por detentor de mandato eletivo, apta a produzir impactos sobre pleito específico. Mas existem elevadíssimas exigências para, em uma situação concreta, especialmente em uma eleição presidencial, concluir pela prática de abuso nos moldes citados.

Por isso, feito este apanhado do estado de compreensão da matéria, em seus pontos essenciais, relativamente à última Eleição Geral, passo a desenvolver reflexões sobre alguns elementos que vêm sendo agregados ao debate mais amplo sobre as fake news e que contribuem para a análise do caso ora em julgamento.

1.2 O aprofundamento da compreensão das práticas abusivas na internet após os precedentes das Eleições 2018: aportes jurídicos, empíricos e filosóficos

De partida, reconheço que há uma grande questão que povoa o legítimo debate público sobre os limites da jurisdição eleitoral no tema discutido nos autos.

A indagação pode ser assim sintetizada: existem, de fato, circunstâncias que legitimamente permitam estabelecer um nexo entre, em uma ponta, um discurso que coloca em xeque a credibilidade das urnas e, na outra, a lesão ou grave ameaça ao processo eleitoral?

Em outras palavras: é factível demonstrar um nexo entre prática discursiva (conduta) e ofensa a bens jurídicos eleitorais (efeitos ilícitos)?

Para responder a essas indagações, recorri a três vertentes: a) jurídica, da qual extraí hipóteses inequívocas de responsabilização civil, penal e eleitoral por discursos danosos, sem que isso signifique violar a premissa da liberdade de manifestação; b) empírica, para apresentar resultados de pesquisas no ramo da neurociência e das ciências sociais sobre o impacto das fake news na sociedade; e c) filosófica, a fim de destacar os essenciais contributos da filosofia da linguagem e da filosofia da mente para o tema.

Com isso, será possível avançar na compreensão de um fenômeno que indubitavelmente ultrapassa fronteiras da dogmática jurídica e demanda análise contextualizada e interdisciplinar.

1.2.1 Liberdade de expressão e possibilidades de responsabilização jurídica por discurso proferido

Já se mencionou que o livre exercício da manifestação do pensamento não perdeu preponderância no novo paradigma comunicacional. A comunicação muitos-para-muitos, além de ser uma realidade irrefreável, tem efeitos benéficos para o debate democrático. Ela permite que várias pessoas participem do fluxo de ideias e, até mesmo, ganhem projeção nas redes pelo sucesso de suas opiniões.

Inegável, portanto, que as premissas da análise de possíveis efeitos concretos e graves de manifestações do pensamento são a posição preferencial da liberdade de expressão e o elevado ônus argumentativo para a imposição de restrições ou sanções a seu exercício.

O tema foi magistralmente desenvolvido por Aline Osório em sua obra Direito eleitoral e liberdade de expressão (2. ed. Fórum: 2022). A autora reconhece que a desinformação deve ser controlada quando

“(i) é difundida de forma deliberada, artificial ou massiva; (ii) é disseminada a partir de (ou combinada com) discursos de ódio, assédio a grupos minoritários, incitação à violência e outros tipos de crimes; e (iii) se dirige a atingir a confiabilidade das eleições e a higidez do Estado democrático de direito”

(Obra citada, p. 226).

Identificada uma situação desse tipo, a autora propõe critérios para retirar conteúdos desinformativos de circulação e, eventualmente, punir aqueles que tenham sido responsáveis por sua difusão. Com base na análise do já citado precedente RO-El nº 0603975-98, sustenta que é preciso partir da premissa da posição preferencial da liberdade de expressão e, em rigoroso exercício argumentativo, avaliar a aptidão do discurso para colocar em risco os bens jurídicos eleitorais e a presença de elementos para fixar a responsabilidade dos envolvidos. Leia-se:

“Para garantir, porém, uma intervenção legítima sobre a liberdade de expressão, as decisões judiciais devem observar um ônus argumentativo reforçado para demonstrar: (i) o respeito ao princípio da reserva legal; (ii) a legitimidade dos interesses tutelados; e (iii) a observância do princípio da proporcionalidade, levando em consideração no exercício ponderativo a posição preferencial que ostentam as liberdades comunicativas e a especial proteção que merecem os discursos político-eleitorais.

[...]

Primeiro, não é todo fato sabidamente inverídico ou gravemente descontextualizado sobre o processo eleitoral que deve ser objeto da restrição, mas apenas aquele que revele aptidão para colocar em risco tal bem jurídico. Tal avaliação deve ser feita à luz não apenas do conteúdo específico, mas também das circunstâncias concretas da comunicação, incluindo: (i) seu emissor (e.g., candidatos ou agentes públicos que divulguem tais conteúdos têm maior potencial de atingir o bem jurídico tutelado do que cidadãos comuns); (ii) o grau de certeza sobre a falsidade do conteúdo (e.g., alegações que já tenham sido objeto de verificação por instituições de checagem de fatos podem presumidamente constituir “fato sabidamente inverídico”); (iii) a gravidade das alegações falsas ou descontextualizadas; (iv) a reiteração ou a presença de indícios de uma estratégia coordenada de deslegitimação do processo eleitoral; e (v) a disseminação e a repercussão das afirmações.

Segundo, embora seja possível a determinação da retirada de circulação do conteúdo capaz de comprometer a higidez das eleições (para cessação do ilícito), é importante que a responsabilização do emissor da mensagem se dê apenas quando haja comprovação de que este (i) tinha intenção de infligir dano, (ii) tinha consciência de estar divulgando fatos sabidamente inverídicos, ou (iii) atuou com manifesta negligência.”

(Obra citada, p. 226.-229, sem destaques no original.)

Como se vê, Osório indica que a “aptidão para colocar em risco” o processo eleitoral pode ser demonstrada por vários elementos conjugados: a pessoa do emissor, seu grau de certeza quanto à falsidade do conteúdo, a gravidade do teor, a existência de estratégia coordenada, a reiteração da mensagem, seu alcance e sua repercussão.

Mas, mesmo diante de critérios rigorosos, muitas pessoas recusam a ideia de que palavras podem causar danos à democracia. Isso, ao menos, por duas ordens de fatores.

O primeiro é uma tendência a negar que a prática discursiva de uma pessoa possa implicar em ações levadas a cabo por terceiros. Sob essa ótica, toda imposição de limites a discursos é vista como “censura”, um cerceamento da liberdade de expressão que seria incompatível com a democracia. Esse fator não é neutro, pois essencialmente é invocado para mitigar a relevância dos discursos de ódio e dos estímulos à instabilidade democrática sobre a vida em sociedade.

A origem dessa ideia é uma leitura pouco crítica e bastante anacrônica da jurisprudência da Suprema Corte a respeito da Primeira Emenda da Constituição Estadunidense, que proíbe leis que restrinjam a liberdade discursiva (free speach).

Com efeito, originou-se naquele tribunal a “teoria do perigo real e iminente”, que, em linhas gerais, resguarda o direito a proferir discursos inflamados que até mesmo estimulem a prática de atos ilegais contra o governo ou grupos de pessoas, salvo se identificada a “real possibilidade” de o ato ilícito estimulado vir a acontecer em momento próximo. O problema é que é quase impossível estabelecer essa vinculação quando se analisam discursos que, apesar de contrários a direitos fundamentais, dão eco a alguma visão hegemônica de um grupo dominante. A tendência, nesses casos, é exatamente menosprezar a carga de “perigo” da mensagem.

Por exemplo, foi com base nessa teoria que a Suprema Corte dos EUA absolveu um líder da Ku Klux Klan que advertiu o Presidente, o Congresso e a Suprema Corte de que “alguma vingança” poderia ocorrer caso continuassem “a suprimir [liberdades] da raça branca caucasiana”. A fala foi filmada e transmitida por uma emissora de televisão, a convite do próprio grupo. Diante de uma cruz de madeira em chamas, os membros da Klan, muitos deles armados, diziam frases como “é isso que nós iremos fazer com os negros”, “pretendemos fazer a nossa parte”. Também deram diretrizes sobre a movimentação prevista para o “4 de Julho” – o Dia da Independência dos Estados Unidos, ou seja, uma data cívica de grande apelo simbólico para o povo.

Apesar da brutalidade da cena e da mensagem, a Corte entendeu que “reunir-se com outras pessoas meramente para defender esse tipo de ação descrita” não era suficiente para ensejar punição. Com isso, declarou inconstitucional a lei estadual que previa sanções para a conduta (Brandenburg v. Ohio, 1969).

Não há como usar meias palavras para tratar do efeito jurídico e social desse julgamento. A Suprema Corte dos Estado Unidos entendeu que membros de um grupo que pregava a supremacia racial, ao dizer que queimariam pessoas negras por vingança, sem de fato estarem queimando uma pessoa negra, estavam exercendo uma liberdade constitucionalmente resguardada. Ou seja: deu primazia à proteção de uma liberdade de expressão racializada. Pouco importou que a mensagem causasse evidente medo, sofrimento, insegurança e restrição de liberdade às pessoas negras e que, no limite, terceiros se sentissem estimulados a torturar e executar pessoas negras, ações sugeridas e encenadas de forma simbólica em uma transmissão televisiva.

O segundo fator que dificulta o controle de práticas discursivas é a resistência a enxergar um discurso como um ato performativo em si. Muitos debates partem equivocadamente da premissa de que é preciso estabelecer um nexo indelével entre o estímulo ao ilícito e uma ação que o materialize, pois somente aí haveria violência, dano e responsabilidade. Sem danos materialmente visíveis e imputáveis, de forma inequívoca, ao autor do discurso, não haveria ensejo para remoção de conteúdos e punição dos responsáveis.

Esse tipo de raciocínio é facilmente superável, até mesmo no âmbito do Direito Civil. A indenização por dano moral, estético e existencial significa nada mais que o patente reconhecimento de que nem toda lesão a bens jurídicos se concretiza sob a forma material. No Direito Coletivo, a Lei nº 7.347/1985 prevê o cabimento da ação pública para promover a responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados ao meio-ambiente e a bens e direitos de valor artístico, histórico, turístico, paisagístico e ao meio-ambiente, à honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos, entre outros. São cabíveis tanto a tutela específica desses bens e direitos difusos, a fim de que sejam restituídos ao estado anterior ao dano, quanto a condenação em espécie.

Na esfera penal, a injúria, a calúnia e a difamação demonstram que até mesmo a ultima ratio pode incidir para assegurar punição proporcional à gravidade que ofensas verbais podem assumir. A Lei nº 7.716/1989, tipifica como crime resultante de preconceito de raça ou de cor não apenas praticar, mas também “induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional racial” (art. 20, caput).

A pena é majorada se o crime for cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou de publicação de qualquer natureza. Recentemente, a Lei nº 14.532/2023, além de tipificar a injúria racial como crime de racismo, estendeu a majoração da pena à publicação em redes sociais e em rede mundial de computadores (§ 2º).

A legislação penal brasileira reconhece, assim, que a amplificação da mensagem discriminatória por veículos de comunicação agrava o sofrimento da vítima e a reprovabilidade da conduta – algo nem sequer cogitado pela Suprema Corte ao absolver o líder da Klan em 1969. Reconhece mais: que a utilização da comunicação muitos-para-muitos, apta a produzir dano instantâneo e geralmente irreversível, produz efeitos equiparáveis, se não mais graves, que a difusão por meios um-para-muitos.

A política é essencialmente performada por discursos. A palavra é o instrumento de governantes e parlamentares para transformar a realidade. Se assim é no campo da licitude, o mesmo ocorre quando se resvala para os ilícitos eleitorais.

Não se nega que é legítimo acender um alerta quando se cogita inibir ou punir manifestação de candidatas e candidatos, agentes políticos, filiadas e filiados, cidadãs e cidadãos. Cabe manter a vigilância para que filtros morais ou ideológicos não sejam utilizados para calar opiniões fundamentais para expressão da pluralidade política. Mas isso não pode bloquear a análise de práticas discursivas ilícitas em matéria eleitoral.

Exatamente em razão da grande relevância da performance discursiva para o processo eleitoral e para a vida política, não é possível fechar os olhos para os efeitos antidemocráticos de discursos violentos e de mentiras que coloquem em xeque a credibilidade da Justiça Eleitoral.

Com efeito, um fato sabidamente inverídico justifica o direito de resposta de candidata, candidato, partido ou coligação por ele atingido. Da mesma maneira, há de se reconhecer que a divulgação de notícias falsas é, em tese, capaz de vulnerar bens jurídicos eleitorais de caráter difuso, desde que sejam efetivamente graves e, assim, se amoldem ao conceito de abuso.

Para entender como essa gravidade pode ser configurada, é necessário que o Direito se abra a outras ciências.

1.2.2 Alastramento do fenômeno da desinformação pela internet e seus impactos cognitivos e políticos

A neurociência é capaz de demonstrar que nosso cérebro, no novo paradigma comunicacional, já não é mais o mesmo.

Susan Greenfield, em obra publicada em 2015, apresentou evidências substanciais de como “a cultura da tela está induzindo transformações de longo prazo em fenômenos tão abrangentes e diversos como empatia, percepção, compreensão, identidade e assunção de riscos” (GREENFIELD, Susan. Transformações mentais. Rio de Janeiro: Alta Books, 2021, p. 20).

A pesquisadora explica que o cérebro humano é dotado de incrível plasticidade, ou seja, as estruturas neuronais são capazes de se adaptarem a tarefas diversas, para as quais não foram originariamente programadas. Essa é uma grande vantagem da nossa espécie, pois nos permite desenvolver novas habilidades, economizar energia com aquelas não mais necessárias e garantir a sobrevivência.

Por outro lado, a virtualização das relações, com a ascensão da internet, representa uma mudança abrupta no meio em que vivemos. O fator é comparável a uma tragédia climática, pois forçou uma adaptação brusca do cérebro. Isso acarretou impactos negativos sobre funções cognitivas, afetando habilidades que, apesar de parecerem dispensáveis no meio virtual, não podem ser descartadas na vida em sociedade.

Uma das áreas investigadas pela autora é a das redes sociais e suas implicações nas identidades e nos relacionamentos. Os estudos que apresenta são sólidos e demonstram, por exemplo, que o “advento das redes sociais para os Nativos Digitais” acarretou redução nos níveis gerais de empatia. A causa associada é a interação “higienizada e limitada” do mundo virtual, que reduz as oportunidades para as pessoas desenvolverem “as habilidades básicas de comunicação não verbal como contato visual, modulação de voz, percepção da linguagem corporal e contato físico” (GREENFIELD, obra citada, pp. 40-41).

Sua pesquisa aponta que o excesso de estímulos exteriores e a precipitação da velocidade de reação a esses estímulos torna “reações e análises [...] cada vez mais superficiais, em virtude da plasticidade do cérebro. Assim, “a própria experiência de viver e interagir em um determinado ambiente deixa sua marca no cérebro, que por sua vez constrói um circuito cerebral único e personalizado – o estado mental – que pode, em última instância, levar a novas mudanças físicas no cérebro e no corpo” (GREENFIELD, obra citada, p. 76).

A “identidade” é um “estado cerebral subjetivo” que envolve uma atividade mental muito exigente. É preciso estar consciente, ter a mente operacional, ser capaz de moldar crenças mais gerais a partir das experiências, ser capaz de agir e reagir dentro de um contexto e, ainda, estabelecer “uma narrativa coesa entre passado, presente e futuro”. O contraponto a isso são os prazeres sensoriais, que fornecem alívio ao cérebro, ao permitir à pessoa assumir uma postura passiva, de recepção de sensações, sem ativar um “senso de identidade” mais profundo (GREENFIELD, obra citada, pp. 89-92, passim.).

Ocorre que, no ambiente digital, as pessoas estão formando um outro tipo de identidade. É uma “identidade conectada”, caracterizada pela intensificação da busca por estados sensoriais. Opta-se mais por emoções – “foco em sentir algo em um dado momento, e somente nele” – e menos por pensar  – tarefa que requer pesado investimento de circuitos neuronais e tempo (GREENFIELD, obra citada, p. 101).

Foi observado que as redes sociais, ao propiciarem um estado de hiperconectividade, são aptas a desencadear a liberação de dopamina, em razão de fatores como a gratificação instantânea, e que a oferta de fragmentos de informações gera um desejo por “mais” (GREENFIELD, obra citada, referindo-se a pesquisa conduzida por Susan Weinschenk, p. 114).

Porém, os “mecanismos cerebrais básicos de vício e recompensa” também acarretam efeitos negativos, como a maior suscetibilidade à manipulação; a redução de filtros sociais e dos “constrangimentos da realidade”; a forte dependência da aprovação alheia; a “redução da capacidade de se comunicar de forma eficaz”; e, no extremo, o desengajamento moral e diluição de responsabilidade por assédio, ofensas e outros comportamentos violentos praticados em meio virtual, como cyberbullying e trollagem (GREENFIELD, obra citada, pp. 117-160, passim.).

Há ainda que se considerar a transformação específica do “cérebro leitor”, diante do novo tipo de informação escrita nas redes sociais, conforme leciona Maryanne Wolf (O cérebro no mundo digital. São Paulo: Contexto, 2019).

Segundo a autora, a leitura profunda, especialmente em livros físicos, estimula conexões entre áreas do cérebro relacionadas à visão, à linguagem, à cognição e ao afeto. Com isso, adquirimos habilidades específicas, como a capacidade de interpretação e de análise crítica.

Levamos milênios aprendendo isso, e agora o mundo hiperconectado apresenta outra demanda. Ele exige que o cérebro lide com um grande volume de informações, de forma rápida, alterando focos de atenção. A leitura se torna superficial, pois o estilo de leitura (como lemos) se alinha ao estilo da escrita (o que lemos). Isso não é uma escolha, mas uma adaptação funcional, que tem por efeitos reduzir a “paciência cognitiva” e comprometer a capacidade crítica (WOLF, obra citada, pp. 46, 91 e 109, passim.).

É certo que esse rol de transformações não afeta igualmente todas as pessoas, pois sempre haverá componentes individuais na equação. Além disso, os efeitos mais extremos se associam a perfis específicos e mesmo a distúrbios de personalidade. Os estudos apresentados importam, contudo, para entender um contexto que não pode ser ignorado pelo Direito: ao migrar para as redes, as interações humanas não apenas adotaram uma nova tecnologia e uma nova linguagem, mas passaram a ser influenciadas por esse novo meio.

O novo paradigma comunicacional desafia a sociedade como um todo. Os comportamentos, em geral, passam a ser afetados pela dinâmica de hiperestímulo a prazeres sensoriais, ligados a emoções básicas (medo, raiva, tristeza, alegria e amor). Isso se dá em detrimento de interações conscientes, reflexivas e empáticas.

É nesse cenário que o fenômeno das fake news se instalou. Ele está associado a um tipo de mentalidade, de identidade e de padrão de leitura que passou a prevalecer na era digital.

Encontra-se hoje empiricamente demonstrado que as notícias falsas produzem mais engajamento nas redes que notícias verdadeiras. Trago no voto os dados que indicam que as histórias fabricadas circulam 70% mais rápido que notícias verídicas, sendo que, no caso de conteúdos políticos, a velocidade chega a ser o triplo da usual. Esse alcance não é determinado por robôs, mas, sim, por humanos, atraídos pela “novidade” e, por isso, suscetíveis a compartilhar os conteúdos falsos (VOSOUGHI, Soroush; ROY, Deb; ARAL, Sinan. The spread of true and false news online. In: Science, 2018, v. 359, n. 6380, pp. 1146-1151).

Foi a velocidade da circulação das notícias falsas que, de início, motivou a criação de uma indústria pensada para distribuí-las. Uma pesquisadora e um pesquisador da Universidade de Cambridge foram a campo estudar o marco da explosão mundial das fake news na política. O trabalho, publicado em 2021, investigou a fabricação, por jovens da cidade de Veles, na Macedônia do Norte, de conteúdos favoráveis a Donald Trump e prejudiciais a Hillary Clinton, o que, conforme diversas análises reportadas no estudo, acabou por afetar as eleições presidenciais dos EUA em 2016 (HUGHES, Heather; WAISMEL-MANOR, Israel. The Macedonian Fake News Industry and the 2016 US Election. In: PS: Political Science & Politics, 2021, v. 54, n. 1, pp. 19-23.)

Chama a atenção que o objetivo inicial dessas pessoas era apenas “caçar cliques” para monetizar de seus sites via anúncios. Rapidamente, elas constataram que as notícias falsas sobre política eram mais bem sucedidas. Mais que isso, viram que conteúdos identificados com o espectro de um dos partidos tinham muito mais êxito que os inclinados a favor do outro. E foi somente por isso, visando ganhos econômicos, que passaram a utilizar técnicas para alcançar o público que tornaria o negócio mais rentável.

O impacto no pleito que estava em curso no outro lado do planeta foi estarrecedor: “nos três meses finais da campanha presidencial de 2016 nos EUA, as vinte notícias falsas com melhor desempenho no Facebook geraram mais engajamento (isto é, compartilhamentos, reações e comentários) que as vinte matérias de grandes veículos de imprensa [...] que mais se destacaram” (HUGHES; WAISMEL-MANOR, The Macedonian Fake News Industry and the 2016 US Election. In: PS: Political Science & Politics, 2021, v. 54, n. 1, p. 19, tradução livre).

Os jovens da Macedônia do Norte interferiram nas eleições estadunidenses de modo um tanto acidental. Mas, em outros casos, as notícias falsas, junto a outras técnicas de manipulação da opinião, passaram a ser utilizadas de forma bastante consciente para produzir resultados políticos.

Percebido o potencial das fake news para promover engajamento político não a partir de pautas propositivas, mas da mobilização de paixões, seu uso foi rapidamente incorporado a ações estratégicas de grande impacto. Foi o que ocorreu, por exemplo, no Brexit, no Reino Unido.

Esse novo modelo de marketing político foi descrito em 2019 por Giuliano Da Empoli, em sua obra Engenheiros do caos, como capaz de “transformar a própria natureza do jogo democrático”. A “engenharia do caos” tem como pilares: a) recusa à intermediação; b) priorização do engajamento (adesão imediata); e c) estímulo à lealdade a qualquer posição que “intercepte as aspirações e os medos – principalmente os medos – dos eleitores” (EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do caos. São Paulo: Vestígio, 2022, p. 20).

As fake news possuem papel central nesse modelo, que observa uma lógica “mais concentrada na intensidade da narrativa que na exatidão dos fatos” (obra citada, p. 23). Já não é mais preciso “unir as pessoas em torno de um denominador comum”, pois o jogo passa a ser “inflamar as paixões” do maior número de pessoas, para verdadeiramente viciá-las. No mundo das redes sociais, “a nova propaganda se alimenta sobretudo de emoções negativas, pois são essas que garantem maior participação, daí o sucesso das fake news e das teorias da conspiração” (Obra citada, p. 21).

Os eventos minuciosamente descritos no livro de Empoli desenham um quadro preocupante. Nota-se que os “laços fracos”, referidos por Manuel Castells no início do milênio como característica da comunicação na internet, têm sido explorados com a finalidade de gerar e manter mobilização de caráter altamente passional. Por suas características inflamáveis, essa mobilização acaba por direcionar um sentimento de inconformismo, nem sempre bem elaborado individualmente, para uma ação coletiva antissistema e antidemocrática.

Discursos xenofóbicos, por exemplo, se fortalecem com base em mentiras fabricadas para acirrar o ódio contra imigrantes, pouco importando que checagens revelem a falsidade do conteúdo. Isso foi admitido por Arthur Finkelstein, conselheiro de Viktor Orban, pouco após a eleição deste como Primeiro-Ministro da Hungria em 2010:

“Eu me desloco muito pelo mundo e vejo, [a]onde vou, um grande volume de raiva. [...] Há um só grito: eles roubam nosso trabalho, eles mudam nosso estilo de vida. Isso produzirá uma demanda por governos mais fortes e homens mais fortes, que ‘impeçam essa gente’, quem quer que seja ‘essa gente’. Eles falarão de economia, mas a essência de seu negócio é outra: é a raiva. É uma grande fonte de energia que está em pleno desenvolvimento no mundo inteiro

(FINKELSTEIN apud EMPOLI, obra citada, pp. 84-85)

Como se nota, o problema dessa “nova propaganda” não é que ela sirva a uma ou outra vertente político-partidária, escolhida por qualquer pessoa com base em informações verídicas. O problema é que há uma dinâmica que interfere na própria autonomia dos sujeitos, que se veem mobilizados de forma contínua por notícias falsas de teor agressivo, conspiracionista e/ou discriminatório, produzidas sob medida para sintonizar suas angústias e reverberar suas frustrações.

O uso disseminado das fake news como ferramenta de mobilização de paixões pode produzir desdobramentos político-eleitorais. Não importa a motivação do agente. O ponto é que está empiricamente demonstrada a maior capacidade das notícias falsas de intensificar o tráfego para sites, canais e perfis que as divulgam. Isso permite colocar em estado de latência um potencial de ação coordenada, que pode ser disparado por pessoas e entidades que saibam fazer uso dessa “engenharia do caos”.

Apresentado o contexto do alastramento da desinformação com impactos no ambiente democrático, passa-se a abordar o texto desinformativo e os sentidos nele implicados.

1.2.3 Prática discursiva na desordem informacional

Os seres humanos desenvolveram conhecimento em volume e complexidade incomparáveis a qualquer outra espécie. Estudiosos da teoria da mente, investigando as razões desse êxito, têm indicado dois fatores interligados: o desenvolvimento de habilidades cognitivas complexas e a comunicação com os demais membros da comunidade (SPERBER, Dan, et al. Epistemic vigilance. In: Mind & Language, v. 25, n. 4, 2010, pp. 359-293).

O trabalho cognitivo, tanto quanto o trabalho material, possui custos, e, por isso, as comunidades humanas se organizam de modo a estabelecer uma divisão social que reduz esses custos e otimiza seus resultados. As pessoas se especializam em uma ou algumas áreas de conhecimento. O resultado é que uma comunidade, considerada em seu conjunto, sabe, sempre, muito mais do que qualquer dos indivíduos que a compõem.

Assim, para tomar decisões seguras e eficientes, as pessoas recorrem ao conhecimento que possuem, mas, com muito mais frequência, ao conhecimento coletivamente transmitido. Isso significa que transitamos continuamente entre dois tipos de normatividade: a epistêmica e a de coordenação (SPERBER et al, obra citada).

A normatividade epistêmica diz respeito a “em que acreditamos”. Ela nos orienta a confiar no conteúdo daquilo que somos capazes de compreender e aceitar como corretos. Ela envolve aplicar conhecimentos prévios para interpretar e validar novos conhecimentos e formular testes que permitam eliminar eventuais erros cognitivos. É o nosso aprendizado autônomo, que, como sabemos, tem um alto custo, isto é, exige muita dedicação (SPERBER et al, obra citada).

Já a normatividade de coordenação diz respeito a “em quem acreditamos”. Ela nos orienta a confiar em fontes que respeitamos sobre determinado assunto. É ela que nos permite agir de forma segura e efetiva em temas nos quais não somos especialistas – como quando tomamos cuidados com a saúde que asseguram nossa sobrevivência. Selecionamos a fonte confiável com base em duas características: a) competência, isto é, ela detém informações verídicas; e b) benevolência, isto é, ela possui um genuíno interesse em informar sua audiência, pois não adianta deter a informação verídica e querer ocultar ou adulterar essa informação (SPERBER et al, obra citada).

Fácil perceber que, ao longo da vida, dependeremos fortemente de saberes que não detemos e que não conseguiremos (ou desejaremos) adquirir em tempo hábil para nos serem úteis. É impossível sabermos tudo sobre todos os assuntos. Por isso, a confiança é um elemento chave da nossa evolução (PERINI-SANTOS, Ernesto. Desinformação, negacionismo e pandemia. In: Filosofia Unisinos, v. 23, n. 1, 2022, p. 9).

No entanto, nem toda informação a que estamos expostos é verídica, e nem todas as fontes são bem-intencionadas. A boa notícia é que somos geneticamente programados para aprender a distinguir um conteúdo falso e, ainda, para perceber quando outra pessoa tenta nos enganar. Crianças começam a desenvolver essa habilidade a partir dos três anos.

Essa habilidade é chamada “vigilância epistêmica”, que consiste em uma espécie de “fact checking” genético que nos permite avaliar se os conteúdos são válidos e se as fontes são confiáveis, ou seja, se são competentes e benevolentes (SPERBER, Dan. Intuitive and Refective Beliefs. In: Mind and Language).

De sua parte, a fonte age com intencionalidade, seja para divulgar uma informação de interesse particular ou público, ou para levar alguém a agir de alguma forma. A intenção da fonte – ou seja, sua pretensão comunicativa – não é definida apenas pelo uso literal das palavras. Há outros elementos envolvidos na construção dos enunciados e, também, elementos contextuais, que, em conjunto, permitem a quem recebe uma mensagem extrair seu sentido.

Por isso, mesmo de um ponto de vista linguístico, nos atemos apenas ao texto. Nosso esforço cognitivo é voltado para entender o discurso, ou seja, uma interpretação contextualizada do que está sendo dito ou lido. É assim que nos comunicamos. O sujeito enunciante, que se comunica em um determinado contexto, não pode almejar uma completa ausência de responsabilidade pela interpretação que é feita para além da literalidade do que ele diz ou escreve.

Por exemplo, o popular “paradoxo do elefante cor-de-rosa” mostra que é inócuo instruir alguém a não pensar em algo, mesmo que seja algo improvável. A frase “não pense em um elefante cor-de-rosa” leva quem a escuta a fazer o contrário, e pensar no animal. Se o emissor nada tivesse dito, seria muito mais provável que o receptor nunca imaginasse o paquiderme colorido (WEGNER, Daniel et al. Paradoxical effects of thought suppression. In: Journal of Personality and Social Psychology, 1987, v. 53, n. 1, pp. 5–13)

Ou seja: quem diz para que outra pessoa não pense em algo inevitavelmente aborda o objeto ou evento indesejável, e isso causa um efeito paradoxal. O destinatário não tem como “obedecer” ao comando sem antes fazer a imagem mental do objeto ou evento, e, ao fazer isso, já “desobedeceu”. Por isso, em situações como essa, não há como dizer que o enunciante tinha, genuinamente, a intenção de impedir os pensamentos que instigou com a sua fala.

Estudos mais recentes demonstram que esse efeito não se produz em igual escala para qualquer tipo de pensamento. As sugestões relacionadas a emoções negativas são mais intensas e podem até mesmo levar a comportamentos obsessivos. Cria-se o chamado “pensamento intrusivo”, que leva as pessoas a ficarem remoendo ideias indesejáveis. Quando dotado de alta intensidade, esse tipo de pensamento pode efetivamente comprometer o processo de tomada de decisões (KÜHN, Simone et al. The neural representation of intrusive thoughts. In: Social Cognitive and Affective Neuroscience, v. 8, n. 6, 2013, pp. 688-93; GUSTAVSON, Daniel et al. Evidence for transdiagnostic repetitive negative thinking and its association with rumination, worry, and depression and anxiety symptoms: a commonality analysis. In: Collabra Psychol, v. 4, n. 13, 2018).

Além da intencionalidade, a fonte age para convencer que possui alguma dose de autoridade no tema. Isso é essencial para ter êxito em exercer seu papel na coordenação do conhecimento.

Raramente há o contato direto com as mais altas autoridades em um tema. O mais comum na difusão de informações relevantes para a sociedade é que as acessemos por meio de intermediários. Forma-se assim uma cadeia de transmissão de conhecimento, assentada na confiança.

Esta é exatamente a dinâmica da normatividade por coordenação. Uma médica que nos prescreve um medicamento “é um elo na cadeia de transmissão do conhecimento científico”. Sabemos, por exemplo, que ela não desenvolveu o medicamento ou testou sua eficiência – ao menos não sozinha. Sabemos que ela nos transmite orientações práticas por também confiar em outros elos da cadeia, que selecionou com base em conhecimentos prévios. E sabemos também que, nos pontos mais altos dessa cadeia, estão comunidades de especialistas que usam critérios muito rigorosos para validar um conhecimento – como os institutos de pesquisa ou a Organização Mundial de Saúde (PERINI-SANTOS, obra citada, p. 9).

Por isso, um componente muito importante da nossa cultura é a deferência às instituições. As fontes que se colocam como elos da cadeia coordenada buscarão, de algum modo, indicar que são confiáveis. Elas farão isso sustentando que reproduzem informações ou propõem ações com base em conhecimento ao qual a sociedade deve deferência, considerando-se o prestígio de uma fonte primária.

O que acontece à medida que uma fonte ganha a confiança de uma determinada audiência é que esse público tende a reduzir sua vigilância epistêmica em relação ao conteúdo divulgado por essa fonte. Ou seja, uma audiência cativa passa a aceitar como válida uma informação apenas por derivar daquela fonte e toma decisões com base nisso, sem fazer questionamentos. Feito um cálculo de custo-benefício, as pessoas consideram mais vantajoso acreditar no que diz a fonte e agir como ela sugere, do que investir em trabalho cognitivo para checar essas informações.

A essa altura, já se torna simples visualizar como as fake news afetam negativamente a cadeia de transmissão de conhecimento assentada na confiança.

Veja-se, por exemplo, o desenvolvimento da indústria de notícias falsas da Macedônia do Norte e seus efeitos nas eleições estadunidenses de 2016. Para formar uma audiência, os produtores de conteúdo investiram em elementos que pudessem qualificá-los como fonte confiável. Seguiram padrões de páginas, copiaram textos e, de início, divulgaram notícias, em sua maior parte, verídicas, ainda que optassem por manchetes sensacionalistas.

Gradativamente, a vigilância epistêmica dos seus seguidores diminuiu. As páginas intensificaram os conteúdos falsos, para que refletissem algo que, de antemão, o público fidelizado queria encontrar: a confirmação de suas crenças. Os afetos mobilizados, especialmente negativos, traduziram-se em mais compartilhamentos e acessos.  Assim, os sites da Macedônia do Norte, dissimulando tanto competência, quanto benevolência, tornaram-se influentes em enorme escala.

Diante dos estudos realizados para a elaboração deste voto, foi possível chegar a uma conclusão relevante: o que se denomina desordem informacional pode então ser compreendido como uma grave crise de confiança, em que distorções da normatividade de coordenação (que nos ensina em quem confiar) acabam por degradar a normatividade epistêmica (que nos diz em que conteúdo confiar). Isso produz impactos negativos sobre a distribuição social do trabalho cognitivo e sobre o processo de tomada de decisões válidas ou corretas.

A prática discursiva na desordem informacional provoca um curto-circuito na nossa vigilância epistêmica. Isso porque as fontes de notícias falsas, para persuadir o público de que são competentes em determinados temas, contestam continuamente as fontes de conhecimento especializado.

Não se trata, aqui, do salutar debate em torno de conhecimentos científicos ou de informações oficiais e técnicas. Trata-se de pura e simples substituição da deferência às instituições pelo repúdio a estas, subvertendo por completo, a partir de premissas conspiracionistas, a lógica da confiança que molda nossa sociedade.

Esse efeito é poderoso, porque parte de pretensões humanas bastante legítimas, que são a distribuição simétrica do conhecimento e a simplificação da linguagem. De fato, é salutar que busquemos democratizar o conhecimento, de modo a tornar o saber acessível a mais pessoas e a permitir que possam opinar livremente.

Ocorre que simplesmente não temos como saber tudo de todos os temas e, por isso, dependemos de saberes construídos pela coletividade. Quando a ânsia por não depender de especialistas e por poder opinar sobre tudo chega ao extremo de ignorar os limites da distribuição social do trabalho cognitivo, cai-se em uma armadilha.

O resultado do repúdio a fontes institucionais não é a formação de pessoas mais autônomas e críticas, que produzem seu próprio conhecimento e estão preparadas para indicar falhas em informações oficiais. Longe disso. Conforme explica Ernesto Perini-Santos, o que surge, nesse cenário, são grupos orientados pela mobilização em torno de crenças, em que cada pessoa supre com um componente passional (o pertencimento ao grupo) a falta de um suporte epistêmico (validação de conteúdo) para suas decisões.

Segundo o autor, não se trata de um fenômeno novo, visto que pode ser ilustrado pelo surgimento do movimento terraplanista, que remonta ao século XIX. Naquele momento, já estava evidente que esse tipo de crença, profundamente anticientífica, se disseminou como resposta para o desejo de autonomia epistêmica (“eu só aceito como verdadeiro aquilo que eu mesmo posso provar”) e de distribuição simétrica do conhecimento (“cada um tem direito a sua própria opinião”). Essa satisfação é, porém, ilusória, pois os terraplanistas seguem dependendo de conhecimentos que recebem de outras pessoas, trocando fontes especializadas por outras, anônimas e sem qualificação. Cito o trecho (PERINI-SANTOS, obra citada, pp. 11-13, passim):

“Aquele que é o exemplo emblemático hoje do que se pode chamar da escolha da ignorância, o terraplanismo, tem sua motivação na demanda da autonomia epistêmica (‘eu só aceito como verdadeiro aquilo que eu mesmo posso provar!’) e da distribuição simétrica do conhecimento (‘cada um tem direito a sua própria opinião’). De fato, recusa do saber elitista (no caso, a ciência newtoniana) e a autonomia da produção do conhecimento estão na origem do terraplanismo no século XIX (Garwood, 2007).

Isto é, claro, uma ilusão. Um terraplanista também depende do que recebe dos outros, ele se baseia no recorte mais ou menos aleatório de informações científicas que supostamente apoiam suas posições que alguém produziu. Em outros termos, ele pensa estar numa cultura não humana, isto é, ele pensa estar numa cultura que só contém elementos que poderiam ter sido descobertos individualmente e que todos compreendem, o que só vale para culturas não humanas. Ele está, no entanto, apenas numa cultura humana deturpada, que tem como exigência a distribuição simétrica do saber. Mais do que a autonomia epistêmica, o que este caso ilustra é o pertencimento a um grupo que produz uma teoria que parece acessível a cada um de seus membros (todos podem entender, cada um poderia participar da produção da pesquisa etc.). Um terraplanista não é aquele que produz seu próprio conhecimento, mas alguém que escolhe uma outra comunidade epistêmica, diferente daquele que reúne especialistas reconhecidos.

[...]

Por que, em particular, confiar mais nestas pessoas do que em especialistas que publicam em revistas especializadas, que são parte de equipes de instituições reconhecidas, e que tem um custo reputacional alto em defender teses injustificadas? Porque cada um pode se identificar com um anônimo sem qualificação específica. Esta é uma escolha democrática. Esta também é a escolha da ignorância.

(Sem destaques no original.)

Como se observa, a crise de confiança, em si, não é uma novidade. No entanto, os efeitos dessa crise sobre a tomada de decisões individuais e coletivas foram dramaticamente potencializados pelo uso estratégico de informações falsas como ferramenta para produção de engajamento na sociedade em rede. A internet cria um “mercado informacional desregulado”, em que os custos financeiros e reputacionais diminuem, aumentando a proliferação de conteúdos que antes eram marginais (PERINI-SANTOS, obra citada, p. 23.).

Não por acaso, a despeito das retumbantes evidências científicas contrárias à ideia de que viveríamos em um planeta achatado, o terraplanismo do século XIX vem ganhando adeptos em pleno século XXI. Comunidades se formam a partir dessa crença compartilhada, que é indissociável de teorias conspiracionistas envolvendo instituições como a NASA.

A intensidade das interações propiciadas pela comunicação muitos-para-muitos dentro desses grupos gera para seus membros o conforto do pertencimento. As “bolhas” operam como instâncias protegidas contra testes de validação dos conteúdos aceitos nessas comunidades. Fontes científicas e oficiais são repudiadas, o que inviabiliza o exercício da vigilância sistêmica. As recompensas emocionais decorrentes do engajamento virtual desestimulam o esforço cognitivo de avaliar se os demais membros do grupo são fontes confiáveis e se as informações compartilhadas são verídicas.

Se esse comportamento pode, em tese, ser considerado inofensivo no que diz respeito ao terraplanismo, o mesmo não se pode dizer em relação a outros temas. Recentemente, a pandemia da Covid-19 serviu de triste laboratório para a observação de que o negacionismo científico pode determinar o aumento de riscos coletivos e até a morte. Da mesma forma, a desinformação política deu mostras, no mundo, de seu poder de provocar o esgarçamento do tecido democrático.

Um último ponto a ressaltar no tema é que, evidentemente, não se pode tomar por premissa a má-fé na divulgação de informações falsas. Ou seja, uma fonte que não tem competência (conhecimento verídico) pode agir de forma benevolente (isto é, acreditando divulgar informações verídicas relevantes para a tomada de decisões corretas). Não é inusual que vieses, dos quais ninguém escapa, vez por outra levem as pessoas a repassar conhecimentos equivocados ou mesmo inteiramente falsos.

Será então preciso distinguir situações em que é aceitável que pessoas se comportem com uma dose de descuido no exercício da vigilância epistêmica e difundam desinformação, de outras em que isso é intolerável.

Para estabelecer essa diferença, adoto a distinção entre dois conceitos de responsabilidade moral. Uma primeira noção de responsabilidade exige demonstrar que a conduta é a manifestação dos objetivos, compromissos ou valores de uma pessoa. Somente assim ela poderia ser moralmente responsável por seus atos. Em um segundo tipo de responsabilidade, avaliam-se “práticas sociais e institucionais que distribuem deveres e ônus entre os diversos papéis e posições existentes na comunidade moral”, tornando a pessoa “responsável por suas ações [...] quando é apropriado que outras pessoas nutram certas expectativas e demandas a respeito dessas ações” (ZHENG, Robin. Attributability, accountability and implicit bias. In: Implicit bias and phylosophy, v. 2. Oxford: Oxford University Press, 2016, pp. 62-63.).

Esse segundo modelo vem a ser a accountability, que equivale a uma exigência mais elevada em torno da adoção de comportamentos socialmente adequados. Se os padrões de conduta não forem observados, a pessoa será responsabilizada. Como explica Vinícius Diniz Monteiro de Barros, não se exigirá, portanto, “que o comportamento seja reflexo da unidade moral do agente como sujeito racional para que a ele se impute a tarefa de lidar com as consequências de seus atos” (MONTEIRO DE BARROS, Vinícius Diniz. Vieses implícitos, controle interno e institucionalidade. Tese (em elaboração). Doutorado em Filosofia. FAFICH-UFMG. Belo Horizonte, 2023).

A accountability já foi assimilada ao campo da responsabilidade jurídica. Ela é pertinente para avaliar as condutas das pessoas que ocupam posições públicas, para as quais há um dever de zelo em um patamar que não se exige de outras pessoas. A categoria pode ser aproveitada para a análise de ilícitos eleitorais.

Os bens jurídicos eleitorais podem ser compreendidos como uma síntese de expectativas coletivas a respeito do comportamento de candidatas e candidatos. As prerrogativas de participação política que ostentam justificam que se submetam ao regime da accountability. Ou seja, ao se habilitarem para concorrer às eleições, essas pessoas se sujeitam a ter suas condutas rigorosamente avaliadas com base em padrões democráticos, calcados na isonomia, na normalidade eleitoral, no respeito à legitimidade dos resultados e na liberdade do voto.

Essa avaliação rigorosa não recai apenas sobre o agir em sentido estrito – como realizar uma carreata, ou custear despesas eleitorais. Ela incide também sobre a prática discursiva. Afinal, candidatas e candidatos exercem um importante papel na coordenação do conhecimento. Essas pessoas disputam a confiança de outras em temas de interesse da sociedade. Atuam, assim, como fontes de informação. Usam da comunicação para convencer eleitoras e eleitores a agir de um determinado modo: apoiar pautas, engajar-se na campanha, persuadir outras pessoas e, enfim, votar da forma sugerida.

Para atingir esse objetivo, é lícito que emitam opiniões e interpretem fatos de acordo com sua visão e inclinação políticas. Mas lhes é vedado utilizar informações falsas como ferramenta de mobilização política, como estratégia de domínio do debate público ou, no limite, para criar riscos de ruptura democrática.

A accountability tem relação muito estreita com a normalidade eleitoral. Isso porque, em boa definição, esse bem jurídico constitui “antecedente elementar da legitimidade do pleito, envolvendo um processo de assimilação e respeito de uma cultura de adesão incondicional aos valores democráticos” (ZILIO, obra citada, p. 72). Impõe-se, assim, a candidatas e candidatos aderir à “normalidade eleitoral como exigência inegociável para o exercício legítimo da liberdade de expressão” (GRESTA, Roberta Maia. Normalidade eleitoral é só para inglês (do século XIX) ver? In: Boletim ABRADEP, n. 4, jul. 2022, p. 15).

Em síntese, partindo-se da premissa que a prática discursiva produz implicações na prática social, candidatas e candidatos podem ser responsabilizados se atuarem como fonte da qual deriva a desordem informacional com impacto nas eleições. É exigível dessas pessoas uma atitude de vigilância epistêmica em relação ao conhecimento que divulgam, pois é seu dever zelar pela preservação do ambiente democrático.

1.3 A tutela dos bens jurídicos eleitorais por meio da AIJE: abordagem geral e particularidades das eleições presidenciais de 2022

A ação de investigação judicial eleitoral – AIJE – é instituída no art. 22 da LC nº 64/1990 como procedimento para a tutela da legitimidade e da normalidade do pleito, bens jurídicos severamente afetados por práticas abusivas que envolvam desvio de finalidade do poder político, uso desproporcional de recursos públicos em desconformidade com a legislação eleitoral e utilização indevida de meios de comunicação social para beneficiar determinada candidatura.

A referência ao desequilíbrio entre os concorrentes também deixa implícito o objetivo de proteção da isonomia.

A LC nº 64/1990, em seu art. 19, ainda prevê a atuação das Corregedorias para apurar transgressões que ofendam a liberdade do voto, ao passo em que o parágrafo único do dispositivo indica que essa apuração será enfocada na proteção da normalidade e na legitimidade das eleições. Nesse sentido, deve-se entender que a AIJE resguarda uma dimensão coletiva e principiológica da liberdade do voto, portanto, mais ampla que aquela referida na Lei nº 9.504/97, ao tipificar a captação ilícita de sufrágio.

Transcrevo os dispositivos da LC nº 64/1990 que elencam os bens jurídicos tutelados pela AIJE, juntamente com as modalidades abusivas que podem malferi-los:

“Art. 19. As transgressões pertinentes à origem de valores pecuniários, abuso do poder econômico ou político, em detrimento da liberdade de voto, serão apuradas mediante investigações jurisdicionais realizadas pelo Corregedor-Geral e Corregedores Regionais Eleitorais.

Parágrafo único. A apuração e a punição das transgressões mencionadas no caput deste artigo terão o objetivo de proteger a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou do abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta, indireta e fundacional da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

[...]

Art. 22. Qualquer partido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleitoral poderá representar à Justiça Eleitoral, diretamente ao Corregedor-Geral ou Regional, relatando fatos e indicando provas, indícios e circunstâncias e pedir abertura de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político, [...]”

(Sem destaques no original.)

Rodrigo López Zilio destaca que a normalidade e a legitimidade do pleito, a isonomia e a liberdade do voto são princípios do Direito Eleitoral elevados a “bens jurídicos eleitorais, na medida em que exercem a função de proteção das regras do jogo eleitoral e, por via reflexa, servem de elementos estruturais de conformação material ou de pressupostos de configuração dos ilícitos eleitorais” (ZILIO, Rodrigo López.  Decisão de cassação de mandato: um método de estruturação. 2. ed. São Paulo: JusPodivm, 2023, p. 65).

Assim, as expectativas de comportamento estabelecidas com base nesses bens jurídicos parametrizam o juízo quanto à “desproporcionalidade” de uma conduta, elemento essencial à configuração do abuso.

Os bens jurídicos referidos podem ainda ser compreendidos como direitos difusos, quando pensados da perspectiva de cidadãs e cidadãos que exercem direitos políticos no processo eleitoral, seja na posição de votantes, seja disputando um cargo. São requisitos, efetivamente, indispensáveis para a estruturação do ambiente democrático que alicerça a possibilidade de eleições hígidas, republicanas e pacíficas.

Ao longo das Eleições 2022, foi conferido destaque à função preventiva da AIJE. Teve-se em vista que a máxima efetividade da proteção jurídica buscada por essa ação reclama atuação tempestiva, destinada a prevenir ou mitigar danos ao processo eleitoral. Para essa finalidade, adotou-se a técnica de antecipação da tutela inibitória. Isso ocorreu em dez AIJEs, inclusive no feito presente, em que meu antecessor, Ministro Mauro Campbell, ordenou a remoção do vídeo da reunião realizada no Palácio da Alvorada em 18/07/2022.

Para essa finalidade, adotou-se a técnica de antecipação da tutela inibitória, modalidade de tutela específica voltada para a cessação de condutas ilícitas, independentemente de prova do dano ou da existência de culpa ou dolo. A técnica se encontra prevista no parágrafo único do art. 497 do CPC, aplicável subsidiariamente às ações eleitorais, que dispõe:

“Art. 497. Na ação que tenha por objeto a prestação de fazer ou de não fazer, o juiz, se procedente o pedido, concederá a tutela específica ou determinará providências que assegurem a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente.

Parágrafo único. Para a concessão da tutela específica destinada a inibir a prática, a reiteração ou a continuação de um ilícito, ou a sua remoção, é irrelevante a demonstração da ocorrência de dano ou da existência de culpa ou dolo.

(Sem destaques no original.)

Bem antes do Código de Processo Civil de 2015, a tutela inibitória já integrava a disciplina da AIJE. Nesse sentido, prevê o art. 22, I, b, da LC nº 64/90 que, ao receber a petição inicial, cabe ao Corregedor determinar “que se suspenda o ato que deu motivo à representação, quando for relevante o fundamento e do ato impugnado puder resultar a ineficiência da medida, caso seja julgada procedente”. Há, nessa previsão, o claro propósito de fazer cessar a conduta ilícita, prezando-se pela eficiência da tutela jurisdicional, sem prejuízo do prosseguimento do feito com vistas à cassação do registro ou do diploma e à declaração de inelegibilidade.

A inibição de condutas pode ser determinada diante de indícios substanciais da prática com potencial abusivo, não sendo preciso verificar a efetiva ocorrência de lesão grave aos bens jurídicos. Por esse motivo, a análise da gravidade, como elemento da decisão liminar em que se avalia o cabimento da suspensão de condutas que amparam a AIJE, deve ser orientada pelo objetivo de conter a propagação ou a amplificação de efeitos potencialmente danosos, adotando-se a mínima intervenção necessária para preservar a legitimidade das eleições e o equilíbrio da disputa.

Nas eleições presidenciais de 2022, foram determinadas medidas inibitórias em dez AIJEs, inclusive no feito presente, em que meu antecessor, Ministro Mauro Campbell, ordenou que o vídeo da reunião realizada no Palácio da Alvorada em 18/07/2022 fosse removido das redes sociais do primeiro investigado e do canal da EBC. 

A aferição da gravidade feita naquele momento não se confunde com a que será feito agora, no julgamento de mérito. Na atual etapa, deve-se avaliar in concreto os efeitos das condutas praticadas, a fim de estabelecer se são graves o suficiente para conduzir à inelegibilidade dos investigados, candidatos não eleitos, na medida de sua responsabilidade.

Na hipótese dos autos, ganha relevo o debate sobre as possíveis violações à isonomia e à normalidade, que possam ter se consumado a despeito da medida inibitória adotada.

No que diz respeito à isonomia, deverá ser indagado se a reunião com os Chefes de Missões Diplomáticas, realizada no Palácio da Alvorada no dia 18/07/2022, produziu vantagem eleitoral competitiva desproporcional em favor do então Presidente da República, candidato à reeleição.

Essa análise envolverá o exame: a) do alegado caráter eleitoral do evento e, b) caso confirmado o desvio de finalidade, das circunstâncias de sua preparação, realização e divulgação, envolvendo: b.1) o uso da estrutura física e operacional da Presidência da República para a preparação e realização do evento; b.2) o uso das prerrogativas de Chefe de Estado para justificar o convite a representantes diplomáticos; e b.3) a cobertura do evento pela Empresa Brasil de Comunicação (EBC).

Quanto à normalidade, será indagado se o então Presidente da República, na ocasião, disseminou desinformação contra o sistema eletrônico de votação e a Justiça Eleitoral e, em caso positivo, se foi grave ao ponto de afetar a estabilidade do ambiente democrático. Serão analisados: a) os elementos textuais; b) o contexto em que se insere o discurso; c) a mensagem comunicada; e d) os efeitos pragmáticos da comunicação, considerando-se inclusive os meios de dispersão.

Destaque-se que as supostas afrontas aos bens jurídicos eleitorais supradescritas são imputadas pessoalmente ao primeiro investigado. No caso, além das expectativas sobre como devem se comportar todas as pessoas que se candidatam a cargos eletivos, incide o dever de observância a um estatuto próprio aplicável ao candidato à reeleição.

A Constituição, ao expressamente dispor sobre a “Responsabilidade do Presidente da República”, fez uso, no seu art. 85, de norma proibitiva (“[s]ão crimes de responsabilidade [...]”). Todavia, é elementar que se faça a primeira leitura do dispositivo como um código de conduta, que produz, para toda a sociedade, expectativas legítimas quanto ao comportamento da pessoa eleita para exercer o mais alto cargo do Poder Executivo brasileiro.

Nesse sentido, a pessoa que exerce a Presidência da República é pessoalmente responsável por zelar: a) pelo “livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação”; b) pelo “exercício dos direitos políticos”; e c) pela “segurança interna do País” (art. 85, II, III e IV, da Constituição).

As normas acima transcritas constituem padrões de conduta democrática. Sua observância é irrecusável e objetivamente imposta, independentemente de haver ou não adesão moral, íntima, por parte do mandatário ou da mandatária. Esse modelo de responsabilidade dialoga com premissas já fixadas no RO-El nº 0603975-98 (Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJE de 10/12/2021), em que se deu destaque à condição de parlamentar do investigado, e é enriquecido pelos aportes que apresentei a respeito da normatividade de coordenação.

Conjugados esses parâmetros, caberá avaliar, na hipótese em exame, se o cargo de Presidente da República: a) foi utilizado para conferir credibilidade a discurso contendo grave desinformação; b) encobriu atuação essencialmente eleitoral; c) impunha comportamentos que não foram observados pelo primeiro investigado.

Conclui-se esse tópico ressaltando que a metodologia apresentada se destina a facilitar a compreensão dos fundamentos a serem expostos neste voto. A correlação entre bens jurídicos (isonomia e normalidade eleitoral) e a tipificação do abuso de poder (político ou midiático) não são estanques. Vale dizer: os bens jurídicos eleitorais são categorias abstratas, que favorecem o desenvolvimento da argumentação jurídica, mas que, de modo algum, sugerem a fragmentação ou a compartimentalização dos fatos tratados nesta AIJE.

Na verdade, a complexidade fenomênica do objeto deste feito, ao tempo em que exige uma decomposição cuidadosa para que se compreenda cada parte, também impõe que, ao final, as conclusões parciais sejam reagrupadas para pensar o todo. Daí o espaço dedicado a apresentar essas premissas de julgamento, como consolidação (provisória) de um “estado da arte” que possibilite a compreensão abrangente das “circunstâncias [...] que preservem o interesse público de lisura eleitoral”, tal como preconizado no art. 23 da LC nº 64/1990.

Adentra-se, agora, o exame dos fatos.

2. Fixação da moldura fática a partir dos marcos temporais assinalados no discurso de 18/07/2022

Conforme já reiteradamente mencionado, a causa de pedir fática da presente AIJE é a realização de reunião havida no Palácio da Alvorada no dia 18/07/2022, na qual o primeiro investigado, então Presidente da República, proferiu discurso no qual veiculou críticas ao sistema eletrônico de votação e à atuação de Ministros do TSE. A audiência presencial foi formada por embaixadores de países estrangeiros, convocados para a ocasião. O evento foi transmitido pela TV Brasil, vinculada à Empresa Brasil de Comunicação (EBC), empresa pública, e pelas redes sociais do candidato no Facebook e no Instagram.

Esses fatos são incontroversos.

Ao apresentar sua narrativa sobre os fatos constitutivos do pedido e sobre fatos supervenientes à propositura da demanda, o autor acresce os seguintes elementos:

a) o teor do discurso disseminou severa desordem informacional, sem qualquer contribuição para a melhoria do sistema de votação;

b) essa atuação converge com estratégia de campanha, de ataque à credibilidade das urnas eletrônicas e do TSE, para mobilizar bases eleitorais;

c) a reunião, portanto, teve nítida finalidade eleitoral, mirando influenciar o eleitorado e a opinião pública nacional e internacional;

d) o uso da estrutura pública e das prerrogativas do cargo de Presidente da República foi contaminado por desvio de finalidade em favor da candidatura da chapa investigada;

e) a transmissão pela TV Brasil e pelas redes potencializou o alcance da desinformação;

f) a estratégia de descredibilização das urnas eletrônicas e os ataques à Justiça Eleitoral contribuíram significativamente para estimular a não aceitação dos resultados eleitorais por parte da população;

g) a minuta de decreto de estado de defesa apreendida na residência de Anderson Gustavo Torres em 12/01/2023 é um exemplo dos impactos dessa estratégia sobre a normalidade e a legitimidade das eleições; e

h) a minuta também indica que estava sendo gestado um golpe de Estado, convergente com o discurso de 18/07/2022, no qual se insinuou que a derrota do candidato à reeleição corresponderia à prova de fraude.

Esses pontos são veementemente rechaçados pelos investigados, que sustentam, em contrapartida, que:

a) o discurso proferido em 18/07/2022 se insere em um diálogo institucional salutar, caracterizando momento em que o então Presidente da República externou opiniões, ainda que fortes, voltadas para aperfeiçoar o sistema de votação;

b) a atuação se deu na qualidade de Chefe do Estado, dentro dos limites do cargo;

c) a reunião não teve finalidade eleitoral, eis que seu público-alvo foram as embaixadoras e os embaixadores presentes, que sequer possuem capacidade eleitoral ativa;

d) não houve qualquer desvio de finalidade em favor do candidato à reeleição, pois não houve pedido de votos, entrega de material de propaganda ou comparativo entre candidaturas, e os valores dispendidos para realizar o evento foram módicos;

e) a cobertura da TV Brasil é justificada por se tratar de evento realizado pelo Presidente da República e qualquer efeito do discurso foi prontamente inibido por manifestação do próprio TSE rebatendo os pontos, dentro do diálogo institucional esperado;

f) não se pode estabelecer qualquer correlação entre o discurso proferido em 18/07/2022 e os fatos que ocorreram ao longo do período eleitoral e mesmo após a diplomação e a posse, especialmente porque praticados por terceiros, sem prévia ciência, anuência ou participação do primeiro investigado;

g) a minuta apreendida na residência de Anderson Torres não possui qualquer valor como prova, pois é apócrifa e a perícia descartou que o primeiro investigado tenha tocado no documento, além do que não se teve notícia de convocação do Conselho da República e do Conselho de Defesa Nacional para dar início à decretação de estado de defesa.

Esta, em síntese, a controvérsia fática a ser dirimida.

Considerados esses pontos, é possível, desde logo, refutar argumentos da defesa que se destinam a, de certa forma, encapsular a reunião de 18/07/2022. Nessa linha, argumentam que não houve distribuição de material de propaganda, pedido de votos ou comparação entre candidaturas. Também enfatizaram que os diplomatas estrangeiros são pessoas sem direito ao sufrágio no Brasil, que sequer em tese poderiam ser influenciadas a votar no candidato à reeleição.

Quanto ao primeiro argumento, esta Corte, por seu órgão colegiado, já reconheceu a conotação eleitoral do evento realizado no Palácio da Alvorada em 18/07/2022, ao condenar o ora primeiro investigado por propaganda irregular anterior ao registro (RPs nos 0600549-83, 0600550-68, 0600556-75 e 0600741-16, Rel. Min. Maria Claudia Bucchianeri, DJe de 01/10/2022).

Ainda que não tivesse havido esse prévio pronunciamento, nítido que a causa de pedir não envolve alegação de que houve pedido de votos dirigidos ou outra forma explícita de propaganda. O caráter eleitoreiro é apontado com base na alegada conexão entre o teor da fala do primeiro investigado e sua estratégia de campanha à reeleição.

No que diz respeito ao segundo ponto, é incontroverso que a reunião foi transmitida por emissora pública e pelas redes sociais do próprio investigado, alcançando púbico amplo. Além disso, outros fatores, como os motivos para que a plateia fosse composta por embaixadoras e embaixadores, que merecem análise cuidadosa.

Assim, o fato de não ter havido ato típico de propaganda eleitoral ou de o discurso não ser proferido para uma plateia presencial de eleitoras e eleitores não abala a causa de pedir deduzida nesta AIJE, sob qualquer ângulo.

O encapsulamento proposto como estratégia de defesa também sugere que o evento de 18/07/2022 seja analisado de forma pontual e isolada, sobretudo em relação ao discurso do primeiro investigado. Ocorre que não há como dissociar os fatos e o contexto em que ocorreram.

Toda comunicação é pragmática, pois se destina a influenciar ideias e comportamentos dos destinatários. Essa característica inafastável da interação humana não é negada pela defesa, que reiteradamente atribui ao discurso uma finalidade pragmática: defender melhorias no sistema de votação, de forma construtiva. É questão fática relevante avaliar se os investigados têm razão ou se, ao contrário, acerta o autor ao imputar à fala aptidão para gerar grave desordem informacional.

Para tanto, não é necessário fazer uma (impossível) incursão à mente do falante. A dimensão pragmática do discurso exige que seja feita uma análise contextualizada, em busca das implicações culturais e sociais dos atos de fala. Trago um exemplo simples. Se uma pessoa diz a outra, em uma sala fechada, que o ambiente está muito quente e a outra prontamente liga o ar-condicionado ou abre as janelas, tem-se uma comunicação de sentidos exitosa, com o cumprimento da função pragmática da linguagem, ainda que a primeira pessoa não tenha dito “por favor, ligue o ar-condicionado”. Note-se que o mesmo comentário feito em um outro contexto, como uma praia, talvez levasse a interlocutora a oferecer uma água-de-coco a quem diz “está muito quente”.

Em qualquer caso, vê-se que a captação dos sentidos implícitos do ato de fala é elementar à comunicação humana e que se sobrepõe naturalmente, para a imensa maioria das pessoas, ao apego literal à palavra dita. É assim que otimizamos os resultados da comunicação, em todos os campos da nossa vida.

O deslinde do julgamento que ora se inicia exige, assim, aprofundar as camadas discursivas do ato de fala praticado pelo então Presidente da República em 18/07/2022, em busca dos sentidos que foram comunicados em um contexto específico. Essa é a base fática sobre a qual deve recair a análise da gravidade qualitativa (reprovabilidade da conduta) e quantitativa (repercussão sobre a isonomia, a normalidade e a legitimidade das Eleições 2022).

No caso, as críticas dirigidas contra o sistema eletrônico de votação no citado discurso tiveram como fio condutor a reiterada referência a um inquérito no qual a Polícia Federal, supostamente, teria concluído que hackers tiveram acesso a “diversos códigos-fonte” e teriam sido capazes de “alterar nomes de candidatos, tirar voto de um, transferir para outro

Ao longo do saneamento do feito, assinalou-se que a fala do primeiro investigado em 18/07/2022 fez uso de marcadores cronológicos que conectaram passado, momento presente e projeções para o futuro:

a) no que diz respeito ao passado, o então Presidente abordou a alegada fraude nas Eleições 2018, passando pela advertência de que não poderia ter havido eleições em 2020 antes da “apuração total” do ocorrido, rememorou denúncia que teria feito em 2021, com base em inquérito da Polícia Federal, e lamentou a rejeição do voto impresso;

b) o momento presente é descrito como de continuidade da suposta vulnerabilidade do sistema de votação e de recusa do TSE em adotar medidas para assegurar transparência e confiabilidade, havendo enfática queixa em relação à recusa de propostas das Forças Armadas, tudo a justificar a suposta urgência do então Presidente da República em tratar do tema com embaixadoras e embaixadores de países estrangeiros, na iminência do período eleitoral de 2022; e, por fim,

c) olhando para o futuro próximo, o primeiro investigado disparou alertas em relação ao risco de que a democracia ruísse com a proclamação de um presidente que poderia não ser o mais votado nas urnas, e insistiu na enfática reivindicação, somente compreensível nesse arco narrativo alarmista, de que as Eleições 2022 fossem “limpas, transparentes, onde o eleito realmente reflita a vontade da sua população”.

Esses três marcos temporais serão, a seguir, dissecados, a fim de fixar com máximo detalhamento a moldura fática que resulta da instrução probatória.

Duas últimas notas sobre o exame da prova.

Primeira: esta ação não encampa a apuração de condutas criminais, eventualmente praticadas pelos investigados ou por terceiros, tais como o hacker que atacou a rede da Justiça Eleitoral em 2018 e o ex-Ministro da Justiça e da Segurança Pública, Anderson Gustavo Torres. Por isso, essas condutas, e as investigações que lhes são correlatas, serão referidas somente naquilo que possam importar para a análise dos ilícitos eleitorais (abuso de poder político e uso indevido de meios de comunicação) que alegadamente se configurariam na reunião de 18/07/2022.

Segunda: não está em discussão, neste processo, qualquer proposta de melhoria para o sistema eletrônico de votação, tampouco a valoração política dos debates travados em torno da PEC nº 135/2019, que versou sobre o voto impresso. Bem assim, a preferência do primeiro investigado, de algumas testemunhas e de qualquer cidadão ou cidadã pela impressão de comprovante de voto é inteiramente irrelevante. O que se investiga são condutas do primeiro investigado, ao tempo em que era Chefe de Estado e resolveu, na iminência do pleito no qual disputaria reeleição, performar um determinado discurso sobre a governança eleitoral brasileira, perante representantes de corpos diplomáticos estrangeiros e perante o público que assistiu a transmissão na TV Brasil e nas redes sociais.

2.1 O fato central (presente): reunião do então Presidente da República com Chefes de Missões Estrangeiras no Palácio da Alvorada em 18/07/2022

O exame dos fatos principia pelo que se chamará “momento presente” e que, como fato constitutivo central da causa de pedir, funciona como um “marco zero” da análise da prática discursiva: a reunião realizada em 18/07/2022 no Palácio da Alvorada, ao qual compareceram Chefes de Missões Diplomáticas e autoridades públicas para ouvir a explanação do primeiro investigado, na condição de Chefe de Estado, a respeito do sistema eletrônico de votação adotado no Brasil.

Serão abordadas: a) a preparação do evento e as circunstâncias de sua realização; b) a análise do discurso proferido pelo primeiro investigado; e c) a cobertura da TV Brasil, a difusão nas redes sociais e as reações imediatas diante da divulgação.

 

2.1.1 A preparação do evento e as circunstâncias de sua realização

 

Em 31/05/2022, o então Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Min. Luiz Edson Fachin, discursou na abertura do evento “Sessão Informativa para Embaixadas: o sistema eleitoral brasileiro e as Eleições de 2022”. O objetivo principal do encontro era informar aos diplomatas de países estrangeiros a respeito das eleições brasileiras, em seus múltiplos aspectos, inclusive acerca da tecnologia utilizada.

Houve exposições técnicas a cargo de servidoras e servidores. Em uma das atividades, os convidados puderam realizar uma votação simulada em urnas de seções eleitorais fictícias, registrando preferência entre 18 times de futebol. Ao início, viram a impressão da zerézima. Às 17h00, acompanharam a apuração, a totalização e a divulgação do resultado. (https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2022 /Maio/diplomatas-recebem-informacoes-sobre-sistema-eletronico-de-votacao-das-eleicoes-2022).

Tratava-se, portanto, de evento organizado dentro das funções inerentes ao órgão de cúpula da governança eleitoral do Brasil, em favor da ampla transparência do processo eleitoral brasileiro, inclusive perante a comunidade internacional. As eleições culminam na expressão da soberania de um povo, que livremente escolhe suas e seus governantes e parlamentares. Daí o evidente interesse, por parte dos países com os quais o Brasil se relaciona, em compreender o processo eleitoral, bem como por parte do TSE, de dar visibilidade a normas, procedimentos e particularidades das eleições brasileiras.

Sobre o ponto, pertinente refutar a alegação da defesa, destinada a criar falsa simetria entre esse evento ocorrido no TSE em 31/05/2022 e o que viria a ser realizado no Palácio da Alvorada em 18/07/2022.

Tanto na contestação quanto nas alegações finais, os investigados sustentaram que o, à época, Presidente do TSE convocou a reunião sem estar “legitimado constitucionalmente para tanto”. A defesa buscou com isso demonstrar que os eventos seriam “assemelhados”, mas que pesaria contra a iniciativa do TSE a nota da incompetência constitucional, enquanto o Presidente da República estaria respaldado por sua competência privativa para “manter relações com Estados estrangeiros” (art. 84, VII, da Constituição).

Sabe-se, contudo, que a competência privativa do Presidente da República se refere à representação do Brasil, por seu Chefe de Estado, nas relações entre os países propriamente ditos. Essa competência convive harmonicamente com diversas outras situações em que representantes brasileiros dialogam com representantes estrangeiros sobre temas variados, de interesse recíproco.

O Tribunal Superior Eleitoral é a instituição constitucional (art. 118, I, da Constituição) que atua como órgão de cúpula da governança eleitoral. É inerente ao desempenho de suas atribuições administrativas difundir informações oficiais a respeito do sistema eletrônico de votação, sob diversos meios. A importância do diálogo conduzido pelo TSE com autoridades eleitorais e instituições de outros países levou à edição da Res.-TSE nº 23.483/2016, que “regulamenta a atuação internacional do Tribunal Superior Eleitoral”. Nela, estão tratadas:

a) a participação em foros e organizações internacionais, destacando-se que o TSE: “é o ponto focal da participação do Brasil no Instituto Internacional para a Democracia e a Assistência Eleitoral (IDEA)” (art. 2º), é membro do Conselho Eleitoral da União das Nações Sul-Americanas (Unasul), da União Interamericana de Organismos Eleitorais (Uniore) e do Protocolo de Quito (art. 3º), participa de diversos encontros, entre eles o Encontro Interamericano de Autoridades Eleitorais, realizado anualmente pela Organização dos Estados Americanos (art. 4º), e é Membro da Associação Mundial de Organismos Eleitorais (AWEB) e integrante de seu Comitê Executivo (art. 6º);

b) a participação do TSE em Missões de Observação Eleitoral, com “o objetivo de avaliar o ambiente normativo e institucional dos órgãos da Justiça Eleitoral de modo a aferir a observância do princípio da equidade nos pleitos eleitorais, com a prevalência dos direitos e garantias fundamentais, a autonomia do organismo eleitoral, a transparência e os mecanismos de controle do financiamento eleitoral, o abuso do poder econômico, o uso da máquina do Estado, o acesso de partidos e candidatos aos meios de comunicação e a garantia de recursos jurisdicionais a todos os partidos e candidatos” (art. 8º, § 2º);

c) o voto no exterior, que exige alinhamento entre o TSE e o Ministério das Relações Exteriores (art. 10); e, por fim,

d) a acolhida de comitivas e convidados estrangeiros, a respeito da qual cumpre transcrever, na íntegra o art. 9º da citada resolução:

“Art. 9º O Tribunal Superior Eleitoral, por ocasião das eleições gerais e municipais, organizará programas para convidados de organismos eleitorais estrangeiros e de organizações internacionais, objetivando demonstrar uma visão ampla do processo eleitoral brasileiro.

§ 1º Os programas para convidados internacionais, que poderão ser elaborados em cooperação com tribunais regionais eleitorais, contemplarão palestras sobre o sistema eleitoral brasileiro e visitas a seções eleitorais.

§ 2º Dar-se-á prioridade ao recebimento de missões da América Latina e da África, em coordenação com o Ministério das Relações Exteriores.”

(Sem destaques no original.)

A reunião realizada no TSE em 31/05/2022 se inseriu em programa para convidados internacionais, previsto desde 2016 e já completamente integrado ao calendário do tribunal no contexto de preparação das eleições.

Mas, mesmo que a norma regulamentar não existisse, inegável que o órgão de cúpula da governança eleitoral tem como poderes (e deveres) implícitos a difusão de informações “sérias e verdadeiras” a respeito dos sistemas eletrônicos que desenvolve, especialmente em um cenário de grave desinformação sobre o tema. Aliás, em seu depoimento em juízo, o então Ministro das Relações Exteriores, Carlos França, indagado a respeito da atuação de sua pasta em temas eleitorais, prontamente fez referência à interação entre o TSE e a chancelaria para assegurar o exercício do voto no exterior e as missões de observação internacional. A testemunha afirmou até mesmo que foi sugestão sua ao Min. Edson Fachin convidar a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) para vir ao Brasil acompanhar o pleito de 2022 (ID 158766494, p. 28).

Simples concluir que a “Sessão Informativa para Embaixadas” e outros eventos organizados pelo TSE com o objetivo de divulgar informações técnicas e corretas a respeito do funcionamento das urnas eletrônicas não dependem de previsão expressa na Constituição. O evento de 31/05/2022 não perpetrou qualquer violação aos limites constitucionais da atuação do Presidente do TSE. Assim, deve-se refutar expressamente a ideia, ainda que sugerida entrelinhas, de que o Presidente da República teria agido, em 18/07/2022, para preservar sua competência privativa na relação com países estrangeiros.

Assentada a legitimidade da realização do evento de 31/05/2022, destaco trecho do discurso do Min. Edson Fachin proferido na ocasião, quando abordada a confiabilidade do sistema de votação eletrônica brasileiro. O então Presidente do TSE prestou informações gerais sobre o sistema de votação, deixando os aspectos técnicos, naturalmente, reservados para a exposição do titular da STI/TSE. Sua Excelência também alertou os presentes quanto ao “vírus da desinformação”, que se alastrava de forma ameaçadora, incitando injustificado descrédito às urnas eletrônicas e ao próprio TSE:

“Entretanto, para além da COVID-19, cumpre constatar o infeliz espraiamento de outra forma de vírus, com efeitos deletérios sobre a saúde, não das pessoas diretamente, mas da vida democrática nacional.

Estou me referindo ao vírus da desinformação sobre o sistema eleitoral brasileiro, que, de maneira infundada e perversa, procura incessantemente denunciar riscos inexistentes e falhas imaginárias. Este Tribunal Superior Eleitoral, e toda a Justiça Eleitoral, tem de trabalhar diuturnamente para desmentir boatos sobre o funcionamento do sistema eletrônico de votação e preservar a confiança que nele deposita a grande maioria da população.

Na Sessão Informativa da jornada de hoje, procuraremos, entre outros temas, oferecer às Senhoras e Senhores um resumo de todas as camadas de segurança e de auditoria com que conta a nossa urna eletrônica. Como verão, nosso sistema eletrônico de votação é totalmente auditável, com várias entidades fiscalizadoras, incluindo a Polícia Federal, o Ministério Público Federal, a Ordem dos Advogados do Brasil e os partidos políticos.

Convido a corpo diplomático sediado em Brasília a buscar informações sérias e verdadeiras sobre a tecnologia eleitoral brasileira, não somente aqui no TSE, mas junto a especialistas nacionais e internacionais, de modo a contribuir para que a comunidade internacional esteja alerta contra acusações levianas.

A integridade e fidedignidade das eleições brasileiras tem de ser demonstrada não por frases desconexas ou declarações vazias, mas por relatórios fundamentados de especialistas na matéria.

Por essa razão, o TSE instituiu a Comissão de Transparência Eleitoral e o Observatório de Transparência Eleitoral, iniciativas que reúnem dezenas de entidades fiscalizadores e de centros de pesquisa em tecnologia, que buscam aprimorar e trazer segurança às nossas eleições.

Por essa razão convidamos, de forma inédita, e em diálogo com o Ministério das Relações Exteriores, vários organismos e centros internacionais para constituírem missões de observação eleitoral no Brasil; confirmaram presença: a Organização dos Estados Americanos (OEA), o Parlamento do Mercosul, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), a União Interamericana de Organismos Eleitorais (UNIORE), a Fundação Internacional para Sistemas Eleitorais (IFES) e a Rede Mundial de Justiça Eleitoral, além da 4 manifestação de elevado interesse do Carter Center. Muitas dessas missões contarão com engenheiros e técnicos de informática, cujos trabalhos estarão voltados especificamente para o funcionamento da urna eletrônica, a exemplo do que fez a OEA em 2018 e em 2020, cujos relatórios atestam a integridade e segurança da urna eletrônica. Teremos, ademais, corpos técnicos especializados, observadores e peritos na área, de diversas parte do mundo, convidados pelo TSE, incluindo observadores nacionais e internacionais.

Não é necessário alertar as Senhoras e os Senhores de que os desafios enfrentados pela Justiça Eleitoral brasileira não são, desafortunadamente, eventos isolados. Creio que todos aqui acompanham os perigosos sinais de ameaça à democracia em diversas partes do mundo, como pode ser atestado pelos indicadores preocupantes das últimas edições da Freedom House, do Idea Internacional e da Economist Intelligence Unit. A crise de legitimidade das democracias parlamentares, fenômeno real, pode conduzir a bandeiras populistas, quando não autoritárias, que prometem consertar um sistema que, como nos ensina a História, terminam por piorá-lo. O desafio da nossa geração é canalizar as demandas por reformas para o campo do diálogo e das instituições democráticas, onde podem prosperar com tranquilidade.

Na América Latina, em particular, os arremessos populistas incluem, em vários de seus países, investidas contra o sistema eleitoral, incluindo propostas disparatadas de reforma dos institutos eleitorais; acusações levianas de fraude, que conduzem a semanas de instabilidade política no período pós-eleitoral; e ameaças contra a integridade física e moral de autoridades. O enredo é sempre o mesmo: buscar a conturbação e incutir a desconfiança entre os espíritos mais desavisados, para minar a legitimidade dos eleitos e da própria vida democrática. Atacar o sistema eleitoral dessa maneira é atacar a própria democracia.

 Mas a maturidade e estabilidade das instituições brasileiras não permitir[ão] que esses barulhos perturbem a vida democrática. [...]

[...]

É com grande satisfação que este Tribunal compartilha com os Governos estrangeiros, representados pelo corpo diplomático que aqui nos honra com sua presença, todas as informações disponíveis na Justiça Eleitoral. O nosso compromisso de transparência extrapola nossas fronteiras e abrange todas as nações interessadas.

Tenho a convicção de que a comunidade internacional acompanha com atenção o processo eleitoral brasileiro de 2022 e contribuirá para o amadurecimento e aprimoramento de nossa democracia.

Tenham todos uma bela jornada.”

(FACHIN, Luiz Edson. Discurso de abertura da Sessão Informativa Para Embaixada, proferido em 31 maio 2022. íntegra disponível em: https://www.tse.jus.br/ comunicacao/noticias
/2022/Maio/presidente-do-tse-destaca-importancia-do-dialogo-com-a-comunidade-internacional ; sem destaques no original.)

É fato notório que o discurso acima transcrito teve significativa repercussão em veículos de imprensa, com ênfase a alguns dos trechos destacados, e, com isso, logrou ser mais uma oportunidade para a Justiça Eleitoral conclamar a sociedade a buscar informações confiáveis sobre as urnas eletrônicas. Não obstante, a mensagem despertou no primeiro investigado uma “reação”: também ele, na qualidade de Presidente da República e Chefe de Estado, faria um evento direcionado à comunidade internacional.

Está demonstrado nos autos que a reunião de 18/07/2022, no Palácio da Alvorada, foi planejada como resposta à Sessão Informativa para Embaixadores, realizada pelo TSE.

A própria contestação traça esse contexto, que denomina como “debate público completo” sobre o sistema eletrônico de votação, encadeando três episódios: a) “poucos dias antes, em 31/05/2022, o Presidente do C. TSE convocou reunião com a comunidade internacional”; b) o primeiro investigado expôs seu ponto de vista, em 18/07/2022; e c)  o TSE divulgou uma “nota pública reativa de esclarecimento”, em 19/07/2022, na qual rebateu “20 (vinte) pontos apresentados pelo investigado” (ID 157977291, p. 21).

A prova testemunhal confirmou essa dinâmica. Carlos Alberto França, então Ministro das Relações Exteriores, afirmou categoricamente que a ideia da reunião de 18/07/2022 partiu da Presidência da República – e, não, de seu Ministério – e que tinha por objetivo permitir ao Presidente, que “é quem conduz a política externa”, apresentar seu ponto de vista sobre o sistema de votação. Disse, ainda, que isso ocorreu após um “briefing” no TSE, e que foi por isso que se julgou ser papel da Presidência da República “também se manifestar diretamente”. Leia-se (ID 158766494):

“O SENHOR EMBAIXADOR CARLOS ALBERTO FRANÇA (Ministro das Relações Exteriores): Bom, essa... esse encontro ocorre... é... por iniciativa da... organizado pelo Cerimonial da Presidência da República... ah... num contato que aconteceu depois que houve aqui, houve uma espécie de briefing, ou uma reunião de coordenação aqui, no Tribunal Superior Eleitoral, né, e julgou-se então que era papel da Presidência da República também se manifestar diretamente aos chefes de missão aqui acreditados, dentro da linha de que o presidente da República é o que... enfim... conduz a política externa em relação com os Estados estrangeiros.

O DOUTOR MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (Juiz Auxiliar da Presidência do TSE): E... Ministro... o... o... o Senhor disse que houve essa decisão de se fazer essa reunião. Essa decisão partiu diretamente da Presidência da República?

O SENHOR EMBAIXADOR CARLOS ALBERTO FRANÇA (Ministro das Relações Exteriores): Essa decisão foi uma decisão da Presidência da República.”

Apesar do que foi deliberado pelo então Presidente da República, Carlos França deixou nítido que, em sua compreensão, eleições e política externa não são temas relacionados. A testemunha chegou a mostrar estranhamento ao ser perguntado se algum embaixador ou alguma embaixadora teria levado à chancelaria questionamentos sobre o sistema eletrônico. Ao negar o fato, disse que “talvez não coubesse a uma embaixada nos inquirir”, exatamente por ser tratar de um “assunto interno:

“O DOUTOR WALBER DE MOURA AGRA (advogado): No nosso sistema, integridade, é um dos melhores sistemas do mundo. No ano de 2022, ou no período em que o Senhor está no Itamarati, houve algum documento escrito de embaixada estrangeira – documento escrito de embaixada ou qualquer hierarquia das relações exteriores – que questionasse o sistema eleitoral brasileiro, Excelência?

O SENHOR EMBAIXADOR CARLOS ALBERTO FRANÇA (Ministro das Relações Exteriores): Não que eu tenha conhecimento, Doutor Walber, mas seria... é... também... é... algo de assun... de... de... de assunto interno aqui... é... que talvez não coubesse a uma embaixada nos inquirir, não é? Porque, normalmente, os requerimentos têm que tratar de uma embaixada junto com a chancelaria brasileira sobre assuntos de política externa.”

Carlos França disse que, em sua leitura, o objetivo do evento era “manifestar a posição do Executivo em relação à busca [...] desses critérios de transparência”. Ele afirmou, ainda de forma mais explícita, que essa era uma ideia do próprio Presidente da República. E destacou que o tema estava palpitante em função de se tratar de um momento pré-eleitoral:

“O SENHOR EMBAIXADOR CARLOS ALBERTO FRANÇA (Ministro das Relações Exteriores): [...] houve, na verdade, assim, eu penso, uma ideia do presidente de se dirigir aos chefes de missão, no sentido um pouco de esclarecimento, ou de dizer qual era... ah... ah... a busca que se tinha naquele momento... é..., talvez de transmitir, Excelência, um... um debate que era muito presente na sociedade brasileira naquele momento. Ah... um debate que não era exclusivo do Executivo; um debate sobre o aperfeiçoamento do sistema eleitoral brasileiro, sobre a transparência... é..., que acontecia vamos... vamos... Se eu me recordo bem, em 2019 havia uma PEC no Congresso Nacional, havia um debate sobre a questão do voto auditável. Ah... esse debate, ele depois se transfere ao Judiciário – havia uma... uma... uma... um debate todo.

Assim, e o Executivo, ele participa desse debate também. E penso que... é... a intenção do presidente da República em... em chamar aquela reunião, convocar aquela reunião, ou propor aquela reunião, era um pouco manifestar a... a posição do Executivo em relação à busca... é... dessa.... desses critérios de transparência... ah... enfim, de conformidade. A ideia de que, enfim, o voto do eleitor tinha que ser respeitado. Um pouco... um pouco, eu acho, dentro do âmbito do que se quer a democracia vibrante de um país grande como é o... o Brasil, né?

[...]

Mas... é... como eu falei, eu acho que é dentro desse espírito desse debate que há na sociedade brasileira, ou havia naquele momento pré-eleitoral, é que se convocou aquela reunião. Eu acho que era um debate que, como eu falei, já existia no Legislativo... é..., era objeto no próprio Judiciário. [...]”

O ineditismo da reunião ficou assinalado nas respostas do ex-Chanceler. Carlos França afirmou que “não é função do Itamarati, nem mesmo constitucional, de que nós nos ocupemos de temas eleitorais”. Disse, também, que, desconhece evento semelhante ao do dia 18/07/2021, em que um Presidente da República tenha se dirigido a diplomatas para tratar de sistema de votação. No final da inquirição, foi ainda mais específico e informou que conversas sobre sistemas eleitorais dos países ocorrem “num nível hierárquico muito mais baixo”, nunca envolvendo “presidente, primeiro-ministro ou chanceler”:

“O DOUTOR MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (Juiz Auxiliar da Presidência do TSE): [...] Dentre essas funções, de que foi incumbido como chanceler, estava a de tratar também sobre as eleições brasileiras com os embaixadores de países estrangeiros?

O SENHOR EMBAIXADOR CARLOS ALBERTO FRANÇA (Ministro das Relações Exteriores): Excelência, não é função do Itamarati, nem mesmo constitucional, de que nós nos ocupemos de temas eleitorais.

[...]

O DOUTOR MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (Juiz Auxiliar da Presidência do TSE): É... com relação aos fatos, especificamente antes do dia 18 de julho de 2022, já tinha sido algum... realizado algum evento com os embaixadores de países estrangeiros para tratar especificamente do sistema de votação brasileiro com ou sem a presença do presidente da República? É... eu... eu digo assim, não uma questão pontual, com um embaixador ou outro, mas uma reunião coletiva, com vários embaixadores convidados?

O SENHOR EMBAIXADOR CARLOS ALBERTO FRANÇA (Ministro das Relações Exteriores): Não. Não que eu tenha conhecimento.

[...]

O DOUTOR MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (Juiz Auxiliar da Presidência do TSE): É... é... perfeito. Ah... só complementando, na pergunta específica é se havia alguma orientação ao corpo diplomático para buscar essas informações sobre sistemas eleitorais dos países estrangeiros junto ao seu representante maior? No caso, o presidente, o primeiro-ministro, ou algo nesse sentido?

O SENHOR EMBAIXADOR CARLOS ALBERTO FRANÇA (Ministro das Relações Exteriores): Não. Com certeza, não.

O DOUTOR MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (Juiz Auxiliar da Presidência do TSE): Sempre é feito de forma protocolar, dentro da escala hierárquica do Ministério

O SENHOR EMBAIXADOR CARLOS ALBERTO FRANÇA (Ministro das Relações Exteriores): É verdade. Pode ser que haja... é... algum... algo.... alguma coisa no sentido de se buscar alguma coisa comparativa. Assim: – Olha, me... me informa como é que funciona o sistema eleitoral indiano, como funciona o sistema eleitoral boliviano. Mas isso é uma informação que... que ocorre num nível hierárquico muito mais baixo. Nunca... nunca juntam um presidente, primeiro-ministro ou chanceler mesmo, né?”

A peculiaridade do evento está também no seguinte contraste: de um lado, tem-se um motivo pontual, e um tanto pessoal, que impeliu o primeiro investigado a decidir fazer uma espécie de “evento-resposta” ao do TSE; de outro, uma grande estrutura foi mobilizada, em curto espaço de tempo, para atender a essa finalidade.

No que diz respeito à concepção do encontro, as três testemunhas ouvidas a respeito da reunião de 18/07/2022 (Carlos França, Ciro Nogueira e Flávio Viana Rocha) apresentaram relatos basicamente de meros espectadores. Embora tenham sido arroladas pela defesa com a justificativa de que, diante de suas relevantes funções desempenhadas, conheceriam aspectos particulares da dinâmica da reunião disseram, em uníssono, que não auxiliaram o ex-Presidente na preparação do material, que não foram chamados a discutir a abordagem e que desconheciam o teor da apresentação.

Ao descrever a participação da chancelaria na preparação do evento, Carlos França indicou que lhe coube sugerir o perfil do público-alvo presente, mas enfatizou que a decisão de fazer a reunião, em si, já estava tomada. Seu papel, conforme explicou, foi apenas recomendar critérios para elaborar a lista de representantes, com base em um “corte hierárquico” compatível com a presença do Presidente da República. O chanceler não soube dizer se houve ajustes por parte do cerimonial – unidade à qual coube fechar a lista e remeter os convites.

A testemunha relatou que não teve envolvimento com a produção dos slides exibidos na apresentação de Jair Messias Bolsonaro. O Itamarati foi acionado apenas para fornecer equipamento e tradutor para a tradução simultânea. Conclui o trecho dizendo “nós não tivemos acesso a esse material, e nós não fomos acionados para revisar esse material [...], não houve participação do Itamarati na substância desse evento”:

“O DOUTOR MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (Juiz Auxiliar da Presidência do TSE): Ministro... é.... então... é... só pra que... pra que fique um pouco claro... mais claro, né, do que o Senhor já... Vossa Excelência já explicou... é... o... coube à chancelaria essa... esse contato com as embaixadas?

O SENHOR EMBAIXADOR CARLOS ALBERTO FRANÇA (Ministro das Relações Exteriores): Não. É... é... o... o... o que eu fiz foi... é... auxiliar a Presidência da República naquilo que me cabe... é... na minha pasta... é... a orientação, uma vez tomada a decisão de fazer o evento, que nós julgávamos que deveria ser o público-alvo.

O DOUTOR MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (Juiz Auxiliar da Presidência do TSE): A escolha?

O SENHOR EMBAIXADOR CARLOS ALBERTO FRANÇA (Ministro das Relações Exteriores): A escolha. Exatamente. Eu disse: – Olha, esse é um evento que vai ter o presidente da República, então nós vamos fazer uma seleção das embaixadas que tem aqui... [...] nós tínhamos, vamos dizer assim, um corte hierárquico bastante claro.

[...]

O DOUTOR MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (Juiz Auxiliar da Presidência do TSE): Hum-hum. Tá. Nessa... é... é... o Senhor já explicou, já foi claro, mas, durante o evento, nessa preparação, a chancelaria, coube a ela também uma preparação de slides sobre esse sistema eleitoral, ou foi feito por outra...

O SENHOR EMBAIXADOR CARLOS ALBERTO FRANÇA (Ministro das Relações Exteriores): Não, Excelência. Essa matéria eleitoral não é matéria de competência do Ministério das Relações Exteriores. [...] Eu ajudo na logística, por exemplo, colocando tradução simultâneao equipamento e o próprio tradutor são... são... ah... contratados pelo Itamarati. A apresentação, depois, de discursos do presidente ou de ministros, aí, para que nós possamos divulgar essas ações de... de governo no exterior quando são... é... nós entendemos que é de conveniência da política externa, não é?

[...]

O DOUTOR WALBER DE MOURA AGRA (advogado): Vossa Excelência falou a respeito dos slides – se é que ficou claro para mim, me desculpe se eu estiver errado, e me corrija, por favor –, que os slides não foi feito... não foram feitos pelo Itamarati. Mas, é normal que slides não tenham sido... em outras línguas estrangeiras – inglês –, não seja corrigido pelo Itamarati?

O SENHOR EMBAIXADOR CARLOS ALBERTO FRANÇA (Ministro das Relações Exteriores): É... não. Nós... nós não tivemos acesso a esse material, e nós não fomos acionados para revisar esse material. Não... não houve participação do Itamarati na substância desse evento.

Por sua vez, o ex-Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, Flávio Augusto Viana Rocha, de início exaltou a importância estratégica da unidade que comandava. Todavia, diante de todas as perguntas sobre a reunião de 18/07/2022, descreveu uma atuação periférica. Disse não ter informação sobre a confecção dos slides exibidos pelo então Presidente e, de resto, sobre nenhum diálogo a respeito da temática eleitoral (ID 158766496):

“O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): [...] Como que o Senhor pode resumir o seu papel no governo do ex-Presidente Jair Messias Bolsonaro? A principal atividade, né?

O SENHOR FLÁVIO AUGUSTO VIANA ROCHA (testemunha): A missão precípua da Secretaria de Assuntos Estratégicos é pensar o Brasil no futuro, pensar o futuro do Brasil, coordenando as ações e o pensamento estratégico de todos os Ministérios, de toda a Administração Pública Federal, justamente evitando o imediatismo do dia a dia. Essa era a função precípua da SAE.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Entendi. Nesse período em que o Senhor atuou nessa Secretaria, a própria Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos esteve envolvida em discussões, no Poder Executivo, sobre o sistema eletrônico de votação?

O SENHOR FLÁVIO AUGUSTO VIANA ROCHA (testemunha): Não, Senhor.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): A Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos alguma vez teve a iniciativa de levar ao presidente da República dúvida sobre a confiabilidade das urnas eletrônicas ou da atuação da Justiça Eleitoral?

O SENHOR FLÁVIO AUGUSTO VIANA ROCHA (testemunha): Não, Senhor.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Contrario sensu, a Secretaria alguma vez recebeu do presidente da República dúvida sobre a confiabilidade das urnas ou da atuação da Justiça Eleitoral?

O SENHOR FLÁVIO AUGUSTO VIANA ROCHA (testemunha): Também não, Senhor.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Entre suas funções, como Secretário Especial de Assuntos Estratégicos, estava a de tratar das eleições brasileiras com os embaixadores dos países estrangeiros?

O SENHOR FLÁVIO AUGUSTO VIANA ROCHA (testemunha): Não, Senhor.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Não? No período em que o Senhor exerceu essa atividade, alguma vez recebeu, via Ministério das Relações Exteriores, questionamentos ou dúvidas de embaixadores ou representantes estrangeiros sobre o funcionamento e confiabilidade das urnas e também sobre a atuação da Justiça Eleitoral?

O SENHOR FLÁVIO AUGUSTO VIANA ROCHA (testemunha): Não, Senhor.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): O Senhor participou, e qual foi, se participou, o seu papel, ou o papel da Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos no evento do dia 18 de julho de 2022, em que o ex-presidente se reuniu com os embaixadores de países estrangeiros para tratar do sistema de votação brasileiro?

O SENHOR FLÁVIO AUGUSTO VIANA ROCHA (testemunha): Participei, sim, Senhor. E o papel da SAE, no caso, ele se deveu... a participação da SAE se deveu a um encargo, eu não vou chamar de colateral, mas é um encargo adicional que a SAE tem, ou tinha, né, no governo do Presidente Bolsonaro, de ser... ter subordinada à SAE a chamada Assessoria Internacional do presidente. Então, qualquer tema que fizesse parte da agenda do presidente e tivesse o caráter internacional, um grupo de diplomatas a mim subordinados, subordinados à SAE, chamado Assessoria Internacional, fazia ali a formatação ou, caso necessário, alguma assessoria de último momento, como, por exemplo, organizava administrativamente, principalmente, os briefings para qualquer viagem, para qualquer telefonema, para qualquer evento que envolvesse a área internacional. [...] Daí, como era um evento que tratava de representantes estrangeiros, a Assessoria Internacional da SAE compôs ali o time de apoio... o caso dessa aí foi basicamente de apoio logístico-administrativo.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Entendi. A Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos prestou esse apoio direto ao presidente, no evento, especificamente, com sugestões de conteúdo para o discurso ou suporte de preparação de slides?

O SENHOR FLÁVIO AUGUSTO VIANA ROCHA (testemunha): Não, Senhor. Não, não houve esse nível de assessoria em relação ao evento em questão.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Os requeridos, ao requererem a oitiva de Vossa Excelência como testemunha, justificaram que, diante dessas relevantes funções desempenhadas, haveria aspectos da dinâmica do evento e que seriam de seu particular conhecimento. O Senhor consegue se lembrar de algum fato específico ou relevante à controvérsia que possa ter escapado ao registro do evento em vídeo?

O SENHOR FLÁVIO AUGUSTO VIANA ROCHA (testemunha): Não lembro, Excelência.

Nem mesmo o Senador Ciro Nogueira Lima Filho, que exerceu o relevante cargo de Ministro-Chefe da Casa Civil, relatou envolvimento substancial no evento. Na verdade, o ex-Ministro fez declarações que se distanciam da abordagem de Jair Messias Bolsonaro sobre o tema das urnas eletrônicas. De saída, expressou confiança no sistema eletrônico de votação e reconheceu a atuação da Justiça Eleitoral para seu contínuo aperfeiçoamento(ID 158766496):

“O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): No período que o Senhor atuou exclusivamente como Ministro da Casa Civil, a sua atuação esteve envolvida em discussões, no Poder Executivo, sobre sistema eletrônico de votação?

O SENHOR CIRO NOGUEIRA LIMA FILHO (testemunha): Essas discussões, no que diz respeito às urnas eletrônicas, Excelência, é uma discussão já pública, que tem ocorrido. Eu mesmo sou uma pessoa que sou defensor do nosso sistema de apuração de urnas, que eu acho plenamente confiável. Agora, sempre defendi que nenhum sistema é inviolável, tanto que a própria Justiça Eleitoral, no meu ponto de vista, sempre vai aprimorando os mecanismos para torná-lo cada vez mais seguro. Acho que essa discussão é uma discussão que nós perdemos muito tempo com ela; poderia ter sido conduzida de uma outra forma, mas o que se buscava, no meu ponto de vista, pelo presidente da República, era termos um... e isso ele ressaltou na própria reunião, nos trechos que eu me lembro e até pela degravação diz, que o que ele buscava era ter um sistema eleitoral confiável para todos os cidadãos.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Nesse sentido, a Casa Civil alguma vez teve a iniciativa de levar ao presidente da República alguma dúvida sobre a confiabilidade das urnas ou da atuação da Justiça Eleitoral?

O SENHOR CIRO NOGUEIRA LIMA FILHO (testemunha): Não, pelo contrário. Eu sempre, nas minhas discussões sobre esse tema, dizia que nós confiávamos no sistema.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): E em sentido contrário, a Casa Civil alguma vez recebeu do presidente da República dúvidas sobre essa confiabilidade das urnas ou da atuação da Justiça?

O SENHOR CIRO NOGUEIRA LIMA FILHO (testemunha): Não, nunca foi trazido isso à Casa Civil, esse tema.”

A testemunha deixou evidente que esteve alheia ao planejamento da reunião de 18/07/2022. O ex-Chefe da Casa Civil informou que não foi consultado sobre nenhum aspecto relevante da reunião com embaixadoras e embaixadores. Não teria tido, pelo que relata, oportunidade para informar ao então Presidente da República que era desfavorável ao plano. No entanto, em juízo, não se furtou a registrar sua impressão sobre o encontro que qualificou como: superdimensionado e evitável. Confira-se o contexto em que foi manifestada essa avaliação:

“O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Também como Ministro Chefe da Casa Civil, no dia 18 de julho, quando houve essa reunião do ex-Presidente Jair Bolsonaro e os embaixadores estrangeiros, o Senhor foi incumbido de tratar algum tema dessa reunião sobre sistema de votação?

O SENHOR CIRO NOGUEIRA LIMA FILHO (testemunha): Não.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): O Senhor só participou da reunião?

O SENHOR CIRO NOGUEIRA LIMA FILHO (testemunha): Exatamente. Assisti e não me manifestei, apenas assisti à reunião.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Houve algum apoio da Casa Civil direto ao presidente da República, como sugestão de conteúdo para discurso, ou preparação de slides?

O SENHOR CIRO NOGUEIRA LIMA FILHO (testemunha): Não.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Os requeridos, quando requereram a oitiva de Vossa Excelência como testemunha, justificaram, diante de suas relevantes funções “desempenhadas”, que teriam aspectos da dinâmica do evento, que seriam do seu particular conhecimento. E o Senhor consegue, nesse sentido, se lembrar de algum fato específico, relevante para a controvérsia, que possa ter escapado ao registro desse evento em vídeo?

O SENHOR CIRO NOGUEIRA LIMA FILHO (testemunha): Olha, Excelência, acho que foi uma reunião, acho que bem tranquila; acho que ela foi superdimensionada. Foi uma reunião em que as pessoas que foram convidadas não eram eleitoras em nosso país, então não teriam influência na questão eleitoral no Brasil. É uma reunião que foram convidados, pelo que eu sei, foram convidados até os presidentes de TSE, Supremo, STJ, TST, TCU. Então, eu acho que houve um... foi um pouco superdimensionados os seus efeitos.

[...]

O DOUTOR WALBER DE MOURA AGRA (advogado): Vossa Excelência falou que não houve nenhum tipo de abuso no discurso do excelentíssimo ex-presidente República. Mas, nos autos, nós vamos ver, por exemplo, em 8 minutos ponto 12, que ele falou que não é possível acompanhar a apuração de votos; nós vamos ver, em 4 minutos e 53 segundos, que ele afirma, peremptoriamente, que um hacker teve acesso a milhares de códigos fontes; nós vamos ver, em 15 minutos e 07 e, depois, em 16 minutos e 59, que o Ministro Barroso tinha sido indicado para conceder favores ao presidente da República; em 12 minutos ponto 36, nós vamos ver que ele também fala que o Ministro Edson Fachin estaria responsável por favorecer a candidatura do Presidente Lula; em 10 minutos ponto 5, em 11 minutos ponto 42, ele fala que as eleições de 2014 tinham sido fraudadas. Será que isto dá ensejo a falar que foi uma reunião normal, como Vossa Excelência pontuou anteriormente?

O SENHOR CIRO NOGUEIRA LIMA FILHO (testemunha): Eu não disse que foi uma reunião normal, mas eu não vejo nisso nenhum tipo de agressão ao sistema eleitoral, não. Acho que foi uma reunião, do meu ponto de vista, que poderia ter sido evitada – eu concordo –, eu não era favorável a ela. Mas não vi nela nenhum tipo de agressão, apenas uma preocupação de nós termos um processo eleitoral em que seja respeitada a vontade do cidadão ao conferir o seu voto.

[...]

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): [...] Senador, o Senhor acabou de dizer que não era favorável a essa reunião. O Senhor chegou a aconselhar o presidente a não realizá-la?

O SENHOR CIRO NOGUEIRA LIMA FILHO (testemunha): Não, não aconselhei. Eu não fui consultado sobre ela.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): E também sobre o seu posicionamento, diz que foi superdimensionada essa reunião. O Senhor chegou a aconselhar a não transmissão dessa reunião?

O SENHOR CIRO NOGUEIRA LIMA FILHO (testemunha): Não, também não fui consultado, Excelência.

Os documentos juntados aos autos não infirmam os relatos das testemunhas. Como se verá, a maior parte da documentação oficial refere-se à atuação do cerimonial da presidência na organização material do evento. Não foram localizados os slides ou qualquer comunicação que indicasse o envolvimento das unidades destacadas pela defesa – Casa Civil, Ministério das Relações Exteriores e Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos – ou outras na preparação do conteúdo que seria exibido pelo Presidente da República para embaixadoras e embaixadores.

Convergem, ainda, sobre os pontos: a) a contestação, que consigna que o primeiro investigado “promoveu exposição simples e espontânea, com os elementos disponíveis, a ponto de injustamente ridicularizado por simples erro de grafia” (ID 157977291, p. 18), e b) o depoimento de Carlos França, que afirma que a chancelaria não realizou revisão do material a ser divulgado em inglês (ID 158766494, p. 31).

Desse modo, a prova produzida aponta para a conclusão de que Jair Messias Bolsonaro foi integral e pessoalmente responsável pela concepção intelectual do evento objeto desta ação. Isso abrange desde a ideia de que a temática se inseria na competência da Presidência da República para conduzir “relações exteriores” (percepção distinta da que externou o chanceler ao conceituar a matéria como “tema interno”), até a definição do conteúdo dos slides e a tônica da exposição (que parecem ter sido lamentadas pelo ex-Ministro Chefe da Casa Civil).

Quanto à estrutura utilizada, o Chanceler Carlos França, na posição de espectador privilegiado, destacou a magnitude do evento e o fato de ter sido transmitido pela televisão, o que deu “solenidade” à reunião. Em sua percepção, tudo se conduziu de forma republicana:

“O DOUTOR MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (Juiz Auxiliar da Presidência do TSE): Tá. Ministro... é... é... a parte ré, né, no caso os representados, quando requereram a oitiva de Vossa Excelência, como testemunha... é... é..., justificou que, diante das suas relevantes funções desempenhadas, haveria um... haveria as... aspectos da dinâmica do evento que seriam do seu particular conhecimento, né? É... Vossa Excelência consegue lembrar de algum fato específico, relevante à controvérsia, que possa ter escapado ao registro desse... dessa... desse vídeo?

O SENHOR EMBAIXADOR CARLOS ALBERTO FRANÇA (Ministro das Relações Exteriores): Eu... eu... eu... eu enxergo aquele evento no Palácio da Alvorada, Excelência, um... muito... com... como um evento que nós fizemos, enfim, no Itamarati ou no Palácio do Planalto, um evento público, um evento que, de novo, foram convidadas também altas autoridades da República. Ele era... o evento, eu acho que foi televisionado pela... pela TV estatal – como são também os eventos do Palácio do Planalto. Eu me lembro de TVs ali, não me lembro de estar a EBC, possivelmente estava a EBC. Então, é um evento que tinha esse... esse caráter... é... é... no sentido... com os requisitos da publicidade, né? Ah... não havia, penso uma dinâmica que fosse estranha a um... a um evento em que um presidente, um chefe de Estado, se dirige ao corpo diplomático. Ele tinha esse foco... ah... internacional. Mas eu me recordo também que havia muitos outros ministros de Estado lá. Eu me recordo do Ministro da Defesa, me recordo do Ministro da Transparência. Às vezes a memória nos trai, né, mas eu acho que havia outros também ali. É... e eu acho que esse era o caráter público que se deu essa solenidade. Não era uma reunião fechada, não era uma reunião onde se discutiu, vamos dizer assim, é... trocas de... de opiniões ou de conceitos de valor sobre... sobre o sistema eleitoral brasileiro. E eu... e eu o vi da maneira mais republicana possível.”

Prosseguindo, passo a analisar a vasta documentação, fornecida pela Casa Civil em atendimento à requisição, que permite ter uma visão da magnitude do evento e da celeridade com que foram adotadas as providências para a realização do encontro do dia 18/07/2022. A documentação compilada é oriunda da Casa Civil, do Gabinete de Segurança Institucional, do Ministério das Relações Exteriores e do Gabinete da Presidência da República (IDs 158839073 a 158851459). Destacam-se:

a) Ofício-Circular nº 83/2022/GPPR-CERIMONIAL/GPPR, por meio do qual as unidades envolvidas foram comunicadas de que o Presidente da República receberia os Chefes de Missão Diplomática no Palácio da Alvorada: o documento foi expedido em 13/07/2022, uma quarta-feira, deixando apenas mais dois dias úteis para a preparação do evento, que ocorreria na segunda-feira seguinte (ID 158839080);

b) nota fiscal relativa ao “planejamento e apoio logístico ao evento”, envolvendo sonorização, cenografia, gerador, painel de LED, coordenador de eventos e operador de equipamento audiovisual, no valor total de R$ 12.214,12 (ID 158839076);

c) informação sobre a contratação de dois intérpretes pelo Ministério das Relações Exteriores (ID 158839082);

d) ofícios diversos dirigidos a subunidades, para adoção de providências relacionadas à prestação de serviços e disponibilização de equipamentos próprios à estrutura do evento (IDs 158839073 a 158839093);

e) 98 convites expedidos entre 13 e 17/07/2022 a embaixadoras e embaixadores convidados para o evento (juntados, na sequência, das certidões de IDs 158839098, 158839187, 158839225 e 158839236);

f) 21 convites dirigidos a Presidentes do STF, dos Tribunais Superiores (entre os quais o Min. Edson Fachin), das Casas Legislativas Federais e do Conselho Federal da OAB; a Ministros de Estado, ao PGR e ao AGU (juntados na sequência da certidão ID 158839191);

g) 84 e-mails oriundos das Embaixadas, em resposta ao convite (em sua maioria, confirmando a presença) ou realizando outras comunicações (juntados na sequência das certidões de ID 158839283 e 158839414);

g) lista que aparenta conter as presenças estrangeiras confirmadas, somando 92 embaixadoras e embaixadores e encarregadas e encarregados de negócios (ID 158851445);

h) “lista para a segurança”, contendo um total de 141 pessoas, sendo 21 autoridades brasileiras, 110 representantes diplomáticos e oito pessoas referidas como “apoio livre”: essa lista aparenta ser uma versão completa com todas as possíveis presenças, e não apenas as confirmadas (ID 158851449).

A prova documental acima referida demonstra, em síntese, que a estrutura e os serviços do Poder Executivo da União foram rapidamente mobilizados para viabilizar a reunião. Entre os dias 13 e 17/07/2022 (dos quais apenas três eram úteis), o Cerimonial da Presidência disparou quase uma centena de convites dirigidos a Chefes de Missões Diplomáticas e outros 21 a demais autoridades brasileiras. Outras unidades se encarregaram de fornecer intérpretes de inglês e de libras, apoio logístico, lanche, equipamento de som e imagem, além do indispensável aparato de segurança envolvido.

Evidentemente, a nota fiscal relativa ao planejamento e à logística, no valor de R$ 12.214,12, não é capaz de refletir a inteireza dos recursos públicos empregados, sob a forma de bens e serviços, na realização do encontro.

Além disso, a verdadeira magnitude do evento nem mesmo se estima em dinheiro. Seu maior destaque está na “solenidade” que chamou a atenção até mesmo do Ministro das Relações Exteriores, conforme consta de seu depoimento. Afinal, o Chefe de Estado receberia mais de 100 convidados, entre Ministros de Estado e Chefes de Missões Diplomáticas, em sua residência oficial.

Observação a ser feita é que o convite escrito não indicava o tema da reunião. O Chefe de Cerimonial apenas consignou: “fui incumbido de convidar Vossa Excelência para encontro do senhor Presidente da República com Chefes de Missão Diplomática, a realizar-se às 16h do dia 18 de julho de 2022, segunda-feira, no Palácio da Alvorada”.

Fato é que, ao chegar ao Palácio da Alvorada, cientes ou não do que seria tratado, os representantes diplomáticos assistiram, por pouco mais de uma hora, a uma apresentação do então Presidente da República, em que se mesclaram: elogios do mandatário a si próprio e a seu governo; relatos a respeito de um inquérito sobre um ataque hacker às redes do TSE; críticas à atuação de servidores públicos; ilações a respeito de Ministros; supostas conspirações para que seu principal adversário viesse a ser eleito; exaltação às Forças Armadas; defesa de proposta de impressão do voto, recusada pela Câmara dos Deputados quase um ano antes; e alerta quanto à inocuidade das missões de observação internacional.

O improvável fio condutor de todos esses tópicos foi a afirmação de que houve manipulação de votos nas Eleições 2018 e que era iminente o risco, nas Eleições 2022, que a fraude se repetisse, quiçá levando a que o candidato verdadeiramente mais votado não fosse proclamado eleito.

Finda a exposição e, conforme relato das testemunhas Carlos França e Ciro Nogueira, passados aproximadamente 20 minutos de cumprimentos e conversas ligeiras, o solene evento foi encerrado, sem perguntas do público ou reuniões reservadas.

Ainda segundo o então chanceler brasileiro, nenhum material foi remetido aos presentes e nenhuma embaixada contactou o Ministério das Relações Exteriores para tratativas sobre o assunto. A prova documental requisitada à Casa Civil tampouco contempla informação a respeito.

Desenhados os bastidores da preparação do encontro de 18/07/2022, chega o momento de escrutinar o teor da apresentação.

 

2.1.2 Análise contextualizada (pragmática) do discurso proferido por Jair Messias Bolsonaro do Palácio da Alvorada em 18/07/2022

 

Conforme já assinalado, é incontroverso que Jair Messias Bolsonaro, na reunião de 18/07/2022, concentrou sua fala em questionamentos à segurança do sistema eletrônico de votação em comentários sobre a atuação de Ministros do TSE, externando preocupação quanto à transparência e à confiabilidade das eleições. Divergem as partes quanto a ter-se tratado de dúvidas legítimas (manifestadas no âmbito da liberdade de expressão), ou de desordem informacional (assentada em afirmações factualmente falsas a respeito das urnas).

Os investigados, em sua contestação, alegam que a iniciativa consubstanciou “um convite ao diálogo público continuado para o aprimoramento permanente e progressivo do sistema eleitoral e das instituições republicanas”, e que “uma leitura imparcial e serena” do discurso revelaria “falas permeadas de conteúdos técnicos, que buscam debater um tema importante (transparência do processo eleitoral)” (ID 157977291).

O discurso de Jair Messias Bolsonaro em 18/07/2022, porém, foi uma reação à Sessão Informativa para Embaixadas, realizado pelo TSE. As circunstâncias denotam que o primeiro investigado se sentiu pessoalmente confrontado pelo alerta do Min. Edson Fachin contra o “vírus da desinformação”. Essa reação escalou em tensão e hostilidade, sendo marcada por uma antagonização com Ministros do TSE e pelo surpreendente esforço de desencorajar a vinda de missões de observação eleitoral.

Na apresentação, o primeiro investigado amalgamou diversos elementos para descrever a atuação supostamente ineficiente e suspeita da governança eleitoral brasileira: alegada manipulação de votos nas Eleições 2018; insinuações sobre investigação relativa a um ataque hacker à rede do TSE ocorrido em 2018; rejeição da PEC nº 135/2019, que propunha o voto impresso, em 2021; recusa a sugestões das Forças Armadas na Comissão de Transparência do TSE em 2022; alegada utilização das missões internacionais para conferir “ares de legitimidade” a resultados produzidos por um sistema que o orador dizia ser inauditável.

A cada alerta, repetia seu desejo de que as Eleições 2022 fossem “limpas, transparentes, onde o eleito realmente reflita a vontade da sua população”. Um desejo que, no prognóstico do primeiro investigado, era indicado como pouco provável.

Para veicular sua mensagem, o primeiro investigado fez uso de estratégias comunicacionais que podem ser facilmente percebidas, uma vez que, a essa altura do voto, já foram apresentados os conceitos de normatividade de coordenação (indica em quem confiar) e de normatividade epistêmica (indica em que confiar).

No âmbito da normatividade de coordenação, diversas partes do discurso revelam que o então Presidente da República investiu energia em convencer que seu relato merecia mais confiança do que informações oficiais do TSE.

De um lado, o primeiro investigado se apresenta como líder popular que, correndo até mesmo riscos pessoais, vinha conduzindo uma jornada heroica pela defesa da democracia brasileira. Nessa performance, se mostra disposto, de forma altruísta, a levar ao conhecimento da comunidade internacional os enormes riscos que rondariam as Eleições 2022.

Descreve-se, assim, como conhecedor “do sistema” e “da política brasileira”, dizendo que percorreu o país, em campanha, desde a reeleição de Dilma Rousseff, em 2014, até juntar “multidões”. Evoca o atentado que sofreu em 2018, imputando-o a uma genérica “esquerda”. Afirma que há “interesses outros” ainda “presentes”, relativos ao episódio que colocou sua vida em risco. Invoca, por diversas vezes, valores fundamentais da democracia – em especial a liberdade, a transparência da eleição e os resultados autênticos –, como motivação na luta contra forças que, assegura, teriam agido e poderiam voltar a agir para manipular votos.

De outro lado, o TSE é desenhado pelo primeiro investigado como instituição opaca, cooptada por magistrados e servidores com grande poder de interferência sobre o cômputo de votos e disposição para exercer esse poder em benefício do principal adversário do candidato à reeleição presidencial.

O primeiro investigado, então, assevera que o tribunal teria sido pouco colaborativo com a Polícia Federal para apurar uma invasão hacker divulgada na imprensa após o primeiro turno das Eleições 2018. Afirma que o ataque não foi detectado pelo TSE, tecendo ilações sobre conivência e até participação de servidores. Dispara comentários insidiosos a respeito dos Ministros do TSE, insinuando que manteriam o sistema inauditável por conta de uma alegada preferência por outro candidato.

Mais um significativo componente retórico explorado no âmbito da normatividade de coordenação é o uso da primeira pessoa do plural para se referir às Forças Armadas.

No ponto possivelmente de maior tensionamento do discurso, o então Presidente, em leitura distorcida de sua competência privativa para “exercer o comando supremo das Forças Armadas” (art. 84, XIII, da Constituição), enxerga-se como militar em exercício, à frente das tropas. As passagens deixam entrever um preocupante descaso em relação a uma conquista democrática, de incomensurável importância simbólica no pós-ditadura, que é a sujeição do poderio militar brasileiro a uma máxima autoridade civil democraticamente eleita.

O discurso, em diversos momentos, insinua uma perturbadora interpretação das ideias de “autoridade suprema do Presidente da República”, “defesa da Pátria” e “garantia da lei e da ordem” (art. 142 da Constituição). Na visão do primeiro investigado, o convite feito às Forças Armadas, para acompanhar os testes públicos de segurança no TSE, significava a própria sujeição do tribunal às demandas dos militares.

Nenhum argumento técnico, nenhuma superação de fase procedimental, nenhuma decisão negocial do TSE, nada na visão do hoje ex-Presidente – poderia ser apresentado como objeção ao acolhimento daquelas demandas. Na mensagem divulgada, a recusa em concordar com o que diziam os militares sobre o sistema eletrônico de votação equivalia, por si, à prova da “farsa” eleitoral.

O primeiro investigado, por mais de uma vez, enfatizou que os militares seriam técnicos extremamente competentes, em contraste com os servidores do TSE. As Forças Armadas não seriam apenas mais confiáveis no tema da segurança das eleições, como também vocacionadas a combater os inimigos (imaginários) que tramariam fraudes. E, se tanto fosse necessário, agiriam lideradas por seu “comandante supremo”, pelo bem da nação, “dentro das quatro linhas da Constituição” – ou, quem sabe, por extrema necessidade, fora delas.

Essas construções cumprem uma função pragmática: reforçar a credibilidade das acusações que fará a respeito do severo comprometimento da segurança do sistema eletrônico de votação.

Jair Messias Bolsonaro, para comunicar sua mensagem, também buscou reforço na normatividade epistêmica: afirmou que um inquérito em curso na Polícia Federal conteria evidências de manipulação de votos no pleito de 2018. Trata-se do IPL nº 1361/2018, atualmente Inquérito nº 5007377-27, em trâmite perante a 10ª Vara Criminal Federal de São Paulo (SP), que se encontra juntado aos autos e, por solicitação da própria autoridade judiciária que o preside, gravado com sigilo (certidão juntada no ID 158850900, à qual seguem os documentos remetidos pela Justiça Federal).

O documento escolhido é estratégico: foi produzido pela Polícia Federal – que seria um “terceiro desinteressado” na disputa encetada pelo então Presidente da República contra o TSE; uma espécie de “fiel da balança” que, por meio do documento, atestaria a competência do orador no tema “sistema eletrônico de votação”. Assim, ao anunciar que tem esse documento em seu poder, o ex-Presidente passa a performar para a audiência a “revelação” de um fato grave, de um risco iminente, a demandar esforços para impedir o comprometimento das Eleições 2022.

A “revelação”, contudo, não era inédita. O inquérito já havia sido referido em live realizada pelo primeiro investigado e pelo Deputado Filipe Barros em 04/08/2021, quando haviam anunciado que apresentariam “provas” da suposta fraude nas Eleições 2018. No dia seguinte a essa live, 05/08/2021, o TSE divulgou nota à imprensa, assegurando que “[o] acesso indevido, objeto de investigação, não representou qualquer risco à integridade das eleições de 2018” (https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2021/Agosto/nota-a-imprensa).

Irredutível, o primeiro investigado ainda faria outra live, em 12/08/2021, chegando a informar que a manipulação teria feito desaparecer 12 milhões de votos seus naquele pleito. Na mesma data, o TSE esclareceu, no site “Fato ou Boato”, que a informação era falsa (https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2021/Agosto/fato-ou-boato-hacker-nao-desviou-votos-da-urna-eletronica-nas-eleicoes-presidenciais-de-2018).

As duas lives serão objeto de análise neste voto, quando forem tratados os fatos pretéritos evocados no discurso de 18/07/2022. Para o momento, importa observar que o primeiro investigado não mencionou os esclarecimentos prestados pelo TSE em 2021 na fala que dirigiu a embaixadoras e embaixadores em 2022, sequer para apontar razões pelas quais não poderiam merecer crédito.

Não é possível saber exatamente quais documentos integrantes do IPL nº 1361/2018 foram consultados pelo primeiro investigado. No entanto, sua fala deixa evidente que eram de seu conhecimento, ao menos: a) a Portaria de instauração; b) o pedido da então Presidenta do TSE, Ministra Rosa Weber, para que a Polícia Federal investigasse o fato; c) a Informação STI/TSE nº 32, firmada pelo, à época, Secretário de Tecnologia da Informação; d) os prints que o hacker teria enviado ao site TecMundo e que foram por este remetidos ao TSE; e e) informações sobre solicitações de logs.

Esses documentos foram direta ou indiretamente referidos pelo primeiro investigado, na apresentação que fez para os Chefes de Missão Diplomática no Brasil, de forma inteiramente distorcida. Afirmou, assim, que o TSE teria sido negligente e desidioso diante de uma vulnerabilidade de natureza gravíssima, apta a permitir que votos fossem adulterados no momento da totalização. Disse, mais, que haveria “interesses” de Ministros do TSE em manipular o resultado do pleito.

Essa narrativa não tem qualquer respaldo documental. Para tanto demonstrar, saliento os seguintes aspectos extraídos do atual Inquérito nº 5007377-27 (antigo IPL nº 1361/2018), tomando o cuidado, aqui, de não expor elementos sensíveis da investigação em curso perante o juízo da 10º Vara Criminal Federal de São Paulo (SP), que segue em sigilo:

a) a instauração do IPL nº 1361/2018, por Portaria datada de 08/11/2018, assinala, de forma inconteste, que a apuração foi iniciada após o próprio TSE encaminhar “a notícia de suposta invasão a sistemas e bancos de dados do TSE, com acesso e divulgação de dados sigilosos daquele Tribunal”, aos moldes de ataques dirigidos contra instituições públicas e privadas, não havendo qualquer referência a suspeita de fraude eleitoral (ID 158852105, p. 11);

b) a requisição da Ministra Rosa Weber, então Presidente do TSE, encaminhada pelo Ofício n° 5825/GAB-SPR, ocorreu em 06/11/2018, mesma data em que o repórter do site TecMundo informou ao TSE que teria recebido “documentos e imagens de uma suposta invasão ao sistema GEDAI e outras informações sigilosas referentes aos processos do TSE”, demonstrando a atuação diligente (ID 158852105, pp. 13 e 14);

c) a Informação STI/TSE nº 32 não menciona em ponto algum a possibilidade de que tenha havido adulteração de votos na urna eletrônica ou interferência no sistema de totalização (ID 158852105, pp. 109-110);

d) os prints remetidos pelo TecMundo ao TSE não contêm nenhuma demonstração de interferência em votos das Eleições 2018 ou em qualquer outra (ID 158852105, pp. 111-124);

e) o print de um e-mail dirigido ao juiz eleitoral da 34ª Zona Eleitoral do Rio de Janeiro menciona “senhas personalizadas para oficialização de usuários e sistemas, de modo que esses se tornem aptos a receber dados oficiais”, para providências de praxe nos Sistemas de Candidatura e de Horário Eleitoral na eleição suplementar do Município de Aperibé/RJ (mandato 2017-2020), em nenhum momento indicando que o magistrado pudesse, com as senhas, editar o programa do Sistema de Totalização – o que, evidentemente, não está entre as funções de magistradas e magistrados eleitorais (ID 158852105, p. 122);

f) o TSE forneceu de imediato à Polícia Federal elementos para a apuração do ocorrido, inclusive relatórios do rastreamento pelo qual identificou em detalhes o caminho usado para um ataque hacker à rede do tribunal, ocorrido em abril daquele ano e debelado em poucos dias, sendo que, do material encaminhado para análise do Serviço de Repressão a Crimes Cibernéticos, derivou uma série de diligências para apuração da materialidade do delito e identificação da autoria (ID 158852105, pp. 26-27 e 32);

g) O TSE instaurou sindicância interna para apuração administrativa dos fatos, em especial a origem do acesso indevido à rede do tribunal, datando de 14/11/2018 a primeira reunião, quando se deliberou, entre outros pontos, sobre a formalização de comunicação à Polícia Federal para viabilizar “troca de informações e auxílio mútuo” nas investigações (ID 158852105, pp. 133-135).

Simples perceber que, nos documentos reiteradamente citados pelo primeiro investigado, não há nenhum indicativo de manipulação de votos.

Não há, ainda, qualquer menção a envio de senha a um magistrado que permitisse editar linhas de programação de sistemas desenvolvidos no âmbito no TSE e, com isso, preparar a urna ou o sistema de totalização para “transferir votos” de um candidato para outro.

Não há, enfim, nenhuma menção à ocorrência ou à suspeita de fraude nas eleições presidenciais de 2018.

Os investigados, durante a instrução probatória, solicitaram que fossem requisitadas cópias integrais do atual Inquérito nº 507377-27, o que foi prontamente atendido. O exame desse material mostra que a investigação em curso teve êxito em produzir diversos elementos relevantes, o que ocorreu antes da reunião realizada em julho de 2022.

Logo, caso houvesse genuína preocupação com o teor informativo de seu discurso, caberia ao primeiro investigado se inteirar, por vias regulares, do estágio da investigação, levando-o em conta, juntamente com os esclarecimentos já prestados pelo TSE. Como se verá, a conduta do primeiro investigado foi o avesso dessa expectativa, passando ao largo do papel institucional do Presidente da República.

O fato, jamais levado a conhecimento das embaixadoras e dos embaixadores, é que a Polícia Federal, com base no detalhado relatório dos ataques detectados pela STI/TSE em abril de 2022 e no material preservado que foi encaminhado prontamente para a investigação, empreendeu uma bem-sucedida apuração do incidente, estando documentados a forma como o ataque ocorreu, sua motivação (financeira), a autoria do ataque, os partícipes e os beneficiários.

Foi possível, ainda, traçar a correlação do hackeamento da rede do TSE, em 2018, com outros que tiveram por alvo algumas instituições e bancos de dados públicos federais e estaduais em período próximo. Os peritos da Polícia Federal cruzaram os dados repassados pelo TSE com os de outras investigações e concluíram que o ataque tinha relação com atividades ilícitas deflagradas em 2017.

Essas atividades não tinham qualquer propósito político e consistiam em invadir sistemas de instituições públicas com finalidade de replicar os bancos de dados localizados para comercializá-los. As diligências cumpridas à época acabaram revelando indícios de outras condutas criminosas, como formação de quadrilha e lavagem de dinheiro, e, até mesmo, atingindo o mais espúrio dos níveis, apreensão de farto material de pornografia infantil em computadores de um comparsa do hacker que viria a atacar a rede do TSE. A perícia realizada na ocasião constatou que, entre 2015 e 2017, período quase integralmente anterior à sua maioridade, o autor dos ataques movimentou em sua conta bancária R$ 716.921,82.

O Tribunal Superior Eleitoral, portanto, foi selecionado pelo hacker com fins inteiramente desconectados do propósito de interferir nas eleições – finalidade que, ademais, nunca esteve a seu alcance. Essa informação não consiste em uma guinada da investigação: desde o início, a linha apresentada pelo TSE e apurada pela Polícia Federal estava centrada na invasão da rede do tribunal, sem nenhuma possibilidade de afetar resultados eleitorais.

Destaco, respeitado o sigilo de elementos essenciais da investigação ainda em curso e o nome de instituições alvo dos ataques, que:

a) em 21/05/2020, peritos do Serviço de Repressão a Crimes Cibernéticos da Polícia Federal apresentaram “Relatório de análise de alta tecnologia”, no qual já estava identificado o suspeito de ataque à rede do TSE, o mesmo que havia invadido sistemas informatizados de outro órgão público de relevo entre final de 2018 e o início de 2019 (ID 158852107, pp. 28 a 34);

b) o hacker, ainda menor de idade em 2017, já tinha invadido o banco de dados sigiloso de instituição pública de grande reputação, detentora de dados sensíveis, tendo por objetivo “a venda de serviços de pesquisa pessoal”, fato que foi objeto de ação penal julgada parcialmente procedente e que levou à condenação criminal do cúmplice do hacker (ID 158852108, pp. 1-5);

c) em 03/03/2022, o relatório parcial produzido no inquérito correlaciona o fato a diversas invasões a sistemas e bancos de dados geridos por outros órgãos públicos, sempre com enfoque na comercialização de informações sigilosas desses órgãos (ID 158852108, p. 63);

d) os documentos que aportaram da investigação relativa ao ataque de 2017 abarcam perícia que atesta que o “fruto financeiro da [...] conduta ilícita” do hacker, consistente em venda de dados sigilosos de sistemas informatizados, movimentou R$716.921,82 nos anos de 2015 a 2017, e envolveu transferências a seus genitores, apontados como beneficiários do esquema criminoso, mas absolvidos por falta de provas da ciência da atividade criminosa (ID 158852112, pp. 108-109);

e) extenso laudo pericial examina em minúcias como foi executado o ataque à rede do TSE, discorrendo sobre dados e máquinas possivelmente afetados, fornecendo respostas técnicas aos quesitos formulados, não versando, em ponto algum, sobre “manipulação de votos” ou outras fraudes nas Eleições 2018 (ID 158852114, conclusão às pp.114-120).

A investigação já apresentou resultados substanciais e ainda prossegue. Prossegue, repita-se, em sigilo.

O comportamento recalcitrante do então Presidente da República em relação ao tema é surpreendente. Ele havia, junto a Filipe Barros, trazido a público, em 04/08/2021, a existência do IPL nº 1361/2018, quando o disponibilizou nas suas redes sociais em meio a grande alarde sobre fraudes imaginárias. As acusações foram prontamente desmentidas e a investigação caminhou com atenção a seu real objeto. Mas quase um ano depois, em 18/07/2022, o primeiro investigado seguiu asseverando, falsamente, que o inquérito tratava de manipulação de votos nas Eleições 2018 e que as investigações não avançaram por culpa do TSE.

Ao abordar o inquérito na reunião com Chefes de Missões Diplomáticas, o primeiro investigado não apenas fabricou uma informação com absoluto descompromisso com o teor do documento. Também desafiou a determinação de autoridades policiais e judiciais. Isso porque, àquela altura dos acontecimentos, não havia qualquer margem para que o Presidente da República ignorasse o prejuízo ocasionado pela ampla publicização dos documentos oriundos do inquérito e de informações distorcidas a seu respeito.

Com efeito, já em 05/08/2021, dia seguinte à live acima mencionada, o Deputado Paulo Eduardo Martins, integrante da Comissão Especial da PEC nº 135/2019, remeteu ofício ao Diretor-Geral da Polícia Federal, solicitando “informações sobre grau e prazo de sigilo dos autos do Inquérito IPC nº 1361/2018 SR-PF-DF” (ID 158852108, p. 54). A resposta remetida foi taxativa no sentido de que o sigilo seria mantido até a deliberação da autoridade judicial competente, à vista do relatório final (ID 158852108, pp. 60-61):

“Senhor Deputado Federal,

A par de cumprimentá-la cordialmente, sirvo-me do presente para, em atenção ao quanto solicitado por meio do ofício n° 049/21-Pres, informar a Vossa Excelência que o IP 1361/2018-SR/PF/DF encontra-se com sigilo decretado por esta Autoridade Policial para fins de resguardar a linha de investigação atualmente perseguida, sendo certo que eventual publicidade poderá acarretar prejuízo às apurações.

Acrescento que o sigilo decretado perdurará até o término das investigações, oportunidade em que o feito – acompanhado do competente relatório final - será remetido ao Juízo da 12ª Vara Federal, o qual, após a manifestação do Ministério Público Federal (órgão titular da opinio delicti), adotará as providências no interesse da Justiça.”

(Sem destaques no original.)

Não é só.

Em 29/11/2021, foi instaurado, no STF, o Inquérito nº 4878/DF, cujo objeto é o vazamento de informações sigilosas na live de 04/08/2021. A apuração prévia resultou no indiciamento de Mauro Cesar Barbosa Cid pela prática do crime previsto no artigo 325, §2°, c/c 327, §2°, do Código Penal. O ajudante de ordens do primeiro investigado, na condição de funcionário público, “por determinação do Sr. Presidente da República, [...] promoveu a divulgação do conteúdo da investigação na rede mundial dos computadores, utilizando seu irmão para disponibilizar um link de acesso que foi publicado na conta pessoal de JAIR MESSIAS BOLSONARO”. A autoridade policial identificou “atuação direta, voluntária e consciente” do primeiro investigado e do Deputado Filipe Barros na prática do mesmo crime, mas deixou de indiciá-los em razão de possuírem foro por prerrogativa de função (ID 158764868, pp. 290-294).

Assim, em julho de 2022, era inequívoca a reserva que recaía sobre o conteúdo do IPL nº 1361/2018. Afinal, o Chefe Militar da Ajudância de Ordem da Presidência da República, Mauro Cid, havia sido indiciado pelo cumprimento da ordem possivelmente ilegal que o então Presidente da República lhe havia dado.

Por isso, sob a ótica da boa-fé objetiva, é surpreendente que o primeiro réu não tenha hesitado em voltar a falar daquela investigação, dessa vez para a comunidade internacional.

É inexplicável, considerando-se o papel institucional de Chefe de Estado, a oferta, a mais de uma centena de embaixadoras e embaixadores, de cópias de uma investigação em curso a respeito de um ataque cibernético às redes do TSE.

É, por fim, absolutamente estranho ao funcionamento harmônico dos Poderes da República que tenha feito isso justamente para instigar a desconfiança no órgão de governança eleitoral do país – na hipótese, vítima, como tantas outras instituições, de atividades de hackers.

Destacados esses aspectos, apresento a transcrição integral do discurso que compõe o objeto desta ação, em tabela que permitirá ressaltar aspectos da prática discursiva do primeiro investigado, aplicando as premissas de julgamento já apresentadas. Essa medida se destina a propiciar a decodificação da mensagem transmitida por Jair Messias Bolsonaro em 18/07/2022 a embaixadoras e embaixadores que estiveram no Palácio da Alvorada e ao público que acompanhou a transmissão do evento.

Saliento que o texto transcrito foi coletado do link indicado na inicial (https://www.poder360.com.br/eleicoes/leia-a-integra-do-que-disse-bolsonaro-aembaixadores/ >), e revisado com base no vídeo juntado no ID 157957944. Mencione-se que alguns poucos trechos do vídeo estão corrompidos, mas sem prejuízo à prova, tendo em vista que a transcrição constante do link referido não foi objeto de qualquer oposição dos investigados.

Eis o teor da fala, acompanhada da análise do discurso:

 

Transcrição: discurso de Jair Messias Bolsonaro em 18/07/2022

Análise contextualizada do discurso (pragmática)

Bolsonaro: – O Brasil é um país fantástico. 8 milhões e meio de km², riquíssimo em biodiversidade, minerais, terras agricultáveis, áreas para turismo, água potável, uma coisa enorme chamada Amazônia. Ou seja, o Brasil, pela sua extensão territorial, pelas suas riquezas, está integrado no mundo todo. O Brasil faz negócios com praticamente o mundo todo, tem adotado uma posição de equilíbrio em conflitos, buscamos a paz, trabalhamos por isso, preservamos a nossa democracia. Até o momento, uma só palavra minha houve fora do que eu chamo de quatro linhas da nossa Constituição. Nós respeitamos as leis.

A fala se inicia com uma exaltação às riquezas naturais e às relações internacionais do país. Jair Messias Bolsonaro se utiliza do plural para indicar, em nome da nação, o objetivo de buscar a paz e de preservar a democracia.

Segue-se um alerta: o mandatário diz que, “até o momento”, tem se manifestado dentro das “quatro linhas da nossa Constituição”.

O uso da expressão “quatro linhas da Constituição” pelo ex-Presidente durante o seu mandato foi notório. As “quatro linhas” não eram explicitadas. Mas eram associadas às suas próprias ações. Também era sugerido que quem estivesse “fora” dessas quatro linhas seria por ele trazido “para dentro”.

A menção não é casual, pois toda a fala, como se verá, é guiada para apontar desvios na atuação da Justiça Eleitoral.

Além disso, a condicionante temporal, “até o momento”, insinua que esse comportamento poderia ser alterado e em quais condições.

Me elegi Presidente da República gastando menos de US$ 1 milhão. Repito, gastando menos que US$ 1 milhão e dentro de um leito de hospital, após sofrer um atentado de uma facada de um elemento de esquerda e cujo inquérito não foi concluído, apesar dos enormes indícios de interesses outros se fazerem presentes. Mas essa é uma questão interna nossa, gostaria de ver esse inquérito concluído para chegar nos mandantes da tentativa de homicídio.

Jair Messias Bolsonaro traz à lembrança das embaixadoras e dos embaixadores que foi vitimado por uma facada durante a campanha nas Eleições 2018.

O mandatário identifica o agressor como “um elemento de esquerda”. Diz que o inquérito relativo ao crime não foi concluído e assegura que há “indícios de interesses outros”.

Com isso, adentra a polarização política Direita vs. Esquerda, fazendo sugestão conspiracionista de que o ataque envolveria “interesses outros”, de uma “esquerda” genérica (da qual o agressor é um “elemento”).

O trecho cumpre importante função pragmática ao disparar um estado de alerta sobre uma ameaça que ronda não apenas a democracia, mas a própria vida do então Presidente, envolvendo interesses ainda não revelados, mas, conforme dito, “presentes”.

Sou capitão do exército brasileiro, fiquei 15 anos no exército, fui vereador no Rio de Janeiro por dois anos e 28 anos dentro da Câmara dos Deputados. Conheço muito bem o nosso sistema. Conheço muito bem a política brasileira. Fiz uma campanha sem recurso, mas que começou quatro anos antes do pleito, depois da reeleição da senhora Dilma Rousseff. E, andando pelo Brasil sozinho, três anos sozinho andando pelo Brasil, juntando multidões, fiz a minha campanha.

Nessa passagem, o primeiro investigado expõe as credenciais pessoais que o legitimam a tratar do tema objeto do discurso. Apresenta-se como conhecedor do “sistema” e da “política brasileira”. Faz menção ao pleito de 2018, admitindo que, logo após a reeleição de Dilma Roussef (em 2014), iniciou sua campanha para as Eleições 2018 (“quatro anos antes do pleito”). Afirma que por três anos percorreu o país em campanha, “juntando multidões”.

O relato cumpre a função pragmática de respaldar a autoridade do emissor do discurso, tanto como líder do povo brasileiro quanto como alguém que “conhece” o sistema e a política. Em outras palavras, o ex-Presidente explora a normatividade de coordenação (indica em quem confiar a respeito do tema que será tratado).

Além disso, o trecho tem inequívoco teor autopromocional, que se destina a incutir na plateia (presencial e remota) que se trata de pessoa bem preparada para o cargo que, em breve, voltaria a disputar.

Tudo que vou falar aqui está documentado, nada da minha cabeça. O que eu mais quero para o meu Brasil é que a sua liberdade continue a valer também, obviamente, depois das eleições. O que eu mais quero, por ocasião das eleições, é a transparência. Porque nós queremos que o ganhador seja aquele que realmente seja votado.

Neste ponto, é introduzida a referência aos “documentos” que supostamente embasariam alegações sobre fraudes. É explorada, portanto, a normatividade epistêmica (indica em que confiar: nos documentos citados). Ou seja, o então Presidente assegura que há base factual para suas afirmações.

Essa referência a documentos é imediatamente conectada a desejos pessoais de que valores democráticos se concretizem: “o que eu mais quero” é que o Brasil siga livre após as eleições; “o que eu mais quero, por ocasião das eleições, é a transparência”; “nós queremos” que seja proclamado eleito quem efetivamente foi o mais votado.

A ênfase traz um sentido implícito, pois naturalmente provoca indagações: se esses valores são tão óbvios e inerentes para uma democracia, por que o Presidente tanto se preocupa com sua concretização? Quem se oporia a isso? Quem estaria atuando para cercear a liberdade, prejudicar a transparência e proclamar como eleito alguém que não foi o mais votado?

O arco de sentido será preenchido ao longo do discurso: o teor dos documentos, segundo o ex-Presidente, indica que os resultados das Eleições 2018 foram manipulados e que não é possível assegurar que em 2022 a Justiça Eleitoral proclamará eleito o verdadeiro vencedor.

Ao transformar a liberdade, a transparência e a autenticidade da eleição em “desejos” expressados pelo Chefe de Estado perante a comunidade internacional, Jair Messias Bolsonaro comunica a ideia de que algo ou alguém atua em sentido contrário. A técnica introjeta na audiência um pensamento intrusivo: está em curso uma ameaça à legitimidade das Eleições 2022 e o Presidente luta para combater essa ameaça.

Nós temos um sistema eleitoral que apenas 2 países no mundo usam. No passado, alguns países tentaram usar, começaram até a usar esse sistema e rapidamente foi abandonado. Repito, o que nós queremos são eleições limpas, transparentes, onde o eleito realmente reflita a vontade da sua população.

Um primeiro fator de descredibilidade do sistema eletrônico de votação é apontado: somente dois países no mundo o usariam. Isso explora a sensação de que o Brasil estaria atrasado ou desalinhado do resto do mundo no que diz respeito à tecnologia usada nas eleições.

Logo após, o então Presidente reitera o “desejo” por eleições legítimas, reforçando o pensamento intrusivo de que as eleições, como são feitas no Brasil, não são limpas e transparentes e podem ser manipuladas para alterar o resultado. Isso será feito diversas vezes ao longo do discurso.

Teria muita coisa a falar aqui, mas eu quero me basear exclusivamente em um inquérito da Polícia Federal que foi aberto após o 2º turno das eleições de 2018, onde um hacker falou que houve que tinha havido fraude por ocasião das eleições. Falou que ele tinha invadido, o grupo dele, o TSE, o Tribunal Superior Eleitoral. E, obviamente, quando se fala em manipulação de números após eleições, quem manipula é quem ganhou. Então seria eu o manipulador. E a Polícia Federal começou, então, a apurar. Se houve ou não manipulação e de quem seria a responsabilidade.

O então Presidente identifica o “documento” que embasará sua fala como sendo “um inquérito da Polícia Federal que foi aberto após o 2º turno das eleições de 2018, onde um hacker falou que houve que tinha havido fraude por ocasião das eleições”.

O primeiro investigado, portanto, afirma de forma explícita que estaria em posse de documento no qual um hacker afirma que houve fraude nas Eleições 2018. Usa a expressão “manipulação de números”, associada ao que teria sido admitido pelo hacker. Nenhum esclarecimento já feito pela Justiça Eleitoral a respeito é contraposto a essa suposta declaração do hacker.

O então Presidente enuncia, portanto, que em 2018 houve uma fraude eleitoral, tentada ou consumada, associada à manipulação de resultados. Afirma, também, que a Polícia Federal teria iniciado investigação para saber se a manipulação (supostamente declarada pelo hacker) ocorreu ou não e quem seria responsável por ela.

A audiência recebe, assim, informação do Chefe de Estado de que a Polícia Federal estaria investigando uma denúncia de fraude relativa à adulteração de votos no pleito de 2018. Essa informação é falsa.

Então, tudo começa nesse nessa denúncia que foi de conhecimento do Tribunal Superior Eleitoral, onde o hacker diz claramente que ele teve acesso a tudo dentro do TSE. Disse mais: obteve acesso aos milhares de códigos-fonte, que teve acesso à senha de um ministro do TSE, bem como de outras autoridades, várias senhas ele conseguiu. E obviamente a senhora Ministra do TSE na época, que também é do Supremo Tribunal Federal, Rosa Weber, fez com que o inquérito fosse instalado.

O primeiro investigado menciona que a origem do inquérito é a investigação solicitada pela Ministra Rosa Weber, Presidente do TSE à época das Eleições 2018, após um hacker revelar que teve acesso à rede do Tribunal. Fica nítido assim que se trata do IPL nº 1361/2018 (atualmente Inquérito nº 5007377-27, em trâmite perante a 10ª Vara Criminal Federal de São Paulo – SP).

Conforme já esclarecido, esse inquérito não versa sobre apuração de denúncia de fraude voltada para a adulteração de votos no pleito de 2018.

Assim, a informação passada pelo então Presidente da República em seu discurso segundos antes é duplamente falsa: não houve denúncia de fraude nos moldes afirmados e o documento de que ele dispõe não comprova investigação nesse sentido.

Segunda página. Então, temos aqui a instauração do inquérito. Segundo o TSE, os hackers ficaram por 8 meses dentro dos computadores do TSE. Com códigos-fontes, com senhas e muito à vontade dentro do Tribunal Superior Eleitoral. E diz, ao longo do inquérito, que eles poderiam alterar nomes de candidatos, tirar voto de um, transferir para outro. Ou seja, um sistema, segundo documentos do próprio Tribunal Superior Eleitoral e conclusão da Polícia Federal, um processo aberto a muitas maneiras de se alterar o processo de votação.

Jair Messias Bolsonaro afirma explicitamente que consta do inquérito que o grupo de hackers poderia manipular votos nas eleições (“tirar voto de um, transferir para outro”) e que haveria reconhecimento oficial, tanto do TSE quanto da Polícia Federal, de que o sistema eletrônico de votação é “um processo aberto a muitas maneiras de se alterar o processo de votação”.

As afirmações são inteiramente falsas, pois o inquérito nada diz sobre manipulação de votos. Tampouco o TSE e a Polícia Federal teriam afirmado que resultados podem ser adulterados.

O então Presidente afirma que tinha o inquérito em seu poder. E o documento não conferia qualquer respaldo para as afirmações feitas. A Portaria de instauração indica que o ilícito a ser apurado é a “suposta invasão a sistemas e bancos de dados do TSE, com acesso e divulgação de dados sigilosos daquele Tribunal”. A Informação STI/TSE nº 32 não menciona em momento algum a possibilidade de transferir votos de um candidato a outro.

O trecho do discurso, portanto, demonstra como o primeiro investigado explora a normatividade de coordenação para degradar a normatividade epistêmica: o emissor se vale de suas credenciais (experiência relatada e cargo ocupado) para tentar convencer o público a acreditar em um teor inventado, que atribui a documentos reais em seu poder.

Então, de imediato, a Polícia Federal pediu o tal de logs, né, que é a impressão digital do que acontece dentro do sistema informatizado. O que é natural também é o órgão invadido fornecer os logs independente de pedidos. A Polícia Federal pediu os logs, que podiam ser entregues no mesmo dia ou no dia seguinte, mas, sete meses depois, segundo documentos comigo, o TSE informou que os logs haviam sido apagados.

Nessa passagem, a imprecisão e a descontextualização são utilizadas com um objetivo bastante evidente: sugerir que o TSE, diante do ataque cibernético, assumiu postura desidiosa e negligente. Os pontos enfatizados desconsideram que, em abril de 2021, o TSE conduziu apuração interna que foi utilizada como subsídio essencial para a investigação da Polícia Federal.

Porém, independente de um esclarecimento de detalhes da interlocução entre o TSE e a PF, o que chama atenção é a obstinação do Chefe de Estado em estimular uma percepção negativa do corpo técnico do TSE, inclusive deixando de expor, propositalmente, explicações prestadas pelo órgão.

E, uma coisa muito importante, esse inquérito, aberto no mês seguinte do segundo turno (sic) eleições de 2018, até hoje não foi concluído ainda. Diz aqui o próprio TSE e conclusões da própria Polícia Federal: ‘O atacante invasor conseguiu copiar toda a base de dados’. Repito, conseguiu a senha de um ministro do Tribunal Superior Eleitoral. Também a senha do coordenador de Infraestrutura, Cristiano Andrade, que é a pessoa de confiança do chefe de TI chamado Giuseppe.

O trecho trata de forma distorcida o relatório produzido pela própria STI/TSE ao descrever que havia atuado para conter o ataque hacker em abril de 2018. A STI cotejou seus achados com as declarações do hacker que estamparam matéria do site TecMundo em 07/11/2018 (ID 158852105, pp. 37-47).

O relatório não diz que “o atacante invasor conseguiu copiar toda a base de dados”. O relato é minucioso e sua compreensão evidentemente exige conhecimento técnico especializado, o que é compatível com a natureza do documento e sua finalidade de subsidiar investigação por especialistas.

Quando de posse desse relatório, o então Presidente afirma que “toda a base de dados foi copiada” (e, pior, que isso permitiria “manipular números”), aciona a autoridade da qual artificialmente se investiu (uma vez que não possui conhecimentos especializados para interpretar as informações e, ainda, não se socorre dos esclarecimentos do TSE). A pretexto de tornar a informação técnica acessível, a distorce, produzindo informação falsa.

Além disso, o relatório, inicial, não mais refletia o estágio da investigação à época da reunião no Palácio da Alvorada. Conforme visto, em março de 2022, a Polícia Federal já havia apresentado o relatório parcial. Bem antes disso, já havia identificado o autor do ataque e sua motivação financeira, a de comercialização de dados.

Não obstante, o então Presidente, de forma leviana, deixou de apresentar fatos e persistiu em divulgar factoides.

Então, prosseguindo, o invasor teve acesso a toda a... no TSE toda a base de dados por 8 meses. É uma coisa que, com todo o respeito, eu sou o presidente da República do Brasil, eu fico envergonhado de falar isso aí. O que é comum, né, acontecer em alguns países do mundo, é o chefe do Executivo conspirar para conseguir uma reeleição. Estamos fazendo exatamente o contrário, porque temos pela frente três meses até as eleições.

O então Presidente qualifica a atuação dos técnicos do TSE como vergonhosa. Trata-se de mais um reforço da pretensão de se colocar como autoridade no tema, em detrimento do órgão especializado em organizar eleições, cujos esclarecimentos não são mencionados em nenhum momento.

Na sequência ao apontamento de falhas vergonhosas, o mandatário declara, perante os embaixadores, que “é comum [...] em alguns países do mundo [...] o chefe do Executivo conspirar para conseguir uma reeleição”. A ideia da manutenção de poder por meio de golpe é, portanto, verbalizada, e até tratada como “comum”.

Segue-se a tentativa de cancelar o sentido implicado por aquela frase, quando ele diz que “estamos fazendo exatamente o contrário”, ou seja, que ele não estaria planejando uma ação nos moldes citados. Isso, porém, é próprio à construção do pensamento intrusivo, uma vez que o enunciado “não pensem que eu conspiraria para me manter no poder” (aos moldes do viés “não pense em um elefante cor-de-rosa”) presta-se a plantar a ideia supostamente recusada.

Na verdade, a frase em si seria indizível por um Presidente eleito democraticamente e que de fato tivesse como premissa irrecusável a transmissão de poder por meio da eleição iminente.

Por fim, Jair Messias Bolsonaro, no contexto em que afirma que há evidências de uma fraude nas Eleições 2018, ressalta que ainda faltavam “três meses” até o pleito. Não verbaliza, diretamente, o que haveria de ser feito nesses três meses. Adiante, no discurso, ele tratará das sugestões das Forças Armadas, dizendo que há tempo hábil para implementá-las e que elas resolveriam quase todos os problemas.

Desse modo, ficará implícito que a condicionante para não se ter que recorrer a uma “conspiração” é o acatamento das sugestões das Forças Armadas.

Mais na frente, tudo que eu falo aqui ou é conclusão da PF ou é diretamente informações prestadas pelo TSE. Prossegue: O senhor secretário atesta, categoricamente, que o invasor obteve domínio sobre usuários e senhas, que permite a alteração de dados de partidos e candidatos. Até mesmo a sua exclusão, no contexto do processo eleitoral’. Ou seja, esse grupo de invasores puderam até mesmo excluir nomes e, mais, trocar votos entre candidatos. E o que aconteceu depois de tudo isso?

O primeiro investigado volta a acionar a normatividade de coordenação, ao assegurar que tudo o que ele diz está documentado no inquérito e corresponde a conclusões da Polícia Federal ou mesmo do TSE.

Em seguida, cita parcialmente um trecho da Informação STI/TSE nº 32, que se refere ao e-mail remetido ao juízo eleitoral responsável por uma eleição municipal suplementar, no qual constavam senhas de oficialização dos sistemas de Candidaturas e do Horário Eleitoral daquele pleito (ID 158852105, p. 122). As senhas, em tese, permitiriam que, nesses dois sistemas, se alterassem ou excluíssem partidos ou candidatos, desde que, claro, houvesse também acesso ao sistema em si. Evidente também que, se isso ocorresse, a consequência seria percebida de imediato, pois, por exemplo, um candidato registrado não apareceria no CAND ou no HE, o que não ocorreu.

Porém, mais uma vez retirando de contexto um documento técnico, destinado a leitura por especialistas, o então Presidente fabrica uma complementação inexistente e inteiramente diversa do que diz o relatório e afirma, como fato consumado, que “esse grupo de invasores puderam (sic) até mesmo [...] trocar votos entre candidatos”.

Tem-se, portanto, pela segunda vez no discurso, a expressa declaração de que houve “troca de votos entre candidatos” nas Eleições 2018, o que é falso. O conteúdo fabricado foi obsessivamente explorado como uma espécie de “confissão” do TSE a respeito da manipulação de votos dados nas urnas em 2018.

Eu tive acesso a esse inquérito no ano passado, divulguei, é um inquérito que não tem qualquer classificação sigilosa e, ao divulgar, o Ministro Alexandre de Moraes abre o inquérito para me investigar sobre vazamento. Em depoimento, o delegado encarregado do inquérito foi bem claro, o inquérito não tinha qualquer classificação sigilosa. Foi instada a Corregedoria da Polícia Federal, que disse a mesma coisa. E como envolvia um outro deputado, que teve acesso a esse documento, também, a Procuradoria da Câmara dos Deputados, que o inquérito não tinha qualquer classificação sigilosa.

O orador evoca a divulgação do inquérito em 2021, o que ocorreu na live de 4 de agosto daquele ano, que foi transmitida ao vivo pelo programa da Jovem Pan Pingos nos Is. Filipe Barros, deputado federal que relatava a PEC nº 135/2019 e solicitou à Polícia Federal que fornecesse cópia do inquérito, participou ativamente da live, que foi anunciada com a promessa de revelação das “provas” de fraude nas Eleições 2018. Há, pois, inequívoca evocação do evento pretérito, quando teria se iniciado o esforço de tornar pública a “verdade”, perfazendo seu elo com o momento presente, em que o primeiro investigado seguiria em sua cruzada, agora perante a comunidade internacional, para comunicar o suposto achado do IPL nº 1361/2018/DF.

No trecho, o ex-Presidente também deixa clara sua ciência de que a divulgação ensejou uma apuração criminal por suposto vazamento de sigilo. Apresenta as manifestações que pesariam a seu favor, ocultando as demais informações que indicam que haveria reserva na divulgação do conteúdo, inclusive em razão da finalidade do compartilhamento. Também oculta que o relatório da Polícia Federal concluiu pelo indiciamento de Mauro Cid e que o próprio Jair Bolsonaro não foi indiciado porque se entendeu necessária autorização do STF, em razão do foro por prerrogativa de função.

No ponto, portanto, comunica-se a ideia de que o então Presidente estaria sendo injustamente perseguido por ter exposto a “verdade” e que não haveria nenhuma dúvida sobre seu direito de divulgar amplamente o inquérito a que teve acesso, mesmo sem ser parlamentar que compunha a Comissão Especial que o solicitara. A fala cumpre também a função pragmática de um “ato de defesa” contra as imputações que considera injustas.

O que nós entendemos aqui no Brasil é que, quando se fala em eleições, elas têm que ser totalmente transparentes, coisa que não aconteceu em 2018. Também, a Polícia Federal, depois que demorou 7 meses para o TSE informar que os logs já haviam sido apagados, repito, eles poderiam ser fornecidos de forma espontânea ou através do requerimento, no mesmo dia, ou no dia seguinte.

A primeira frase desse trecho deixa explícito que a razão para tanto se falar no “desejo” de transparência das Eleições 2022 é o fato de que as Eleições 2018 não teriam sido transparentes. Pela terceira vez, há imputação direta inequívoca de que houve mácula ao pleito anterior.

A frase seguinte indica que a Polícia Federal compartilharia o ponto de vista do então Presidente, insinuando-se que o comportamento dos técnicos do TSE teria levantado algum tipo de suspeita.

Então, 7 meses depois, o TSE informou que os logs tinham sido apagados. E a Polícia Federal concluiu pela total falta de colaboração do TSE para com a apuração, do que os hackers tinham feito ou não por ocasião das eleições de 2018. E repito, até hoje esse inquérito não foi concluído. Entendo que não poderíamos ter tido eleições em 2020 sem apuração total do que aconteceu lá dentro. Porque o sistema é completamente vulnerável, segundo o próprio TSE e obviamente a conclusão da Polícia Federal.

Seguindo no esforço de colocar o TSE e a Polícia Federal em polos antagônicos, o então Presidente faz uma declaração falsa no sentido de que “a Polícia Federal concluiu pela total falta de colaboração do TSE para com a apuração, do que os hackers tinham feito ou não por ocasião das eleições de 2018”. Não há nenhuma afirmação nesse sentido no material acessado pelo primeiro investigado.

O ex-Presidente menciona o fato de que o inquérito não foi concluído, o que é verdade, mas usa o dado para finalidade totalmente distorcida: afirmar que a realização das Eleições 2020 dependia da “apuração total do que aconteceu lá dentro”. Essa correlação fabricada tem por premissa, falsa, que o inquérito apuraria fraude por manipulação de votos.

A afirmação também desconsidera que, a essa altura, já havia sido produzido relatório parcial identificando o autor do hackeamento, sua atuação em ataques a outros órgãos e sua motivação financeira de venda de dados sigilosos. O então Presidente seguia se apoiando nos documentos iniciais da apuração e nas informações que fabricou com base neles, para reforçar a mensagem de que o TSE assumiu comportamento suspeito, de conivência com o ataque.

A partir daí, são apresentadas mais duas informações falsas: a de que “o sistema é completamente vulnerável” (no contexto da fala: sistemas das urnas, ou de totalização, a permitir manipulação de votos) e a de que a Polícia Federal e o TSE teriam firmado conclusão nesse sentido (afirmação inteiramente incompatível com todas as informações publicadas pelo TSE e com a linha de investigação e achados do inquérito).

Só 2 países do mundo usam esse sistema eleitoral nosso. Vários outros países ou não usam ou começaram a usá-lo ou chegaram à conclusão de que não era um sistema confiável porque ele é inauditável. É impossível fazer uma auditoria em eleições aqui no Brasil.

E agora a fotografia de alguns países, com toda certeza tem gente aqui da Inglaterra, França, Irlanda, Austrália, Alemanha, Hong Kong, Coréia do Sul, Japão. Olha que o pessoal está acompanhando uma apuração. No Brasil, não tem como acompanhar a apuração. Eu não sei o que vêm fazer observadores de fora aqui. Vão fazer o quê? Vão observar o que? Se o sistema é falho, segundo o próprio TSE, é inauditável também, segundo uma auditoria externa pedido (sic) por um partido político, no caso, o PSDB, em 2014. E, com todo respeito, 8 meses passeando dentro dos computadores do TSE esse grupo de hackers, será que o TSE não sabia?

Mas vamos continuar, mais outros países: Taiwan, Rússia, Suíça, Noruega, Itália, Israel. O pessoal tem o que observar. Aqui no Brasil, os observadores que porventura vierem para cá, eu queria saber o que eles vão observar aqui. Pode passar.

O então Presidente apresenta mais uma informação falsa: a de que o sistema eletrônico de votação brasileiro é “inauditável”. E reafirma que é “impossível fazer uma auditoria em eleições aqui no Brasil”. Segundos depois, volta a afirmar, falsamente, que “o sistema é falho e, segundo o próprio TSE, é inauditável também”.

Essas declarações colidem frontalmente com todas as campanhas de informação, notas públicas e demais comunicações do TSE voltadas para esclarecer a sociedade a respeito da auditoria dos sistemas eleitorais. A fala do Presidente não se trata de uma opinião, mas de frontal tentativa de indicar que o TSE não é uma fonte confiável de informações a respeito da segurança do sistema.

Jair Messias Bolsonaro questiona a finalidade das Missões de Observação Eleitoral, ao argumento de que, se não é possível auditar as urnas, nada há para observar. Relembre-se que a reunião do dia 18/07/2022 foi pensada como uma espécie de resposta à iniciativa do Min. Edson Fachin, então Presidente do TSE, que, no final de maio de 2022, havia se reunido com os observadores internacionais e que, em sua gestão, priorizou o diálogo internacional. O Chefe de Estado brasileiro, portanto, comunicava a sua plateia, em sentido contrário, que a observação internacional seria inócua, servindo apenas como uma espécie de teatro diante de um sistema inauditável.

Ainda é mencionada, fora de qualquer contexto, a auditoria solicitada pelo PSDB em 2014.

O ex-Presidente conclui “com todo o respeito”, insinuando conivência do TSE com o ataque hacker, indagando, à forma de mais um pensamento intrusivo a serviço de teoria conspiratória, se seria possível o TSE “não saber” que o grupo de hackers estava “passeando” pela rede do tribunal.

Relembre-se que Jair Bolsonaro disse isso embora estivesse de posse do relatório inicial da STI (cujo conteúdo foi parcialmente abordado minutos antes) que detalhava as medidas tomadas em abril de 2022 para rastrear a invasão, conter danos e identificar os equipamentos acessados, o que serviu de substancial suporte para a investigação da Polícia Federal.

Todo o trecho se insere na disputa travada no âmbito da normatividade de coordenação, cumprindo a função pragmática de comunicar a mensagem “não confie no que diz o TSE, confiem em mim”.

Aqui que eu falei, então. Em 2014, a conclusão foi de que... e houve... houve uma dúvida naquela época: quem ganhou as eleições? Daria um capítulo, mas eu não vou entrar nesse capítulo aqui. Já está bem bastante curioso o que aconteceu em 2014. A Polícia Federal nesses momentos recomendou o voto impresso. Manteria o sistema eleitoral nosso, mas teria uma impressora do lado da urna. Onde não haveria contato manual por parte do eleitor e, após a confirmação do voto, esse papel cairia dentro de uma urna e essa urna seria então utilizada mais na frente para uma contagem física, caso houvesse dúvidas sobre quem ganhou as eleições.

Então, documentação do próprio TSE também conclui aqui que não há como fazer uma correspondência entre um eleitor específico e seu voto. Ninguém quer descobrir o voto daquela pessoa para quem ela escreveu ali ou para quem ela queria votar, não é isso. Esse sistema aqui é impossível fazer qualquer relação ou correlação entre o eleitor e o seu voto.

Aqui, mais uma vez, o outro parecer da Polícia Federal, em 2018, recomendando que fossem envidados todos os esforços para que possa existir o voto impresso para fins de auditoria, também ignorados. Por 4 vezes, o parlamento brasileiro, com a minha participação em todas elas, nós (sic) aprovamos o voto impresso ao lado da urna eletrônica, sem o contato manual do eleitor com o voto, e o Supremo Tribunal Federal disse que era inconstitucional. Inconstitucional no quê?  

O então Presidente volta a se referir às Eleições 2014, na qual Dilma Rousseff foi reeleita Presidenta, afirmando expressamente que “houve uma dúvida [...] a respeito de quem ganhou as eleições”. Embora situe a dúvida “naquela época”, fica evidente que a insinuação de adulteração dos resultados se conecta, no discurso, a todas as afirmações sobre a manipulação de votos em 2018.

Não são apresentados detalhes sobre as conclusões da auditoria realizada em 2014 e Jair Bolsonaro, mencionando que haveria uma recomendação do “voto impresso” pela Polícia Federal, passa a detalhar a forma como se daria a implantação da proposta.

Jair Messias Bolsonaro insinua que recomendações reiteradas da Polícia Federal pela adoção do voto impresso foram “ignoradas”. Enfatiza que o Congresso chegou a aprovar a adoção do voto impresso, momento em que destaca sua atuação como parlamentar para esse resultado, e critica a decisão do STF que declarou inconstitucional a adoção do modelo aprovado por lei ordinária.

À época, a PEC nº 135/2019 havia sido rejeitada pela Câmara dos Deputados em 10/08/2021 e não poderia voltar a ser debatida na legislatura. Cabe lembrar também que o discurso foi proferido dois meses e meio antes da eleição, momento no qual seria impossível, jurídica ou tecnicamente, implementar a alteração.

Desse modo, o Chefe de Estado sustentava, diante da comunidade internacional, que a única forma de trazer a almejada transparência para as Eleições 2022, eliminando a manipulação de votos supostamente ocorrida em pleitos anteriores, era uma proposta já recusada pelo Poder Legislativo. Insinua, com isso, um cenário desolador para a eleição vindoura, que desenha a manipulação de votos como uma hipótese altamente plausível.

E daí entra na frente aqui isso, mais uma personalidade. Deixo claro, quando se fala em Ministro Fachin, ele foi o responsável por tornar Lula elegível.

Numa interpretação de um dispositivo constitucional, o Lula estava preso, e o Supremo entendeu que a prisão só poderia acontecer em última instância, na 4ª instância. Então, ele foi condenado em 1ª instância, 2ª instância, 3ª instância, todos os placares por unanimidade e estava cumprindo pena de prisão. Com a reinterpretação do Supremo Tribunal Federal, ele foi para rua. Mas como ele, Lula, estava em liberdade, mas as condenações estavam valendo, o próprio Ministro Fachin, relator de um processo, resolveu tornar o Lula elegível. Então, por 3 a 2, o Supremo Tribunal Federal não inocentou. Simplesmente, anulou os julgamentos, voltando para a 1ª instância o senhor Luiz Inácio Lula da Silva. Ao voltar para a 1ª instância, ele conseguiu, ele reconquistou a possibilidade de ser elegível.

Adentra-se a fase do discurso em que, na disputa travada no âmbito da normatividade de coordenação, o então Presidente da República passa a tentar convencer a audiência de que Ministros do TSE não podem ser considerados fontes confiáveis a respeito do tema da segurança das urnas, uma vez que, segundo alega, teriam interesse em assegurar a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva e meios para praticar fraudes necessárias para tanto.

O primeiro mencionado é o Min. Edson Fachin, então Presidente do TSE. Ele é descrito simplesmente como “responsável por tornar Lula elegível”.

O então candidato à reeleição, na condição de Chefe de Estado, profere uma crítica direta à atuação do STF nos processos que levaram seu principal adversário a poder disputar as Eleições 2022. Há ênfase em dizer que Lula não foi “inocentado”, mas, sim, que houve anulação de julgamentos que o condenaram. O jogo de palavras não é neutro, pois há um evidente desvalor moral na condição de “não inocente” (ou, como dito em outras declarações públicas, de “descondenado”), que, no contexto, suprimiria de seu oponente a idoneidade para o cargo em disputa.

Embora não tenha havido pedido de votos ou comparação direta entre atributos morais de candidatos (por exemplo: “Lula não é inocente, mas eu sou”), é evidente que as declarações remetem ao contexto das Eleições 2022 (em que Lula estava “elegível”) e cumprem a função pragmática de deslegitimar a candidatura do principal adversário, por meio de fala dirigida à comunidade internacional e apta a alcançar o eleitorado pela TV Brasil e pelas redes sociais do investigado.

Daí, em setembro de 2021, o Ministro Barroso, por portaria, resolve convidar algumas instituições, entre elas as Forças Armadas, a participarem de uma comissão de transparência eleitoral. As Forças Armadas não se meteram nesse processo. Foram convidados. Ao serem convidadas, nós temos um comando de defesa cibernética, como acredito que todos os chefes, todos os países, o têm também, e, como foram convidados, começaram a trabalhar para apresentar soluções, sugestões, para que o ocorrido nas eleições de 2018 não viesse a ocorrer novamente.

Retrocedendo no tempo, Jair Messias Bolsonaro menciona o convite feito pelo então Presidente do TSE em 2021, para que as Forças Armadas participassem da Comissão de Transparência Eleitoral. Esse convite é visto como apto a legitimar a postura de tensionamento e antagonização assumida nos trabalhos da comissão e em outras ocasiões públicas: os militares “não se meteram nesse processo”, “foram convidados” – diz o orador.

O Chefe de Estado, desconsiderando o objeto próprio da Comissão de Transparência, suas regras de funcionamento, a evidente liderança do TSE e o espírito colaborativo dos trabalhos, declara que a atuação das Forças Armadas seria direcionada “para que o ocorrido nas eleições de 2018 não viesse a ocorrer novamente”. O Presidente usa pela primeira vez a primeira pessoa do plural, “nós temos um comando de defesa cibernética”, indicando sua unidade de desígnios com a “missão” inventada para as Forças Armadas.

No contexto já repisado, o trecho cumpre a função pragmática de comunicar que as Forças Armadas estavam prontas a atuar como órgão de inteligência para impedir que a manipulação de votos ocorrida em 2018 voltasse a se repetir em 2022, a despeito de suposta conivência, imperícia e comportamento suspeito do TSE.

Continua, continua então, o senhor Barroso me atacando. Deixo bem claro, por que que o senhor Barroso foi escolhido pelo governo do PT para ser ministro do Supremo Tribunal Federal? Porque ele trabalhou para que o terrorista Cesare Battisti ficasse no Brasil. E, no último dia do presidente Lula em 2010, Battisti ganhou a condição de refugiado no Brasil, graças ao trabalho dele, o Barroso, que era advogado naquela época, e o terrorista Cesare Battisti permaneceu no Brasil. Graças a isso, certamente, ele ganhou confiança do Partido dos Trabalhadores e foi indicado para o Supremo Tribunal Federal.

A exemplo do que fez em relação ao Min. Edson Fachin, o primeiro investigado passa a elaborar uma teoria conspiracionista a respeito do Min. Luís Roberto Barroso, anterior Presidente do TSE.

Partindo de um fato verídico, que é a atuação do então advogado na defesa de Cesare Battisti em processo de extradição, o primeiro investigado extrapola para uma narrativa inteiramente fabricada e grave.

Sem rodeios, o então Chefe de Estado afirma para representantes da comunidade internacional que interessava ao PT manter um “terrorista” no Brasil e que a nomeação para o STF foi o prêmio dado ao advogado que teria viabilizado isso.

O objetivo de comprometer a idoneidade do magistrado e, com isso, sua atuação no TSE, é evidente.

Também é comunicada, na fala, a associação entre o PT, partido de seu principal adversário nas Eleições 2022, e terrorismo.

Então, essa, volta, essa acusação que eu vazei dados, o inquérito, que é ostensivo, não tem qualquer classificação sigilosa. É uma acusação simplesmente infundada. Carece de base, de amparo legal. É uma acusação mentirosa, nada existe no inquérito. O inquérito, como diz, como o próprio depoimento do delegado encarregado do mesmo, da corregedoria da PF e da Procuradoria da Câmara dizendo que o inquérito não tinha qualquer classificação sigilosa. E se tivesse, estava errado. Porque, quando se fala em eleições, se vem à nossa cabeça transparência.

E o senhor Barroso, também com o seu Fachin, começaram a andar pelo mundo me criticando, como se eu estivesse preparando um golpe por ocasião das eleições. É exatamente o contrário o que está acontecendo. O Barroso, nos Estados Unidos, faz uma palestra ‘Como se livrar de um presidente’. Ele é, era, do Tribunal Superior Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal. A gente não tem notícias de pessoas que ocupam essa Corte, nos países que tenham, que fiquem falando, dando entrevista, dando palestras e colocando a sua opinião pessoal sobre este ou aquele governo. Lamentável a ação do Ministro Barroso pelo mundo, porque isso atrapalha o Brasil.

Jair Messias Bolsonaro volta a mencionar o IPL nº 1361/2018/DF e a se defender da imputação de vazamento de dados sigilosos.

Diz, então, que, mesmo se houvesse o sigilo declarado pelos órgãos competentes, isso estaria “errado”. O adjetivo, seguido da explicação “porque quando se fala em eleições, se vem à nossa cabeça transparência”, transmite a mensagem de que não divulgar o inquérito contribuiria para a falta de transparência do pleito. Essa é mais uma afirmação falsa que objetiva tanto acionar o sentimento de que há uma ameaça rondando as Eleições 2022 quanto descrever o primeiro investigado como alguém que age para impedi-la de se concretizar.

O orador afirma que sua atuação é “o contrário” de preparar “um golpe por ocasião das eleições”. E afirma que os dois Ministros do TSE já por ele referidos como inidôneos, “começaram a andar pelo mundo” para difundir a ideia de que o golpe estaria sendo tramado.

É ainda feita uma menção descontextualizada a uma palestra do Min. Barroso, atribuindo-lhe título falso. O Presidente da República diz que a atuação do Ministro “atrapalha o Brasil”.

No mesmo dia da reunião, o gabinete do magistrado divulgou nota esclarecendo que o título da palestra era “Populismo Autoritário, Resistência Democrática e Papel das Supremas Cortes” (https://portal.stf.jus.br/
noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=490664&ori=1).

Repito: vocês nunca ouviram uma só palavra minha de censurar a mídia. De derrubar página de alguém que me critique, de prender deputado, nunca mandei prender nenhum deputado. Quem prendeu foi o outro colega deles, Alexandre de Moraes.

O Min. Alexandre de Moraes, que estava em vias de assumir a Presidência do TSE, é referido, pela primeira vez no discurso. Exaltando a si próprio como um democrata, em contraponto ao magistrado, Jair Messias Bolsonaro se apresenta como defensor da liberdade de expressão, enquanto o Min. Alexandre de Moraes, “outro colega deles” (ou seja, colega dos Min. Edson Fachin e Luís Roberto Barroso) “prendeu” deputado.

A fala cumpre a função pragmática de tentar apontar o futuro Presidente do TSE como alguém contrário à liberdade de imprensa e de manifestação.

E depois também:

[Exibição de vídeo com pergunta de jornalista ao Ministro Luís Roberto Barroso]

“Jornalista: – Boa noite, Ministro. Com as informações que a gente tem até agora, dá para saber se a gente vai ter resultado hoje ainda ou só amanhã? E a outra coisa é: quem é que faz a manutenção do supercomputador que o senhor mencionou é a própria equipe do TSE ou uma empresa terceirizada? Obrigado.

Ministro Luís Roberto Barroso: – Eu vou pedir ao nosso secretário de Tecnologia da Informação. Giuseppe, se você puder comparecer ali ao microfone e explicar. Quer dizer, houve um problema de infraestrutura que a Oracle estava atendendo, mas eu não gostaria de dar uma explicação equivocada. Portanto, Giuseppe, por favor.

Secretário de Tecnologia da Informação – Boa noite. Esse computador ele é instalado por meio de um serviço, ele faz justamente esse papel da nuvem computacional. Ou seja, é um supercomputador, que ele é contratado por uma empresa, no caso a empresa é a Oracle, ela instala esse computador e mantém ele em funcionamento. É um serviço, justamente, e não é uma aquisição. Portanto, a manutenção, a conservação, o suporte, o bom funcionamento do equipamento é de responsabilidade da empresa sim.

Ministro Luís Roberto Barroso: – Não é propriamente uma terceirização, é uma contratação de um serviço, como explicou o nosso secretário, ok?”

Bolsonaro: – Bem, não é o Tribunal Superior Eleitoral quem conta os votos, é uma empresa terceirizada. Eu acho que nem precisava continuar essa explanação aqui. Nós queremos obviamente, estamos lutando para apresentar uma saída para isso tudo. Nós queremos confiança e transparência no sistema eleitoral brasileiro.

A exibição do vídeo contendo trecho da entrevista coletiva concedida pelo Min. Luís Roberto Barroso durante as Eleições 2020 demonstra, de forma nítida, a estratégia discursiva de Jair Messias Bolsonaro: fabricar conteúdos e difundir informações falsas, a partir preferencialmente de uma informação verdadeira, de teor técnico (que, a pretexto de ser “explicada” pelo primeiro investigado, é, na verdade, distorcida por ele).

No vídeo, a imprensa indaga ao então Presidente do TSE se a manutenção do supercomputador que viabiliza a divulgação de resultados é feita pelo próprio tribunal ou por uma “empresa terceirizada”. O Min. Luís Roberto Barroso solicita uma explanação técnica ao então Secretário de Tecnologia da Informação, que explica, em linhas gerais, que o TSE contratou a empresa Oracle para prestar um serviço de “nuvem computacional” e diz que “a manutenção, a conservação, o suporte, o bom funcionamento do equipamento, é de responsabilidade da empresa, sim”. Com seu didatismo, o Min. Luís Roberto Barroso, entendendo a dúvida da repórter, complementa que o modelo não é de terceirização, em que o maquinário seria do TSE, mas de contratação de serviço (nuvem computacional).

Vê-se que não há nenhuma referência a uma empresa encarregada de “contar votos”.

A despeito disso, o então Presidente da República não hesita em concluir que o vídeo prova que “uma empresa terceirizada” é “quem conta os votos”. O fato fabricado chega a ser apresentado como uma derradeira informação sobre a falta de confiabilidade do sistema eletrônico de votação brasileiro (“nem precisava continuar essa explanação aqui”, diz o orador).

A manipulação do episódio ocorrido no contexto da entrevista coletiva – que, na realidade, apenas postergou a divulgação de resultados das Eleições 2020 por algumas horas – escala. O então Chefe de Estado o utiliza para reafirmar para a plateia que está “lutando para apresentar uma saída para isso tudo”.

No contexto do discurso, não há dúvidas que a mensagem comunicada é que teria havido fraude por manipulação de votos também nas Eleições 2020 (relembre-se: o orador já havia dito que esse pleito nem poderia ter ocorrido antes que fosse concluído o IPL nº 1361/2018). Tudo se soma para reforçar a ideia de que o então Presidente da República estaria empenhado em evitar que isso se repetisse nas Eleições 2022.

Aqui uma reunião do Ministro Fachin com alguns dos senhores ou representantes, alertando-os contra acusações levianas. O que eu estou falando aqui não tem nada de leviano. Esse inquérito tenho cópia comigo e quem porventura quiser ter acesso dele eu forneço a cópia. E repito: não tem qualquer classificação sigilosa o que está dentro dele.

E aqui eu já falei: ‘Fachin assina acordo do TSE com entidade estrangeira para observação das eleições’. Eu peço aos senhores: o que essas pessoas vêm fazer no Brasil? Vêm observar o quê? Que o voto é totalmente informatizado. Vêm dar ares de legalidade. Vêm dizer que tudo ocorreu numa normalidade.

Jair Messias Bolsonaro se refere, nesse trecho, à reunião de 31/05/2022, em que o então Presidente do TSE, Min. Edson Fachin, alertou embaixadores contra “acusações levianas” relativas às urnas eletrônicas e sugeriu que buscassem “informações sérias e verdadeiras”.

Conforme já explicado, foi esse encontro que motivou o primeiro investigado a convocar a reunião com embaixadores no dia 18/07/2022, como uma espécie de resposta.

Nesse contexto, Jair Bolsonaro, assumindo que o alerta feito pelo então Presidente do TSE se voltava também contra declarações que vinham sendo feitas pelo mandatário, retruca: “o que eu estou falando não tem nada de leviano”. Porém, o respaldo invocado, mais uma vez, é o IPL nº 13621/2018, que, conforme visto, não embasa as afirmações sobre manipulação de votos ou sobre qualquer outra fraude em eleições pretéritas.

Ou seja, o primeiro investigado estava ciente de que o órgão de governança eleitoral do país não respaldava as imputações de fraude ao sistema eletrônico que ele vinha propalando. Ainda assim, sustentou falsamente perante representantes da comunidade internacional que tinha em sua posse um documento da Polícia Federal que corroborava suas declarações, de modo que não deveria ser levado em conta o que disse o Min. Edson Fachin.

O então Presidente da República dispara diante dos diplomatas um outro alerta: as missões de observação somente serviriam para “dar ares de legalidade” e “dizer que tudo ocorreu numa normalidade”, ou seja, para maquiar a fraude.

Essa prática discursiva de esgarçamento institucional, assentada na degradação da normatividade epistêmica pela normatividade de coordenação, veio a ser referida pela defesa dos investigados, nesta ação, como “diálogo fértil e desinibido”, no esforço de normalizar as declarações feitas pelo primeiro investigado.

Eu teria dezenas e dezenas de vídeos para passar para os senhores por ocasião das eleições de 2018 onde o eleitor ia votar e simplesmente não conseguia votar. Ou quando ele apertava o número 1 e depois ia apertar o número 7, aparecia o 3 e o voto ia para outro candidato. O contrário ninguém reclamou. Temos quase 100 vídeos de pessoas reclamando que foram votar em mim e, na verdade, o voto foi para outra pessoa, nenhum vídeo de alguém que foi votar no outro candidato e porventura apareceu meu nome.

Nesse trecho, o primeiro investigado, sem rodeios, afirma que tem em seu poder provas (“dezenas e dezenas de vídeos”) de fraude nas Eleições 2018. Ele declara perante embaixadoras e embaixadores, na condição de Chefe de Estado, que houve situações em que a pessoa “apertava o número 1 e depois ia apertar o número 7, aparecia o 3 e o voto ia para outro candidato”. Ele afirma logo depois que tem quase 100 vídeos de pessoas reclamando e alegou: “foram votar em mim e, na verdade, o voto foi pra outra pessoa”.

Há, portanto, uma imputação explícita de que o sistema eletrônico de votação foi manipulado para adulterar votos. Mais que isso, a manipulação somente ocorreria em uma direção: votos para o “17” seriam transformados em votos para o “13”.

Conforme se sabe, em 2018 Jair Bolsonaro concorreu pelo PSL com o número 17, enquanto Fernando Haddad, seu principal adversário, concorreu pela coligação encabeçada pelo PT, com o número 13. A mensagem comunicada aos embaixadores é a de que as urnas eletrônicas estariam programadas pelo TSE para “autocompletar” a votação com o número 3 assim que fosse digitado o algarismo 1, computando um voto em favor de Fernando Haddad e impedindo eleitoras e eleitores de registrar sua escolha por votar em Jair Bolsonaro.

Não apenas se trata de uma informação inteiramente falsa, fabricada no contexto de estímulo a um estado de paranoia coletiva resultante do contínuo esforço de descredibilização das urnas eletrônicas, como também se trata da mesma informação falsa divulgada por Fernando Francischini em live realizada em 2018 e que levou à cassação de seu diploma de deputado federal. O parlamentar condenado disse na ocasião, para seu público, que urnas foram apreendidas ao se constatar que nelas a pessoa “vota um e aparece o nome do Haddad” (ou seja, ao digitar o algarismo 1, a urna autocompletaria o voto com o algarismo 3, perfazendo o “13”).

A função pragmática desse trecho não é outra senão estatuir que as Eleições 2018 teriam sido fraudadas para direcionar votos de Jair Bolsonaro para Fernando Haddad e que haveria farta prova dessa ocorrência.

Nós queremos é corrigir falhas. Nós queremos transparência. Nós queremos a democracia de verdade.

Após a deliberada e falsa afirmação de que houve fraude nas Eleições 2018, Jair Messias Bolsonaro afirma mais uma vez que seu desejo é atuar para que o mesmo não se repita nas Eleições 2022. O desejo por “democracia de verdade” é comunicado como uma meta que será conquistada quando não mais for possível manipular votos.

Agora, eu estou sendo acusado o tempo todo, Barroso, Fachin, Alexandre de Moraes, como a pessoa que quer dar o golpe. Eu estou questionando antes, porque temos tempo ainda de resolver esse problema. Com a própria participação das Forças Armadas, que foram convidadas pelo Tribunal Superior Eleitoral.

Descrito o catastrófico cenário da hipotética fraude nas Eleições 2018, o discursante volta a se apresentar como a autoridade disposta a resolver o problema e que, injustamente, é tratada pelos três Ministros do TSE como “a pessoa que quer dar um golpe”.

Para sustentar que não pretende “dar o golpe”, ele diz que está “questionando antes” e que “temos tempo ainda de resolver esse problema”.

Considerando-se que faltavam apenas dois meses e meio para o pleito de 2022 e que a PEC nº 135/2019 já havia sido rejeitada em agosto de 2021, o então Presidente passa a abordar uma espécie de estratégia alternativa para o imaginário problema da fraude eleitoral: a atuação salvadora das Forças Armadas.

Os senhores devem estranhar: o que as Forças Armadas estão fazendo no processo eleitoral? Nós fomos convidados. E eu sou o chefe supremo das Forças Armadas. Nós jamais, com esse convite, iríamos participar apenas para dar ares de legalidade. O comando de defesa cibernética, os senhores têm o equivalente nos países de vocês, é algo extremamente sério. Pessoas extremamente, mais que habilitadas, confiáveis.

 

A partir desse ponto, o então Presidente da República passa a se referir às Forças Armadas na primeira pessoa do plural.

O conceito de “comandante supremo” é manuseado não para afirmar a submissão do poder militar ao governo civil, mas, sim, para inserir o primeiro investigado na estrutura militar. A construção gramatical promove a simbiose entre a Presidência da República, o Exército, a Marinha e a Aeronáutica.

O convite dirigido às Forças Armadas para integrar a Comissão de Transparência Eleitoral se transforma, no discurso, em convite dirigido ao próprio candidato à reeleição: “nós fomos convidados”, diz o orador. E, uma vez aceito o convite, a simbiose imaginada por ele assume um papel salvador: “jamais [...] iríamos participar apenas para dar ares de legalidade”.

O sentido implícito, facilmente extraído do contexto do discurso, é o de que as Forças Armadas, lideradas por seu comandante supremo (o Presidente da República), não endossariam a estratégia de mascarar fraudes eleitorais por meio da Comissão de Transparência, intento atribuído a Ministros que presidiram o TSE.

Passa esse aí. Aqui.

Depois de convidar as Forças Armadas, o trabalho das Forças Armadas junto com o comando de defesa cibernética, que é algo louvável, confiável e verdadeiro, o Ministro Fachin disse que as sugestões apresentadas pelas Forças Armadas serão avaliadas depois de 2022. Todas as sugestões apresentadas pelas Forças Armadas podem ser cumpridas até 2 de outubro e, se tiver qualquer despesa extra, o Poder Executivo arranja recurso para tal. Que sempre ouvimos, em especial da esquerda, que democracia não tem preço.

O discurso prossegue comparando as Forças Armadas e seu comando de defesa cibernética, que Jair Messias Bolsonaro valida como “louvável, confiável e verdadeiro”, com os técnicos do TSE, que, segundo diz, não teriam sido capazes, até aqui, de impedir a manipulação de votos e podem até mesmo ter contribuído para que a fraude ocorresse e não fosse debelada.

Arvorando-se em autoridade sobre o desenvolvimento de urnas, o então Presidente assegura à plateia que as sugestões feitas pelas Forças Armadas podem ser incorporadas em dois meses. Ainda empenha, de forma personalista, o compromisso do Poder Executivo de custear “qualquer despesa extra” decorrente das sugestões.

Por fim, sugere que “a esquerda” não poderia se opor a isso, já que sempre propala que “democracia não tem preço”.

Jair Bolsonaro passa a antagonizar, diretamente, com o então Presidente do TSE, que já havia se manifestado a respeito das sugestões das Forças Armadas. Essa antagonização é comunicada ao público sem que tenha sido abordado qualquer argumento técnico em favor da proposta dos militares. O orador apenas diz que as sugestões das Forças Armadas poderiam ser acolhidas na totalidade.

Além disso, oculta da plateia a informação de que boa parte das sugestões foi aceita. Também distorce ofício enviado em 17/06/2022 pelo TSE ao então Ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, pois o que se diz no documento é que “embora algumas sugestões não tenham sido acolhidas para esse ciclo eleitoral, serão consideradas para uma nova análise objetivando os próximos pleitos” (Ofício GAB-SPR/GAB-PRES nº 2847/2022), o que nitidamente assinala que a rejeição não é definitiva e que o diálogo poderia seguir aberto.

Aqui. Por que uma declaração como essa? Será que ele [Ministro Edson Fachin] já está antevendo que o candidato dele, que ele tornou elegível, vai ganhar as eleições? E do lado de cá teria uma reação? Resultado de eleições se cumpre. Agora, estamos tentando antecipar um problema que interessa para todo mundo. O mundo todo quer estabilidade democrática no Brasil.

Ao exibir alguma declaração do Min. Edson Fachin na tela, cujo teor não é informado, Jair Messias Bolsonaro insinua que ela teria sido prestada antevendo uma reação do candidato à reeleição, em caso de derrota. O então Presidente da República reafirma que o Min. Fachin “tornou [Lula] elegível” e se refere ao adversário como “candidato dele” (ou seja: Lula seria “o candidato” do Presidente do TSE).

A afirmação de que “resultado de eleições se cumpre” é implicitamente associada à condicionante das eleições hígidas (diversamente do que aconteceu, segundo a narrativa apresentada, nas Eleições 2018). Isso é percebido pelo uso do “agora” como conjunção adversativa: “agora, estamos tentando antecipar um problema”, ou seja, para “cumprir” (respeitar) o resultado das eleições, é imperioso que “o problema” (fraude) seja corrigido.

Os senhores todos querem continuar representando os seus países. Porque o Brasil é um país que interessa para todo mundo. Nós alimentamos mais de 1 bilhão de pessoas pelo mundo com o nosso o agronegócio.

Repito: Temos negócio com o mundo todo, é um país fantástico. Teria muito a falar sobre o Brasil, como os senhores bem acompanham o que vem acontecendo aqui em nossa pátria. E nós, se o povo resolver voltar ao que era antes, paciência.

Agora, num sistema eleitoral como esse, que apenas 2 países o adotam, outros estudaram e abandonaram, outros fizeram uma ou outra eleição e desistiram. Nós não queremos isso para o Brasil. Nós não queremos que, após as eleições, um lado ou outro questione os resultados das eleições.

Jair Messias Bolsonaro busca convencer que tudo o que diz no discurso converge com interesses das nações estrangeiras, pois envolve a continuidade de negócios com os demais países.

É construído um contraste entre o governo do candidato à reeleição, apresentado como próspero, e “o que era antes”, ou seja, governos anteriores. É perceptível que eventual eleição de Lula em 2022 é comunicada como um retrocesso: “se o povo resolver voltar ao que era antes, paciência”.

O “agora” volta a ser usado como conjunção adversativa: “agora, num sistema eleitoral como esse [...]” a insinuar que uma eleição de Lula, com o atual sistema, não refletiria uma escolha livre para “voltar ao que era antes”, mas, sim, conforme já explicado no discurso, evidenciaria a manipulação de votos.

O trecho é arrematado com o reforço ao pensamento intrusivo de que pode ocorrer uma fraude nas Eleições 2022, se nada for feito: “nós não queremos que, após as eleições, um lado ou outro questione os resultados das eleições”.

Fica sugerida a indagação: e se, então, Lula for eleito e o candidato à reeleição derrotado conclua que isso não reflete o que o “povo” quis, estaria justificada a não aceitação dos resultados?

Como os senhores viram no começo aqui, em vídeos passando meus, eu ando o Brasil todo. Sou muito bem recebido em qualquer lugar. Ando no meio do povo. O outro lado não. Sequer toma café ou almoça no restaurante do hotel. Come no seu quarto. Porque não tem aceitação.

Agora, pessoas que devem favores a ele não querem um sistema eleitoral transparente. Pregam o tempo todo que imediatamente após anunciar o resultado das eleições, os respectivos chefes de estado dos senhores devem reconhecer imediatamente o resultado das eleições.

O trecho estabelece um nítido comparativo entre o candidato à reeleição e “o outro lado”. É patente a conotação eleitoral deste trecho, pois o “outro lado”, que não poderia andar pelo Brasil, que não seria bem recebido e que não anda no meio do povo, tudo isso por não ter “aceitação”, inequivocamente se refere a um ou mais adversários no pleito iminente.

Fica evidente que esse adversário é Lula, pois é usada a expressão “pessoas que devem favores a ele não querem um sistema eleitoral transparente”. A expressão é facilmente decodificável no contexto do discurso: seriam os Ministros que presidiram o TSE, que deveriam “favores” a Lula pura e simplesmente por conta de haverem sido nomeados para o STF. É atribuída aos Ministros uma estratégia de pedir aos países estrangeiros que aceitem o resultado tão logo proclamado, para, conforme já dito, “dar ares de legalidade” ao processo eleitoral.

A mensagem que o primeiro investigado comunica é que os Ministros Edson Fachin e Luís Roberto Barroso são contra a “transparência” do sistema, porque a opacidade beneficiaria Lula ao permitir a prática de fraude consubstanciada em “transferência de votos” para um candidato sem “aceitação”, o que seria escamoteado pelos cumprimentos de outros Chefes de Estado ao falso vencedor. Verdadeira teoria conspiratória destinada a incitar a desconfiança em qualquer resultado diverso da reeleição de Jair Messias Bolsonaro em 2022.

Depois das Forças Armadas serem convidadas para participar da Comissão da Transparência Eleitoral, o Fachin, quem tornou o Lula elegível, disse que quem trata das eleições do Brasil são ‘forças desarmadas’. Então, por que nos convidaram? Achavam que iam dominar as Forças Armadas? Será que se esqueceram que eu sou o chefe supremo das Forças Armadas? Será que se esqueceram da responsabilidade das nossas Forças Armadas, que goza de um conceito excepcional perante a opinião pública. Jamais as Forças Armadas participariam de uma farsa. Jamais seriam moldura de uma fotografia.

Em momento de tensão crescente, Jair Messias Bolsonaro dirige indiretamente questões ao Min. Edson Fachin, mais uma vez referido como aquele que “tornou Lula elegível”. O então Presidente da República contesta o uso da expressão “forças desarmadas” pelo Presidente do TSE à época.

A declaração feita pelo Ministro em 12/05/2022, conforme é público e notório, foi: “quem trata de eleições são as forças desarmadas. Portanto, as eleições dizem respeito à população que, de maneira livre e consciente, escolhe seus representantes [...]. Diálogo, sim. Colaboração, sim. Mas, na Justiça Eleitoral, quem dá a palavra final é a Justiça Eleitoral”.

Ao redarguir essa manifestação, o então Presidente da República, mais uma vez usando a primeira pessoa do plural para se referir às Forças Armadas, diz: “então, por que nos convidaram?”

Sem aceitar a premissa de que o convite se deu para colaborar em uma Comissão, e não para assumir o controle e a palavra final sobre o sistema de votação, o primeiro investigado eleva o tom, sugerindo que o TSE estaria agindo para sobrepujar as Forças Armadas, obrigando-as a participar “de uma farsa”, intento que não teria êxito porque o “chefe supremo” daquelas Forças – o Presidente da República – não permitiria.

O trecho exemplifica o uso da denominada “falácia do espantalho”, na qual um interlocutor distorce inteiramente as premissas postas pelo outro e passa a esgrimir intensamente contra essas premissas distorcidas (o espantalho). Assim, enquanto o Min. Edson Fachin ressalta que a Justiça Eleitoral é o órgão constitucionalmente imbuído de realizar eleições e seguirá exercendo essa competência sem ceder a pressões indevidas, Jair Bolsonaro retruca que as Forças Armadas não aceitarão participar de uma farsa, como se, acaso, esse fosse o sentido do que disse o Presidente do TSE.

E olha uma coisa inacreditável. O que que o Fachin diz, o homem que tornou Lula elegível, sempre foi advogado do MST, um grupo terrorista que até pouco tempo era bastante ativo no Brasil: ‘A auditoria não é instrumento para rejeitar resultado das eleições’. Para que serve a auditoria? Eu tenho vergonha de estar falando isso para vocês. Eu tenho vergonha. Agora, eu sou obrigado a conversar com os senhores. Agradeço a presença aqui penhoradamente. Porque sei que os senhores todos querem a estabilidade democrática em nosso país. E ela só será conseguida com eleições transparentes, confiáveis. Continue.

Seguindo em seu empenho para “derrubar” a autoridade do então Presidente do TSE, o primeiro investigado diz que o Min. Fachin foi “advogado do MST”, o que, conforme é público e notório, se trata de uma informação falsa.

Para intensificar o impacto do que disse, Jair Bolsonaro descreve o MST como “grupo terrorista”, querendo dizer, portanto, que o Presidente do TSE advogava para um grupo terrorista.

Na sequência, o ex-Presidente da República menciona, de forma distorcida e descontextualizada, manifestação do Min. Edson Fachin, datada de 01/07/2022, na sessão de encerramento do semestre no TSE.

A fala, pública e notória, é a seguinte: “A Justiça eleitoral franqueia todos os meios legítimos de auditoria. Auditar traduz a ideia de conferir procedimentos e instrumentos usados na produção do resultado eleitoral. Auditar, portanto, não se trata de veicular uma proposição aberta direcionada aprioristicamente a rejeitar o resultado das urnas que, porventura, retrate que a vontade do povo é oposta aos interesses pessoais de um ou outro candidato”.

Evidentemente, não era exigível que Jair Messias Bolsonaro guardasse de memória as palavras exatas com as quais o Min. Edson Fachin repeliu que a discussão sobre auditoria nas urnas fosse usada como pretexto para manobras político-eleitorais de recusa a resultados legítimos. Mas era, sim, imperativo que não usasse de trecho solto para deturpar inteiramente o sentido da mensagem. Porém, Jair Messias Bolsonaro violou essa expectativa e buscou convencer a plateia que o então Presidente do TSE teria declarado que não anularia um resultado mesmo se uma auditoria revelasse fraude nas urnas. Algo completamente diverso do que foi dito de fato.

Por mais uma vez, o orador difundiu o pensamento intrusivo de que é preciso reagir contra o TSE para se ter eleições transparentes e confiáveis e, com isso, estabilidade democrática.

O Ministro Alexandre de Moraes: ‘Manda prender quem disseminar fake news nas eleições de 2022’. Que que é fake news? É o que eles acham que é fake news. Como já aconteceu comigo: botaram numa página minha no Facebook uma a matéria de uma revista falando sobre Aids e vírus, Covid, e ele achou que aquilo é fake news e está aí processando. Eu não sei onde ele acha que ele pode parar.

Nós temos a paz, tranquilidade, o respeito que não tem da outra parte para conosco. Eu não sei o que faz uma pessoa agir dessa maneira.

Quem escolhe as pessoas para dizer o que esse ou aquele candidato bota em sua página, se é fake news ou não, é o próprio TSE. Que desmonetiza a página, que derruba outras, que sugere prisões, que cassa parlamentar por coisas que não têm tipificação na lei. Como cassaram um deputado por fake news. Que cria a jurisprudência de interesse deles mesmos para prejudicar o nosso lado, como no próximo aqui, vamos ver aqui.

Jair Messias Bolsonaro volta a se referir ao Min. Alexandre de Moraes e estatuir que o conceito de fake news seria subjetivamente determinado pelos Ministros do TSE (“o que eles acham que é fake news”). O então mandatário cita como exemplo de casuísmo o fato de estar sendo investigado no STF por haver associado “AIDS e [...] Covid”.

Conforme é público e notório, em 21/10/2021, em sua live, o então Presidente da República expressamente declarou que os “totalmente vacinados contra a Covid-19” estariam “desenvolvendo a Síndrome de Imunodeficiência Adquirida [Aids] muito mais rápido que o previsto”, o que constaria de “relatórios do governo do Reino Unido”. Além de a live ter sido voluntariamente retirada do ar pelas plataformas em que foi transmitida, em razão de seu conteúdo falso, a Polícia Federal conclui que a conduta caracterizou delito de “atentado contra a paz pública”. No discurso para os embaixadores, o ex-Presidente tentou se desimplicar de suas próprias declarações, dizendo que terceiros “botaram numa página minha no Facebook uma matéria de uma revista”.

O caso é referido para ilustrar que a “outra parte” não o respeita. Essa “outra parte”, no contexto, é o próprio TSE, e o então Presidente da República passa a descrever medidas que teriam sido tomadas “para prejudicar o nosso lado”. Dentre elas, está a desmonetização de canais (determinada no Inquérito nº 0600371-71, para estancar o financiamento de páginas que replicaram, entre outros conteúdos falsos, as lives de Jair Bolsonaro de julho e agosto de 2021, em que foi divulgada desinformação sobre as urnas eletrônicas) e a condenação de Fernando Francischini (evocada como cassação de “parlamentar por coisas que não têm tipificação na lei”).

Observa-se que o então Presidente da República dirige-se a Chefes de Missão Diplomática para sustentar que o STF e o TSE atuam parcialmente quando proferem decisões contrárias a interesse do “seu lado” – que, ao menos nos exemplos citados, seria o de usar as redes sociais, sem quaisquer barreiras, para divulgar conteúdos falsos a respeito de grave crise sanitária mundial e da governança eleitoral.

[Exibição de vídeo.]

‘Atentar contra as eleições e a democracia’: quem faz isso é o próprio TSE ao esconder, ao tentar esconder, o inquérito de 2018.

Não pode um magistrado ameaçar quem quer que seja. Quando ele diz que existe gabinete do ódio, que seria algo do meu governo, diz que tem um ministro que falou, mas não diz o nome do ministro, não apresenta uma só matéria que poderia ter sido produzido no tal do gabinete do ódio.

O que que ele quer com isso? Para que acirrar os ânimos entre o Poder Judiciário e o Poder Executivo? E não é o comportamento de um magistrado a ameaça. Se diz que houve, existe, gabinete do ódio, eu repito, apresenta uma só matéria que poderia ser produzida por um gabinete vinculado a mim na presidência da República.

Na sessão do TSE de 02/06/2022, o Min. Edson Fachin declarou que “atentar contra a Justiça Eleitoral é, a rigor, atentar contra a própria democracia”. Perante embaixadoras e embaixadores, Jair Messias Bolsonaro redarguiu a assertiva e afirmou que o TSE atenta contra as eleições e a democracia “ao tentar esconder o inquérito de 2018”.

Nota-se mais uma vez a falsa associação entre o IPL nº 1361/2018 e uma inexistente fraude eleitoral, que o TSE tentaria ocultar ao “esconder” o próprio inquérito.

Na sequência, a narrativa se envereda por descrever o então Presidente da República como alvo de “ameaça”. Comunica o declarante à plateia que o “gabinete do ódio” seria uma invencionice destinada a “acirrar os ânimos entre o Poder Judiciário e o Poder Executivo”.

É lamentável esse comportamento ameaçando, quer amedrontar quem? Quer fazer valer esse processo eleitoral onde próprio TSE diz que ele é vulnerável. Onde a própria Polícia Federal disse, com documentação do próprio TSE, que aquilo é mais que um queijo suíço, é uma peneira. Por que eles convidam as Forças Armadas e depois não querem mais as nossas sugestões?

Retomando a afirmação de que as eleições brasileiras não são confiáveis, Jair Messias Bolsonaro questiona o TSE por querer “fazer valer esse processo eleitoral”. O orador explora metáforas para dizer que há uma gigantesca quantidade de “furos” na segurança das urnas (“mais que um queijo suíço, é uma peneira”) reconhecida pela Polícia Federal (em virtude do IPL nº 1361/2018).

Arremata sugerindo que é contraditório o TSE ter feito o convite às Forças Armadas e, depois, não acolher sugestões (às quais se refere com o pronome possessivo “nossas”, remetendo à simbiose entre a Presidência da República e as Forças Armadas).

O último slide, né. No O Estado de S.Paulo: ‘Ministros do Supremo Tribunal Federal formam célula política para combater o governo Bolsonaro’. Quem diz não sou eu. É a própria imprensa, que sempre esteve ao lado deles, acaba deixando transparecer uma verdade cristalina. As ações contra o nosso governo são inúmeras. Eu recebo uma interferência por semana no meu governo. Você dá prazo para explicar por 48 horas por que que eu não fiz isso, por que não fiz aquilo. E é ajuizada por parlamentares de esquerda, da extrema-esquerda brasileira, tentando o tempo todo desestabilizar o governo.

Explorando uma nova faceta da normatividade de coordenação, Jair Messias Bolsonaro “valida” uma publicação da grande imprensa, constante de uma coluna de opinião, apenas porque o conteúdo lhe seria favorável (a mídia, em si, continuaria estando “ao lado deles”, ou seja, de seus adversários políticos).

O Chefe de Estado se queixa aos embaixadores pelo que considera “interferências” em seu governo. Evocando a polarização política, diz que há uma estratégia de “parlamentares de esquerda, da extrema-esquerda brasileira” para desestabilizar seu governo.

Embora esse trecho possa ser entendido como uma opinião sobre fatos, é certo que os comentários não podem ser dissociados do contexto eleitoral em que formulados. Cumpriram função pragmática de angariar empatia, ao comunicar aos diplomatas que seus adversários – a “esquerda” e a “extrema-esquerda” – vêm tentando minar seu governo.

Então, a presença dos senhores aqui, que eu agradeço mais uma vez, com qual intenção nossa? Nosso objetivo é transparência e confiança nas eleições. Quem ganhar, o outro lado tem que se conformar, estamos a 3 meses das eleições.

As propostas sugeridas pelas Forças Armadas praticamente estancam a possibilidade de manipulação de números, como sugere o próprio TSE, por ocasião das eleições de 2018. Eu não quero falar do que eu acho que aconteceu. Eu estou simplesmente em cima dos fatos. Estou me comportando aqui como o outro magistrado deveria se comportar.

O desejo por transparência e confiança nas eleições é repetido de forma quase monótona. Há uma função pragmática nisso: tornar a mensagem muito familiar, ao ponto de naturalizá-la, reduzindo a resistência à implantação do pensamento intrusivo subjacente às palavras ditas, ou seja, a ideia de que algo precisa ser feito para que as eleições venham a ser confiáveis, pois no passado não foram.

Volta a ser afirmado, de forma direta, que o TSE teria reconhecido a possibilidade de os resultados das Eleições 2018 terem sido manipulados. A informação é falsa, mas Jair Messias Bolsonaro insiste em lhe emprestar credibilidade, assegurando que ela corresponde aos fatos (no contexto, aqueles que constariam do IPL nº 1361/2018).

Com esse inquérito, como eu convidei o presidente do TSE a comparecer a esse evento, não veio. Convidei o presidente de todos os poderes, né? Presente aqui o presidente do STM, Superior Tribunal Militar. Não compareceram, tudo bem. Agora, isso que está acontecendo é de interesse de todo o povo brasileiro. A desconfiança do sistema eleitoral tem se avolumado. Nós não podemos enfrentar umas eleições sob o manto da desconfiança. Nós queremos ter a certeza de quem, eleitor, para quem o eleitor votou, o voto vai exatamente para aquela pessoa.

O então Presidente da República insinua que o então Presidente do TSE teria deixado de comparecer à reunião com os embaixadores, para a qual fora convidado, por se intimidar diante da existência do inquérito. O momento equivale, de certa forma, à celebração de uma “vitória” pelo candidato à reeleição, como a dizer que, chamado ao confronto, o TSE teve que recuar, pois não teria como contrapor-se ao teor do inquérito.

Na sequência, há uma mensagem especialmente relevante para o público brasileiro que acompanhava a transmissão. Primeiro, uma mensagem de que estava crescendo, na sociedade, a desconfiança no sistema eleitoral. Esse suposto sentimento popular captado pelo líder da nação o leva a proferir palavras de ordem, dirigida ao povo: “nós não podemos enfrentar umas eleições sob o manto da desconfiança; nós queremos ter a certeza de [...] para quem o eleitor votou, o voto vai exatamente para aquela pessoa”, ou seja, “nós” precisamos agir de alguma forma para garantir que a manipulação de votos não ocorra.

O conteúdo concreto da ação a ser tomada não é esclarecido, o que convém à função pragmática de manter apoiadoras e apoiadores mobilizados de forma permanente, em torno do sentimento de que a democracia corre risco.

O próprio TSE diz que em 2018 números podem ter sido alterados. Os hackers tiveram acesso a uma dezena de senhas por oito meses. Eles não perceberam? Não perceberam? Oito meses. Sete meses depois que a Polícia Federal pede os logs, que são as impressões digitais da cena, né, do fato. Sete meses depois os logs foram apagados. Poderiam ser entregues os logs no mesmo dia por iniciativa do próprio TSE, nem precisava ser provocado pela Polícia Federal. E sete meses depois, foram apagados. O próprio Ministro Barroso chama o chefe da tecnologia da informação e ele responde: os votos são contados por uma empresa terceirizada. Que empresa é essa? Temos um nome? Sim, temos um nome. Mas cadê a confiança? Eleições são questões de segurança nacional. Nós não queremos instabilidade no Brasil.

Novamente, o então Presidente da República profere afirmação falsa no sentido de que o TSE admitiu a possibilidade de os resultados das Eleições 2018 terem sido “alterados”, ou seja, a possibilidade de uma fraude exitosa.

Repisa as afirmações distorcidas sobre a ação dos técnicos do TSE ao constatarem o ataque hacker, insinuando conivência com o ocorrido e conduta destinada a impedir a apuração.

Repete também outra afirmação falsa, de que o Secretário de Informática do TSE teria dito que “os votos são contados por uma empresa terceirizada”.

Um novo elemento inserido na fala pode ser conectado à justificativa da forma como as Forças Armadas estariam atuando na Comissão de Transparência: “eleições são questões de segurança nacional”, diz o orador. O “nós” reaparece, podendo se referir à simbiose Presidência/Forças Armadas, à identificação Presidente/povo ou a ambas: “nós não queremos instabilidade no Brasil”.

O trecho comunica que o Presidente da República avalia que há um risco de manipulação de resultados das Eleições 2022, ensejando as ações que se façam necessárias para preservar a segurança nacional e impedir a dita instabilidade política.

O Brasil está voando. Nos comportamos muito bem durante a pandemia. Nos comunicamos e fazemos negócio com o mundo todo. Nos mantivemos em posição de equilíbrio em situações complexas pelo mundo. Nós garantimos a segurança alimentar para mais de 20% da população mundial. Também a segurança energética. O Brasil desponta como um exemplo para o mundo.

Segue-se um trecho autoelogioso do primeiro investigado ao próprio governo. Faltando pouco menos de um mês para o início da propaganda eleitoral, o candidato à reeleição exaltava seus feitos, em uma transmissão ao vivo para sua base de apoio cativa.

O que que nós queremos? Paz, tranquilidade. Agora, por que um grupo de três pessoas, apenas três pessoas, querem trazer instabilidade para o nosso país? Não aceitam nada, as sugestões das Forças Armadas, que foram convidadas, são perfeitas. Chega à perfeição absoluta? Talvez não. Que nenhum sistema informatizado pode dar garantia de 100% de segurança. As Forças Armadas, a qual (sic) sou comandante, ninguém mais do que nós, como sempre, queremos estabilidade em nosso país.

Após reafirmar seu desejo por “paz” e “tranquilidade”, Jair Messias Bolsonaro recorre ao “agora”, como conjunção adversativa, para indicar que esse desejo está sendo frustrado ou ameaçado por “um grupo de três pessoas, apenas três pessoas”, que “querem trazer instabilidade para o nosso país”.

O contexto do discurso não deixa dúvidas que as “três pessoas, apenas três pessoas” são os três Ministros do TSE referidos ao longo da fala.

A “instabilidade” seria por eles provocada porque “não aceitam [...] as sugestões das Forças Armadas”. Em contraponto, a simbiose Presidência da República/Forças Armadas se apresenta como defensora da estabilidade: “ninguém mais do que nós, como sempre, queremos estabilidade em nosso país.”

E por que agem de maneira diferente? E nós vemos claramente, o Ministro Fachin foi quem tornou o Lula elegível e agora é presidente do TSE. O Ministro Barroso foi advogado do terrorista Battisti, que recebeu aqui o acolhimento do presidente Lula em dezembro de 2010. O Ministro Alexandre de Moraes advogou no passado a grupos que, se eu fosse advogado, não advogaria.

É um direito dele advogar para quem quer que seja, mas eu não faria esse trabalho. Tem posição que de um comportamento que não se adequa ao sistema democrático, uma ameaça. ‘Vou cassar o registro, vou prender. Quem duvidar eu prendo’.

Olha, quem está duvidando do que está acontecendo não sou eu, é o próprio Tribunal Superior Eleitoral, que ele agora não quer deixar que se aperfeiçoe, que ele realmente mostre, no dia dois de outubro do corrente ano, os números reais das eleições pelo Brasil.

Ao avançar para o final, o discurso desenha nitidamente os polos antagônicos na disputa pela normatividade de coordenação: de um lado, o então Presidente da República coloca si próprio e as Forças Armadas como defensores das eleições transparentes; do outro lado (dos que “agem de maneira diferente”) estão os Ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes.

Jair Messias Bolsonaro desafia o Min. Alexandre de Moraes, que viria a presidir o TSE nas Eleições 2022, a mostrar “no dia dois de outubro do corrente ano, os números reais da eleições pelo Brasil”. O desafio traz implícito, no contexto do discurso em que feitas reiteradas imputações de fraude em eleições anteriores, a afirmação de que, até o momento, esses “números reais” não foram mostrados.

Então, o que eu tinha a falar aos senhores era isso. Eu vou pedir ao Ministro Carlos França que o extrato disso chegue na embaixada dos senhores aqui. Quem quiser o processo na íntegra, eu entrego também. Porque ele não tem qualquer grau de sigilo.

Repito: me sinto até envergonhado desse momento, dado o que está acontecendo em nosso país.

Bota para rodar sem som aí. Bota só sem som, só as imagem (sic) aí.

Em um esboço de encerramento, o Chefe de Estado anuncia que o Ministro das Relações Exteriores, Carlos França, seria acionado para remeter às embaixadas “um extrato” da apresentação. E estimula os presentes a lhe solicitarem o envio do IPL nº 1361/2018, como se, por não ser sigiloso, seu compartilhamento com representações de outros países fosse algo trivial.

O ex-Presidente insinua que está “envergonhado” diante do que “está acontecendo em nosso país”. Essa seria, em sua fala, a preocupação genuína para convocar a reunião.

Isso que vocês ouviram aqui acontece no Brasil todo, como eu disse, o povo gosta da gente. Não pago um centavo para ninguém participar de absolutamente nada. É um povo que, cristão no Brasil, é um povo ordeiro, trabalhador, tem seus problemas, mas acima de tudo quer paz. Quer a segurança. E tem encontrado em mim isso daí. Diferentemente, do que algumas notícias de jornais transmitem, o que é natural, infelizmente, no mundo todo. Temos boa imprensa no Brasil também, mas o que mais ressalta aos olhos são as acusações.

A fala não se encerra. Jair Messias Bolsonaro volta a tecer considerações elogiosas sobre seu governo, defendendo sua aceitação popular, justificada porque o então Presidente corresponderia aos anseios de um “povo ordeiro, trabalhador” e que “acima de tudo quer paz” e “segurança”.

O orador comunica ao público que, apesar de parte da imprensa não endossar essa visão, ela é verdadeira.

A menção à ampla aceitação do eleitorado cumpre a função pragmática de indicar que sua derrota nas urnas é um resultado improvável, caso as eleições sejam hígidas.

Então, a gente lamenta o que vem acontecendo, vou convidar integrantes da Câmara, do Senado, do Supremo Tribunal de Justiça, do Tribunal de Contas da União, do Tribunal Superior do Trabalho, a participar de conversas comigo sobre esse inquérito que, curiosamente, não foi fechado até o presente momento, para que nós possamos ter paz e tranquilidade e confiança por ocasião das eleições no corrente ano.

Muito obrigado a todos os senhores.”

O discurso é encerrado com a promessa de que deputados federais, senadores, Ministros do STJ, do TCU e do TST seriam convidados para “participar de conversas sobre o inquérito”, demonstrando que ainda pretendia explorar o documento em outras ocasiões.

Pela derradeira vez nessa fala, Jair Messias Bolsonaro aponta que a conclusão do IPL nº 1361/2018 é necessária para que as Eleições 2022 sejam confiáveis e para que possa haver “paz e tranquilidade” ao longo do processo eleitoral. Ou seja, comunica que os problemas não estão resolvidos, deixando sugerido que a manipulação de votos poderá ocorrer.

A comunicação foi encerrada sem espaço para perguntas da imprensa ou comentários dos convidados.

 

A detida análise do discurso proferido em 18/07/2022 pelo primeiro investigado torna evidente que nenhum dado factual constante do IPL nº 1361/2018 dava suporte a afirmar a ocorrência ou mesmo a existência de indícios de fraude eleitoral por manipulação de votos nas Eleições 2018.

Não obstante, o primeiro investigado, na condição de Presidente da República, afirmou categoricamente que aquela investigação tinha por objeto uma denúncia de fraude nas Eleições 2018; que a Polícia Federal estaria apurando se houve ou não manipulação de votos (transferência do voto dado em um candidato para outro); e que tanto a Polícia Federal quanto o TSE reconheciam que o sistema eletrônico permitia a adulteração dos resultados. São afirmações inteiramente falsas.

Junto com a repetição das inverdades factuais, um pensamento intrusivo foi persistentemente cultivado a cada vez que o então Presidente da República verbalizava seu desejo por eleições transparentes e por resultados autênticos. A mensagem comunicada era a de que as Eleições 2018 foram marcadas pela fraude e que uma conspiração contra sua reeleição rondava o pleito de 2022, colocando em risco a paz e a democracia.

Conforme a dinâmica própria às fake news, essa mensagem mobiliza sentimentos negativos capazes de produzir engajamento consistente na internet. Dispara-se um gatilho de urgência, no sentido de que algo precisa ser feito para impedir que o risco venha a se consumar.

Esse pensamento intrusivo deixou latente a indagação sobre “o que fazer”. O primeiro investigado não deu uma resposta explícita a essa pergunta. Mas desenhou um cenário desolador que estreitava o leque de alternativas. Inicialmente, a plateia foi alertada de que o Congresso aprovou o voto impresso, mas o STF impediu sua efetiva implementação. Depois, em 2022, a simbiose Presidência da República/Forças Armadas teria tentado apresentar soluções técnicas que seriam aptas a resolver “quase todos os problemas”, mas o TSE, teimosamente, não as acolheu.

A narrativa é propositalmente polarizada. Coloca o primeiro investigado como quem traz verdades necessárias, em contraposição à atuação obscura de um Poder Judiciário, ao qual, supostamente, interessaria manter um sistema de votação manipulável. O discurso insinua que a “redenção” só seria possível porque o primeiro investigado assumiu o inegociável compromisso com as eleições “transparentes” (segundo sua linha discursiva: em oposição às eleições manipuladas e opacas de 2018) e porque as Forças Armadas se recusam a endossar uma “farsa” (segundo sua linha discursiva: em oposição à tentativa de usar a Comissão de Transparência para mascarar graves problemas das urnas eletrônicas).

Para fechar o arco dos sentidos inscritos nesse discurso, cabe lembrar que o primeiro investigado inicia sua fala em 18/07/2022,dizendo que “até o momento, não fez nada fora das quatro linhas da Constituição”. Porém, ao longo da exposição, são acionados os sentimento de desesperança e de urgência, propensos a ampliar a margem de tolerância com ações que viessem a ser ditas necessárias para debelar fraudes eleitorais. A todo o tempo, invocado como a justificativa cabal da necessidade da ação, aparece o IPL nº 1361/2018, que conteria a suposta evidência da manipulação de votos nas Eleições 2018.

O discurso se encerra sem nenhuma proposição às embaixadoras e aos embaixadores, a não ser a insistente oferta do primeiro investigado em compartilhar seus slides e, ainda, cópias do inquérito. Nada menos que um convite a que, rechaçando o TSE como fonte fidedigna de informações, aderissem à crença, sem nenhuma prova, de que o sistema eletrônico de votação adotado no Brasil não era capaz de assegurar que o candidato eleito nas Eleições 2022 seria quem de fato recebesse mais votos.

2.1.3  Cobertura da TV Brasil e difusão nas redes sociais do primeiro investigado

É fato incontroverso que a reunião de 18/07/2022 no Palácio da Alvorada foi transmitida ao vivo pela TV Brasil e pelas redes sociais do primeiro investigado.

A TV Brasil é uma emissora pertencente ao conglomerado da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), empresa pública que integra a Administração Pública Federal Indireta. Entre junho de 2020 e janeiro de 2023, período que abrange a época dos fatos, era vinculada ao Ministério das Comunicações (Decreto nº 10.395/2020). A partir de 23/01/2023, a EBC passou a ser vinculada à Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Decreto nº 11.401/2023). A forma empresarial é a sociedade anônima de capital fechado. A União é sua única acionista.

O Ministério das Comunicações não figura entre os destinatários do Ofício-Circular nº 83/2022/GPPR-CERIMONIAL/GPPR, de 13/07/2022, por meio do qual foram acionadas as unidades que deveriam atender a solicitações da Presidência da República para viabilizar o encontro com embaixadores (ID 158839080). Não houve, portanto, uma provocação formal para que fosse realizada a cobertura.

Em seu depoimento, Carlos França chegou a dizer que a transmissão “é determinada pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, sempre em contato com o Cerimonial da Presidência da República” (ID 158766494, p.31). No entanto, a solicitação à SECOM (que, de todo modo, à época, não tinha vinculação com a EBC), restringe-se a intérpretes de libras, apoio técnico e painel de LED.

Decerto, o Ministro das Relações Exteriores não era por lei obrigado a saber como se daria o acionamento da cobertura da TV Brasil, mas importa registrar que não se deu via Ministério das Comunicações ou via SECOM e que nenhum documento ou informação da defesa indica como foi ajustada a transmissão pela emissora pública. Presumível, contudo, que houve necessidade de algum ajuste às pressas na grade da programação, considerada a curta antecedência com que foi designado o evento.

Em trecho já mencionado do depoimento de Ciro Nogueira, o advogado dos investigados indagou a testemunha se esta considerava o evento um “ato oficial” e se “isso talvez pudesse justificar a transmissão [...] pela televisão pública”. O ex-Ministro-Chefe da Casa Civil assentiu, mas nada acrescentou a respeito do encaixe na programação. Relembre-se, quanto ao ponto, que a testemunha demonstrou não ser favorável à realização do evento e que o considerou “superdimensionado”.

Flávio Rocha, ex-Secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência, ao ser indagado sobre o ponto, apenas confirmou a ciência geral sobre o fato de que a reunião seria transmitida, entendendo que a medida visava assegurar transparência. Por outro lado, a testemunha declarou que não sabia da retransmissão nas redes sociais do primeiro investigado:

“O DOUTOR WALBER DE MOURA AGRA (advogado): [...] O Senhor sabia que todas essas informações foram transmitidas pela EBC, que é um empresa pública?

O SENHOR FLÁVIO AUGUSTO VIANA ROCHA (testemunha): Todos sabíamos que seria transmitida. E, pelo que eu me recordo, para dar transparência ao evento.

O DOUTOR WALBER DE MOURA AGRA (advogado): O Senhor também sabia que toda essa... tudo o que foi gravado com dinheiro público, porque a EBC é uma empresa pública, também foi veiculada na mídia social, nós estávamos no dia 18 de julho, então nós estávamos no período eleitoral propriamente de pré-campanha... o Senhor sabia que esse mesmo material foi transmitido na rede social do candidato, do pré-candidato?

O SENHOR FLÁVIO AUGUSTO VIANA ROCHA (testemunha): É, isso aí eu tô... estou recebendo esta informação do Senhor.

Foi informado na petição inicial, sem reparo posterior dos réus, que em 18/08/2022, um mês após o fato e na véspera do ajuizamento desta AIJE, o vídeo do evento se encontrava disponível nas redes sociais do primeiro investigado e contabilizava aproximadamente: a) no Facebook: 589.000 visualizações, 55.000 comentários e 72.000 curtidas; e b) no Instagram: 587.000 visualizações e 11.000 comentários (ID 157940943, p. 13).

Cumpre destacar que, em 10/08/2022, o YouTube já havia removido espontaneamente o vídeo do canal mantido pelo ex-Presidente, por entender que o material violava sua política de integridade, a qual “proíbe conteúdo com informações falsas sobre fraude generalizada, erros ou problemas técnicos que supostamente tenham alterado o resultado de eleições anteriores, após os resultados já terem sido oficialmente confirmados” (https://www.poder360.com.br/eleicoes/youtube-tira-do-ar-video-de-bolsonaro-com-embaixadores/).

A remoção do vídeo dos demais locais conhecidos dependeu de ordem judicial, exarada pelo então Corregedor-Geral da Justiça Eleitoral, em decisão proferida em 23/08/2022. O Facebook Brasil informou a exclusão das postagens feitas por Jair Messias Bolsonaro no Facebook e no Instagram (ID 157962283).

No que diz respeito à TV Brasil, a EBC informou que o material foi excluído pela Diretoria de Jornalismo (DIJOR), que geria sua distribuição (ID 157961482), e que os links respectivos foram excluídos das redes pela Gerência Executiva de Redes Sociais (ID 157961483).

Ao se analisar a resposta da EBC, constatou-se que o e-mail da Gerência Executiva de Redes Sociais, informando a remoção, exibe o engajamento do acesso via links em redes sociais da TV BrasilGov, a saber: a) compartilhamento no Twitter: 1.186 retweets, 77 tweets e 3.904 curtidas, sendo que o link exibe, no vídeo, o total de 62.200 espectadores; b) transmissão ao vivo no Facebook: 178.000 visualizações da postagem na página, 348.400 pessoas alcançadas, 20 mil reações (curtidas e similares) na postagem da página e 43.300 reações, comentários e compartilhamentos. O engajamento no canal de YouTube da TV Brasil não está visível, em função de já figurar a imagem contendo a mensagem: “este vídeo foi removido por violar as diretrizes da comunidade do YouTube” (ID 157961483).

A prova dos autos demonstra que o alcance do evento de 18/07/2022 não ficou restrito aos limites do Palácio da Alvorada e dos quase 100 embaixadoras e embaixadores presentes.

Em primeiro lugar, o evento foi transmitido por emissora pública, ao vivo, e a gravação ficou disponível para acesso até que derrubada pelo YouTube. A TV Brasil incrementou o engajamento ao compartilhar links em seu perfil de Twitter e do Facebook. Os depoimentos demonstram que a difusão do discurso em canal público aberto foi intencional.

Em segundo lugar, houve também uso das redes sociais do primeiro investigado para realizar a transmissão integral do evento. Não está demonstrado, nos autos, se isso se deu por retransmissão do conteúdo da TV Brasil ou por transmissão própria. Em qualquer dos casos, nítido que houve deliberado direcionamento do conteúdo para alcançar simpatizantes (seguidores) do já notório pré-candidato à reeleição.

O uso dos meios de comunicação, no caso em tela, criou uma multidão de espectadores, os quais puderam assistir ao primeiro investigado, na condição de Chefe de Estado, dirigindo-se a uma prestigiosa plateia de Chefes de Missão Diplomática. Essa dimensão performativa cumpre também função pragmática. Isso porque reforça a percepção de que o primeiro investigado tinha autoridade para tratar do tema, ao ponto de ser ouvido, respeitosamente, pela comunidade internacional.

Trata-se de mais um uso estratégico da normatividade de coordenação, destinada a consolidar o Presidente da República como fonte confiável no tema da segurança do sistema de votação. Sob esse ângulo, seu intento de “rebater” a Sessão Informativa para Embaixadas, realizada no TSE, foi objetivamente atingido.

Ademais, essa performance alcançou inequivocamente, eleitoras e eleitores. Essas pessoas foram expostas, ainda no momento pré-eleitoral, a conteúdo comprovadamente relacionado ao pleito vindouro.

O exame minucioso do discurso de 18/07/2022, em seu contexto, demonstra que a fala teve conotação eleitoral, sob tríplice dimensão: a) tratou-se de risco de fraude nas Eleições 2022; b) houve promoção pessoal e do governo de Jair Bolsonaro em contraponto ao “outro lado”; c) narrou-se uma imaginária conspiração de Ministros do TSE para fazer com que um iminente adversário, já à época favorito em pesquisas pré-eleitorais, fosse eleito Presidente da República.

Portanto, o conteúdo, nitidamente eleitoral e desinformativo, foi veiculado de forma massiva via emissora pública e redes sociais do Presidente da República, pré-candidato à reeleição. Não há dúvidas de que, dentre os efeitos pragmáticos do discurso de Jair Messias Bolsonaro datado de 18/07/2022 está a mobilização de suas bases políticas por meio da difusão de: a) informações falsas a respeito do sistema eletrônico de votação; e b) teses conspiratórias sobre a atuação do TSE.

2.2 Os fatos evocados no discurso (passado): o tema da “fraude na votação eletrônica” nas lives realizadas pelo então Presidente da República no ano de 2021

Conforme visto, o então Chefe de Estado iniciou sua apresentação aos embaixadores, em 18/07/2022, evocando advertências, que vinha fazendo há ao menos um ano, a respeito das supostas vulnerabilidades do sistema eletrônico de votação, as quais seriam graves o suficiente para comprometer a credibilidade do modelo. Reiteradas vezes, o então Presidente da República mencionou o inquérito da Polícia Federal que, segundo afirmou, atestaria o reconhecimento, pelo próprio TSE, de manipulação de resultados nas Eleições 2018.

O primeiro investigado contou aos chefes das Missões Diplomáticas que levou o inquérito a público em 2021 e – embora a reunião ocorresse faltando menos de três meses para o pleito – seguiu dizendo que o comprovante impresso de votação era necessário para assegurar transparência e auditabilidade. Insinuou haver interesse do TSE em recusar “um sistema transparente”, pois assim estaria garantida a vitória do “outro lado”. Foi bastante explícito ao declarar que os Ministros da Corte Eleitoral “devem favores” ao adversário.

Para convencer de sua benevolência ao trazer o assunto, o então Presidente repetia a todo o tempo seu desejo por eleições transparentes. Um bordão, com ligeiras variações, que vinha com o alerta para que não voltasse a ocorrer o que houve em 2018 – ou seja, conforme seu discurso, a manipulação de votos em seu prejuízo.

A fala, por vezes truncada, não esconde a importância da evocação do que se passou entre julho e agosto de 2021, quando Jair Messias Bolsonaro levou ao ápice as acusações diretas e inverídicas dirigidas contra o sistema eletrônico de votação. No período, tramitava em uma Comissão Especial da Câmara dos Deputados uma Proposta de Emenda Constitucional, a PEC nº 135/2019, para adotar o comprovante impresso de votação – ou, simplesmente, “voto impresso”, termo que aparece no texto do substitutivo que viria a ser apresentado pelo Deputado Filipe Barros.

Dentre as constantes falas do então Presidente em favor da aprovação da proposta, serão analisadas, neste voto, três lives em que o tema foi abordado, por se tratar dos fatos que embasaram a instauração do Inquérito Administrativo nº 0600371-71, voltado para a apuração preliminar de ataques ao sistema eleitoral que pudessem ameaçar a estabilidade das Eleições 2022. Registra-se que os atos preliminares praticados nesse inquérito administrativo foram, nesta AIJE, submetidos a contraditório. Após a juntada dos documentos, os investigados requereram contraprova, por meio de oitiva de testemunhas e requisição de documentos. Os requerimentos foram integralmente atendidos.

As transmissões foram feitas nas redes sociais do primeiro investigado e, em ao menos dois casos, pelo canal da emissora Jovem Pan no YouTube. Parte delas segue disponível na internet. O teor das falas encontra-se integralmente transcrito nos presentes autos.

Essas lives devem ser compreendidas no contexto da tramitação da proposta de voto impresso. Afinal, não se tratou de eventos aleatórios. O então Presidente da República, pessoas convidadas e até mesmo jornalistas participantes atuaram de forma pragmática, visando comunicar, com maior ou menor intensidade, que o sistema eletrônico de votação era vulnerável a fraudes graves e já detectadas. Tratavam a mobilização em torno da “PEC do voto impresso” como a luta da verdade, da liberdade e da democracia contra instituições corrompidas, formadas por pessoas com meios e disposição para manipular votos.

Resgatemos, portanto, primeiramente o debate parlamentar, para, em seguida, verificar a forma como foi apropriado para subsidiar injustificáveis ataques à credibilidade das urnas eletrônicas e da Justiça Eleitoral.

Em 13/09/2019, durante o primeiro ano de mandato do primeiro investigado como Presidente da República, a Deputada Bia Kicis (PSL-DF), integrante da base governista, apresentou a Proposta de Emenda Constitucional nº 135. Conforme diz a ementa, o projeto pretendia acrescentar “o § 12 ao art. 14 da Constituição Federal, dispondo que, na votação e apuração de eleições, plebiscitos e referendos, seja obrigatória a expedição de cédulas físicas, conferíveis pelo eleitor, a serem depositadas em urnas indevassáveis, para fins de auditoria”.

O projeto foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça em 16/12/2019. Em 13/05/2021 foi formada Comissão Especial para análise do mérito, cabendo ao Deputado Filipe Barros a relatoria do projeto. Em 28/06/2021, o relator apresentou parecer pela aprovação do projeto, com substitutivo. O texto passa a prever que seria “obrigatória a impressão do registro do voto conferível pelo eleitor” e acrescenta que esse registro deveria permitir ao eleitor verificar “se seu voto foi registrado corretamente” e, ainda, “que a apuração seja feita nas seções eleitorais pela mesa receptora de votos após o encerramento do pleito”.

O substitutivo da PEC nº 135/2019 detalhava a forma como deveria ocorrer, efetivamente, a apuração em cada uma das seções eleitorais – que somam 496.856 no Brasil e no exterior. Segundo a proposta, seria utilizado um “processo automatizado com programas de computador”, independentes dos da votação. Antes de contabilizar os votos, deveria ser possível uma conferência visual de cada papelucho, por eleitoras, eleitores e fiscais. Embora definida a primazia da apuração pela contagem dos comprovantes físicos, era previsto que as informações da urna eletrônica fossem usadas em caso de “falhas insanáveis” ou “danos aos votos impressos”.

Havia referência à “transmissão dos dados”, sem, porém, ser especificada como ela ocorreria. Por fim, previa-se a criação de um “Conselho de Tecnologia Eleitoral”, vinculado ao Congresso Nacional, que passaria a monitorar e avaliar o desenvolvimento de tecnologia pelo TSE.

Transcrevo as disposições a esse respeito:

“Art. 3º. Omissis

[...]

§ 5º A apuração dos registros impressos de voto será realizada pela mesa receptora de votos nas seções eleitorais imediatamente após o término do período de votação, sendo facultada a presença de eleitores, nos termos de regulamentação a ser expedida pelo Tribunal Superior Eleitoral.

§ 6º A apuração dos registros impressos de voto utilizará processos automatizados com programas de computador independentes dos programas carregados nos equipamentos de votação eletrônica.

§ 7º Os processos automatizados mencionados no § 6º deverão permitir a conferência visual do conteúdo do registro impresso do voto antes de sua contabilização.

§ 8º Nas seções eleitorais com registro impresso de voto, a apuração será realizada exclusivamente com base nesses registros; nas demais seções eleitorais em que registro impresso do voto não estiver ainda implementado, a apuração ocorrerá com base nos registros eletrônicos.

§ 9º Nas seções eleitorais com registro impresso de voto, na hipótese de ocorrência de falhas insanáveis nos equipamentos ou de dano aos votos impressos, em caráter excepcional e subsidiário, a apuração ocorrerá com base nos registros eletrônicos.

§ 10. Encerrada a apuração e efetuada a transmissão dos dados, o transporte e a custódia dos registros impressos de voto ficarão a cargo das forças de segurança pública ou das Forças Armadas, nos termos de requisição do Tribunal Superior Eleitoral.

§ 11. Uma vez entregues os equipamentos e os registros impressos dos votos nas sedes dos Tribunais Regionais Eleitorais, a custódia passa ser responsabilidade das respectivas Cortes.

§ 12. Os registros impressos de voto deverão ser preservados até 31 de janeiro do ano seguinte ao pleito, salvo situações excepcionais definidas pelo Tribunal Superior Eleitoral, a partir de quando poderão ser descartados.

§ 13. Havendo fundados indícios de irregularidade na apuração, os partidos políticos poderão, no prazo de até 5 (cinco dias) da data do pleito, requerer a recontagem de votos da respectiva seção eleitoral, assumindo os custos envolvidos no processo.

§ 14. Fica criado o Conselho de Tecnologia Eleitoral, órgão vinculado ao Congresso Nacional, com o objetivo de:

I - acompanhar, monitorar, avaliar e opinar sobre os processos de desenvolvimento das tecnologias eleitorais;

II – prover subsídios ao Tribunal Superior Eleitoral quanto às tecnologias eleitorais;

III – contribuir com a criação de novas tecnologias que venham a ser adotadas nos processos eleitorais brasileiros;

IV - elaborar relatórios periódicos sobre o uso de tecnologia nas eleições brasileiras.”

(Sem destaques no original.)

Iniciados os debates na Comissão, os membros Arlindo Chinaglia, Carlos Veras, Odair Cunha, Fernanda Melchionna, Ivan Valente, Orlando Silva, Daniel Almeida e Joenia Wapichana apresentaram voto em separado, pela rejeição da proposta. Outros três parlamentares – Pompeo de Mattos, Paulo Ramos e Paulo Ganime – fizeram manifestações favoráveis à aprovação, mas trouxeram sugestões de complemento. Essas proposições vieram a lume entre 05 e 16/07/2021.

O Relator, então, elaborou complementação de voto e novo texto para o substitutivo, que submeteu à Comissão em 04/08/2021. A nova versão alterava o caput do art. 14 da Constituição, fazendo constar o “voto direto, secreto, com igual valor para todos, conferível em meio impresso pelo eleitor e apurado em sessão pública”.

O § 12 seria inserido no dispositivo constitucional para prever que “[o] voto possui natureza jurídica de documento público e os processos de votação de eleições, plebiscitos e referendos são atos administrativos”. Sua conclusão dependeria de quatro etapas, dentre as quais o “registro do voto”, “no qual a manifestação da vontade do eleitor é computada e cuja exatidão possa ser conferida, em meio impresso, exclusivamente pelo próprio eleitor, assim que o voto é gerado”.

A próxima etapa, da apuração, estava conceituada como “contagem dos votos colhidos na seção eleitoral, pela mesa receptora de votos, publicamente por meio da presença de eleitores e fiscais de partidos, imediatamente após o período de votação e gera documento que atesta o resultado daquela seção eleitoral”. A totalização e a proclamação do resultado, independentemente da circunscrição do pleito, seriam respectivamente realizadas pelas “autoridades estaduais eleitorais” e pela “autoridade nacional eleitoral”. Essas autoridades não estavam designadas como órgãos da Justiça Eleitoral.

O novo substitutivo passou a incorporar mudanças também no art. 5º e no art. 16 da Constituição. Pretendia-se elevar a direito individual a conferência do voto em meio impresso, a apuração “pública” e a possibilidade de qualquer pessoa “mesmo sem conhecimento especializado, [...] atestar a lisura do pleito”. A anualidade eleitoral não seria aplicável à matéria, já que, conforme dispositivo previsto, “[a] lei que verse sobre a execução e procedimentos dos processos de votação, assim como demais assuntos que não interfiram na paridade entre os candidatos, tem aplicação imediata”.

Na tentativa de repelir a crítica de que o relator não havia conseguido se desvencilhar da dependência da tecnologia, a contagem de votos impressos por meios automatizados foi eliminada. A PEC passava a prever que “[a] apuração dos votos dar-se-á exclusivamente de forma manual, por meio da contagem de cada um dos registros impressos de voto, em contagem pública nas seções eleitorais, com a presença de eleitores e fiscais de partido”.

A conservação dos registros impressos de voto teria que ser feita por cinco anos, até o trânsito em julgado de procedimentos de recontagem – que poderia ser requerida em 15 dias a partir da proclamação dos eleitos – ou até procedimento de investigação, que seria conduzido “de maneira independente da autoridade eleitoral pela polícia federal”. A jurisdição caberia à Justiça Federal de primeira instância “do local da investigação”, o que, portanto, suprimiria a competência da Justiça Eleitoral.

O parecer do Deputado Federal Filipe Barros, contudo, acabou rejeitado na Comissão Especial em deliberação ocorrida em 05/08/2021. O Deputado Raul Henry relatou o parecer vencedor, datado de 06/08/2021, “pela rejeição da PEC nº 135 de 2019 e por consequência o seu arquivamento”. Essa manifestação aborda problemas detectados na proposta original e que, conforme o entendimento vencedor, não foram sanados ou foram até mesmo agravados pelo substitutivo.

Dentre esses pontos, destacam-se: a) centralidade conferida ao voto impresso, que não seria usado apenas para auditoria, mas contado para fins de apuração (ao ponto que “a urna eletrônica converte-se apenas em uma ‘caneta’, bastante cara ao contribuinte inclusive, para o preenchimento da cédula impressa”); b) impossibilidade logística da contagem de votos em “quase meio milhão de seções eleitorais”, aumentando “chances de fraude e tumulto” em meio à ausência de estrutura dos partidos políticos e órgãos de controle para atuar na fiscalização com tamanha capilaridade; c) ausência de clareza sobre a forma de totalização, a insinuar uma “totalização manual” ou “totalização auditável”; d) risco envolvido na custódia de toneladas de papel de comprovantes impressos, por cinco anos; e e) voluntariedade do pedido de recontagem.

O parecer vencedor traz conclusão no sentido de que “é possível perceber que a última versão do substitutivo do relator, eminente Deputado Filipe Barros, no afã de implementar o voto impresso, acaba por sugerir uma mudança constitucional que, se aprovada, representaria o maior golpe na segurança jurídica das eleições que já se viu desde a promulgação da Constituição de 88”.

A matéria foi levada a votação em plenário na Câmara dos Deputados. A PEC nº 135/2019 terminou rejeitada em primeiro turno de votação e arquivada em 10/08/2021.

As três lives que serão analisadas a seguir acompanham a crescente tensão envolvendo os debates sobre voto impresso, conforme se vê do quadro abaixo:

 

Data

Tramitação da PEC nº 135/2019

Lives objeto do INQ nº 0600371-71

13/05/2021

Criação da Comissão Especial para análise da PEC, com relatoria do Deputado Federal Filipe Barros.

 

28/06/2021

Relator da PEC apresenta parecer pela aprovação do projeto que prevê a impressão do voto e a contagem pública nas seções eleitorais.

 

5 a 16/07/2021

Membros da Comissão Especial apresentam votos em separado, pela rejeição da proposta, apontando falhas no projeto.

 

22 a 27/07/2021

 

Atos preparatórios para a live de 29/07/2021, incluindo convocação de perito da Polícia Federal ao Palácio do Planalto em reunião da qual participaram o Min.-Chefe da Casa Civil e o Diretor da ABIN.

29/07/2021

Faltava uma semana para a votação da PEC na Comissão Especial.

Live: Jair Messias Bolsonaro e Eduardo Gomes apresentam alegadas “denúncias” de fraudes nas Eleições 2014 e 2018. O Min. da Justiça, Anderson Torres, apresenta relatórios da Polícia Federal “corroborando aí as informações e a questão do voto auditável”.

04/08/2021

Véspera da votação na Comissão: Relator apresenta 2º substitutivo, buscando resolver falhas apontadas.

Live e entrevista, durante o Programa Os Pingos Nos Is, da Jovem Pan: Jair Bolsonaro e Filipe Barros divulgam a existência do IPL nº 1361/2018 e afirmam que nele está comprovado um ataque hacker a sistemas do TSE que teria permitido ao invasor “fazer qualquer coisa”, inclusive mudar votos em 2018. Alertam para a necessidade de aprovar o voto impresso como única forma de evitar fraudes em 2022. Eduardo Bolsonaro entra no ar ao final da entrevista, para anunciar que iria coletar votos para uma “CPI das urnas”.

05/08/2021

Votação na Comissão Especial: vencido o relator, prevalece o parecer do Deputado Federal Raul Henry, pela rejeição da PEC.

Live: Jair Bolsonaro retoma a narrativa das duas últimas semanas, inclusive a respeito de uma possível conspiração internacional para interferir via hackeamento, aos moldes do que afirma ter havido em 2018, para mudar o resultado das Eleições 2022. Faz fortes ataques pessoais ao então Presidente do TSE. Fala que “está ameaçando” convocar o povo para as ruas no dia 7 de setembro e desafia Ministros do STF a comparecerem.

10/08/2021

Votação em Plenário da Câmara dos Deputados: PEC é rejeitada em primeiro turno e arquivada.

 

12/08/2021

 

Live: o primeiro investigado atribui a rejeição da PEC à indevida influência de autoridades eleitorais e afirma que havia um “acordo” entre Ministros ou servidores do TSE e um hacker para eliminar 12 milhões de votos de Jair Bolsonaro em 2018. Apesar de a proposta do voto impresso não ter como voltar a ser discutida, Bolsonaro insiste em sua defesa como indispensável para debelar fraudes imaginárias.

 

 Aos detalhes de cada um dos eventos.

2.2.1 Live de 29/07/2021, com a participação de Eduardo Gomes e do então Ministro da Justiça, Anderson Torres

A primeira live contendo alegações que foram reiteradas no discurso de 18/07/2022 foi realizada em 29/07/2021. Ela ocorreu um mês após ter sido apresentado o primeiro parecer pelo Deputado Filipe Barros (28/06/2021) e começa a ser preparada pouco depois de formalizados os “votos em separado” contendo entendimentos contrários à aprovação da PEC nº 135/2019 (05 a 16/07/2021).

A live se destinava a cumprir duas importantes funções pragmáticas: desviar a atenção que começava a ser dada a problemas técnicos da PEC nº 135/2019 e manter em alta a capacidade de mobilização política propiciada pelo conspiracionismo. Para tanto, reforçou-se a carga de acusações infundadas ao sistema eletrônico de votação. Uma coletânea de “denúncias” apanhadas da internet ou recebidas de entusiastas foi conjugada com relatórios técnicos da Polícia Federal, ainda que estes em nenhum momento se referissem ao material apresentado na live.

Esse conjunto seria exibido como as tão alardeadas “provas” da manipulação de votos nas Eleições 2018. Na ocasião, Jair Messias Bolsonaro estava acompanhado do Coronel Eduardo Gomes. Foi o coronel quem conduziu a exposição das inverossímeis denúncias, que iam sendo comentadas de forma livre pelo então Presidente da República. Também participou da live o então Ministro da Justiça e da Segurança Pública, Anderson Gustavo Torres, que tratou dos relatórios da Polícia Federal. Os convidados também estiveram diretamente envolvidos em eventos pouco usuais ocorridos no contexto da preparação da live.

A respeito dos fatos, foram ouvidos na instrução desta AIJE, em 16/03/2022, Anderson Gustavo Torres e os policiais federais Ivo de Carvalho Peixinho e Mateus de Castro Polastro (todas as transcrições juntadas no ID 158886324).

As testemunhas confirmaram os depoimentos já colhidos no Inquérito Administrativo nº 0600371-71 e prestaram informações complementares. Os esclarecimentos minuciosos dos fatos pelos peritos, harmônicos com o depoimento do próprio Eduardo Gomes na fase de inquérito, permitiram dispensar a oitiva dessa testemunha, que não havia sido localizada.

Ivo de Carvalho Peixinho, perito criminal federal, encontrava-se à época lotado na Divisão de Repressão a Crimes Cibernéticos, em Brasília, Distrito Federal. Ocupava o cargo de Chefe do Núcleo de Repressão a Crimes de Alta Tecnologia. A testemunha havia atuado nos Testes Públicos de Segurança realizados pelo TSE em 2017, 2019 e 2021, liderando a equipe de peritos da Polícia Federal que examinou os códigos-fonte da urna eletrônica.

Logo ao início da inquirição, Ivo Peixinho foi perguntado a respeito de sua avaliação geral sobre o funcionamento das urnas a partir da experiência nas auditorias. O magistrado indagou se, em alguma ocasião, a testemunha e sua equipe identificaram indícios de fraude ou possibilidade de manipulação de votos no sistema eletrônico brasileiro. A resposta foi: não. Em outro momento, o advogado do autor indagou especificamente sobre possíveis “vulnerabilidades” detectadas. A testemunha reiterou que não houve achados que remetessem à adulteração de votos e enfatizou que um acesso a código-fonte não seria, sequer em tese, suficiente para fraudar o processo eleitoral. Transcrevo os trechos (ID 158886324, 59-60 e 70):

“O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): [...] Em alguma ocasião, nesses trabalhos, o senhor identificou achados, ou a sua equipe identificou achados que sugerissem fraudes nas urnas ou manipulação de votos, com risco de alteração de resultados?

O SENHOR IVO DE CARVALHO PEIXINHO (testemunha): Não. Todos os achados se referem a questões pontuais e foram retestados nos testes de confirmação pelo próprio TSE e validados como resolvidos.

[...]

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): [...] O senhor prestou depoimento à Polícia Federal em 16 de agosto de 2021 e consta transcrito nos autos, quando o senhor informa que em 2019 ou 2020, foi encaminhado pela ABIN, via SEI, um pedido sobre ocorrências ou atividades envolvendo urnas eletrônicas das eleições. O senhor confirma essa declaração?

O SENHOR IVO DE CARVALHO PEIXINHO (testemunha): Correto.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): O senhor lembra o que foi remetido em resposta à ABIN?

O SENHOR IVO DE CARVALHO PEIXINHO (testemunha): Foi feito um levantamento das atividades que foram realizadas com os respectivos processos SEI correspondentes.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Nesse levantamento, houve alguma verificação de fraude, nesse sentido?

O SENHOR IVO DE CARVALHO PEIXINHO (testemunha): Não. Simplesmente um levantamento das atividades que a Polícia Federal realizou nesse aspecto.

[...]

O DOUTOR WALBER DE MOURA AGRA (advogado do PDT): Walber de Moura Agra, advogado do PDT. Diante de todas as suas análises do sistema, Vossa Senhoria verificou algum tipo de vulnerabilidade nas urnas eletrônicas brasileiras?

O SENHOR IVO DE CARVALHO PEIXINHO (testemunha): Em seis anos de trabalhos, nós nunca identificamos nenhuma condição vulnerável que permitisse a... qualquer tipo de adulteração de resultado.

O DOUTOR WALBER DE MOURA AGRA (advogado do PDT): Na live do presidente ele afirma, de forma peremptória, que houve acesso ao código-fonte, inclusive, com burlas ao processo eleitoral nas Eleições de 2014 e 2018. Vossa Senhoria sabe alguma coisa a respeito disso?

O SENHOR IVO DE CARVALHO PEIXINHO (testemunha): Não. Ele... diria que o fato de alguém ter acesso a um código-fonte não levaria a essa conclusão.

Em 2021, quando já detinha notável familiaridade com os sistemas das urnas eletrônicas, acumulada ao longo de seis anos de atuação nos testes, durante os quais aplicou sua expertise em colaboração com o TSE, Ivo de Castro Peixinho passou a ser alvo de uma insólita abordagem, oriunda do governo federal. Resumo, a seguir, os fatos narrados pela testemunha no Inquérito Administrativo nº 0600371-71, confirmados em juízo e corroborados por Mateus de Castro Polastro, naquilo que por este foi presenciado:

a) em 22/07/2021, Ivo Peixinho recebeu uma ordem de sua chefia imediata, no sentido de que deveria se deslocar em avião da FAB para São Paulo, no dia 27/07/2021, para participar de uma reunião sobre urnas eletrônicas;

b) no final do mesmo dia, a ordem foi alterada: ele deveria comparecer já em 23/07/2021 ao Palácio do Planalto, para a mesma finalidade, não lhe sendo informado quem participaria da reunião;

c) no dia da reunião, um assessor do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, que o perito não conhecia, lhe telefonou, via WhatsApp, sugerindo a Ivo Peixinho que ele fosse antes ao referido Ministério, para se deslocar com o Ministro Anderson Torres para o Palácio do Planalto: o servidor público recusou o convite e informou que iria por conta própria ao local e usaria a entrada principal do Palácio;

d) nesse ínterim, Ivo Peixinho havia solicitado, pelas vias hierárquicas, que Mateus de Castro Polastro, também perito, o acompanhasse na reunião, o que foi deferido e se concretizou;

e) no Palácio do Planalto, os peritos foram recebidos pessoalmente pelo Ministro da Justiça que, somente então os informou que iriam participar de uma reunião sobre as urnas eletrônicas no andar superior, durante a qual seria feita uma “apresentação”, ficando os peritos incumbidos de reportar ao Ministro suas impressões sobre o tema;

f) em lugar de se dirigirem para a sala de reunião, os peritos foram conduzidos pelo Ministro da Justiça ao Gabinete da Presidência, tiveram seus celulares recolhidos e foram apresentados ao então Presidente Jair Messias Bolsonaro;

g) finalmente levados à sala onde ocorreria a reunião, os peritos tiveram contato com o Coronel Eduardo Gomes da Silva, que faria a apresentação, estando presentes ainda o General Luiz Eduardo Ramos, na ocasião, Ministro-Chefe da Casa Civil, e o então Diretor da ABIN, Delegado Alexandre Ramagem;

h) passados dez minutos do início da reunião, o Ministro Anderson Torres deixou os peritos junto às demais autoridades, informando que tinha outro compromisso;

i) ao final da reunião (cujo teor será a seguir detalhado), o perito foi abordado pelo, à época, Diretor da ABIN sobre eventuais falhas identificadas nos Testes Públicos de Segurança que não tivessem sido sanadas, recebendo da testemunha resposta no sentido de que “não identificou nenhum problema, então apontado nos testes, que não tivessem sido resolvidos”;

j) em 27/07/2021, Ivo Peixinho foi informado que deveria comparecer ao Ministério da Justiça e da Segurança Pública para expor a Anderson Torres o conteúdo da citada reunião;

h) a testemunha, mais uma vez acompanhada de Mateus Polastro, se dirigiu ao local, onde os peritos foram encaminhados para falar com o Secretário-Executivo do Ministério e em seguida dispensados. Entretanto, ao retornar à Polícia Federal, Ivo Peixinho foi informado de que Anderson Torres ainda o aguardava;

i) os peritos não retornaram ao Ministério.

Indagado em juízo se “convocações dessa natureza, para deslocamento em avião da FAB e ao Palácio do Planalto, sem prévia informação de pauta, eram usuais nas suas atribuições”, Ivo Peixinho respondeu objetivamente que “não”. O ponto voltou a ser abordado, em mais detalhes, na inquirição (ID 158886324, pp. 61 e 66):

“O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Era próprio às atribuições que o senhor exercia à época dos fatos, manifestar-se verbalmente sobre suspeitas da Presidência, da Casa Civil, da ABIN ou do Ministério da Justiça sobre vulnerabilidades do sistema eleitoral?

O SENHOR IVO DE CARVALHO PEIXINHO (testemunha): O nosso trabalho era basicamente técnico e consistia em fazer análises dentro das dependências do Tribunal Superior Eleitoral, do código-fonte, realizar recomendações e participar dos testes públicos, eventualmente, encontrando pontos de melhoria e participando dos testes de confirmação, onde as melhorias eram testadas novamente.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Antes desses episódios, o senhor já havia participado de reuniões no Palácio do Planalto, convocados pela Presidência ou pela Casa Civil?

O SENHOR IVO DE CARVALHO PEIXINHO (testemunha): Não.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Já havia, eventualmente, tido que ser provocado a tratar de assuntos relacionados à segurança do processo eleitoral de modo verbal, por esses órgãos que eu mencionei, a ABIN, a Casa Civil ou o Ministério da Justiça?

O SENHOR IVO DE CARVALHO PEIXINHO (testemunha): Não, que eu me recorde.

Os peritos foram uníssonos ao explicar o teor da reunião e o motivo pelo qual Ivo Peixinho havia sido chamado ao Palácio do Planalto: avaliar, no próprio recinto, perante o Diretor da ABIN e o Ministro-Chefe da Casa Civil, se uma tabela, contendo dados da votação de Dilma Rousseff e Aécio Neves, comprovava a ocorrência de fraude nas Eleições 2014.

Esse material, que teria sido produzido por pessoa de nome “Marcelo”, “dono de empresa de informática”, foi exibido na reunião do dia 23/07/2021 pelo Coronel Eduardo. Os peritos, contudo, se recusaram a emitir opinião de mérito, insistindo que a análise técnica somente poderia ser feita se o material fosse remetido formalmente para a Polícia Federal. Também enfatizaram, diante da tabela que supostamente realizava um somatório que colocava ora a candidata Dilma, ora o candidato Aécio à frente da disputa, que a questão era afeta à contabilidade, e não à informática, especialidade de ambos.

Segundo os relatos, o Coronel Eduardo aquiesceu com a cautela, mas General Ramos se recusou a fazer o envio à Polícia Federal, pois sua utilização pública por Jair Bolsonaro já estava prevista. Ao mesmo tempo, mostrava-se preocupado em “não expor o Presidente da República em uma furada”. Firme em sua posição técnica, Ivo Peixinho voltou a enfatizar a necessidade de encaminhamento para a Polícia Federal.

O material jamais chegou à Polícia Federal por canais oficiais e, dias depois, foi exibido na live. Transcrevo os trechos do depoimento de ambos os peritos sobre o ponto (ID 158886324):

“Inquirição de Ivo Peixinho:

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Também sobre a apresentação do Coronel Eduardo Gomes da Silva, no que diz respeito aos vídeos que ele iria apresentar, em especial, o intitulado “O padrão dos números nas Eleições de 2014”, o senhor prestou as seguintes declarações: “Que o General Ramos iniciou a reunião dizendo que uma pessoa chamada Marcelo seria o dono de uma empresa de informática, e que ele teria identificado uma suposta fraude nas Eleições de 2014, responsável por elaborar a tabela apresentada na live; que após cerca de 10 minutos, o Ministro da Justiça informou que teria outra reunião e saiu da sala; que o Coronel Eduardo apresentou na reunião, praticamente o mesmo conteúdo que ele apresentou na live no dia 29.7.2021; que após a apresentação, o depoente e o Policial Polastro foram indagados sobre o que acharam da mesma; que o depoente informou que não tinha condições técnicas para avaliar a planilha e sugeriu que tal documentação fosse encaminhada à Polícia Federal, para que pudesse ser analisada pelo setor específico; que o Coronel Eduardo concordou com a posição do depoente e do Policial Polastro, porém, o General Ramos disse que tal medida não seria possível, pois essa planilha seria apresentada na próxima quarta-feira e, na quinta-feira, pelo Presidente da República em uma coletiva; que a preocupação do General Ramos era “de não expor o Presidente da República em uma furada”. Que o depoente percebeu que o importante era deixar o posicionamento técnico sobre a planilha, e reforçar que deveria ser encaminhada para a Polícia Federal, pois qualquer outro argumento, aparentemente, não modificaria a ideia dos ali presentes em apresentar o tal documento na coletiva de quarta-feira e quinta-feira”. O senhor confirma essas declarações, tem algo a acrescentar?

O SENHOR IVO DE CARVALHO PEIXINHO (testemunha): Perfeito, confirmo. Nossa preocupação era, simplesmente, apontar que, é, precisaria de uma análise aprofundada sobre a planilha, que seria uma questão de contabilidade e não de informática.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): O senhor sabe dizer se essa planilha foi encaminhada à Polícia Federal para análise?

O SENHOR IVO DE CARVALHO PEIXINHO (testemunha): Não tenho conhecimento. 

Inquirição de Mateus Polastro:

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): [...] Sobre a apresentação do Coronel Eduardo Gomes da Silva, no que se refere aos vídeos que ele iria apresentar, em especial, o intitulado O Padrão dos Números das Eleições de 2014, o senhor prestou as seguintes declarações: indagado se conversaram especificamente sobre a planilha e gráficos apresentados dentro da apresentação com título Padrão Números das Eleições de 2014, o senhor respondeu que sim. E que a referida planilha foi o foco da reunião. Que o Coronel Eduardo participou da reunião com o intuito de obter a opinião do depoente e do Policial Federal Peixinho sobre o conteúdo da planilha apresentada para subsidiar a live que ocorreria em 29.7.2021. Que o General Ramos iniciou a reunião, fez apresentações expondo que o tema tratado seria em torno de possíveis fraudes nas Eleições de 2014. Que tais fraudes poderiam ser corroboradas por uma planilha e gráficos. Que a planilha apresentada na reunião, conforme exposto pelo General Ramos, teria sido produzida por uma pessoa de nome Marcelo, que teria uma empresa de tecnologia da informação. Que, em seguida, o General Ramos se retirou do local e deixou a cargo do Coronel Eduardo a continuidade da reunião. Que o Coronel Eduardo ligou para Marcelo, colocou o telefone em viva-voz. E que Marcelo explicou como realizou os cálculos para chegar ao resultado exposto na planilha. Que, em seguida, Marcelo desligou e saiu da reunião. Em seguida, ato contínuo, o Coronel Eduardo apresentou o conteúdo da planilha. Após a apresentação, o Senhor e o policial federal Peixinho contestaram, tecnicamente, o resultado exposto em uma coluna, especificamente, a que mostrava um comportamento atípico de alternância entre os nomes dos candidatos Aécio e Dilma, o que indicaria uma suposta fraude. Que, diante disso, o Senhor e o policial federal Peixinho sugeriram que a planilha fosse encaminhada a uma perícia para entender, de forma detalhada, as fórmulas aplicadas. O Senhor confirma isso?

O SENHOR MATEUS DE CASTRO POLASTRO (testemunha): Sim.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Tem algo a acrescentar nesse sentido?

O SENHOR MATEUS DE CASTRO POLASTRO (testemunha): Não, acho que bem completo o que aconteceu mesmo.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Sabe dizer se tem conhecimento se essa planilha foi encaminhada à Polícia Federal para perícia?

O SENHOR MATEUS DE CASTRO POLASTRO (testemunha): Que eu saiba, não.

Cabe salientar que o “comportamento atípico” referido por Mateus Polastro dizia respeito ao funcionamento da fórmula aplicada pelo autor da planilha e não a dados oficiais da totalização. Os peritos, mesmo sem acesso à fórmula, relataram a percepção de uma inconsistência no material, o que foi ignorado pelos membros do governo (ID 158886324, pp. 85-88):

“O SENHOR MATEUS DE CASTRO POLASTRO (testemunha): [...] Assim, é, de qualquer forma, o total dos votos que a planilha tivesse ali teria que bater com o total de quando fecharam as urnas, então, assim, não importa se teve comportamento atípico, o total ia ser o mesmo e não ia mudar o resultado das eleições, né. O que acontece com a planilha, na verdade, minha análise da planilha foi [...] projetada num painel lá, né, então, assim, eu não tive acesso pra ver as fórmulas, por isso que a gente pediu pra ser enviado pra PF, pra perícia da Polícia Federal. Tinha uma coluna lá que, aparentemente, era o de total de votos naquele minuto, né, e, do lado, tinha essa outra coluna, que, dependendo de quem vencia, ficava vermelho ou azul, né. Essa era a planilha. Então, você conseguia, visualmente, ver as alternâncias por minuto. Só que essa coluna aí, aparentemente, não significava o total de votos naquele minuto. Era alguma outra fórmula, considerava outros fatores que fazia com que tivesse essa alternância. Então, só pra esclarecer. [...] O que tive aparência de que aquela coluna, que foi dita como a coluna de comportamento suspeito, né, que tinha aquela alternância, dezenas ou até centenas de vezes, eu não me recordo, não parecia mostrar o que estava querendo dizer, que seria o total de votos naquele minuto, me parecia que a coluna que teria esse comportamento seria uma coluna anterior e não a que estava sendo indicada como a suspeita.

O DOUTOR WALBER DE MOURA AGRA (advogado do PDT): Vossa Senhoria ou o agente Peixinho mencionaram isso durante...

O SENHOR MATEUS DE CASTRO POLASTRO (testemunha): Sim.

O DOUTOR WALBER DE MOURA AGRA (advogado do PDT): Esse evento?

O SENHOR MATEUS DE CASTRO POLASTRO (testemunha): Sim.

O DOUTOR WALBER DE MOURA AGRA (advogado do PDT): E qual foi a resposta do Senhor Ramagem e do General Ramos?

O SENHOR MATEUS DE CASTRO POLASTRO (testemunha): Não teve resposta. Continuaram com a apresentação. Não recordo de nada, especificamente, que tenha sido respondido.”

Durante a inquirição, a defesa buscou apresentar a tese de que o ocorrido poderia ser qualificado como “cooperação técnica”. Em resposta, Ivo Peixinho tratou dos fatos sob sua perspectiva, sustentando que foi convocado e opinou, e que isso não era irregular. Certo, porém, que o estranhamento em relação ao ocorrido não recai sobre a conduta firme do perito, mas, sim, sobre a anômala convocação para exame visual de um planilha, em reunião dentro do Palácio do Planalto, sendo que, mesmo após a orientação para envio formal à Polícia Federal, o material acabou sendo exibido pelo Presidente da República em uma live com ampla transmissão.

Outra linha buscada pela defesa, na audiência, foi a de sustentar uma falsa equivalência entre a recusa dos peritos em opinar sobre a tabela e a confirmação de que se estava diante de um indício de fraude, que seria suficiente para legitimar, de boa-fé, a exibição dos dados produzidos por pessoa de nome Marcelo na live presidencial. Não há, porém, como dar respaldo a esse raciocínio.

Primeiro, porque os peritos foram diretos em dizer que sua especialidade era informática, e não contabilidade. Assim, quando disseram não ostentar o conhecimento especializado exigido para a conferência das fórmulas, isso não quer dizer que se viram diante de fortes evidências de fraude, mas apenas que, como profissionais rigorosos, não se pronunciariam oficialmente em campo diverso daquele para o qual são credenciados. Leia-se o trecho em que, na audiência, a própria testemunha refere-se à linha de inquirição como “capciosa” (ID 158886324, p. 73):

“O DOUTOR EDUARDO AUGUSTO VIEIRA DE CARVALHO (advogado): [...] E, em sua opinião, o documento era inconsistente, absolutamente inverossímil?

O SENHOR IVO DE CARVALHO PEIXINHO (testemunha): Na minha opinião, assim... eu sou perito de informática, não sou perito em contabilidade, mas na minha opinião as fórmulas, possivelmente, estavam incorretas.

O DOUTOR EDUARDO AUGUSTO VIEIRA DE CARVALHO (advogado): Mas o senhor tinha conhecimento específico sobre o tema ou não?

O SENHOR IVO DE CARVALHO PEIXINHO (testemunha): Eu não sou perito em contabilidade, por isso que, na ocasião, eu sugeri que o material fosse encaminhado à Polícia Federal para uma perícia específica.

O DOUTOR EDUARDO AUGUSTO VIEIRA DE CARVALHO (advogado): Então, na opinião de testemunha, seria necessária a realização de uma perícia pra descartar a plausibilidade desse material, confere?

O SENHOR IVO DE CARVALHO PEIXINHO (testemunha): Perfeito.

 O DOUTOR EDUARDO AUGUSTO VIEIRA DE CARVALHO (advogado): Então, nesse sentido, na opinião da testemunha, que participou dessa reunião, haveria, sem que estivesse descartada a plausibilidade desse documento, haveria margem pra uma discussão pública do tema, no sentido, talvez, de aperfeiçoamento?

O SENHOR IVO DE CARVALHO PEIXINHO (testemunha): Olha, essa é uma questão pouco capciosa, né...

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): É Doutor.”

Segundo, sem necessidade de repetir fundamentos já destacados a respeito da responsabilidade por accountability, não há ensejo para supor que o Presidente da República ou seus Ministros pudessem agir de modo frontalmente contrário à orientação técnica para remeter o arquivo ao setor competente da Polícia Federal. Mateus Polastro foi firme em dizer que as autoridades presentes à reunião foram devidamente esclarecidas quanto ao procedimento recomendado (ID 158886324, p. 90):

“O SENHOR MATEUS DE CASTRO POLASTRO (testemunha): Sim, minha opinião foi, como eu disse, não foi uma opinião, não foi um laudo emitido, né, porque eu não tive acesso, foi a opinião técnica naquele momento indicando que o melhor caminho seria o encaminhamento pra PF, para que a gente, sim, pudesse dar um resultado final ali e com segurança absoluta, mas o que foi dito é que aquilo, aparentemente, não mostrava ser o que estava sendo dito, mas que para confirmação e garantia de que o que fosse apresentado na live realmente se confirmasse, né, com a planilha e a gente precisaria ter uma análise mais precisa.

Veja-se que, segundo Mateus Polastro, quando os peritos foram apresentados ao então Presidente da República, este “falou que queria que a gente estivesse lá pra que garantíssemos a lisura no processo eleitoral de 2022” (ID 158886324, p. 80). Por isso, ainda que se pudesse considerar a estranha convocação dos policiais ao Palácio do Planalto como um ato administrativo regular, ou de boa-fé, essa impressão duraria pouco tempo. A partir do momento em que os peritos não corroboraram o material, a decisão por simplesmente exibi-lo na live evidencia descompromisso com a verdade factual a respeito do sistema eletrônico de votação.

Terceiro, a suposta análise sobre o comportamento dos números na apuração das Eleições 2014 foi preparada por uma pessoa que simplesmente se identificou como “um entusiasta da informática”, referida como “Marcelo”. Não obstante, o alto escalão do governo federal e o próprio Presidente da República se deram por satisfeitos com tais credenciais.

O autor do material chegou a participar da reunião no Palácio do Planalto por telefone. A ausência de método científico era notória, mas, ao que parece, compensada pelo empenho de Marcelo em minerar algo que se assemelhasse a uma inconsistência nos resultados eleitorais. Confira-se, sobre o ponto, a resposta de Ivo Peixinho (ID 158886324, p. 76):

“O DOUTOR RODRIGO LOPEZ ZILIO (membro auxiliar do Ministério Público Eleitoral): Nessa reunião, o Eduardo, ele, ele, ele passou alguns vídeos que ele teria obtido na internet, né; ele chegou a explicar pros senhores quem eram os produtores desses vídeos e se eles tinham alguma expertise pra, pra falar aquilo que eles tavam afirmando?

O SENHOR IVO DE CARVALHO PEIXINHO (testemunha): Não. Houve uma ligação durante a reunião para o indivíduo Marcelo, né, que seria o autor da suposta planilha, e esse indivíduo se apresentou como um entusiasta de informática ou coisa semelhante e ele afirmou que ele fez a planilha tentando buscar cálculos pra tentar achar alguma inconsistência na contabilidade daquela Eleição de 2014.”

No mesmo dia da live, o TSE apontou que os dados lançados na tabela eram falsos, asseverando que “desconhece a origem das informações apresentadas, uma vez que não correspondem aos dados oficiais, minuto a minuto, da totalização dos votos computados pela Justiça Eleitoral no segundo turno das eleições presidenciais de 2014” (https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2021/Julho/fato-ou-boato-e-falsa-a-planilha-que-mostra-inversoes-entre-aecio-neves-e-dilma-rousseff-no-2o-turno-de-2014).

Veja-se, pois, que o material possivelmente considerado mais “promissor” para os fins da live de 29/07/2021, ao ponto de seus organizadores nele apostarem para tentar angariar o cobiçado aval dos peritos da Polícia Federal, frustrou as expectativas. Os especialistas recomendaram que ele não fosse exibido sem antes ter seus dados e fórmulas checados. E, mais que isso, conseguiram, ainda que de forma ligeira, dar pistas da inconsistência dos cálculos.

Sopesados, todavia, de um lado, a opinião dos dois experts da Polícia Federal e, do outro, o entusiasmo de “Marcelo”, a balança pendeu em favor do último. A planilha, que supostamente indicaria uma alternância de vantagem “minuto a minuto” nas Eleições 2014, foi exibida para o público como se fosse evidência de fraude. O autor da tabela foi referido como “especialista”. O primeiro investigado, dando seu aval aos dados, disse: “nós aqui achamos que procedia a informação”.

Isso foi suficiente para divulgar na internet o material antes de enviá-lo para a perícia – o que foi anunciado elo então Presidente da República, mas não se concretizou. Transcreve-se o trecho da live em que foi apresentada a tabela relativa às Eleições 2014 (ID 158764856, pp. 25-26)

“O SENHOR JAIR MESSIAS BOLSONARO. Vamos correr aqui pra gente encerrar? Pula rapidinho, pula aí. Pula, pula aí. Padrão das eleições. É esse? Então olha só: o que é que foi feito aqui. Em 2014, por ocasião do segundo turno, o TSE disponibilizou a apuração das eleições minuto a minuto.

EXIBIÇÃO DE IMAGEM

O SENHOR JAIR MESSIAS BOLSONARO (presidente da República): E pessoas especialistas no assunto, de matemática, probabilidade, estatística, buscaram um padrão. Buscaram saber se se tinha algum padrão, porque as curvas de Aécio e Dilma, né, Aécio começou lá em cima, a Dilma lá embaixo, e elas foram se aproximando. Quando se cruzaram, estabeleceu-se um padrão dali pra frente. E não tem padrão em eleições. Então, esses dados – mostra, por favor, só a imagem aí, que eu vou pular –, tendo em vista – pode passar, isso, levanta a tela –, tendo em vista a complexidade da questão no tocante a padrão, estamos encaminhando via o Anderson, Ministro da Justiça, à Polícia Federal para analisar isso daí.

EXIBIÇÃO DE IMAGEM

O SENHOR JAIR MESSIAS BOLSONARO (presidente da República): Isso é a mesma coisa, quer dizer, à direita né, em vermelho e azul, você, em quatro horas de apuração, 240 minutos, 240 vezes você jogar uma moeda pra cima, hora dá cara, hora dá coroa, hora dá cara, hora dá coroa. Isso equivale, aproximadamente, você ganhar, de forma consecutiva, seis vezes na Mega-Sena. Pode acontecer? Pode, mas a probabilidade se aproxima de zero, é quase um sobre infinito. Então, um dado complexo, que chegou ao nosso conhecimento. Nós aqui achamos que procedia a informação e vai pra Polícia Federal, que eu espero que, em poucas semanas ou antes, tenha um laudo, se procede ou não isso aí. Por que jogar uma moeda 240 vezes pra cima e dar cara ou coroa é realmente algo assustador.”

Mas não foi só. A live reuniu uma coletânea de “denúncias” colhidas na internet, dentre as quais a reiterada farsa da urna que “autocompletaria” o voto em favor de Fernando Haddad nas Eleições 2018. Essa é uma das afirmações mais explícitas no sentido de ter havido uma manipulação de votos. Ela viria a ser repetida por Jair Messias Bolsonaro perante embaixadoras e embaixadores em 18/07/2022.

Outras falsas imputações de ocorrências de fraudes no pleito de 2018 apresentadas no bate-papo entre o primeiro investigado e o Coronel Eduardo foram: a) reprogramação de “linhas” do sistema, com alteração de resultados; b) desvio puro e simples de votos de um candidato para outro, sendo feita a referência aos 12 milhões de votos “por exemplo”; c) adulteração de resultado evidenciada pela impossibilidade matemática de que Fernando Haddad terminasse com percentual mais alto de votos do que ostentava às 19h05; d) no extremo oposto, adulteração de resultado evidenciada pela impossibilidade de que as eleições para governador de São Paulo terminassem com percentuais de votos por candidatura quase idênticos aos que tinham com menos de 1% de urnas apuradas.

A fim de dar credibilidade aos inverossímeis “indícios de fraude” abordados na transmissão de 29/07/2021, o Coronel Eduardo foi, logo de saída, apresentado ao público como “analista de inteligência”. Jair Messias Bolsonaro anunciou que o especialista se apoiaria, ao longo da sua apresentação, em documentos que deviam merecer a confiança do público. O então Presidente da República também avisou da participação, ao final, do então Ministro da Justiça, que exibiria documentos produzidos pela Polícia Federal, os quais se somariam aos “indícios e mais indícios” apresentados por Eduardo.

A participação de Anderson Torres ao final da live é, de fato, breve. No entanto, ela cumpre função pragmática essencial à estratégia de descredibilização das urnas eletrônicas: o então Ministro da Justiça, apresentando-se com a autoridade do órgão ao qual é vinculada a própria Polícia Federal, afirma que apresentaria relatórios técnicos “corroborando aí as informações e a questão do voto auditável” (ID 158764856, p. 43).

A essa fala seguiu-se a leitura de fragmentos extraídos de relatórios técnicos produzidos pela Polícia Federal por ocasião dos Testes Públicos de Segurança. São os documentos que contaram com a contribuição do perito Ivo Peixinho, testemunha que afirmou peremptoriamente que neles não há apontamento de qualquer indício de manipulação de votos.

Esses relatórios não serviam, portanto, de forma alguma, para corroborar a apresentação de Eduardo Gomes e os comentários de Jair Messias Bolsonaro. Simplesmente nada neles respaldava as mirabolantes hipóteses de fraude, como urnas que “autocompletaram votos” e desvio de milhares de votos mediante “reprogramação de algumas linhas”.

Ao ser inquirido como testemunha nessa AIJE, Anderson Torres sustentou que somente fez a leitura de trechos de relatórios técnicos da Polícia Federal produzidos em atendimento a “chamamento público” do TSE e chegou a dizer que não teria comentado a apresentação. Mas não é o que se extrai do vídeo, pois sua fala fez referência direta à apresentação e não conteve qualquer ressalva a conteúdos que não teriam sido “corroborados” pelos relatórios de que dispunha.

Anderson Torres foi indagado, em juízo, a respeito de sua ciência sobre o conteúdo da live. Ele negou que tenha tido prévio contato com a apresentação de Eduardo Gomes, pois teria estado presente apenas ao início da reunião de 23/07/2021 e em conversa com o Delegado Ramagem, sem focar no que dizia Eduardo. Disse não ter certeza de qual foi o material que os peritos recomendaram remeter por vias oficiais à Polícia Federal, mas que acreditava ser o conteúdo exibido na live, com o qual somente teria tido contato, verdadeiramente, durante a transmissão ao vivo. E, não obstante todo o empenho para que os peritos participassem da reunião preparatória, reconhece não ter tomado nenhuma providência ao saber que o material que seria exibido ao público necessitava de exame para verificar a fidedignidade de seu teor (ID 158886324, pp. 13-14 e 21-22):

“O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): [...] E o Senhor tem ciência de qual seria esse material que os peritos indicaram que deveria ser remetido formalmente?

O SENHOR ANDERSON GUSTAVO TORRES (testemunha): Doutor, eu acredito que foi o material apresentado na live, mas eu não tenho certeza. Eu acredito que a live durou mais de duas horas, como eu disse, e foi apresentado ali um material. Eu acredito, não tenho certeza, não posso afirmar, não vou dizer, mas eu acredito que foi o material que foi apresentado na live. O que eu acredito que seja. [...] Porque ser era uma preparatória para live, deve ser sobre isso.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Tá. Sobre a apresentação com o título “Padrão dos números da eleição de 2014”, que teria sido objeto da reunião, conforme depoimentos do Coronel Eduardo e do policial Peixinho à Polícia Federal, o perito declarou que “não tinha condições técnicas para avaliar a planilha” e sugeriu que tal documentação fosse encaminhada para a Polícia Federal para que pudesse ser analisada pelo setor específico. O Senhor, ao tomar conhecimento de um material não corroborado pelos peritos e que poderia ser levado à live, informou [...] ao ex-presidente ou adotou alguma providência para efetivar a análise?

O SENHOR ANDERSON GUSTAVO TORRES (testemunha): Doutor, eu não adotei providências uma vez que esse material era oriundo da Casa Civil e lhes foi informado que se quisessem um parecer da Polícia Federal eles deveriam encaminhar à Polícia Federal. Isso não chegou à minha... eu não deliberei sobre esse assunto, isso não chegou à minha deliberação.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Certo. Em qual momento o Senhor teve acesso ao conteúdo da apresentação que iria ser feita na live, seja o material a ser exibido ou então ao menos os tópicos que seriam tratados?

O SENHOR ANDERSON GUSTAVO TORRES (testemunha): Eu tive acesso na própria live. Eu fiquei sentado lá fora, eu não estava sentado à frente das câmeras, mas eu estava sentado atrás ali, enfim, e acompanhei a apresentação inteira.

[...]

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): [...] Como Ministro da Justiça, o Senhor chegou a se preocupar ou tomar alguma providência sobre o fato do então presidente apresentar dados que ainda não tinham sido analisados pelos peritos?

O SENHOR ANDERSON GUSTAVO TORRES (testemunha): Como foi falado no início, Doutor, os dados... se quisessem um parecer da Polícia Federal, se quisessem ver se realmente havia fundamento ou não naquilo, teria que ser encaminhado formalmente pra Polícia Federal. A gente, pelo que me consta, não há, não houve nada que passou pelo crivo da Polícia Federal ali desses documentos que mostrassem ou que provassem haver algum tipo de crime ou alguma... algum crime nisso que foi encaminhado pra lá, enfim, não se chegou à conclusão nenhuma em relação a isso, em relação a crimes.”

Foram lidos para a testemunha trechos da apresentação em que Eduardo Gomes ou Jair Bolsonaro faziam afirmações factuais sobre “indícios” de manipulação de votos nas Eleições 2014 e 2018, e alertavam para o risco de que isso se repetisse nas Eleições 2022. Após a leitura de cada trecho, o magistrado indagou à testemunha se ela possuía, em seu poder, durante a live, algum relatório da Polícia Federal que estivesse investigando cada imputação de fraude ou que as tivesse comprovado. Em todos os casos, a resposta da testemunha foi que não possuía documentos que respaldassem as alegações (ID 158886324, pp. 16-23):

“O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Certo. Como já se passaram alguns anos desde a live de 2001 e tudo está transcrito em sua literalidade, eu vou me referir a alguns pontos que foram tratados antes de formular as perguntas tá. Eu digo o seguinte: Ao início da live de 29/7, o então presidente da República disse que vai apresentar indícios colhidos da imprensa e de eleitores citando que a pessoa queria votar no 17 e aparecia nulo ou automaticamente o 13. Logo em seguida o ex-presidente disse: “são indícios e mais indícios, bem como no final o Ministro da Justiça Anderson mostrará alguns relatos de perícias, por parte da Polícia Federal, que sempre encaminharam para que o sistema deveria ser aperfeiçoado.” O Senhor estava de posse de algum relatório da Polícia Federal que confirmasse essa ocorrência?

O SENHOR ANDERSON GUSTAVO TORRES (testemunha): Doutor, a única coisa que eu estava de posse eram esses documentos públicos encaminhados pela Polícia Federal ao TSE nesse chamamento público. Eu não tinha nada além disso.

[...]

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Compreendi. Durante a live o Coronel Eduardo exibiu alguns vídeos Após o vídeo o ex-presidente diz: “Isso aconteceu largamente por ocasião das eleições de 2018. Tem vários vídeos demonstrando isso daí. Exatamente o que está aí.” O Senhor estava na posse de algum relatório da Polícia Federal que confirmasse essa ocorrência desses vídeos?

O SENHOR ANDERSON GUSTAVO TORRES (testemunha): Negativo. Não estava de posse.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Tá. Coronel Eduardo também, ao anunciar que iria fazer uma análise do momento da apuração das eleições presidenciais de 2018, relata que às 19h05, com 53,49% das urnas apuradas, Jair Bolsonaro tinha 49% dos votos. Sendo que 50% dos votos representa a vitória em primeiro turno, e que Fernando Haddad tinha 26% dos votos. Ele faz algumas observações e diz que comentaristas e repórteres diziam, a essa altura, que “ainda pode dar primeiro turno.” O vídeo avança e o Coronel Eduardo diz que começa a mudar e o percentual de Bolsonaro cai para 47, quando as urnas do sudeste começam a ser... aí o próprio presidente completa “Exatamente quando entram as urnas do sudeste, em grande volume, ao invés de eu subir, eu caio. Mais um indício fortíssimo.” O Senhor estava de posse de algum relatório da Polícia Federal que tratava dessa dinâmica da divulgação dos resultados, como indício de irregularidade ou fraude dessas eleições 2018?

O SENHOR ANDERSON GUSTAVO TORRES (testemunha): Negativo, Excelência. Não tinha relatórios. A única coisa que tinha comigo no dia dessa live, foram... é isso que eu disse ao Senhor, que eu levei e falei ao final, desse chamamento público, eu não levei documento nenhum, nem do Ministério da Justiça e nem da Polícia Federal que envolva qualquer tipo de investigação, qualquer tipo de...de análise nesse sentido. A análise que foi falada ali é uma análise pública feita para o Tribunal Superior Eleitoral, nada além disso.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Tá. O Coronel Eduardo também exibe um vídeo a respeito da eleição de um município, referido como Caxias, e diz que “37% das urnas, segundo a reportagem deixa bem claro, foram fraudadas.” Aí o presidente, na época, emenda: “Alguém sabe quando é que o TSE disponibiliza as votações pormenorizadas de cada seção eleitoral? Aí dias depois, talvez aí, talvez aí, são aquelas urnas, talvez eu digo, para fazer a conta de chegada lá na frente.” O Senhor teve conhecimento ou teve algum é... algum documento da Polícia Federal que daria caráter indiciário a essas afirmações?

O SENHOR ANDERSON GUSTAVO TORRES (testemunha): Negativo. Não tive.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Após outro vídeo exibido pelo Coronel Eduardo sobre a divulgação dos resultados da eleições de 2014, o então presidente afirma que “a oscilação de vantagem entre Aécio e Dilma, significaria você em quatro horas de apuração, 240 minutos, 240 vezes você joga uma moeda para cima. Ora dá cara, Ora dá coroa. Ora dá cara, Ora dá coroa. Isso equivale a aproximadamente você ganhar de for consecutiva 6 vezes na mega-sena. Pode acontecer? Pode, mas a probabilidade se aproxima de zero. É quase um sobre infinito.” E completa: “Um dado complexo que chegou a nosso conhecimento. Nós achamos aqui que procedia a informação e vai para a Polícia Federal, que eu espero que em poucas semanas ou antes tenha um laudo, se procede ou não isso aí”. O envio para Polícia Federal passou pelo Senhor, na condição de Ministro da Justiça?

O SENHOR ANDERSON GUSTAVO TORRES (testemunha): Doutor, eu vou lhe dizer que não passou. Tô tentando me lembrar se alguma coisa nesse sentido foi encaminhada pra mim. Mas eu acho que posso lhe afirmar que não passou por mim o envio disso à Polícia Federal. Eu não vou lhe afirmar 100% de certeza. Eu não sei se a Presidência mandou e via gabinete isso vai... quando vem da requisição da Presidência isso vai automático. Mas eu acredito que não passou por mim essa requisição de nada pra Polícia Federal aí pra trabalhar nesse sentido. Não me recordo de ter deixado, em relação a essa live, nenhuma pendência é... é... tanto com o presidente quanto da Casa Civil, quanto com qualquer outro órgão do governo. Não me recordo.

[...]

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Outro dado apresentado pelo Coronel Eduardo diz respeito à eleição 2020 para prefeito de São Paulo. Foi comentado diretamente pelo ex-presidente da seguinte forma: “com 0,39% das urnas apuradas o sistema travou. Então tava aí: o Bruno com 32, o Guilherme com 20, depois 13, 10, 9, 8, 1 e 1. Aí quando o sistema voltou a funcionar lá na frente, já com quase 100% apurado, a ordem dos candidatos permaneceu exatamente a mesma. Bem isso pode acontecer? Pode. Mas uma coisa fantástica aconteceu. Não só a ordem permaneceu, dos 100%, quando estava 0,39, bem como o percentual.” O Senhor estava de posse de algum relatório da Polícia Federal ou chegou ao Senhor algum relatório que tratava essa dinâmica da divulgação de resultados, como indício de irregularidade ou de fraude nas eleições 2020?

O SENHOR ANDERSON GUSTAVO TORRES (testemunha): Negativo, Excelência.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Ao abordar os riscos para as eleições 2022, o ex-presidente disse na live: “Quem não quer mudar o sistema, porque tem certeza que o voto não auditável servirá para eleger quem não tem voto. Não estou acusando os servidores do TSE, são meia dúzia que manobram tudo isso aí. Temos reclamações desde 2008. Não podemos deixar continuar acontecendo isso. Deus nos deu uma oportunidade ímpar em 2018.” O Senhor tinha algum relatório da Polícia Federal ou que chegou às suas mãos que confirmassem ou fornecessem indício de alguma manobra realizada por poucas pessoas dentro do TSE e que teria influência no resultado, na adulteração de votos?

O SENHOR ANDERSON GUSTAVO TORRES (testemunha): Negativo, Excelência. Não tinha.”

A testemunha foi, por sete vezes, confrontada em audiência com sete afirmações factuais feitas por Eduardo Gomes e Jair Bolsonaro a respeito de indícios ou mesmo de efetiva adulteração de votos no sistema eletrônico de votação. Por sete vezes, declarou não possuir documentação que as respaldasse.

Ocorre que Anderson Torres, sem estar de posse de qualquer informação técnica a respeito das graves imputações feitas pelos demais participantes ao longo da live que acompanhou integralmente, não hesitou em afirmar que peritos da Polícia Federal haviam examinado as supostas denúncias de eleitores e chegado a conclusões que corroboravam a apresentação. A testemunha foi confrontada com esse fato durante o interrogatório e, mais uma vez, negou que tivesse material que desse suporte ao que havia sido apresentado por Eduardo Gomes e Jair Bolsonaro (ID 158886324, p. 23).

“O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): [...] Aí no final da live, o ex-presidente passa a palavra ao Senhor e o Senhor diz: “Corroborando aí as informações e questão do voto auditável, acho importante a gente trazer à tona alguns relatórios, os peritos da Polícia Federal, e aí acho importante dizer, que são aqueles especialistas responsáveis pelas análises criminais e de crimes cometidos, crimes cibernéticos, esse são esses profissionais. Os peritos emitiram algumas considerações e sugestões que eu acho importante a gente trazer aqui.” Então o Senhor diz com base em trabalhos de 2016 a 2019 pela Polícia Federal: “A impressão do voto não se confunde com o voto em cédula e serve para validar um pleito caso esse seja questionado.” E afirma exatamente: “Tudo que foi falado, tudo que foi questionado, todas as dúvidas levantadas pelos eleitores, a Polícia Federal também analisou.O Senhor estava em poder de relatórios que analisaram questionamentos de eleitores semelhantes aos exibidos na live? Fez algum estudo?

O SENHOR ANDERSON GUSTAVO TORRES (testemunha): Não estava.

[...]

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Eu só to reforçando e vou retomar essa pergunta, porque isso foi expressão do Senhor na live né. O Senhor disse: “Exatamente tudo que foi falado, tudo que foi questionado, todas as dúvidas levantadas pelos eleitores, a Polícia Federal também analisou”. Então é em cima dessa sua afirmação que eu queria saber, com relação a esse... a essa documentação.

O SENHOR ANDERSON GUSTAVO TORRES (testemunha): É porque essa documentação, Doutor, ela falava, como eu te disse, sobre – o senhor bem colocou aí – sobre essa questão do... duma rechecagem; ela falava sobre a necessidade... isso falava dos peritos, tá?, sobre a necessidade desse voto, para se conferir, em caso de dúvida, na eleição. Tudo isso que foi falado, com as dúvidas apresentadas nesse... por outros vídeos, por outras coisas, foram os trechos que eu selecionei ali, para poder falar que foram também falados pelos peritos da Polícia Federal. Mas foi colocado por eles, como aperfeiçoamento do sistema eleitoral. Os peritos não disseram que... jamais afirmaram ali haver fraude, ou qualquer coisa nesse sentido. Isso não é afirmação dos peritos e muitos menos nossa ali. A gente fez foi ler os questionamentos e as considerações feitas por eles.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Então, só para que fique claro, nos autos e para as partes: os documentos da Polícia Federal que o Senhor tinha em mãos, eles não tratavam de investigações específicas, sobre dúvidas levantadas na live e, sim, sugestões genéricas de aprimoramento? É isso?

O SENHOR ANDERSON GUSTAVO TORRES (testemunha): Exatamente. E esses documentos, inclusive os que estavam comigo, Excelência, se eu não me engano, foram juntados aí, na audiência com o Ministro Salomão, e isso é público. Isso é do TSE. Tem todos aí na íntegra, isso deve ter aí no TSE de todos esses anos. O que tinha em meu poder ali eram trechos desses documentos e nada mais.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): E vamos deixar assim bem detalhado: o Senhor tinha, ou não tinha, documentos da Polícia Federal específicos, sobre alguma denúncia de fraude à eleição?

O SENHOR ANDERSON GUSTAVO TORRES (testemunha): Comigo, nesse dia, não tinha; não tinha nada disso, não falei sobre isso e não toquei nesse assunto.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Tá. Alguma vez o Senhor recebeu algum documento a esse respeito?

O SENHOR ANDERSON GUSTAVO TORRES (testemunha): Negativo. Doutor, as coisas assim... as coisas... o trabalho de polícia judiciária da Polícia Federal, ele não é comunicado ao Ministro da Justiça. Se tem investigação, o que que está sendo investigado lá, isso não... Isso chega para mim quando tá... quando desencadeia a operação... quando... Isso não é tratado comigo.

[...]

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Tá. Após ouvir a exposição do ex-presidente e do Coronel Eduardo, nessa live, o Senhor considerou que as declarações que eles fizeram estavam alinhadas com a apresentação que o Senhor fez planejada?

O SENHOR ANDERSON GUSTAVO TORRES (testemunha): Excelência, na verdade, o que foi apresentado ali pelo Coronel, instantes depois ali da gente sair da... da live, na internet, enfim, eu fui recebendo algumas coisas, e as pessoas iam rebatendo aquilo que ele apresentou. É como eu te disse... eu não participei da apresentação dele, não sei da onde vieram os dados que ele trouxe. Eu sei, eu posso falar muito claramente, pelo que eu apresentei ali. O que eu apresentei foram sugestões técnicas que diziam que... sugeriam melhoramentos na questão eleitoral brasileira, principalmente em relação a... para evitar questão de fraudes e outras coisas. Apenas isso. Em relação ao que ele produziu, ao que foi produzido por ele e pela Casa Civil, isso não fez parte do meu acervo ali; a gente não conversou sobre isso. Enfim, eu realmente acho que não... não tem como opinar sobre o que ele apresentou.

As declarações em juízo evidenciaram uma tentativa de Anderson Torres de desvincular das informações falsas passadas ao público. Esse esforço, contudo, é inócuo diante da análise de seu discurso no contexto da live de 29/07/2021. A testemunha ouviu as variadas denúncias e suspeitas relatadas por Eduardo Gomes, que convergiam para afirmar que a urna eletrônica não seria capaz de garantir resultados autênticos. Também ouviu as intervenções enfáticas do primeiro investigado, direcionadas a convencer que “meia dúzia” de pessoas no TSE tinha meios para fazer com que se proclamasse eleito alguém que não teria sido realmente o mais votado.

Após tudo isso, quando lhe foi franqueada a palavra, Anderson Torres não fez qualquer objeção ou contraponto aos tópicos tratados por Eduardo ou às interpelações de Jair Bolsonaro. Fez, na verdade, o inverso disso: em breves minutos, anunciou que dispunha de relatórios que corroboravam as colocações feitas e declarou, sem meias palavras, que “exatamente tudo que foi falado, tudo que foi questionado, todas as dúvidas levantadas pelos eleitores a Polícia Federal também analisou”.

Ressalte-se que, ao iniciar seu depoimento em juízo, Anderson Torres enfatizou que seu trabalho no governo era “pouco político e muito técnico”. Porém, ao tratar do que disse na live, a testemunha admitiu que não sabia ao certo sequer o contexto de elaboração dos relatórios de onde tirou trechos para leitura. Também destacou que os documentos eram muito extensos, o que inviabilizava que fossem lidos em sua integralidade, razão pela qual se valeu de um resumo. E declarou que seu objetivo era comunicar ao público que era preciso pensar em melhorias para evitar fraudes (ID 158886324, pp. 6-7 e 15):

“O SENHOR ANDERSON GUSTAVO TORRES (testemunha): [...] nessa live especificamente, eu gostaria de acrescentar, foi uma live que durou mais de duas horas, a minha participação foi bem ao final da live, mais ou menos uns cinco, seis minutos ali, nos quais eu me... fiz apenas a leitura de alguns relatórios públicos feitos pela Polícia Federal, por uma comissão convocada pelo próprio Tribunal Superior Eleitoral, que faz um chamamento público anual para que membros da sociedade civil, instituições se manifestem sobre o processo eleitoral brasileiro. A minha participação foi exatamente ler alguns trechos desses relatórios que sugeriam ali algum tipo de melhora, algum tipo de aperfeiçoamento no sistema. A minha participação foi apenas essa e nada além disso.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Tá. Quando o Senhor menciona chamamento público do TSE e especificamente à Polícia Federal, o Senhor se refere ao que, à comissão de transparência das eleições, especificamente o quê?

O SENHOR ANDERSON GUSTAVO TORRES (testemunha): Doutor, eu, na verdade, eu não sei informar isso ao Senhor. Porque na época dos fatos, nós perguntamos, nas diversas áreas do Ministério, o que que tinha de material para poder subsidiar alguma participação, alguma pergunta que me fosse feita durante a live. E a única coisa que veio até mim foi exatamente isso. A Polícia Federal apresentou esses relatórios feitos nesse chamamento do Tribunal Superior Eleitoral, um chamamento público, realmente, eu não sei dizer para o Senhor qual é o chamamento, uma vez que ele é do TSE. Os documentos não eram sigilosos, não havia restrição nenhuma, enfim, e por isso eu separei alguns trechos ali e a minha participação foi ler esses trechos ali na live.

[...]

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): [...] Continuando o depoimento que o Senhor prestou ao Ministro Salomão, o Senhor disse, sobre a sua fala na live, que o que fez foi ler a opinião que os peritos descrevem. Mais adiante: “palavras técnicas dos peritos. Então, foi basicamente isso o que nós fizemos e passamos ali na live.” Quem que escolheu os relatórios que o Senhor iria mencionar? Foi o Senhor ou lhe foi passado pelo ex-presidente?

O SENHOR ANDERSON GUSTAVO TORRES (testemunha): Na verdade, é um trabalho do gabinete. Mas assim, eram relatórios não muito longos, Excelência. Então, assim, mas também não tinha como ficar lendo tudo isso na live. Então nós selecionamos ali um ou dois, umas duas ou três páginas que falavam especificamente sobre sugestões pras eleições, feitas pelos peritos da Polícia Federa ao TSE, e nós lemos absolutamente isso. Eu não fiz, eu não fiz, ali na live, juízo de valor, e tal. A gente leu aquilo ali e... e... e... deixou... E outra coisa: o chamamento público, ele é feito, acho que é feito todos os anos, ou de dois em dois anos. E o relatório dos peritos da Polícia Federal, a gente leu de alguns anos anteriores, eles vêm sempre no mesmo sentido. Então não tinha muita novidade naquilo que eu apresentei. É 2014, 15, 16, enfim, vem vindo aí esses relatórios. 

[...]

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): [...] Bom, trazendo agora ao trecho de outro depoimento do Senhor, para gente ganhar tempo. Um depoimento prestado na Polícia Federal, perante a delegada Denisse Dias Rosa Ribeiro, em 26 de agosto de 2021, também constante dos autos. Nesse caso, a transcrição de suas declarações está de forma indireta. Leio um trecho, quando o Senhor foi indagado sobre o conteúdo que apresentou, o Senhor disse: “que diante da possibilidade de ser convidado a participar da transmissão, com base nos estudos realizados, preparou um resumo de todo o estudo; que tem conhecimento sobre o assunto”. Indagado qual era a intenção do declarante, ao ler trechos dos relatórios produzidos pelos peritos da Polícia Federal, na live de 29.7.2021, o Senhor respondeu que “queria dar ciência, para aqueles que assistiam à transmissão da live, de que, por mais seguro que seja um determinado sistema de tecnologia, existe a necessidade de aumentar os meios de segurança do sistema, para evitar eventuais fraudes.” O Senhor confirma que elaborou o resumo que o orientou na fala da live com essa intenção?

O SENHOR ANDERSON GUSTAVO TORRES (testemunha): O resumo, Excelência, é exatamente esse resumo que eu disse ao Senhor que eu li. O documento era gigantesco, os documentos são muito grandes, foi feito um resumo deles, para que eu pudesse ler. Não tinha como ler o documento inteiro, produzido pelos peritos. E exatamente... e essa conclusão final é exatamente a conclusão final dos documentos. Os documentos concluem isso.”

Dadas as circunstâncias, evidente que não havia expectativa de que o público em geral pudesse entender o teor de fragmentos de análises de auditoria, lidos em poucos minutos. O uso do material serviu, assim, apenas para emprestar verniz técnico e oficial às aberrantes especulações feitas por Eduardo Gomes e Jair Bolsonaro.

Na realidade, para todos que assistiram, havia legítima expectativa de que o Ministro da Justiça somente passaria informações verídicas sobre a atuação da Polícia Federal, o que por si mitigaria qualquer necessidade para o público de tentar entender os intrincados termos técnicos ditos de passagem. O que importava para a audiência era a mensagem consolidada: relatórios da Polícia Federal corroborariam a ocorrência de adulteração de votos em 2014 e em 2018.

O papel de Anderson Torres, independente da duração de sua fala, não foi de menor importância, pois usou de sua inquestionável autoridade de Ministro da Justiça para conferir uma chancela qualificada ao conteúdo da live. E fez isso sabendo que era absolutamente falso afirmar que tinha em mãos relatórios da Polícia Federal examinando aquelas ocorrências.

Em seu conjunto, a live contribuiu, de forma significativa, para a degradação da normatividade epistêmica pela normatividade de coordenação. Materiais de origem duvidosa foram misturados com relatórios da Polícia Federal, enquanto os participantes – ninguém menos que o Presidente da República, seu Ministro da Justiça e um Coronel apresentado como especialista em “análise de inteligência” – desfiavam falsos relatos de fraude no sistema eletrônico de votação.

Cabe destacar os elementos discursivos da live de 29/07/2021 que viriam a reverberar intensamente na reunião com embaixadoras e embaixadores em 18/07/2022: a) distorção de aspectos técnicos relacionados à segurança do voto informatizado; b) conspiracionismo; c) imputação de parcialidade política a Ministros do TSE; d) verbalização de desejos de transparência, paz e liberdade, em contraste com a beligerância da mensagem comunicada; e) reforço a pensamentos intrusivos no sentido de que o eleito em 2022 poderia não vir a ser o candidato verdadeiramente mais bem votado; f) recurso à simbiose Presidência da República/Forças Armadas como antagonista ao TSE; e g) desencorajamento às missões de observação eleitoral.

Ressalte-se que a tentativa de desacreditar o TSE como fonte confiável, em 29/07/2021, foi centrada na pessoa do Min. Luís Roberto Barroso, que presidia o tribunal e vinha prestando esclarecimentos, inclusive a convite da Câmara dos Deputados, a respeito do sistema eletrônico de votação. Naquele contexto, em que a PEC nº 135/2019 se encontrava em debate, Jair Messias Bolsonaro, sem colocar em seu horizonte de compreensão que os melhores argumentos poderiam estar prevalecendo, reiteradamente insinuou que algo estaria sendo “oferecido” para fazer parlamentares mudarem de opinião sobre o voto impresso.

Outro ponto a observar é que, na live, o primeiro investigado usou uma estratégia mais aberta de confronto ao saber técnico do que viria a apresentar em sua performance, já mais bem-acabada, em 18/07/2022. Isso porque, em 29/07/2021, chegou a convocar manifestações de rua para mostrar uma suposta “vontade do povo”, que necessariamente teria que prevalecer sobre a “vontade de uma única pessoa” (na sua leitura, o Presidente do TSE).

Esse episódio demonstra o uso do conspiracionismo como ferramenta de mobilização política: visa-se substituir a deferência às instituições pelo repúdio a estas. O objetivo é subverter por completo a lógica da confiança e apresentar o então Presidente da República como líder capaz de conduzir o povo a uma “real” democracia, livre do jugo de especialistas.

A íntegra da transcrição da live foi juntada aos autos. Destaca-se, a seguir, trechos das falas de Jair Messias Bolsonaro que ilustram a prática discursiva exercitada em 29/07/2021, cujos efeitos pragmáticos são similares àqueles identificados no discurso de 18/07/2022 (ID 158764856):

“O SENHOR JAIR MESSIAS BOLSONARO (presidente da República): Podemos começar? Boa noite a todos. Ao meu lado aqui o Eduardo, analista de inteligência, que vai nos ajudar na apresentação de muitos indícios. Alguns ainda em fase de análise, outros extraídos da própria imprensa brasileira e outros também de pessoas que, no dia das eleições, foram votar e o nome do seu candidato não apareceu na tela. Por incrível que pareça, as reclamações só tinham uma mão. Queria votar no 17 e aparecia nulo ou automaticamente o 13. Quem queria votar no 13, não aparecia 17 e nem nulo. Então, são indícios e mais indícios, bem como no final o Ministro da Justiça Anderson mostrará alguns relatos de perícias por parte da Polícia Federal, que sempre encaminharam para que o sistema deveria ser aperfeiçoado. Vale lembrar que o nosso sistema eleitoral só existe no Butão, Bangladesh e Brasil.

[...]

Por que a ferocidade do presidente do TSE em não querer discutir e não querer falar sobre uma contagem pública de votos ou sobre uma forma de auditá-los? Por que o presidente do TSE, na iminência de ver a PEC da Deputada Bia Kicis ser aprovada na Comissão Especial, ele vai pra dentro do Parlamento, se reúne com várias lideranças partidárias, e a partir do dia seguinte muitos desses líderes trocam as composições da comissão por parlamentares que se comprometeram a votar contra a PEC do voto impresso? Qual foi o poder de persuasão do Barroso? Que poder esse homem tem para essa forma de convencimento? Por que ele teme tanto o voto democrático? Por que ele não quer umas eleições democráticas? Por que que ele não quer que nós possamos contar também fisicamente os votos? Mente, Senhor Ministro Barroso, quem diz que é um retrocesso, que a volta do voto em papel... Isso é mentira. Isso é uma fake news. O senhor deveria ser o primeiro a ter humildade, o primeiro a falar em democracia, em transparência. Hoje a maioria da população já é favorável à mudança no processo eleitoral. Geralmente quem busca um subterfúgio pra fraudar as eleições é quem tá no poder. Eu estou fazendo exatamente o contrário

[...]

Qual o futuro do nosso Brasil se nós terminarmos umas eleições onde um lado ou outro desconfia e começa a realizar ações contrárias ao pleito? Nós estamos há mais de um ano antes dizendo que nós não queremos problemas. Eu quero democracia. Eu quero que o candidato que o João ou a Maria porventura votar, esse voto seja contado exatamente para aquela pessoa. Será que isso é demais? Será que existe um sistema querendo, por meios outros não democráticos, fazer voltar ao poder aqueles que mergulharam o país na corrupção e na impunidade? Não queremos desafiar ou brigar com nenhum poder, muito pelo contrário, queremos paz, tranquilidade. Quem o povo votar em 2022, o destino do Brasil, o destino da sua família, em grande parte, estará nas mãos de quem ele votou. Se ele fez porventura uma opção errada, que aguente as consequências. Mas o que nós não podemos admitir é que alguém que não tenha voto chegue. Desculpe se vou ser forte agora. É justo quem tirou o Lula da cadeia, quem o tornou elegível, ser o mesmo que vai contar o voto numa sala secreta no TSE? Cadê a contagem pública dos votos? Eu quero eleições no ano que vem. Vamos realizar eleições no ano que vem, mas eleições limpas, democráticas, sinceras.

[...]

Se o povo decidir por um candidato desse de forma limpa, não tem problema. O que está em jogo é o futuro do Brasil e a liberdade do nosso povo. Longe de eu ter amor por essa cadeira. Sabia que ia ser difícil. Mas entendo, porque acredito em Deus, que ele me colocou aqui, e só ele me tira dessa cadeira. Agora, para 2023, se porventura eu vier candidato, eu quero ter a certeza de que o eleito representa a vontade popular.

[...]

 Uma das vontades do povo são eleições limpas. Por que o presidente do TSE quer manter a suspeição sobre eleições? Quem ele é? Por que ele continua interferindo por aí? Com que poder? Não quero acusá-lo de nada, mas algo de muito esquisito acontece. Para onde vai o nosso Brasil? Que exemplo de democracia estamos dando para o mundo?

[...]

Mas temos algo importantíssimo: porque eleições estão diretamente ligados à liberdade, o bem maior de um povo. O que tá em jogo é a liberdade do povo brasileiro. Eu, como militar, jurei dar minha vida pela pátria e o povo, a qual eu converso, que é o nosso exército, fez jurar, dão a vida pela sua liberdade.

[...]

Vê se alguns desses... criticaram alguns militares do meu lado, dizendo que isso não é uma questão para nós tratarmos, que é uma questão política. Não. Todos são obrigados a votar no Brasil, os maiores de 18 até os 70. Então, interessa a todos nós. Essas eleições têm a ver com a nossa soberania nacional.

[...]

Querem deixar umas eleições sem qualquer maneira de ser auditada. Umas eleições que podem ser mais do que suspeitas. Por que o temor ao Senhor Luís Barroso? O que ele tem conversado com alguns para convencê-los tão rapidamente, que esse sistema é preciso, é confiável? Por que ter um hacker preso, que entrou nos computadores do TSE, se o Barroso diz que os seus computadores são invioláveis? Por que ele está preso? Por que abrem tantos inquéritos de fake news como os outros foram agora abertos?

[...]

A luta pelo poder em Brasília é ferrenha. Perguntei agora há pouco para um importante parlamentar, falei: “Se tivesse oportunidade de alguém, no Brasil, com certa influência, fraudar o sistema eleitoral e ganhar um mandato de senador o ano que vem, tu acha que alguém faria isso?” Ele falou: “Faria”. E ele respondeu acertadamente. Será que este modo de se fazer eleições é seguro, é blindado? Os que me acusam de não apresentar provas, eu devolvo a acusação: apresente provas que ele não é fraudável. O que eu quero é democracia. Tantos me acusam de ditador, tantos me acusam de ser violento.

[...]

Nós queremos transparência, queremos a verdade, queremos eleições democráticas, um voto democrático. Quem pode ser contra isso? Quem quer a instabilidade de uma nação poderosa com a nossa?

[...]

Ganhe quem ganhar as eleições do ano que vem, repito, vamos atender à vontade popular. Não vamos nos prender à vontade de um homem apenas, que interfere no Poder Legislativo. Não sei, oferecendo, com que poder, fazendo com que se mude de um dia para o outro, uma adesão normal, que estava para acontecer, que é a PEC da Bia Kicis, cuja relatoria é do Filipe Barros, praticamente não tivesse esperança em ser aprovado.

[...]

O Eduardo, aqui do meu lado, vai demonstrar alguma coisa, como disse, apresentado pela própria imprensa, pelo povo. Também, por indícios fortíssimos, ainda em fase de aprofundamento, que nos levam a crer que temos que mudar esse processo eleitoral. Não pode os mesmos que tiraram o outro cara da cadeia, torná-lo elegível, serem as mesmas pessoas que vão contar os votos. Vocês veem, o mundo todo, observadores eleitorais. O Brasil vai receber de novo. Vão observar o que no Brasil? O que tem de palpável para eles observarem? Não tem como se comprovar que as eleições não foram ou foram fraudadas. São indícios. Um crime se desvenda com vários indícios. Vamos apresentar vários indícios aqui. Eu tenho um compromisso para com o povo brasileiro: é governar dentro das quatro linhas da Constituição. E isso eu vou fazer.

[...]

O SENHOR JAIR MESSIAS BOLSONARO (presidente da República): Antes de voltar a palavra aqui. Pode também o programador decidir por um número de votos pra tal candidato e pra outro, mas como esse tal candidato teve muito voto, acabou ganhando a eleição. Isso pode também ocorrer. Programador falhou. Por exemplo, vamos desviar 12 milhões de votos de tal candidato, e aquilo não foi suficiente porque o outro candidato teve muito voto. Isso pode acontecer também, mas temos mais coisa para mostrar.

O SENHOR JAIR MESSIAS BOLSONARO (presidente da República): Olha, não houve reclamação contrária. Ninguém falou que tentou votar no 13 e não saiu a cara do 13 ali. Só do 17 para lá. Do 13 para cá, não existiu. Que se fosse um erro, aconteceria dos dois lados. Mais um indício. Tem um, mais um vídeo, aí ou não?

[...]

O SENHOR JAIR MESSIAS BOLSONARO (presidente da República): Que atraso, meu Deus do céu! Que atraso! Foi demonstrado que tava avançado, quase terminando, e o Sudeste tava lá atrás. Isso é o Ibope. Não se pode admitir uma questão dessa. Isso é um indício fortíssimo que algo aconteceu, que algo foi modificado, na transmissão ou lá dentro. Indício fortíssimo, mais um.

[...]

O SENHOR JAIR MESSIAS BOLSONARO (presidente da República): Alguém sabe quando é que o TSE disponibiliza as votações pormenorizadas de cada seção eleitoral? Dias depois. Talvez aí, talvez aí, são aquelas urnas, talvez eu digo, para fazer a conta de chegada lá na frente. Se o TSE disponibilizasse, em tempo real, não apenas o retrato de quem está ganhando as eleições, mas pormenorizado o que aconteceu em cada seção eleitoral, isso é possível ser feito, ajudaria a combater a fraude. Mas o TSE deixa para apresentar isso muito mais tarde, onde alguns acham, uma suspeição apenas, que essas urnas extras seriam para acertar, fazer a conta de chegada, se encontrar quinze dias depois pra dar um ar de legalidade em toda a apuração. Deixo bem claro: suspeitas que poderiam se acabar com a impressão do voto e com a contagem pública do mesmo.

[...]

Toda a imprensa, eu tenho certeza, se conversar individualmente, querem eleições limpas. Eleições que, no final das contas, possa dizer que o João realmente se elegeu vereador, prefeito, deputado, senador, presidente, seja o que for. Se errar, vamos assumir o erro, aguentar as consequências. Mas vivemos um período pós-eleições de suspeição. Que problemas nós teremos, de um lado ou de outro? Se o Datafolha está certo, vamos mudar o sistema, Presidente Barroso, Presidente do TSE, Barroso. Que assim esse candidato vai ser eleito. Agora, quem não quer mudar o sistema, porque tem certeza que o voto não auditável servirá para eleger quem não tem voto? Repito: quem tirou o Lula da cadeia, quem o tornou elegível é quem vai contar os votos lá no TSE, na sala escura. E devemos entubar? E dizer que Ministro Barroso está certo, as urnas são invioláveis?

[...]

Não estou acusando os servidores do TSE, são meia dúzia que manobram tudo isso daí. Temos reclamações desde 2008. Não podemos deixar continuar acontecendo isso. Deus nos deu uma oportunidade ímpar em 2018. Imagine se o outro cara estivesse no meu lugar, estaríamos igual à Argentina, tudo fechado. Olha o padrão dos ministros que nós teríamos no Brasil. O mesmo que assaltaram estatais, bancos oficiais, lotearam ministérios, criaram mensalões. Quase que arrebentaram com Brasil. Nós queremos a volta disso, na base da fraude? “Ah, não tem prova de fraude”. Também não tem se não há.

[...]

Não se justifica gente respondendo processo, sofrendo busca e apreensão porque falou artigo 142. Eu jurei respeitar a Constituição, jurei respeitar o artigo 1º, 2º, 3º, o artigo 30, 50 e artigo 142 também. Se o artigo 142 é algo antidemocrático, que se apresente uma emenda e mude o artigo 142, e não punir alguém porque levantou a plaquinha 142. “Ah, são antidemocráticos, querem dar golpe”. Eu quero dar golpe em mim mesmo. Eu já sou o presidente. É mesma coisa o outro que levanta um cartazinho AI-5. O que que é AI-5? Não existe AI-5.”

A live de 29/07/2021 foi removida pelo YouTube espontaneamente, uma vez que a plataforma entendeu que ela violava sua política de integridade (https://www.poder360.com.br/midia/youtube-tira-do-ar-live-de-bolsonaro-de-2021-sobre-urnas/). Não parece ser coincidência que essa medida tenha sido tomada exatamente no dia 18/07/2022, quando o primeiro investigado, evocando os alertas feitos desde 2021, acionou, contra o sistema eletrônico de votação, os mesmos gatilhos armados um ano antes.

Por fim, observa-se que o material continua disponível na página de Facebook do primeiro investigado. O vídeo soma, atualmente, mais de 1,2 milhão de visualizações, 149 mil reações (curtidas e similares) e 202 mil comentários (https://www.facebook.com/watch/?v=513302749933648).

 

2.2.2 Live e entrevista de 04/08/2021, transmitida pelo programa Os Pingos nos Is, com participação do Deputado Federal Filipe Barros

A segunda live destacada no Inquérito Administrativo nº 0600371-71 foi realizada em 04/08/2021, quando o então Presidente da República e seu convidado, o Deputado Filipe Barros, levaram a público a existência do IPL nº 1361/2018 e declararam categoricamente que a investigação demonstrava que o hacker teve em mãos, de abril a novembro de 2018, o código-fonte que lhe permitiria “fazer tudo”, inclusive adulterar votos.

Essa live foi enxertada no programa Pingos Nos Is, da Jovem Pan, sendo transmitida ao vivo pela televisão e no canal de YouTube da emissora. Seguiu-se à apresentação uma entrevista com mais de uma hora de duração. Isso ocorreu na mesma data em que o relator da PEC nº 135/2019 apresentou sua complementação de voto, refazendo o texto do substitutivo, em uma tentativa de reverter a rejeição da proposta na Comissão Especial, resultado que se anunciava pelos votos em separado.

A deliberação iria ocorrer no dia seguinte, em 05/08/2021, e a derrota do parecer de Filipe Barros se prenunciava. Nesse momento crítico, o conteúdo explosivo apresentado no programa da Jovem Pan tinha por função pragmática fortalecer o apoio ao voto impresso, por meio de desordem informacional a respeito da segurança das urnas eletrônicas.

Somadas a live e a entrevista, foram mais de duas horas de repetição de que haveria provas de uma (inexistente) adulteração de votos no pleito de 2018 e de especulações conspiracionistas sobre o motivo de se manter o sistema sujeito a manipulação, sempre com amparo na mentirosa afirmação de que o IPL nº 1361/2018 se destinava a apurar a alegada fraude eleitoral.

Cabe rememorar que aquele inquérito tinha por objeto apurar um ataque hacker debelado pelo TSE em abril de 2018 e foi instaurado a pedido do Tribunal quando o suposto responsável, em novembro, tornou públicos dados que a STI identificou como passíveis de terem sido coletados na ocasião. Seu compartilhamento com a Câmara atendeu à solicitação do Deputado Federal Filipe Barros, feita com a finalidade expressa de subsidiar os debates da Comissão Especial da PEC nº 135/2019.

O relator da PEC requereu o “acesso capa a capa” ou “[a]lternativamente, caso o franqueamento de amplo acesso ao teor do Inquérito em questão prejudique os andamentos das investigações, requer-se a concessão parcial de cópias, devendo ser excluído apenas a parte de diligências ainda não cumpridas” (ID 158764868, p. 80). Em resposta, a autoridade policial remeteu cópias integrais dos autos à Câmara dos Deputados (ID 158764868, p. 79).

Recebido o documento, Filipe Barros adotou raciocínio segundo o qual a remessa, feita sem expressa informação de sigilo ou vedação a compartilhamento, equivaleria à possibilidade de ampla divulgação do material. Assim, não se inibiu em tratar do conteúdo do IPL nº 1361/2018 em uma live transmitida para todo o Brasil e em repassar os arquivos para que fossem disponibilizados nas redes sociais do primeiro investigado.

Essa é a linha de argumentação que foi encampada pelo Deputado Federal nas investigações relativas à violação do sigilo no Inquérito nº 4878, mesmo após Mauro Cid ter sido indiciado por disponibilizar o material por ordem do primeiro investigado.

Ouvido em juízo nesta AIJE como testemunha da defesa, Filipe Barros tentou convencer o juízo de que, à medida que mais e mais pessoas acessavam os documentos oriundos de investigação da Polícia Federal, mais lhe seria legítimo seguir compartilhando o material.

Conforme seu relato, após ter recebido o inquérito, primeiramente o compartilhou com a Comissão Especial e o Presidente da Câmara dos Deputados. Afirma que, a partir daí, o debate se tornou “público”, ampliou-se para a Casa Legislativa e chegou à sociedade. Defende até mesmo que a Câmara teria um dever de dar publicidade ao inquérito. Por fim, admite que foi sua ideia divulgar o inquérito na live, já que, a essa altura, a investigação era amplamente comentada. Assim, achou natural enviar o arquivo a Mauro Cid por WhatsApp, ciente de que este iria disponibilizar o conteúdo nas redes sociais do primeiro investigado, o que foi anunciado pelo próprio Jair Messias Bolsonaro na live (ID 158886322, pp. 7-10):

“O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Nós temos ali na Câmara uma instrução normativa, eu não vou me lembrar o número exato dela, mas é a instrução normativa que trata dos documentos recebidos pela Câmara. E lá disciplina que quando nós recebemos qualquer documento, de qualquer pessoa, se esse documento ele não tem qualquer anotação, qualquer pedido pra ser colocado em sigilo, via de regra ele tem que ser tornado público, pelo princípio da publicidade, inclusive. E a resposta do e-mail a mim, ao relator da comissão especial, não tinha qualquer anotação de sigilo. E aqui eu relembro ao Senhor que no meu ofício eu ainda faço a observação “olha, eu quero cópia do inquérito e se houver qualquer prejuízo pras investigações não precisa me mandar”. Então ele me manda e no corpo do e-mail não havia qualquer anotação sobre sigilo. Então a Câmara recebe esse documento oficialmente sob o carimbo de ostensivo, ou seja, pra ser tornado público pra toda a Câmara, em especial pros membros da comissão especial. Então, tendo essa orientação da própria assessoria da Câmara dos Deputados, eu, como relator, determino cópia para todos os membros da comissão especial, para o Presidente da Câmara, Arthur Lira, e para qualquer outro parlamentar que queira solicitar cópias.

O DOUTOR MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Tá. O Senhor chegou a disponibilizar para alguma outra pessoa fora da Câmara?

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Num primeiro momento, eu disponibilizei para todos os deputados da comissão especial e para o presidente da Casa. E aí, se me permite um breve parêntese, quando é instalado o inquérito, não este, um outro inquérito no Supremo, contra mim e contra o Presidente Bolsonaro, pela divulgação desse inquérito que corria, a própria Câmara dos Deputados, através da Procuradoria Parlamentar, num parecer que eu juntei, afirma o seguinte: olha, qualquer cidadão poderia solicitar cópias, e a Câmara daria cópias para qualquer cidadão que pedisse. Porque não havia qualquer anotação de sigilo sobre esse documento, recebido oficialmente, pela Câmara dos Deputados. Então, depois que eu passei, primeiramente, para todos os parlamentares da comissão especial e para o presidente da Câmara, qualquer outra pessoa poderia pegar cópias, sim.

O DOUTOR MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Ok. Deputado, em depoimento à Polícia Federal que ocorreu em 22 de outubro de 2021, o Tenente Mauro Cid declarou que, em entrevista para o programa Os Pingos Nos Is, sob a forma de live, transmitida no Facebook, no YouTube, do ex-Presidente Jair Bolsonaro – foi em 4 de agosto de 2021 –, ele declarou o seguinte: foi apresentada, de forma extraordinária, a pedido do Deputado Federal Filipe Barros, mas a ideia era apresentar o conteúdo do inquérito policial, envolvendo o caso relacionado a invasão do TSE; que a produção do conteúdo ficou a cargo do Deputado Filipe Barros. O Senhor confirma que teve essa iniciativa da live, e o que foi que motivou esse pedido?

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Nós estávamos na véspera da votação da proposta do voto impresso. E aí eu não vou me lembrar, se era na votação na comissão especial, ou no plenário. Porque nós tivemos uma votação, em primeiro lugar, na comissão especial. Perdemos. E o Presidente Lira leva a matéria ao plenário. Então, eu não vou me lembrar se foi na véspera da votação na comissão especial, ou no plenário. Mas estávamos para votar. Então, como nós já tínhamos debatido sobre o inquérito publicamente, na comissão especial do voto impresso; como o plenário da Câmara já tinha repercutido, por algumas vezes, o inquérito, e como o Brasil inteiro, naquele momento, debatia possíveis aprimoramentos no nosso modelo de votação eletrônica, eu sugeri que a gente desse repercussão a isso, justamente para aprimorar o debate democrático.

[...]

O DOUTOR MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): O Tenente Mauro Cid também afirmou aqui: durante a live, o Senhor encaminhou, via aplicativo WhatsApp, no telefone funcional – tem o número aqui –, a cópia digitalizada desse inquérito. E menciona que o Deputado encaminhou o mencionado arquivo, em razão da solicitação, feita pelo presidente, onde ele informou que iria divulgar o conteúdo do inquérito, nas redes sociais. Diante disso, o Senhor encaminhou quatro arquivos, sendo o conteúdo integral do inquérito e mais três outros documentos, considerados mais relevantes, dentro da investigação. O Senhor confirma essa informação que ele passou?

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Eu encaminhei, até para que o presidente pudesse ler aquilo que estava presente. Certamente, ele deve ter consultado especialista também, para saber se aquilo que eu e que a Câmara tinha debatido, nas últimas semanas, em relação a esse inquérito, de fato, era procedente. Então, eu encaminhei para o Coronel Cid, para que o presidente pudesse ler também e averiguar se era de fato aquilo.”

Essa linha de argumentação, contudo, não é compatível com o fato de que o Ofício 15/2021 da Comissão Especial, dirigido à Polícia Federal, fazia referência à finalidade expressa de subsidiar os estudos da comissão. Esse aspecto foi destacado na sindicância da Polícia Federal, em que se afastou a ocorrência de falta funcional pelo Delegado que conduzia a investigação e remeteu cópias integrais do procedimento, em resposta ao ofício da Câmara. O relatório da sindicância concluiu pela ausência de conduta irregular do policial, tendo em vista que este atendeu a uma solicitação urgente motivada por finalidade específica, que não envolvia a divulgação pública das investigações.

O relatório da sindicância foi juntado ao Inquérito nº 4878 e, após compartilhado para instruir o Inquérito Administrativo nº 0600371-71, aportou aos presentes autos. Sua análise é pertinente em função da centralidade que o IPL nº 1361/2018 passou a ocupar a partir da live de 04/08/2021, na reiterada comunicação do primeiro investigado quanto à existência de provas de que votos foram manipulados nas Eleições 2018.

O relatório da sindicância salienta um ponto óbvio, que vem sendo desconsiderado pelo primeiro investigado e seu grupo político: toda e qualquer investigação criminal possui algum grau de sigilo. A publicidade não torna legítima uma hiperpublicização de atos investigativos, notadamente se o objetivo é distorcê-los para construir uma narrativa de viés anti-institucional.

Ou seja, o compartilhamento do IPL nº 1361/2018 para atender à finalidade pública de subsidiar estudos na Câmara dos Deputados, obviamente, não autorizava os destinatários a repassá-lo a terceiros e, menos ainda, a divulgar o material nas redes sociais a fim de incitar descrédito à instituição que, afinal, é a vítima da conduta criminosa que estava sendo apurada.

Transcrevo trechos do relatório que resumem objetivamente o ocorrido e indicam o regular compartilhamento do inquérito pela autoridade policial para atender a finalidade específica, de interesse público. As passagens consignam que a escalada de divulgação do conteúdo, com evidente desvio de finalidade, deu-se após o recebimento do material pelo Deputado Filipe Barros (ID 158764868, pp. 319-325):

“II. DO HISTÓRICO DOS FATOS APURADOS:

5. O Inquérito Policial Federal nº 1.361/2018-4 foi instaurado para apurar suposto acesso indevido à rede interna do Tribunal Superior Eleitoral em meados de setembro de 2018.

6. Saliente-se, por oportuno, que o referido Inquérito Policial Federal não restava abarcado por decisão judicial de sigilo, bem como não havia medida cautelar sigilosa em andamento, portanto, apresentava o sigilo relativo próprio dos procedimentos de investigação criminal.

7. No dia 13/07/2021, em suma, o gabinete do Deputado Federal FILIPE BARROS solicitou pedido de reunião urgente ao Exmo. SR/PF/DF em 15/07/2021. Destaca-se que a reunião solicitada pelo Deputado Federal, sr. FILIPE BARROS, teve como pauta o Inquérito Policial nº 1361/2018-SR/PF/DF. O deputado foi devidamente informado do trâmite necessário para solicitação de cópia de inquérito policial.

8. Em 19/07/2021, o Deputado Federal, sr. FILIPE BARROS, então, encaminhou por e-mail o OFÍCIO CE 015/2021 para Superintendência Regional da Polícia Federal no Distrito Federal: [...]

9. O OFÍCIO CE nº 00015/2021, datado de 14/07/21, endereçado ao Exmo. SR/PF/DF solicitava acesso urgente aos autos do “Inquérito IPC 1361/2018 SR-PF/DF” em nome da Comissão Especial da PEC 135/2019 com a finalidade declarada de subsidiar os debates da comissão e emitir parecer a respeito da implementação do comprovante do voto impresso.

10. Seguindo os trâmites normais para todo pedido de vista em inquérito policial federal nesta Superintendência Regional da Polícia Federal, o Ofício CE nº 00015/2021 foi encaminhado pelas vias ordinárias sob registro do processo SEI (08280.011148/2021-15) ao presidente do Inquérito Policial Federal nº 1361/2018 SR/PF/DF, DPF VITOR CAMPOS, para eventual concessão de vista.

11. Nos termos declarados pelo DPF VITOR CAMPOS, em 20/07/2021, o Exmo. DRCOR/SR/PF/DF lhe cientificou do pedido de cópia dos autos do IPL nº 1.361/2018-4 nos termos do Ofício CE nº 015/2021 subscrito pelo Deputado Federal sr. FILIPE BARROS.

12. Em atendimento ao OFÍCIO CE nº 015/2021, o DPF VITOR CAMPOS, em 23/07/2021, no exercício da presidência do Inquérito Policial nº 1361/2018-SR/PF/DF (EPOL 2020.0043195- SR/PF/DF), concedeu vista dos autos com a devida remessa de cópia nos termos solicitados do representante da Comissão Especial da PEC 135/2019.

13. Depreende-se, portanto, que o objeto da presente sindicância é o ato administrativo realizado ao DPF VITOR CAMPOS de concessão de cópia de inquérito policial federal em atendimento ao Ofício CE 0015/2021 encaminhado pelo Deputado Federal FILIPE BARROS em nome da Comissão Especial da PEC 135/2019.

III. DOS ELEMENTOS DE PROVA:

14. Fixados os marcos temporais e identificado o ato administrativo, supostamente, correspondente à infração administrativa, verificou-se os seguintes relevos probatórios:

15. A concessão da vista e remessa de cópia do inquérito policial se deu em atendimento ao Ofício CE nº 015/2021, encaminhado pelo Deputado Federal FILIPE BARROS em nome da Comissão Especial da PEC nº 135/2019, com finalidade declarada de subsidiar os debates da comissão e emitir parecer a respeito da implementação do comprovante do voto impresso.

16. Saliente-se que no sítio da Câmara dos Deputados que no dia 16/06/2021 consta registro de aprovação de Requerimento nº 42/20211 , in verbis: “REQUER envio de expediente ao Ministério da Justiça solicitando informações da Polícia Federal referentes a denúncias de fraudes nos processos eleitorais".

17. Depreende-se, portanto, que o Ofício CE nº 015/2021 se deu em atenção à aprovação do REQUERIMENTO nº 42/2021 da Comissão Especial da PEC nº 135/2019 com a finalidade específica de “subsidiar os debates da comissão" e “emitir parecer a respeito da implementação do comprovante do voto impresso nas eleições, nos plebiscitos e referendos”.

18. Noutro ponto relevante, o Deputado Federal, FILIPE BARROS, encaminhou o OFÍCIO CE nº 015/2021 fazendo constar o número do Inquérito Policial Federal indicando sua ciência sobre sua existência da investigação em momento anterior à remessa de sua cópia pelo DPF VITOR CAMPOS.

19. Nota-se que o número constante no OFÍCIO CE nº 015/2021 não abrangia o número atual do inquérito tombado no sistema EPOL, mas o antigo tombado no sistema SISCART. Tal relevo salienta que não havia ciência do atual número do Inquérito Policial Federal EPOL 2020.0043195- SR/PF/DF.

20. O referido relevo probatório, não passou desapercebido, em sua oitiva na esfera penal do Deputado Federal FILIPE BARROS que, ao tempo em que reitera a finalidade da cópia dos autos do IPL nº 1361/2018-SR/PF/DF para atender deputados e senadores conforme requerimento aprovado nº 42/2021, firmou que teria recebido a numeração do inquérito IPL 1361/2018-SR/PF/DF em momento anterior sem precisar, contudo, a forma ou origem da informação: [...]

21. Saliente-se que em momento posterior ao pedido de vista, em 04/08/2021, o Deputado Federal, FILIPE BARROS, também, tentou contado direto e pessoal com Perito Criminal Federal, PCF PEIXINHO, referência deste órgão em investigações de crime cibernéticos de alta complexidade. O Perito Criminal Federal, de pronto, e respeitosamente informou ao deputado federal que deveria buscar os canais hierárquicos: [...]

22. Reitere-se, por oportuno, que nos termos da correição materializada na Informação nº 20059881/2021-NUCOR/COR/SR/PF/DF, em seu item 15, não havia determinação de sigilo dos autos seja pela autoridade policial, DPF VITOR CAMPOS, ou em razão de decisão judicial: [...]

23. Depreende-se, portanto, que o OFÍCIO Nº 52/2021/SR/PF/DF (20563051) foi encaminhado pelo Deputado Federal FELIPE BARROS em nome da Comissão Especial da PEC 135/2019 com a finalidade declarada subsidiar os trabalhos da comissão, bem como o deputado federal já teria conhecimento da existência do inquérito policial, inclusive do número desatualizado do Inquérito Policial Federal.

24. O pedido de cópia específico do IPL nº 1.361/2018-4 foi devidamente registrado no sistema SEI e encaminhado para deliberação da autoridade policial presidente da investigação que, por sua vez, em 23/07/2021, no exercício da presidência do IPL nº 1361/2018- SR/PDF (Epol 2020.0043195-SR/PF/DF), em atendimento expresso ao OFÍCIO CE nº 015/2021, encaminhou cópia do Inquérito Policial Federal.

25. Destaca-se que a concessão de cópia do IPL nº 1361/2018-SR/PDF (Epol 2020.0043195-SR/PF/DF), ocorreu devidamente registrada nos sistemas da Polícia Federal, inclusive com a ciência das autoridades desta Superintendência, e expressamente para finalidade indicada no OFÍCIO CE nº 015/2021 de subsidiar os debates da comissão e emitir parecer a respeito da implementação do comprovante do voto impresso. Assim, tratava-se de pedido de terceiro interessado com motivação expressa de uso no âmbito da COMISSÃO ESPECIAL DA PEC nº 135/2019.

26. Assim, os atos subsequentes ao ato administrativo de concessão de vista ao IPL 1.361/2018-SR/PF/DF realizados no dia 04/08/2021 que culminaram em suposta violação do sigilo funcional de documento recebido em razão do cargo em especial da função desempenhada em comissão especial da câmara dos deputados e o respectivo desvio de finalidade não estão no liame causal do ato administrativo realizado, tão-pouco [sic] há notícia de liame subjetivo entre o Delegado de Polícia Federal VITOR CAMPOS e o Deputado Federal FILIPE BARROS.

27. Noutros termos, não houve dolo direto de revelar informação, mas de atender solicitação de deputado federal em nome de comissão especial da Câmara dos Deputados devidamente motivada sob fundamento de interesse público. A concessão da cópia, inclusive, foi registrada nos devidos sistemas da Polícia Federal à[s] claras sem nenhum indicativo de intento de transmissão sub-reptícia de informação sigilosa. Ademais, não houve nenhum elemento objetivo que apontasse liame subjetivo e/ou causal com a divulgação indevida do inquérito policial no dia 04/08/2021.

28. Depreende-se, portanto, que a conduta do Delegado de Polícia Federal, VICTOR NEVES FEITOSA CAMPOS, no exercício da Presidência do Inquérito Policial Federal nº IPL nº 1361/2018-SR/PDF (Epol 2020.0043195-SR/PF/DF), ao conceder cópia dos referidos autos em atendimento ao OFÍCIO CE nº 015/2021 subscrito pelo Deputado Federal FILIPE BARROS, em nome da COMISSÃO ESPECIAL DA PEC nº 35/2019, s.m.j., não alcança tipicidade administrativa.

29. Do exposto, não há, s.m.j., alcance da conduta em tipo infracional de ordem administrativa razão pela qual a autoridade signatária inclina-se pelo arquivamento da presente sindicância.”

O relatório de sindicância apontou, ainda, que Filipe Barros já tinha conhecimento do inquérito quando fez a solicitação à autoridade policial e que o parlamentar tentou abordar o perito Ivo Peixinho no mesmo contexto. Na instrução desta AIJE, apurou-se que o Relator da PEC nº 135/2019 também tentou explorar supostas fragilidades da investigação da Polícia Federal ao contactar diretamente o então Ministro da Justiça, Anderson Torres, para tratar do IPL.

Ambos os fatos foram tratados pelas testemunhas em seus depoimentos. Deve-se registrar, quanto à segunda conversa, descrita por Anderson Torres, que Filipe Barros negou sua ocorrência, o que todavia não se mostra crível diante dos detalhes fornecidos pelo interlocutor. O que fica nítido é que o Deputado Federal buscava obter documentos oficiais que permitissem levantar suspeitas sobre o sistema eletrônico de votação e, por essa via transversa, lograr apoio à proposta de aprovação do voto impresso:

“1. Depoimento de Ivo Peixinho, sobre contato feito por Filipe Barros em 03/04/2021, véspera da live em que seria divulgado o IPL nº 1361/2018 (ID 158886324, p. 67-69):

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Consta do seu depoimento que foi procurado por algum integrante do Governo Federal para tratar de assuntos relacionados ao Inquérito Policial 1361/2018, que foi objeto da live produzida no dia 4 de agosto de 2021. O senhor respondeu que apenas recebeu mensagens por meio do aplicativo WhatsApp, do interlocutor que se identificou como Deputado Filipe Barros – e aí vem o número do telefone –, que Filipe Barros encaminhou uma primeira mensagem se apresentando, no dia 2 de agosto de 2021, e que, em 3 de agosto de 2021, Filipe Barros encaminhou outra mensagem dizendo “Está em BSB? Gostaria de falar contigo”; e que o depoente respondeu: “Boa tarde. Estou em Brasília, porém estou em teletrabalho e isolamento social. Caso haja algum interesse em reunião, sugiro que seja seguido os canais hierárquicos”. Após a resposta do depoente, o interlocutor Filipe Barros não encaminhou mais nenhuma mensagem. Indagado se repassou algum documento ao Inquérito Policial 1361/2018 a terceiros, o senhor respondeu que não. O senhor confirma essas declarações, tem algo a acrescentar sobre isso?

O SENHOR IVO DE CARVALHO PEIXINHO (testemunha): Confirmo. Nada a acrescentar.

[...]

A DOUTORA EZIKELLY SILVA BARROS (advogada do PDT): [...] É, como perito da Polícia Federal, essa atribuição de Vossa Senhoria, gostaria de saber se era atribuição de Vossa Senhoria, essa interlocução com parlamentares sobre relatórios produzidos no setor onde Vossa Senhoria estava lotado, à época dos fatos?

O SENHOR IVO DE CARVALHO PEIXINHO (testemunha): Não.

A DOUTORA EZIKELLY SILVA BARROS (advogada do PDT): Indago, então, a Vossa Senhoria, se, é, Vossa Senhoria saberia declinar por qual razão o Deputado Filipe Barros encaminhou esse WhatsApp pra Vossa Senhoria, como ele conseguiu o seu número de telefone; se houve alguma indicação da Presidência da República, do Presidente, do então Presidente Jair Messias Bolsonaro, para que esse contato fosse feito com Vossa Senhoria, nós gostaríamos de ter um esclarecimento de como se deu esse contato. Vossa Senhoria conseguiria nos esclarecer, por gentileza?

O SENHOR IVO DE CARVALHO PEIXINHO (testemunha): O contato foi repentino. Eu não faço ideia como ele conseguiu o meu número pessoal pra realizar esse contato, né, ele não constava da minha agenda e eu também não sei te dizer quem ordenou ou quem, né, providenciou este contato. Infelizmente, eventualmente, eu recebo contatos de números, às vezes, jornalísticos etc., que consegue meu número pessoal e manda mensagem... é... usualmente não respondo.

2. Depoimento de Filipe Barros, sobre abordagem a Ivo Peixinho (ID 158886322, p. 63-64):

A DOUTORA EZIKELLY SILVA BARROS (advogada PDT): [...] É, eu gostaria, então, de... que Vossa Excelência nos esclarecesse por qual razão, na verdade, antes de perguntar até por qual razão, como Vossa Excelência conseguiu o telefone desse perito?

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Todos os professores que me auxiliaram, Professor Amílcar Brunazo, que quem coordenou a auditoria do PSDB em 2014, Professor Mário Gazir, todos os professores sempre colocaram o perito Ivo Peixinho como um dos maiores entendedores dessa área de tecnologia focada para as eleições. Então, eu... quando eu tomo a liberdade... e quem me mandou foi algum dos professores... eu não vou me lembrar quem, mas algum dos professores me mandou o contato do Ivo Peixinho. É... e quando eu entro em contato com ele eu entro justamente pelo WhatsApp, em primeiro momento, pra saber se ele teria disponibilidade de ir presencialmente a comissão especial pra participar de alguma audiência pública. Então, quando ele fala, corretamente, inclusive, pra eu tomar o caminho hierárquico, eu não sei qual expressão exatamente ele usou...

A DOUTORA EZIKELLY SILVA BARROS (advogada PDT): Ele usou hierárquico, canais hierárquicos.

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): [...] então, eu retorno à comissão especial e levo essa informação aos membros, “vamo bora, gente, se gente quiser trazer o Peixinho vamo convocar um requerimento pra que ele compareça em alguma audiência pública.”

A DOUTORA EZIKELLY SILVA BARROS (advogada PDT): E isso foi (ininteligível)...? 

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Não, isso foi nas reuniões...

A DOUTORA EZIKELLY SILVA BARROS (advogada PDT): Não, digo, posteriormente Vossa Excelência...

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Não, porque daí a comissão foi encerrada. A gente não teve, infelizmente, a oportunidade de levá-lo pra a comissão especial.

3. Depoimento de Anderson Torres, sobre conversa a respeito do IPL nº 1361/2018 com Filipe Barros, por iniciativa deste (ID 158886324, p. 27-30)

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Tá. O Senhor disse ao Ministro Salomão também, eu seu depoimento no inquérito que ele conduzia, que, para a live [de 29/07/2021], o Senhor teve zero acesso a algum inquérito da Polícia Federal, ou a documento da Polícia Federal e que, uma ou duas semanas após a live [de 29/07/2021], o Deputado Filipe Barros, que era presidente da Câmara, da Comissão do Voto Impresso, solicitou formalmente à Polícia Federal o inquérito. E o Senhor, nessa ocasião, afirma: ele me mostrou esse inquérito um dia. Segundo o Senhor disse, o inquérito era sobre possível invasão aos sistemas aqui do TSE. Como foi essa conversa entre o Deputado Filipe Barros com o Senhor, a respeito desse inquérito?

O SENHOR ANDERSON GUSTAVO TORRES (testemunha): Ele foi ao Ministério da Justiça e disse que tinha tido acesso a esse inquérito e, enfim, fez as considerações dele, a respeito do que ele achava... porque, na verdade, Excelência, eu falo no depoimento do Ministro Salomão, ele foi fazer uma crítica, com todo respeito, à condução do inquérito, às diligências adotadas ali no inquérito. Foi nesse sentido que ele foi conversar comigo. O inquérito, se eu me recordo, tinha um despacho de diligência, ou dois, no máximo, e já haviam passado ali três anos de instauração do inquérito. Então, foi nesse sentido que ele... que ele... que ele conversou comigo sobre isso.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Tá. E nessa conversa foi demonstrado algum tipo de irregularidade das urnas?

O SENHOR ANDERSON GUSTAVO TORRES (testemunha): No inquérito não... O inquérito não tinha andamento, praticamente; não tinha resultado de perícia, não tinha... não tinha... tinha lá um documento... bom, enfim... um documento do próprio Tribunal Superior Eleitoral que tinha sido encaminhado para a Polícia Federal e a instauração do inquérito, e um pedido de perícia. Se eu não me engano, o inquérito era só isso.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Era um documento da Secretaria de Tecnologia da Informação do TSE?

O SENHOR ANDERSON GUSTAVO TORRES (testemunha): Isso, isso.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Só tinha isso?

O SENHOR ANDERSON GUSTAVO TORRES (testemunha): E um despacho do delegado, pedindo perícia nesse documento, determinando algumas diligências ali. Mas o que eu quero dizer para o Senhor é que isso tinha sido há dois, três anos atrás. Foi nesse sentido que ele foi reclamar lá e dizer que esse inquérito tinha que... enfim, tinha que ter andado, tinha que ter progredido e tal.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): E foi esse documento que ele apresentou para o Senhor da STI e esse despacho?

O SENHOR ANDERSON GUSTAVO TORRES (testemunha): É... o inquérito. Sim, cópia do inquérito.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Tá. E que se resumia ao documento da TI do TSE e o despacho?

O SENHOR ANDERSON GUSTAVO TORRES (testemunha): É. E pedido de prorrogação.

4. Depoimento de Filipe Barros, em que nega ter tratado com Anderson Torres sobre o IPL nº 1361/2018 (ID 158886322, p. 4-5) 

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): [...] O Senhor chegou a procurar o então Ministro Anderson Torres pra tratar desse inquérito?

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Não.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Não teve nenhum contato com ele?

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Não. O contato foi estritamente através do ofício que a própria Câmara dos Deputados encaminhou ao Ministério da Justiça.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Tá. Então o Senhor não chegou a ter nenhuma conversa com o Ministro, na época o Ministro...

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Que eu me lembre, não, Doutor.

As investidas de Filipe Barros acima descritas poderiam ser encaradas como mera estratégia política do Relator da PEC nº 135/2019, tentando se valer de meios alternativos para persuadir os colegas de comissão a aprovarem o voto impresso. Fosse apenas isso, o tema seria irrelevante para o deslinde da AIJE, que não se ocupa do debate parlamentar sobre o tema.

Ocorre que, mesmo sem obter do perito ou extrair da documentação qualquer dado que fosse proveitoso ao seu objetivo político, o parlamentar e o primeiro investigado cerraram fileiras para disseminar, na live de 04/08/2021, em escala nacional, informações falsas a respeito de fraude nas urnas eletrônicas. Fizeram crer que havia indícios substanciais de uma grotesca adulteração de votos no pleito de 2018 e que o TSE vinha criando embaraços ao andamento da investigação pela Polícia Federal.

Transcrevo a parte inicial da live, em que, de forma inequívoca, Jair Bolsonaro e Filipe Barros transmitiram ao público, que os acompanhava pelas redes sociais e pela emissora Jovem Pan, que o teor dos documentos que tinham em mãos comprovaria que o TSE tinha ciência de fraudes eleitorais, assumindo que um hacker teve meios de adulterar votos em 2018, mas se seguia inerte quanto a providências para impedir o mesmo fato em 2022 (ID 158764865, pp. 1-24):

“O SENHOR VITOR BROWN (apresentador): Bom, e agora, sim, conforme prometido, já estamos em contato com o Presidente da República, Jair Bolsonaro, ao vivo aqui, mais uma vez, em Os Pingos nos Is. Presidente, boa noite. Obrigado pela entrevista.

O SENHOR JAIR MESSIAS BOLSONARO (presidente da República): Boa noite a todos, os que estão acompanhando aqui no Facebook e YouTube; a todos acompanhando aí o Programa Pingos nos Is; eu agradeço ao Augusto Nunes e sua equipe por nos dar esse espaço. Estou aqui com Filipe Barros, Deputado Federal lá pelo Estado do Paraná, que é o relator da PEC do voto impresso. Bem, o que aconteceu? Ele teve acesso, há pouco tempo, por ser o relator, teve acesso junto à Polícia Federal do inquérito – o inquérito tem um número, 1.361, de 2018 , inquérito da Polícia Federal, não é o que nós conversamos na última live, não. São dois pareceres diferentes da PF; não é aquilo, é outra coisa agora. Na verdade, o que nós temos em mãos aqui? A comprovação – porque quem diz isso é o próprio TSE, não é nem a Polícia Federal, é o próprio TSE, que, no período de abril a novembro de 2018, quando tivemos eleições, onde eu fui eleito presidente, você foi eleito deputado federal – de que o código-fonte esteve na mão de um hacker. E o código-fonte, estando na mão de um hacker, ele pode tudo; pode até “você apertar o 1 e sair o 13”, pode “você apertar o 17 e sair nulo”, pode alterar votos, pode fazer tudo. E, no mínimo, então, esse hacker esteve lá dentro, dentro dos computadores que tratam das eleições, no TSE, de novembro a dezembro. Isso é no mínimo. Por que que novembro é uma data-limite? Porque em novembro o hacker denunciou, falou, e o processo, o inquérito foi aberto então. [...]Então, o seguinte: eu tô aqui com o Filipe Barros. Ele tá melhor preparado do que eu, para falar da questão da... do que aconteceu nesse inquérito, que ele estudou, como relator. E vai dar um depoimento pra vocês que não é dele, né? Ele vai demonstrar... inclusive, eu vou disponibilizar esse inquérito, pela internet, para quem tiver curiosidade: vai lá, é um inquérito da Polícia Federal. Agora, o que mais vale dentro do inquérito? Não é o que a Polícia Federal faz, é o que responde o TSE. Onde esse hacker, inclusive, conseguiu a senha de um ministro do TSE, de um ministro do TSE, bem como de um servidor. E esse servidor era o... era o dono do código-fonte lá dentro. Então tá mais do que demonstrado, agora, pelo próprio TSE, que as urnas, né, a... os números das eleições podem ter sido fraudados; podem ter sido manipulados, sim. É apenas isso. É simples. O que nós brigamos pro lado de cá, e grande parte da população? Queremos eleições limpas, tá? Não vai ser um inquérito, agora na mão do senhor querido Alexandre de Moraes, pra tentar aí intimidar, ou o próprio lamento, né , o próprio TSE tomar certas medidas pra investigar, me acusar de atos antidemocráticos. Eu posso errar, eu tenho o direito a criticar. Mas não estamos errados; nós não erramos. Então, eu vou deixar o Filipe falar. E, depois, aí, o Augusto Nunes e o pessoal da Jovem Pan fiquem à disposição pra questionar mais o Filipe do que eu, porque tá, ele tá... ele estudou esse processo há mais tempo que eu; eu tomei conhecimento há pouco... há poucas horas aí. Filipe, vamos lá?

O SENHOR FILIPE BARROS (deputado federal): Obrigado, Presidente. A todos os telespectadores do Pingos nos Is, obrigado pelo espaço. Então, no início dos trabalhos da Comissão Especial, eu tive o conhecimento da existência desse inquérito. Acontece que esse inquérito, ele corre sob segredo de justiça. Então, eu oficiei, formalmente, o delegado do caso – o ofício tá aqui –, em que eu peço pro delegado cópias desse inquérito e ressalto, inclusive, que, se houver prejuízo à investigação, ele não precisaria me mandar cópia do inquérito. Passado alguns dias, o delegado, ele me responde – através desse ofício –, me disponibilizan... disponibilizando cópia do inquérito. [...] Então, o que eu vou falar agora não é eu que tô falando, não é o Presidente, não é a Deputada Bia Kicis, é o próprio Tribunal Superior Eleitoral, nesse relatório, respondendo ao delegado da Polícia Federal. [...] Esse relatório vai descrevendo dia após dia o que o hacker teria tido acesso e, na página 37 desse relatório do próprio tribunal eleitoral, eles afirmam o seguinte: “buscou-se identificar quais portas de entrada foram utilizados pelo atacante – ou seja, pelo hacker –, além da VPN do Tribunal Regional Eleitoral da Paraíba, foi identificado um ponto de entrada, a partir de uma máquina do TRE do Rio Grande do Norte – e vai além. Observou-se conexões indevidas à VPN de acesso do TSE – uma dessas conexões foi realizada com o usuário do Coordenador de Infraestrutura do TSE”. O que eles estão querendo dizer aqui? O hacker teve muito tempo dentro do sistema do TSE. Então primeiro ele se utiliza de uma senha de uma empresa terceirizada e invade os sistemas dos tribunais regionais eleitorais. Estando dentro dos sistemas dos tribunais regionais eleitorais, ele se utiliza inclusive de senhas do próprio Coordenador de Infraestrutura do tribunal eleitoral, para invadir o sistema do próprio Tribunal Superior Eleitoral. Isso tá aqui, nesse relatório que o TSE produziu.

O SENHOR JAIR MESSIAS BOLSONARO (presidente da República): Isso, repita. Tudo o que ele tá falando são informações do TSE; não é da PF, não é minha, não é de ninguém. É do TSE.

O SENHOR FILIPE BARROS (deputado federal): E esse relatório continua, então. Na página seguinte, eles afirmam “que a base de usuários pode ter sido comprometida e que o atacante está quebrando as senhas pra posterior uso”. Então, ele vai quebrando as senhas dos usuários pra, depois, invadir outras partes do sistema do TSE. E aí eles passam a analisar, então, se o que o hacker tava falando de fato era verdade. E concluem o seguinte: “o atacante descreve que possui acesso à rede interna por vários meses, entrando em diversas máquinas. Esse relato condiz com o que foi observado em abril de 2018”. O próprio TSE reconhecendo que o que o hacker tá falando é verdade.

O SENHOR JAIR MESSIAS BOLSONARO (presidente da República): Entrou...

O SENHOR FILIPE BARROS (deputado federal): Entrou.

O SENHOR JAIR MESSIAS BOLSONARO (presidente da República): Entrou, tá... Então, como diz o Ministro Barroso, né, que são intransponíveis, né, pra qualquer pessoa entrar no TSE. Não é verdade. Não é verdade. O SENHOR FILIPE BARROS (deputado federal): Esse mesmo relatório depois continua, e aqui talvez seja o mais grave. Eles afirmam que um dos... uma das partes do sistema do TSE que o hacker teve acesso foi o portal de seção de voto informatizado, chamado Sevin – uma parte do software do TSE – e, dentro desse, dessa parte do software do TSE, está o código-fonte inteiro das urnas eletrônicas. E vejam só a gravidade. O TS... O senhor secretário substituto de tecnologia da informação, que assina esse documento, ele afirma o seguinte: “esses equipamentos eram responsáveis pela compilação dos softwares, em sua versão Windows e na versão Linux. Em execução nesse equipamento estava o genkis, configurado pela própria equipe da Sevin – que é a Seção de Voto Informatizado, uma parte dentro do TSE–, sem qualquer autentificação... autenticação”. Essa parte, que contém todo o código-fonte da urna, estava sem qualquer autenticação, e o hacker, que já estava lá dentro, se utilizou de senhas roubadas de servidores e ministros, conseguiu entrar, porque essa parte, que talvez seja a parte mais importante, não tinha qualquer autenticação, né. Então, esse ...

O SENHOR JAIR MESSIAS BOLSONARO (presidente da República): Você falou roubada, mas pode ser também, nada descarta a possibilidade de consentimento; não estamos acusando de conivência, longe disso. Agora, o hacker entrou no coração do sistema, concorda?

O SENHOR FILIPE BARROS (deputado federal): Exatamente. O SENHOR JAIR MESSIAS BOLSONARO (presidente da República): Ok.

O SENHOR FILIPE BARROS (deputado federal): Estando no coração do sistema, ele pode, inclusive, fazer alterações do próprio sistema, porque teve tempo pra isso. O próprio TSE reconhece que o hacker esteve, pelo menos, desde abril até novembro, dentro desses sistemas do TSE. E a última frase, uma das últimas frases desse relatório do TSE é muito contundente: “esse servidor estava acessível pra toda a rede e permitia a cópia de todo o código-fonte”. Então, o hacker teve acesso a todo o código-fonte da urna, com a possibilidade até de alterá-lo. Qual a consequência disso? Quando altera o código-fonte, você faz programações – por exemplo: vota 1, aparece o 13; vota 17, cai o voto nulo, como, inclusive, aconteceu, e vou relatar pra vocês dentro desse inquérito.

O SENHOR JAIR MESSIAS BOLSONARO (presidente da República): O que me surpreende, tá; não surpreende muito não. É que o TSE devia ser o primeiro interessado em buscar a solução pra isso; chegar ao ponto final e admitir um possível erro. O próprio TSE diz que o hacker foi no coração; diz que ele teve acesso aos códigos-fontes. O próprio TSE diz isso. A gente começa a ver por que o Excelentíssimo Senhor Ministro Barroso tá tão preocupado em nada mudar. Tá aqui. Querem provas? Tá aqui a prova. Prova fornecida por quem? Pelo próprio TSE. E eu reclamei das eleições, na live de última quinta-feira, né, por ocasião de – eu tenho certeza que eu fui eleito no primeiro turno, tenho certeza, dado o que acontecia; dado qual região tinha sido apurado mais ou menos, bem como a gente demonstra claramente aqui, tá? Um indício fortíssimo. Pode acontecer algo parecido? Pode. Mas é a mesma coisa que você ganhar dez vezes consecutivas na Mega Sena. O que aconteceu em São Paulo, o travamento no sistema 0,39 dá um percentual do primeiro ao oitavo classificado. Termina as... terminam as apurações, depois do destravamento do sistema, os mesmos oito, na mesma classificação, e com exatamente o mesmo percentual de votos, desconsiderando a casa decimal. Querem indício maior do que isso, para que se apure realmente? Agora, se não quer apurar, pelo menos não queiram fazer mais eleições em 22, semelhantes a 18, com esses furos todos...

O SENHOR FILIPE BARROS (deputado federal): E tem mais...

O SENHOR JAIR MESSIAS BOLSONARO (presidente da República): ... apontados pelo próprio TSE. Ninguém tá inventando nada. Então, a verdade, acima de tudo; ela aparece, né, tivemos o prazo de uma semana aqui, depois da última live, pra mostrar mais coisas, agora, tão se precipitando. É com todo respeito: um presidente da República pode ser investigado? Pode, num inquérito que comece lá no Ministério Público, né, e não diretamente de... de alguém interessado. Esse alguém vai, vai, vai abrir inquérito, como abriu; vai começar a catar provas, e essa mesma pessoa vai julgar? Olha, eu jogo dentro das quatro linhas da Constituição. E jogo, se preciso for, com as armas do outro lado. Nós queremos paz, queremos tranquilidade. O que nós estamos fazendo aqui é fazer com que tenhamos umas eleições tranquilas o ano que vem, onde quem perder cumprimenta o ganhador e toca o barco. Não podemos ter isso acontecendo. E olha o que estou falando, repito aqui: quem fornece, não é indício, não, provas que o sistema pode ser invadido, como foi invadido, é o próprio TSE. Tem mais coisas, Filipe?

O SENHOR FILIPE BARROS (deputado federal): Tem mais coisa, Presidente. Só para complementar rapidamente: desde que eu tive acesso ao inquérito, eu tomei toda a cautela necessária, consultei inúmeros cientistas, especialistas em segurança, professores renomados da área. E todos confirmam a gravidade dos fatos e confirmam que isso que nós [inaudível]. O próprio TSE fala: é verdade e é grave. Então, o delegado, depois desse primeiro relatório da Polícia Federal, o relatório pede mais algumas informações ao TSE. Dentro de... dessas informações que ele pede, ele pede um negócio chamado arquivo log. O que que é esse negócio de arquivo log? Arquivo log é o histórico, é o histórico onde fica tudo registrado: quem teve acesso ao software, quem mexeu no software, quem alterou o software, quando a pessoa entrou, quando saiu, a hora que a pessoa entrou, quem entrou, enfim, tudo fica registrado nos arquivos log. E, por mais absurdo que possa parecer, quando o... a Polícia Federal pede esses dados ao TSE, aquele mesmo servidor que, supostamente, teve a sua senha roubada, responde ao delegado, dizendo: “Devido a manutenções pra solucionar travamentos nos firewall do TSE, a equipe da Global IP, uma empresa terceirizada, realizou reinstalação do serviço de gerência, não tendo o devido cuidado de não prejudicar os logs armazenados. Assim, informamos que o TSE não possui dados adicionais pra repassar à Polícia Federal.”

 O SENHOR JAIR MESSIAS BOLSONARO (presidente da República): Eu não acredito! É verdade?

O SENHOR FILIPE BARROS (deputado federal): Apagaram os arquivos.

O SENHOR JAIR MESSIAS BOLSONARO (presidente da República): Eu sei que é não tô duvidando de você, porque eu li o processo. Essa parte eu li e entendi perfeitamente. Ou seja, o próprio TSE apagou os arquivos por onde andou o hacker. O próprio TSE apagou os arquivos por onde o hacker andou e taria ali a prova onde ele adulterou; possivelmente adulterou. Agora, é um inquérito que o TSE tinha que dar prioridade máxima: vamos resolver, vamos chegar no final da linha, vamos tapar os furos no futuro. Não fizeram nada. Simplesmente, desde novembro de 2018, se calaram, se calaram, ficaram quietinhos, botando uma pedra em cima. E, agora, a gente vê: aquela série de pessoas que passaram pelo TSE, assinando embaixo que o sistema é inviolável; o próprio TSE tá dizendo que o sistema não só é violável como foi violado, e lamentavelmente. O próprio TSE, o mesmo funcionário do TSE que tinha como pegar os arquivos log e entregar para a Polícia Federal – olha, ele andou por aqui tudo; dá para levantar agora onde é que ele mexeu, se ele mexeu nos votos do Jair Bolsonaro, ou não; se mexeu nos votos teu também ou não pode ter sido mexido se um candidato outro qualquer achava que ia se eleger e não se elegeu; pode saber por aqui também – porque esse hacker, o que esse cara, onde ele chegou, no coração do sistema, segundo o próprio TSE, ele podia mexer em qualquer número. E temos agora, então, esse mesmo sistema funcionando, que o Ministro Barroso disse que ele é inviolável, que ele é intransponível, que ele é confiável, tá, que diz, inclusive, né – é um fake news do Ministro Barroso –, o que ele vem dizendo que esse voto impresso da Deputada Bia Kicis, que foi autora e do Filipe, aqui, que tá relatando, não pode acontecer, por causa de milícias e por causa do PCC, grupos da bandidagem aqui, volta... voltados pro narcotráfico. O que que ele diz com isso aí? Porque podem, né, por causa do papel, o elemento mostrar o voto lá fora, e pro PCC e pra milícia, dizendo como ele votou. Mentira do Ministro Barroso. É triste falar, chamar o ministro de mentiroso, é triste, né? Por que que ele mente? Porque o sistema eleitoral proposto por nós é igualzinho o do Paraguai, bem como de outros países. Porque o papel não vai pra mão de ninguém. Você nem encosta no papel; tem um visor, né, com uma... uma... uma chapa em acrílico, que você olha no visor e vê se o que foi impresso no papel é o mesmo que tá na tela. E você aperta [inaudível] de uma urna, que vai ser guardada, guardada, não, que vai ser contado, logo após a... o final das eleições. Isso chama-se contagem pública dos votos. Então, o Ministro Barroso, né, usa argumentos mentirosos. É triste um ministro da Suprema Corte mentir dessa maneira, é triste. E acaba arrastando muitos ministros, por corporativismo que não se faz necessário, num caso desses. Nós queremos eleições limpas, o voto democrático, uma contagem pública dos votos. Olha o que decidiu a Suprema Corte alemã: que este que nós temos no Brasil não vale pra lá, porque o mais humilde do povo não consegue acompanhar a apuração. É isso que nós queremos aqui, é isso que a Bia Kicis quer, que o Filipe Barros quer, como tantos outros deputados e senadores também querem. Agora, fazem de tudo pra dizer que é uma mentira. O Presidente tá mentindo. Eu sou capitão do exército! A transgressão disciplinar mais grave que existe em nosso meio é faltar com a verdade. Um cabo que falta com a verdade não sai terceiro sargento, um subtenente não sai tenen... não sai tenente, um coronel não sai general, se tiver na tua ficha esse item, né, faltar com a verdade. E dá até trinta dias de detenção – dava, não sei se mudou o regulamento. É gravíssimo isso. É gravíssimo essa acusação de faltar com a verdade. E o Ministro do Supremo Tribunal Federal, um ministro, do Supremo Tribunal Federal, que é o presidente do TSE está mentindo, como está escrito aqui. Será que o nosso querido Ministro Barroso não tem acesso a isso? Ou a preocupação dele, em dizer que a urna é inviolável, é pra esconder isso daqui, que tá até respondido pelo TSE? O TSE reconhece; assinado por gente do TSE, dizendo que invadiu, sim, [...]. Teve acesso, e ele ficou, ele ficou... ele ficou por muito tempo...

O SENHOR FILIPE BARROS (deputado federal): De abril a novembro.

O SENHOR JAIR MESSIAS BOLSONARO (presidente da República): De abril a novembro, toda a época das eleições, lá dentro. E poderíamos saber o que ele fez...

O SENHOR FILIPE BARROS (deputado federal): No mínimo, né?

O SENHOR JAIR MESSIAS BOLSONARO (presidente da República): No mínimo... e poderíamos saber o que ele fez, onde mexeu se o cadastro, o arquivo log, não tivesse sido apagado pelo próprio TSE. Ou seja, o TSE apagando as pegadas, né, daquele que invadiu o TSE; isso é um crime, isso é um crime! E eu vou tomar a liberdade aqui, Filipe, a responsabilidade é minha, né? Eu vou divulgar, nas minhas redes sociais... Quantas páginas têm esse inquérito aí?

O SENHOR FILIPE BARROS (deputado federal): Duzentas e dez.

O SENHOR JAIR MESSIAS BOLSONARO (presidente da República): Duzentas e dez páginas. Vou botar o linkezinho ali, pro pessoal ter acesso; pra não ter dúvida. Eu acho que acabou a história do... de vamos ter ou não vamos ter o voto impresso. É uma necessidade. Com todo respeito à autora, Bia Kicis, ao Filipe Barros, não é nem pra ter PEC mais; é pro próprio TSE falar: vou tomar providência, nesse sentido, pra nós garantirmos a lisura das eleições de 22, que tá muito na cara o que tá acontecendo. Querem botar um presidiário, na boca do gol, pra bater um pênalti, sem goleiro. Não pode acontecer isso. Tá em jogo a nossa liberdade, a nossa democracia. Se eu disputar as eleições e perder, eu quero ligar pra seja quem for [...], se eu puder colaborar, tô à disposição. Se não puder, vou lá pra Mambucaba, e vou lá – já que tô bastante idoso aí –, vou cuidar da minha vida lá em Mambucaba e ficar pescando todo dia. Que eu não quero mais... abandono o barco, sem problema nenhum. Não tenho obsessão por essa cadeira. Agora, deixo bem claro: esse hacker ficou lá vários meses, dentro do TSE. Ele pode ter adulterado, sim, números. Como, no futuro, em 22, pode acontecer fraude também. Como eu apresentei indícios fortíssimos de fraude, nas eleições da capital de São Paulo, no ano passado; fortíssimos, fortíssimos. É impossível acontecer aquilo; não vou falar impossível: é um sobre aquele oito deitado, um sobre infinito. Então, é um número próximo de infinito acontecer aquilo. Oito pessoas, depois de 039 apurado, trava o sistema, e quando chega ao final dos 100%, os oito estavam na mesma classificação – e, isso é, pode até acontecer, com menos dificuldade –, mas, exatamente, tirando a casa decimal, os mesmos percentuais. Todo mundo foi numa apuração linear, onde é natural, entra voto de uma região lá da – pra você candidato lá do Paraná – do Curitiba, Cascavel, né...

O SENHOR FILIPE BARROS (deputado federal): Londrina.

O SENHOR JAIR MESSIAS BOLSONARO (presidente da República): ... Londrina, é, varia, entrou Londrina, tua área, entra mais voto; foi lá, por exemplo, pra Foz do Iguaçu – você –, entra menos voto. Não. Foi linear, para os oito candidatos. E olha só, qual o candidato mais fácil de ser derrotado em segundo turno? É do PSOL, né? O PSOL foi gordo pro segundo turno. A gente fica, todo mundo ficou até assustado: mas, poxa, PSOL tá bem assim? O invasor de propriedade. Uma pessoa, um partido que é um puxadinho do PT, que não tem qualquer respeito para com a família, não tem respeito com a propriedade privada, é desarmamentista, defende pessoas que estão erradas, tá, defende o aborto. É tanta barbaridade que esse partido defende e tem uma votação enorme. Enorme. Poderia ter acontecido? Poderia. Voto de protesto? Poderia. Mas, dos oito, no começo, ter o mesmo percentual no final, aí fica complicado. Repito: vou ficar aberto aí, perguntas por parte do...

O SENHOR FILIPE BARROS (deputado federal): Tem... Tem mais um documento que eu gostaria de comentar, rapidamente.

O SENHOR JAIR MESSIAS BOLSONARO (presidente da República): Tem perguntas por parte do programa... pode fazer direto... deixa o Filipe Barros fazer mais uma observação aqui; ler mais uma parte do documento do TSE, pra gente ficar aberto a perguntas por parte do Augusto Nunes e sua equipe aí da, do Os Pingos nos Is.

O SENHOR FILIPE BARROS (deputado federal): Esse documento aqui, Presidente, ele é de extrema importância; ele é assinado pelo então Secretário de TI, do TSE, Senhor Giuseppe Janino, e foi assinado logo que a Ministra Rosa Weber pede abertura de inquérito, no dia 7 de novembro de 2018. Ou seja, as investigações não tinham começado, né, mas, mesmo sem as investigações começarem, o próprio Secretário de TI do TSE já faz um balanço do possível estrago que o hacker pode ter causado, né, então, ele coloca aqui: “o conteúdo evidencia o acesso indevido dos seguintes dados: código-fonte completo do Gedai, possivelmente da versão usada nas eleições de 2018”. O que que isso significa? O sistema de toda eleição, ele teve acesso ao código-fonte do sistema de toda a eleição, das eleições de 2018. [...] Então, esse relatório do Janino afirma, também, o seguinte: que essa invasão do hacker... “as senhas de oficialização permitem a alteração de dados e partidos e candidatos, até mesmo a sua exclusão de um processo eleitoral”. O que que ele tá dizendo aqui? Que, de todas essas partes dos softwares, esses arquivos que o hacker teve acesso... isso é possível... você... alterar os dados de partidos e de candidatos, nas urnas, e até mesmo a exclusão do candidato, numa determinada urna. Então, você vota 17, cai nulo; se apertar o 1, sai 13.

O SENHOR JAIR MESSIAS BOLSONARO (presidente da República): Agora, tem mais uma aqui; mais uma, acredite, se quiser. Eu lembro do tempo da rádio relógio, né, que dava a hora de minuto em minuto e falava alguma coisa, contava alguma, mostrava um fato e terminava: acredite, se quiser. [...] Repito aqui: eu acho que eu vou dispensar a Bia Kicis e você. Não tem que ter PEC mais. O próprio TSE tem que falar, amanhã mesmo, dados os documentos que tá aqui e falar: ó... vamos blindar o sistema de hackers com o voto impresso e com a contagem pública do mesmo.

[...]

O SENHOR FILIPE BARROS (deputado federal): E no começo... não tinha ainda nem começado as investigações; foi uma análise preliminar que ele fez. Ele afirma, inclusive, que essa... essa possível mudança de candidatos, de dados das urnas, supostamente teria ocorrido apenas na eleição suplementar de 2018, no Município de Aperibé, no Rio de Janeiro. Agora, eu pergunto: se o hacker teve todo esse acesso – segundo os professores que eu consultei, foi um esquema profissional, se utilizou de uma VPN lá do Panamá, pra que ele não possa ser identificado , se ele fez tudo isso, seria pra alterar o resultado do Município de Aperibé? Se ele fez alterações no Município de Aperibé, por que que ele não pode ter feito antes?

O SENHOR JAIR MESSIAS BOLSONARO (presidente da República): Com todo respeito, eu sei onde é, porque eu sei onde é Aperibé. [...] Qual o interesse dele fazer isso tudo pra entrar apenas em Aperibé? Tá na cara o que que o Janino fez aqui. Isso é uma suposição; deixar bem claro: olha, já que entrou, entrou no coração do sistema, pegaram os códigos-fontes, vamos dizer que entrou lá em Aperibé. A gente vê se o pessoal esquece da gente. É isso o que foi feito. Tu acha que um hacker, com todo respeito que eu tenho a Aperibé, no meu querido Estado do Rio de Janeiro, né, cê acha que um hacker ia ter interesse em Aperibé? É bastante difícil. Se ele conseguiu [inaudível] no coração do sistema, ele pode ter negociado com alguém. Repita para mim: é uma empresa terceirizada que mexia nos computadores lá do TSE, é isso mesmo?

O SENHOR FILIPE BARROS (deputado federal): Foi uma empresa terceirizada que mexia nos computadores de um TRE do Norte, Nordeste, e é uma empresa terceirizada que também apagou os logs.

O SENHOR JAIR MESSIAS BOLSONARO (presidente da República): [inaudível] que apagou...? Meu Deus do céu, não tenho o que comentar. Isso daí dá até vergonha, tá, estar discutindo um assunto desse. O TSE tinha que ser o primeiro a buscar a apuração. Nós não inventamos esse processo aqui, eu repito aqui: esse inquérito 1.361, de 2018, da Polícia Federal. Nós não inventamos. Tá um tempão lá. [...] Agora, veio pro nosso lado. Eu acho o mínimo que eu posso falar, né? Pô, pra quê Aperibé? Será que o... qual o interesse dele em Aperibé? Agora, o que que ele pode ter feito, no todo? E, inclusive, aqui é bem claro, ele pode ter entrado antes... só um hacker que resolveu falar, lógico, tá, ele resolveu falar: imagine um... outros podem ter tido também... e entrou com muita pelo que parece com muita facilidade, em 2018. Porque o sistema de informática ali de 2018 é o mesmo do final dos anos 90. Tudo evolui, se aperfeiçoa, se moderniza. Nada mudou lá. Agora, o que que estão… o que que estariam é suspeita, não tô acusando , estariam preparando pra 22? Já que o presidiário foi tirado da cadeia, foi tornado elegível. E, depois, quem ia contar esses votos? Quem ia contar esses votos, né? Que que é isso, meu Deus do céu?

O SENHOR JAIR MESSIAS BOLSONARO (presidente da República): Olha, se você pegar vinte pessoas, em média – vinte pessoas, em média – e perguntar: você tem conhecimento, ou aconteceu contigo, por ocasião das eleições de 2018, cê apertar, o número dum candidato e aparecer outro nome ou nulo? Tem. Então, pelo que tudo indica, os indícios estão aí, foi [inaudível] fantástico o que aconteceu nas eleições de 2018. Eu volto a dizer, pelo meu sentimento, pelas minhas andanças pelo Brasil, pelo que aconteceu: nós ganhamos disparado no primeiro turno, disparado. Eu não quero inventar coisa aqui, mas são indícios fortíssimos. Eu estava no Rio de Janeiro, por ocasião das eleições, recebi no meu telefone, toda hora... – que eu tinha... meu telefone era quase que um telefone público –, gente dizendo: eu tô aqui na zona tal, sessão tal. Eu tô tentando votar em você e não entra. Isso era comuníssimo acontecer. Não era um caso perdido, não. Isso vocês acham aí dezenas de vídeos na internet, dezenas. E agora? Vamos lá. Vamos supor que não teve problema nenhum. Por que o TSE não apurou as eleições de Aperibé? Não quero acusar o prefeito eleito de absolutamente nada, tá, até porque não sabemos o que aconteceu. Mas o TSE disse que entraram, tá, em Aperibé. Por que o TSE não fala [inaudível], aconteceu na capital São Paulo ou na minha modesta Eldorado Paulista, ou Glicério, né, onde eu nasci de fato, tem que apurar; tem que ter a mesma responsabilidade. A vontade popular tem que ser respeitada. E o primeiro a desrespeitar, me desculpem aqui, é o Senhor Janino, do próprio TSE. Agora, Senhores Ministros, eu não preciso mandar – do TSE –, eu não preciso mandar para os senhores daí. Os senhores têm aí esse acesso. Tá com a Polícia Federal, mas, se não tiver, só mandar um funcionário lá falar comigo, que entrego, entrego eu ou o Filipe aqui, entregamos esse processo, sem problema nenhum. Agora, o TSE tem que explicar por que não foi nos finalmente, não se interessou nesse inquérito da Polícia Federal. Por que que não apuraram o que aconteceram em Aperibé?  [...] Senhores Ministros do TSE, se os senhores quiserem, eu entro em contato com o Marito, e em dois, três dias o pessoal tá aqui pra demonstrar que esta urna do Paraguai, a que nós queremos aqui, ela garante a lisura das eleições. Eu não sei por que os senhores estão brigando comigo. Nós queremos a mesma coisa, ou não é? Eu tenho certeza que todos os ministros do TSE – os que três são do Supremo e os quatro que vem lá do STJ ou outra indicação – querem a lisura das eleições. Tá aqui a prova. Queriam prova? A imprensa falou tanto que eu não apresentei prova; tá aí a prova. Bateram bastante: está aí a prova. [...]”

A mensagem comunicada na live de 04/08/2021, em síntese, foi a de que o IPL nº 1361/2018 demonstraria que o TSE teria admitido que um ataque hacker a seus sistemas possibilitou que votos fossem direcionados automaticamente ao candidato adversário do primeiro investigado nas Eleições 2018, já no momento da digitação (“aperta 1, sai 13”). A apresentação feita por Jair Messias Bolsonaro e Filipe Barros explorou diversas dimensões do discurso desinformativo pragmaticamente orientado a desacreditar o sistema eletrônico de votação e a Justiça Eleitoral:

a) conspiracionismo, envolvendo servidores da Secretaria de Tecnologia da Informação e Ministros do TSE no suposto conluio para manter o sistema fraudável, a fim de permitir que o possível adversário do primeiro investigado viesse a ser proclamado eleito em 2022;

b) severa degradação da normatividade epistêmica, por meio de um despejo de informações técnicas, complexas, impassíveis de serem compreendidas pela maioria da audiência, oferecendo-se, na sequência uma suposta “tradução” dessas informações (“o que eles querem dizer aqui?”) que, na verdade, leva à completa deturpação de seu significado;

c) confronto direto à autoridade do TSE na matéria, refutando o valor do conhecimento especializado externado em informações oficiais (recusa à competência da fonte) e indicando que interesses escusos moveriam a ocultação das falhas (recusa à confiabilidade da fonte), com nítido objetivo dos participantes da live de se imporem como autoridade na qual o público deveria confiar (disputa no âmbito da normatividade de coordenação);

d) fabricação de conteúdos falsos, comunicados ao público em velocidade vertiginosa, mitigando a possibilidade de reflexão, que seria suprida com a suposta “prova” da veracidade das afirmações (a envolver a divulgação de um inquérito de 210 páginas na internet, “para quem quiser”);

e) antagonização explícita ao TSE, a seu então Ministro Presidente e ao Secretário de Tecnologia da Informação, a fim de sustentar a narrativa de que o primeiro investigado liderava uma cruzada por “eleições limpas” e que se tinha chegado a um ponto limite em que caberia ao TSE “reconhecer” que não se poderia fazer eleições em 2022 sem o voto impresso;

f) apelo a um suposto consenso popular em torno da ocorrência da fraude em 2018 – a partir dos relatos da impossibilidade de digitar o número “17” e de manifestações de simpatizantes como prova de que a vitória do primeiro investigado teria ocorrido no primeiro turno daquele pleito – como algo de maior valor que as informações técnicas do TSE no sentido de que não ocorreu fraude;

g) difusão de pensamentos intrusivos a respeito de fraudes eleitorais imaginárias, acentuada pelo jogo de palavras em que fatos são afirmados (“tenho provas”, “com certeza aconteceu”, “é o TSE que diz”, “é gravíssimo”, etc.) e em seguida pretensamente atenuados (“são suposições”, “não quero inventar nada”, etc.), sem que se possa, aos moldes do “paradoxo do elefante cor-de-rosa”, deixar de enxergar em minúcias, como em um filme, a suposta manipulação de votos em 2018 e a iminência do que ocorreria em 2022; e

h) ameaça velada de Jair Bolsonaro de que poderia ser “obrigado” a sair das “quatro linhas da Constituição”, com o pretexto de defender a democracia, a soberania e a liberdade, caso, uma vez não aprovado o voto impresso, não restasse outro caminho para impedir a imaginária conspiração para fraudar o pleito de 2022.

A fluida interlocução entre Filipe Barros e Jair Messias Bolsonaro elevou o potencial sensacionalista e alarmista da live.

De início, o Deputado Federal começou a descrever detalhes do relatório da STI/TSE que embasaram a instauração do IPL nº 1361/2018. Os termos usados pelo Secretário da STI eram extremamente técnicos, pois se destinavam a subsidiar providências de mesma natureza, e não a esclarecer o público leigo. Porém, Filipe Barros conferiu ares reveladores a algo que é comum nesses tipos de ataque a sistemas de computadores: invasão por uma “porta” que permite a hackers transitarem em uma rede. Disparado o estado de alerta, passou a fazer uso de citações descontextualizadas do documento e, em seguida, a dizer que explicariam, em termos “simples”, seu significado.

Ocorre que as supostas “traduções” dos achados da STI convergiam para um fato forjado, que era bastante concreto, delimitado, grave e compreensível para a audiência: estaria comprovado que o hacker conseguiu acessos que lhe permitiam alterar a programação da urna, fazendo com que, ao se digitar o algarismo 1, o voto fosse autocompletado como 13, ou convertendo voto no número “17” em voto nulo.

Isso é inteiramente falso. O relato do acesso ao código-fonte e senhas de oficialização em momento algum autorizam a absurda “tradução” de que votos foram – ou poderiam ser – manipulados nas Eleições 2018.

Surpreende que, ao longo da inquirição de Filipe Barros, este tenha afirmado que nem ele, nem o então Presidente da República, teriam feito afirmações concretas de que houve fraude nas eleições. A testemunha argumentou, em diversos momentos, que ele e o primeiro investigado estavam apenas levantando “hipóteses”. Porém, essa interpretação não se sustenta. Ela colide com a descrição literal da forma como se daria a manipulação de votos, algo que, uma vez que foi deliberadamente comunicado ao público, não poderia ser apagado pela simples menção a ser uma hipótese.

O depoimento de Filipe Barros foi, em grande parte, marcado pela tentativa de “desdizer” o que foi dito na live, de forma a desimplicar sua fala e a do primeiro investigado dos efeitos pragmáticos da mensagem. A testemunha, mesmo confrontada com as palavras expressas, negou os sentidos comunicados. O jogo de palavras utilizado no depoimento é uma técnica que busca, após a difusão da mensagem, negar a responsabilidade do emissor. Trata-se de uma estratégia desinformacional, que pode ser detectada em diversas passagens do depoimento da testemunha (ID 158886322, pp. 12, 18, 29, 33-35, 57-58, 69-70, 73, 76-77):

“O DOUTOR MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Tá. O Senhor teve acesso ao inquérito, o Senhor mesmo disse que teve auxílio de técnicos, né, ou de especialistas, para analisar documentos específicos de tecnologia...

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Sim.

O DOUTOR MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Mas, dentro dessa análise que o Senhor fez [do IPL nº 1361/2018], o Senhor identificou algum elemento que comprovasse adulteração do resultado das eleições de 2018?

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Não, e isso eu nunca disse. Eu disse, inclusive, no depoimento que eu prestei à Doutora Denisse, delegada de meio ambiente, alocada para este inquérito, que pode pegar qualquer fala minha... que eu jamais disse que as urnas... ou que havia havido fraude. Eu disse, sim, aquilo que os próprios professores, doutores e pós-doutores das nossas universidades públicas que estavam na Câmara me auxiliando disseram: que o nosso sistema pode e deve ser aprimorado, que o nosso sistema apresenta algumas vulnerabilidades que podem ser aprimoradas. Então, em nenhum momento, foi colocado, da minha parte, que houve fraude. Não. Agora, que o nosso sistema precisa e deve e merece ser aprimorado, debatido democraticamente, com toda a sociedade, TSE, Justiça Eleitoral, isso eu sempre coloquei e continuo colocando.

[...]

O DOUTOR MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): [...] Bom, o ex-presidente segue dizendo na live também, em que o Senhor [...] estava melhor preparado para falar do inquérito, que o Senhor teria estudado e diz:então, tá mais do que demonstrado agora, pelo próprio TSE, que as urnas, né, os números das eleições podem ter sido fraudados. Pode ter sido manipulado, sim, é apenas isso”. O Senhor indicou para o ex-presidente que os resultados das eleições teriam sido fraudados?

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Não, como eu já respondi para o Senhor.

O DOUTOR MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Isso foi uma compreensão dele, então?

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Sim. E ele coloca também uma hipótese, ele não afirma. Agora, Doutor, todas as falas... eu, depois, me atentei, para ler a transcrição da live inteira e, em nenhum momento, nem eu nem o Presidente Bolsonaro afirmamos categoricamente que havia fraude.

[...]

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): [...] quando o Senhor mencionou dessa questão do código-fonte, o Senhor prossegue dizendo o seguinte: “Então, o hacker teve acesso a todo o código-fonte da urna, com a possibilidade até de alterar. O quê que... Qual a consequência disso? Alterar o código-fonte, você faz programações. Por exemplo, bota 1, aparece o 13; bota 17, cai o voto nulo. Como inclusive aconteceu, e vou relatar para vocês desse... dentro desse inquérito.” O Senhor sustenta que o inquérito, que o inquérito contém comprovação de que o hacker alterou o código-fonte da urna, de modo a que o... se o funcionário se desse... o seu funcionamento se desse de forma relatada, de um para treze?

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Não. Até porque eu nunca coloquei isso como uma certeza, Doutor, como eu disse já algumas vezes. 

[...]

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Bom, após essa fala do Senhor, que eu mencionei, né, inclusive o Senhor... é... dentro do contexto de uma live, dá essa hipótese do botão, apertar 1 e aparecer o 13...

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): É a que tá aqui, né?

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): O ex-presidente diz na live assim: “O próprio TSE diz que o hacker foi no coração. Diz que ele teve acesso aos códigos-fontes. O próprio TSE diz isso. A gente começa a ver por que o Excelentíssimo Senhor Ministro Barroso tá tão preocupado em nada apurar. Aqui. Querem provas? Tá aqui a prova. Prova fornecida por quem? Pelo próprio TSE. E eu reclamei das eleições na última quinta-feira, né, por ocasião de... eu tenho certeza que eu fui eleito no primeiro turno; tenho certeza.” O inquérito a que o Senhor teve acesso apontou a adulteração nos resultados nas eleições de 2018? O senhor tava na posse de algum documento que corroborasse a afirmação que Jair Bolsonaro se elegeu no primeiro turno?

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Não. Eu respondi já essa pergunta e não tem problema nenhum...

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): O Senhor pode responder?

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): E posso responder novamente, claro.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Hã-hã.

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Tô aqui prá isso. É... mas não... assim... todas as falas foram baseadas... todas as minhas falas foram baseadas naquilo que se produziu pelo próprio TSE e pelo próprio... pela própria... é... Polícia Federal.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Tá. E o Senhor não chegou a conversar com o então Presidente Jair Bolsonaro, para ele... para saber por que que ele tem essa afirmação...

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Não.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): ... que foi eleito no primeiro turno?

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Não. Não.

[...]

A DOUTORA EZIKELLY SILVA BARROS (advogada do PDT): Vossa Excelência respondeu, quando indagado pelo Doutor Marcos, que preside a audiência, que jamais afirmou que houve fraude, que houve fraude na votação eletrônica diante da sua investigação na qualidade de relator da PEC na Câmara dos Deputados. No entanto, e aqui, vou abrir aspas ao que Vossa Excelência mencionou no programa. Vossa Excelência responde, ou seja, responde aqui a uma indagação do Senhor Mário Grazílio: “professor, ou seja, além delas não serem auditáveis, quando existe indícios de fraude, o próprio TSE apaga os indícios de fraude.” Então diante dessa sua indagação ao programa Pingo nos Is e do que Vossa Excelência mencionou há pouco nesta audiência, Vossa Excelência mantém o que disse no programa ou mantém o que disse nesta audiência de que, de fato, não é possível fraudar as eleições, fraudar o sistema...

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Mas não houve contradição entre a minha fala e a fala que a senhora leu.

A DOUTORA EZIKELLY SILVA BARROS (advogada PDT): Existe... “existe indício... quando existe, quando existe indícios de fraudes, o próprio TSE apaga os indícios de fraude.” Pergunto a Vossa Excelência: o TSE apagou indício de fraude, há essa informação...

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Sim.

A DOUTORA EZIKELLY SILVA BARROS (advogada PDT): ... no relatório?

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Não. Há o e-mail. Há o pedido da Polícia Federal em relação aos logs. Quando o inquérito foi aberto, nesse ofício, um dos primeiros pedidos do Delegado Doutor Victor Feitosa foi os logs. E aí conversando, Doutor, com os especialistas da área, eles dizem o seguinte: quando um órgão público, ele é invadido, qual é a praxe? O órgão público já de imediato manda para a Polícia Federal os logs. Isso é básico. [...]

[...]

O DOUTOR WALBER DE MOURA AGRA (advogado do PDT): [...] Aqui nos autos, eu gostaria que o Senhor me explicasse, deve ser uma questão de interpretação da minha parte, o Senhor diz: “Vitor, nós estamos falando de provas. O que nós mostramos aqui são provas. Assinadas pelo próprio Tribunal Federal. Com base nisso...”, aí o senhor continua. Então, que provas são essas que Vossa Senhoria se refere, que foram assinadas pelo próprio Tribunal Superior Eleitoral?

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Provas de que o nosso sistema, ele é vulnerável e que pode ser aprimorado.

[...]

O DOUTOR WALBER DE MOURA AGRA (advogado do PDT): Então, eu acho que se não foi um erro de minha interpretação, ou da interpretação das palavras do Senhor Janino, Chefe de TI, ele falou que poder-se-ia chegar, podia ter dualidades em senhas da oficialização. Numa eleição específica do município do Rio de Janeiro. Mas, como bem foi dito aqui, ainda nessa audiência, as chaves são diferentes. Então, várias vezes que isso foi reputado no contexto da fala de Vossa Senhoria, esta fala do Senhor Janino, o Senhor Giuseppe Janino, considerado como pai da urna eleitoral brasileira – na verdade, o pai foi o Ministro Velloso –, seria uma confissão da violabilidade das urnas eletrônicas.

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Eu não posso pressupor isso, Doutor. Seria, talvez... Doutor, com todo respeito a Vossa Excelência, mas, é... vou repetir aquilo que eu já havia dito mais cedo. Todas as falas, na live, se basearam em leituras de conteúdos do próprio inquérito, seguido de comentários. Simples assim. Né? Se a chave é a mesma, ou não, é... aí não é, honestamente, não somos nós, nem eu, nem Vossa Excelência, que sabemos que nós não somos servidores técnicos do TSE. Mas o que nós fizemos foi, basicamente, ler – e esse ponto específico que Vossa Excelência questiona, está no tópico 5.5. do relatório do Giuseppe Janino – e comentar.

[...]

O DOUTOR EDSON DE RESENDE DE CASTRO (membro auxiliar do Ministério Público Eleitoral): Muito bem. O Senhor também mencionou, aí há pouco, que, em testes públicos anteriores, foram identificadas vulnerabilidades do sistema e que essas vulnerabilidades foram corrigidas pelo TSE.

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Sim.

O DOUTOR EDSON DE RESENDE DE CASTRO (membro auxiliar do Ministério Público Eleitoral): O Senhor sabe dizer se essas vulnerabilidades diziam respeito ao voto, à apuração do voto, à totalização e ao resultado das eleições ou diziam respeito a outros aspectos do sistema?”

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Não... são ... foram todas as... e o teste público de segurança ele é extremamente importante por conta disso, né? Tudo documentado inclusive... é... pode ser aprimorado como qualquer coisa na nossa vida, inclusive... mas isso que foi identificado pelos professores que participaram dos últimos testes públicos de segurança, diziam respeito justamente – não vou saber explicar para o senhor tecnicamente – mas era sobre a... o registro, a apuração e a totalização do voto... e por isso que é um instrumento importante. E a Academia identifica vulnerabilidades, apresenta ao TSE e o TSE as corrige.

Ao ser confrontado de forma mais direta com o teor do que foi verbalizado em 04/08/2021, Filipe Barros diz que somente leu trechos do IPL nº 1361/2018 e os comentou, junto com o então Presidente da República. É patente, contudo, a ausência de apego à verdade factual da exposição feita na live. Todos os espaços de dúvida, as chamadas “hipóteses”, foram criados pelos próprios participantes e por eles preenchidos com invencionices, justificadas de forma açodada e descontextualizada por curtos trechos do relatório da Secretaria de Tecnologia da Informação.

Nas premissas de julgamento, apontou-se que o demérito às instituições e ao conhecimento especializado é uma poderosa ferramenta para a disseminação de fake news. O argumento da “simplicidade da linguagem”, diante de tema de alta complexidade técnica, é uma armadilha, pois sugere ao público que cada pessoa poderá, por si, formar seu entendimento sobre tudo o que ocorre no mundo. Essa é uma premissa falsa, pois, como visto, nossa sociedade tem por elemento constitutivo confiar nos saberes alheios, já que nenhum ser humano isolado é capaz de deter todo o saber da humanidade.

Então, em lugar de democratizar o conhecimento, o repúdio puro e simples ao saber especializado é uma estratégia autoritária. O autoproclamado portador da linguagem simples busca, na verdade, controlar a audiência. Quem alerta uma plateia que um texto técnico esconde um segredo institucional mantido para ludibriar a sociedade, na verdade aciona sentimentos negativos que disparam mecanismos de reação instintiva. Isso compromete a qualidade da atividade cognitiva, a reflexão e a empatia.

Os seguinte trechos do depoimento de Filipe Barros bem ilustram esse fenômeno (ID 158886322, pp. 14-16, 29-30, 35-39, 43-46 e 56):

“O DOUTOR MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): [...] durante a entrevista da live, no dia 4 de agosto, o ex-Presidente Jair Bolsonaro iniciou o programa, dizendo o seguinte: “tô aqui com o Filipe Barros, Deputado Federal, lá do Estado do Paraná, que é o relator da PEC do voto impresso. Bem, o que aconteceu? Ele teve acesso há pouco tempo, por ser o relator, teve acesso, junto à Polícia Federal a um inquérito; o inquérito tem o número 1361/2018, inquérito da Polícia Federal. Não é o que nós conversamos na última live, não. Há dois pareceres diferentes da PF; não é aquilo, é outra coisa agora. Na verdade, o que nós temos em mãos aqui, a comprovação... porque quem diz isso é o próprio TSE, não é nem a Polícia Federal. É o próprio TSE, que, no período de abril a novembro de 2018, quando tivemos as eleições, onde eu fui eleito presidente, você, que foi eleito deputado federal, de que o código-fonte esteve na mão de um hacker. E o código-fonte, estando na mão de um hacker, ele pode tudo, pode até apertar ‘um’ e sair o ‘treze’. Pode-se apertar o ‘dezessete’ e sair o ‘nulo’; pode alterar votos, pode fazer tudo.” O Senhor estava de posse de algum documento que comprovasse que o voto digitado pelo eleitor na urna foi alterado, conforme dito: de um para treze, ou dezessete para nulo? Ou documento que indicasse essa possibilidade? E aí eu volto àquela questão da sugestão de que esse inquérito poderia levar a uma desconfiança do processo eleitoral de 2018.

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Doutor, assim, em primeiro lugar, eu não acho que essa premissa, ela seja válida. Porque o Congresso Nacional debate esse assunto desde 1994. Diversos autores, de inúmeros partidos políticos, da esquerda à direita, ao centro, já propuseram, ou aprovaram, a proposta do voto impresso e já debateram, em algum momento da nossa democracia, aprimoramentos ao nosso sistema eletrônico de votação. E essa premissa só foi existir agora. O debate sempre foi feito de modo técnico, de modo muito tranquilo, de modo muito sereno, respaldado pela ciência. E mais recentemente que esse debate se politizou. Então, pela fala que Vossa Excelência lê do próprio presidente, com a simplicidade de linguagem que é típica do presidente, ele coloca uma hipótese; ele aventa uma hipótese, ele não afirma que houve uma fraude. Mas ele faz isso com base no próprio documento, assinado pelo ex-Secretário de Tecnologia da Informação do TSE, o Senhor Giuseppe Janino, em que, nesse laudo, ele coloca – se o Senhor me der alguns minutinhos, só para eu localizar aqui –, esse foi um dos primeiros laudos produzidos à época para então Ministra ex-presidente do TSE, Ministra Rosa Weber, em que ele, num cenário muito breve, relata à Ministra Rosa Weber qual era a possível extensão daquilo que a imprensa, em 2018, noticiou, de uma possível invasão hacker. E aqui, nesse documento, acostado no inquérito, no tópico 5.3, ele diz, por exemplo: “as senhas de oficialização permitem a alteração de dados de partidos e candidatos, até mesmo a sua exclusão, no contexto de um processo eleitoral”. Ou seja, no caso concreto, afeta somente a eleição suplementar de 2018, de Aperibé. Então, no tópico 5.3, o ex-Secretário de TI, o Senhor Giuseppe Janino, aventa essa possibilidade. O próprio presidente coloca isso como uma hipótese, dentro disso que está aqui. Agora, se isso de fato se comprovou, ou não, nós não sabemos, porque daí eu não tenho a conclusão desse inquérito.

O DOUTOR MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): E esse seria então o documento que justificaria o presidente a fazer essa afirmação?

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Eu não sou o presidente, eu não posso responder por ele, mas pelo que o Senhor... pelo que o Senhor relata, dessa fala do presidente, suponho eu que ele estivesse se referindo a esse documento específico.

[...]

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Agora, o que eu afirmo, e eu li isso na live, é esses documentos do Senhor Giuseppe Janino, em que ele coloca essa possibilidade. Então, a minha fala na live é exclusivamente lendo cada um desses tópicos e tentando traduzir para uma linguagem popular, com base naquilo que os professores que estavam me auxiliando haviam me passado. Mas traduzi isso numa linguagem popular, com base naquilo que tava no próprio inquérito, né? Agora, repito, em nenhum momento eu afirmei categoricamente que essa possibilidade de fato aconteceu. Agora, que essa possibilidade era uma mera possibilidade, o próprio inquérito coloca.

[...]

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): [...] O Senhor disse, ainda mais uma vez, que o documento assinado pelo ex-secretário de Tecnologia da Informação, Giuseppe Janino, indicaria aquela mesma possibilidade de direcionar o voto, no 17 para nulo, e a digitação do 1 para o outro completar como 13. As suas palavras foram: “As senhas de oficialização permitem a alteração de dados e partidos e candidatos, até mesmo a sua exclusão de um processo eleitoral.” “O que que ele tá dizendo aqui? Que todos esses... essas partes do software, esses arquivos que o hacker teve acesso, isso é possível você alterar os dados do partidos e de candidatos nas urnas e até mesmo a exclusão do candidato numa determinada urna. Você vota no 17, cai nulo, aperta 1 sai 13.” O Senhor chegou a procurar informações sobre o uso de uma senha de oficia... de oficialização?

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Não, porque é... esse trecho que o Senhor lê é exatamente o trecho ipsis litteris do relatório produzido do... do... do Giuseppe Janino.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Hum.

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): E nesse trecho, que eu leio na live e o Senhor reproduz agora, é a afirmação do próprio Giuseppe nesse relatório preliminar, que ele fez à Ministra Rosa Weber, no tópico 5.3: As senhas de oficialização permitem a alteração de dados de partidos e candidatos no contexto de um processo eleitoral, ou até mesmo a sua exclusão. Ou seja, no caso concreto, afeta a eleição suplementar de 2018 de Aperibé, do Rio de Janeiro”.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Tá. Mas, nesse documento, chega a falar do apertar 1 sai nulo...

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Não.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): ... apertar 1 sai 13?

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Não. Não. Eu li agora pro Senhor aquilo que tá aqui, né? Interpretei isso no... tentei interpretar isso numa linguagem popular, digamos, de fácil acesso. Aliás, a Academia traz um dos conceitos, que é a segurança por obscuridade. Eu acho que muito do ruído que foi gerado poderia ter sido resolvido se houvesse esse diálogo aberto e franco... é... do... do... da autoridade... é... eleitoral com a própria Câmara e Senado, Doutor. Porque, naquele momento que nós... é... discutimos essa matéria na comissão especial, e depois discutimos o próprio inquérito na comissão especial, em nenhum momento... é... o próprio TSE me procurou, para que eu pudesse... “oh, Filipe, não é bem assim é assado, vem cá, conhece aqui. É assim, assim.” Então, é difícil, não é? Eu acho que uma democracia se faz através do debate e do diálogo, não é? [...]

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Hum-hum. Nessa ocasião, para ter essa afirmação do aperta 1 sai 13, ou 17 nulo, o Senhor foi orientado por alguém específico, para dizer que essa hipótese aí seria viável?

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Não.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Isso foi uma conclusão do Senhor?

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Não. Eu vou... assim, eu tinha uma série de professores que estavam me dando suporte, os técnicos e servidores da Câmara dos Deputados, professores das nossas universidades. Então... é... não... não sou da área da tecnologia.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Hum-hum.

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Então, assim, todo esse corpo técnico que me auxiliava... é... afirmava e me dava todas as orientações necessárias.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Tá. É... eu... eu... eu só pergunto por que o Senhor realmente retratou na live esse 5.3.

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Isso.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Mas, aí, não consta essa hipótese da viabilidade de apertar 17. Essa conclusão foi de algum técnico, de algum experto, para dizer: olha, isso inclusive pode acontecer também?

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Não, mas isso tá escrito aqui.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Então... é... e... exatamen... Tá... tá falando que se apertar 17 cai nulo? E se...

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Não. Nessa especificidade, não. Mas, ele diz que...

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): É essa conclusão que eu queria saber. Alguém falou isso pro Senhor?

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Não. Mas ele coloca aqui...

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Hum.

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): ... que a invasão poderia permitir a alteração de dados e de candidatos, e até mesmo a exclusão de candidatos. Então, essa é a premissa, dita pelo próprio Secretário de TI à época, o Senhor Giuseppe Janino. A conclusão decorre diretamente da premissa.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): É... então, esse 17 cai nulo; apertar 1 sai 13, é dentro do contexto da premissa?

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Exatamente. Aliás, a live inteira foi – se nós pegarmos para assistir a live, eu não me lembro quanto tempo ela durou, mas se nós pegarmos para assistir a live, ela inteira é: eu lendo trechos do inquérito e comentando. Essa... isso é a live. Ninguém inventou a roda, ninguém criou qualquer coisa. A gente lia trechos do inquérito e tentava traduzir isso numa linguagem popular. Sempre o quê? Tomando a cautela de colocar como hipóteses. Porque o próprio inquérito, ele é inc[onc]lusivo. Eu não sei depois qual foi a conclusão desse inquérito específico, mas até a parte que me foi disponibilizada, ele não traz conclusões acerca de tudo isso. Então, tanto na minha fala quanto na fala do presidente da República, nós lemos trechos, comentamos, sempre com a cautela necessária de colocar que são hipóteses. Hipóteses que nós tiramos da onde? Do próprio inquérito.

[...]

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): [...] a fala do Senhor, Vossa Excelência, foi intercalada por afirmações do ex-presidente de que teria sido comuníssimo as pessoas relatarem para ele: Eu tô aqui na zona tal, seção tal, tô tentando votar em você e não entro. O Senhor, dentro desse inquérito, localizou alguma confirmação desse relato?

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Dentro desse inquérito aqui?

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Desse inquérito. É.

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Não. Como eu disse, a Polícia Federal não fez qualquer tipo de diligência nesse aspecto. [...]Pode ter sido feito depois, mas até a parte que me foi disponibilizado... é... a Polícia Federal não identificou nenhuma questão. Agora, a eleição de 2018... é... foi marcada por vários relatos nesse aspecto, muitos deles que não se confirmaram: a urna tá com defeito na... na tecla; a urna aconteceu isso. Acontece.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Hum-hum.

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Né? Afinal de contas, é uma máquina. Então essas hipóteses são as hipóteses que circularam à época, né?

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Perfeito.

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Mas, dentro do inquérito, a polícia não fez nenhuma diligência nesse sentido.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): É... o entrevistador Guilherme Fiúza afirmou: “Deputado Filipe Barros, então estamos diante de uma prova de que as eleições de 2018 foram violadas. Isso foi reconhecido pelo Tribunal Superior Eleitoral e ponto final.” O Senhor considera essa afirmação compatível com as informações contidas no inquérito, e... e as que o Senhor obteve?

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Não, porque o inquérito é inconclusivo. [...]

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Só pra gente deixar claro nesse processo. São circunstâncias totalmente diferentes, né, e nós precisamos ter essas informações. Em resposta a essa afirmação do Guilherme Fiuza, o Senhor afirmou que o episódio põe em cheque todas as respostas que o TSE tem dado nos últimos dias, porque se o TSE é quem faz, quem administra as eleições, e quando nós falamos alguma coisa, a imprensa corre para pegar a versão oficial do TSE, essa versão, na verdade, não vale de absolutamente nada. Aí, eu volto e reitero a inconveniência de ser repetitivo, né? O inquérito que o Senhor acessou ou outro documento que o Senhor teve poder de acesso, indicava a necessidade de averiguar a veracidade de alguma informação oficial divulgada pelo TSE?

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Esse é um debate que nós fizemos também na comissão especial [...] essa fala foi dentro desse contexto de debate que nós estávamos travando na comissão especial, de debater a própria configuração eleitoral brasileira, que é um tanto quanto atípica, quando comparada com outros países em que existem essas espécies de agências reguladoras que cuidam da administração da própria eleição.

[...]

O DOUTOR TARCISIO VIEIRA DE CARVALHO NETO (advogado): [...] Deputado, nessa live em evidência, essa do programa Pingos nos Is, na sua percepção também de parlamentar, de conhecedor do sistema político, não só do sistema eleitoral, conhecedor, inclusive, dos traços principais da personalidade do investigado, o Senhor percebeu alguma exaltação do presidente fora do normal? Ele proferiu, é... algo que possam ser impropérios, ou ele, eventualmente, não foi tão preciso assim em alguns dados porque, ou não dispunha desses dados no momento, ou porque estava sendo alimentado de uma forma é... artesanal?

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): É, como eu disse, esse é um assunto eminentemente técnico. E o presidente, com a simplicidade na linguagem que é peculiar dele, ele tentou traduzir pra uma linguagem acessível aquilo que a gente tava lendo do próprio inquérito. Então, fico com a segunda hipótese, é que com a simplicidade de linguagem que o presidente utiliza, se houve eventual impropriedade ou falta de atenção em relação a qualquer tipo de assunto, isso foi sem qualquer tipo de dolo.

Na live, Jair Messias Bolsonaro havia declarado que o Deputado Filipe Barros teria estudado a fundo o IPL nº 1361/2018 e por isso poderia explicar para o público seu conteúdo. No depoimento, Filipe Barros admitiu que não possui conhecimento de informática e que, embora para suprir esse ponto tenha se aconselhado com diversos especialistas, nenhum deles lhe disse que era possível extrair dos documentos a informação de que tentativas de voto no número “17” foram adulteradas para “13” ou transformadas em voto nulo. Não obstante, diante de uma ampla audiência, o Presidente da República e o Deputado Federal afirmaram por várias vezes que esse fato, singelamente exposto, ocorreu.

A Informação STI nº 32, conforme já explicado, nada dizia sobre prova ou risco de adulteração de votos.

O IPL nº 1361/2018, também já se esclareceu, não investigava manipulação do sistema eletrônico de votação, mas, sim, um ataque hacker à rede do TSE, aos moldes dos sofridos por tantas outras instituições.

Portanto, os comentários na live de 04/08/2021 não eram traduções. Eram invenções. Eram especulações desprovidas de qualquer lastro.

A “linguagem simples”, alegadamente usada por Jair Bolsonaro e Filipe Barros, não levou ao público qualquer conhecimento efetivo do teor do que estava sendo investigado. Apenas foi usada para tornar palatável, de fácil absorção, uma imagem, bastante concreta, de um sistema que seria programado para adulterar a escolha de eleitoras e eleitores, impedindo a escolha livre. Trata-se de algo que qualquer pessoa pode perceber como fato gravíssimo. E, sem nenhum respaldo, ambos afirmaram que esse fato gravíssimo ocorreu nas Eleições 2018, impedindo o voto no número 17, do primeiro investigado.

Há ainda um elemento que agrava a especulação em torno do IPL nº 1361/2018. É que, ao final da inquirição, Filipe Barros acabou admitindo que sabia que as “senhas de oficialização” de Aperibé/RJ, município referido no relatório técnico do TSE, se referiam ao Sistema de Candidaturas (CAND) e que os especialistas haviam explicado que esse sistema era alimentado antes da eleição. Sabia, também, que a hipótese de “excluir” um candidato no sistema referido seria evidentemente perceptível em qualquer teste. Por fim, ainda que de forma não muito precisa, sinalizou ter ciência de que o inquérito não versava sobre adulteração de votos nas Eleições 2018. Leia-se o trecho (ID 158886322, pp. 80-81)

“O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): [...] Deputado, nos estudos que o Senhor teve dentro da relatoria e com base nas informações que o Senhor teve no inquérito... chegaram a especificar, pro Senhor, dentre os sistemas da eleição, que existe o Sistema Cand, que é o registro de candidatura, o sistema de apuração e de recepção de votos... isso tudo o Senhor tem bem claro, né? O Senhor lembra... é... se algum desses técnicos ou acadêmicos chegou a informar pro senhor que essa senha de oficialização era usada apenas para fechar o Sistema Cand e que ele não tinha... ela não tinha nenhuma interferência nos outros sistemas?

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Sim e não, porque isso foi colocado nas várias audiências públicas que nós fizemos na comissão especial, Doutor. [...] Então, nas várias audiências públicas, isso foi colocado, mas a afirmação do Giuseppe Janino, aquilo que o inquérito investigava, era uma possível atuação hacker no momento anterior ao software ser compilado... e lacrado e incrementado dentro de cada uma das urnas. E aqui ele coloca essa possibilidade de se alterar ou até mesmo excluir candidatos nesse momento pré-implementação do software na urna.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Por conta da senha de oficialização do Sistema Cand, né?

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Isso, exatamente.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Exatamente. E... os acadêmicos chegaram a especificar que essa senha podendo ser alterada, retirando ou não, se ela teria alguma interferência na... na apuração... no... na... no funcionamento da urna?

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Não... não me lembro de nenhum me fazendo essa observação. A observação que foi feita era justamente essa: se um hacker teve acesso a esse sistema no momento anterior ao software ser compilado, lacrado e incrementado dentro da urna, poderia ser feito adulteração de candidato, como o próprio Janino coloca, e o software, muitas vezes ser compilado e lacrado, passando despercebido, até porque o código-fonte tem lá suas não sei quantas milhões de linhas e é uma hipótese humanamente possível... que tenha passado despercebido essa possível adulteração por parte do hacker nesse sistema anterior. E aí quando o software seria implementado na urna, ele já estaria com essa adulteração.”

A testemunha, portanto, possuía um conhecimento mínimo, que deveria lhe impor alguma autocontenção, fosse por boa-fé ou por força do cargo público. Porém, longe disso. Filipe Barros fez a leitura de trechos esparsos do relatório técnico, e isso  ofereceu um cardápio de opções ao primeiro investigado para desferir novos ataques à Justiça Eleitoral, a seus Ministros e a seus servidores.

Ao longo das horas, a live foi crescendo em intensidade. Os comentários do primeiro investigado escalonaram para afirmações mais explícitas de que enfim tinham sido mostradas as “provas” da fraude, que tanto lhe eram cobradas. Jair Messias Bolsonaro também elevou o tom da antagonização com o TSE, desafiando o Tribunal a reconhecer erros e adotar, de ofício, providências para implementar o voto impresso, independente da aprovação da PEC. O então Presidente do TSE e os servidores do tribunal foram explicitamente acusados de possuir interesse na manutenção de um sistema fraudável. E, por fim, para sustentar todas essas acusações, Jair Messias Bolsonaro determinou a Mauro Cid que disponibilizasse o IPL nº 1361/2018 em suas redes.

Não foram, portanto, simples deslizes de leigos tentando interpretar um documento. Não foram erros menores. Foram distorções severas de informações jurídicas e técnicas.

Não é o caso de perquirir as intenções que possam ter motivado esse comportamento. O que se está analisando são os efeitos pragmáticos do que foi dito pelo Presidente da República e pelo Relator da PEC nº 135/2019 ao fazerem afirmações a respeito de uma investigação policial, sem que nenhum especialista tivesse corroborado a gravíssima “hipótese” aventada; sem que tenham efetivamente buscado saber o andamento dos trabalhos policiais; e sem levar em consideração informações oficiais do TSE.

Esses efeitos vão muito além de uma legítima defesa política do voto impresso. Criou-se um estado de alarmismo, decorrente da divulgação bombástica de um inquérito cujo conteúdo era praticamente ininteligível para a audiência, ao qual se atribuía o peso de “prova” de gravíssimas ocorrências no pleito de 2018. Estimulou-se a desconfiança contra uma instituição, partindo de presunções conspiracionistas. Até mesmo o fato de a investigação não ter sido concluída foi explorado no discurso, quando recomendaria, no mínimo, prudência para não levar a público falas precipitadas.

Para angariar mais adesão à informação falsa, o primeiro investigado apelou para a lembrança das denúncias infundadas de que eleitoras e eleitores teriam tentado apertar o número 17, no pleito de 2018, e não teriam conseguido. Adiante, Filipe Barros endossou a suposta “interpretação” do relatório técnico do TSE. Relembre-se: o exemplo coincide com uma das denúncias falsas divulgadas por Fernando Francischini no dia do primeiro turno daquele pleito, em live que baseou o ajuizamento da AIJE nº 0603975-98.

O então Presidente da República ainda disse que tinha certeza de que fora eleito em primeiro turno, indicando que esse resultado não teria sido proclamado por conta da manipulação de votos. Em seu depoimento, Filipe Barros, entre idas e vindas, negou ter afirmado que houve fraude. Mas, ao mesmo tempo, disse que o próprio TSE reconheceria a hipótese e, ao comentar a respeito da fantasiosa funcionalidade que impediria o voto no número “17”, disse: “acontece”.

O depoimento espelha a prática discursiva dos participantes na live, que, de modo circular, afirmam fatos impactantes, desimplicam-se do sentido do que foi dito (atribuindo a terceiro ou dizendo que não disseram o que foi dito) e logo reafirmam a possibilidade, a probabilidade ou mesmo a efetiva ocorrência do fato.

O conteúdo da live foi integralmente transmitido pela Jovem Pan, dentro de sua programação ao vivo. O programa Pingos nos Is de 04/08/2021 estruturou-se em três partes: o noticiário comentado pela equipe do programa, a íntegra da live do então Presidente da República e uma entrevista. O vídeo continua disponível no canal da emissora Jovem Pan no YouTube, onde foi visualizado 1,3 milhão de vezes. Conta com 198 mil curtidas. Vários comentários no chat fazem referência ao “uso do art. 142” pelo Presidente e à “intervenção militar”, entremeados nos pedidos de “voto impresso e auditável” (https://www.youtube.com/watch?v=ifglAWxjnSc).

Um elemento importante que foi revelado no curso da instrução diz respeito à forma como essa e outras lives presidenciais acabaram sendo incorporadas à programação da emissora. O depoimento de Augusto Nunes, principal jornalista à frente do Programa Pingos Nos Is, revelou que, tendo em vista a popularidade das lives, a Jovem Pan começou a retransmiti-las e, em algumas semanas, conseguiu um acordo para, ao final da transmissão, fazerem uma entrevista.

O arranjo, inusitado para o jornalismo, vedava aos entrevistadores contestarem qualquer fala feita ao longo da exposição de Jair Messias Bolsonaro, enquanto a este era permitido recusar responder perguntas. Confira-se (ID 158886321, pp. 2-5):

“O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIN VARGAS (juiz instrutor): Senhor Augusto, o Senhor se recorda como foi definida a realização da live, entrevista que foi, que ocorreu no dia 4 de agosto de 2021, com o ex-Presidente Jair Messias e o Deputado Filipe Barros?

O SENHOR AUGUSTO NUNES (testemunha): O presidente, ele costumava a apresentar uma live semanal e a Rádio Jovem Pan retransmitia a live do presidente. No final, eram feitas perguntas pelos participantes do programa sobre os temas tratados na live. Era um... cada participante enviava uma pergunta por áudio e o presidente respondia ou não, ou não.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIN VARGAS (juiz instrutor): Certo.

O SENHOR AUGUSTO NUNES (testemunha): Nós sempre mandávamos perguntas vinculadas ao teor do... a um dos temas da live.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIN VARGAS (juiz instrutor): Certo.

O SENHOR AUGUSTO NUNES (testemunha): E era isso. Era toda a semana. Não era uma entrevista, era uma live da Presidência da República.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIN VARGAS (juiz instrutor): A extensão da live da Presidência da República, seria? A extensão da live que ele fazia?

O SENHOR AUGUSTO NUNES (testemunha): Exat...é, exat... é, o final, no final da live, quando terminava nós tínhamos direito a fazer uma pergunta cada, cada um, mas eram, em média, cinco perguntas, né.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIN VARGAS (juiz instrutor): Tá. O Senhor sabe dizer se, se essa... esse formato, ele partiu da, da coordenação, do editorial, o Senhor sabe dizer como foi?

O SENHOR AUGUSTO NUNES (testemunha): Não. Surgiu quase que naturalmente, Excelência, porque a... quando foram feitas as primeiras lives, que nós nos limitávamos a retransmitir a live da presidência, porque nós vimos que a audiência era muito boa, muito grande. Então, a Jovem Pan começou a retransmitir. Depois de algum tempo, quatro, cinco semanas, nós perguntamos se poderíamos fazer, no fim da live, uma pergunta. E a equipe do presidente respondeu que poderíamos, mas ele não se comprometia a responder. Ficava a critério dele tratar do assunto ou não. Então era o que fazíamos: mandávamos a pergunta e esperávamos pra até o fim do programa pra ver se ele se dispunha a responder.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIN VARGAS (juiz instrutor): Perfeito. O Senhor sabia, nessa específica do dia 4 de agosto, que ia ser tratado sobre um inquérito da Polícia Federal?

O SENHOR AUGUSTO NUNES (testemunha): Não. Nós não sabíamos qual seria o teor da live.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIN VARGAS (juiz instrutor): E as perguntas surgiram no decorrer da live?

O SENHOR AUGUSTO NUNES (testemunha): É... depois de terminada a live, cada, cada participante via que pergunta que iria fazer e gravávamos, mandava-se o áudio pra Brasília. E a gente só conversava entre nós pra não repetir a mesma pergunta, pra você ver o que que se tá perguntando... o outro só isso; era a única preocupação. E as respostas eram dadas em dois minutos, três minutos, é... em geral, né. A média era isso.

[...]

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIN VARGAS (juiz instrutor): Tá. Ao longo da entrevista, por diversas vezes, os entrevistados indicaram que o inquérito conteria provas da possibilidade de adulteração do resultado das eleições. E, especificamente, de que, em 2018, as urnas teriam sido programadas pra converter o voto no 17, que era o número do candidato, do então Presidente Jair Bolsonaro, naquele pleito, em voto nulo. E para que, ao divulgar o algarismo 1, a urna completasse o voto no 13, que era o número do candidato Fernando Haddad. O Senhor chegou a questionar essas, essas afirmações? O Senhor não fez questionamento sobre isso?

O SENHOR AUGUSTO NUNES (testemunha): Não, não. Eu não, eu não, não... não era uma entrevista, né, eu repito, era uma live e a gente fazia uma pergunta e não tinha direito de contestação; não tinha direito de réplica. A gente só mandava o áudio e vinha a resposta. Eu não ti... nós não tínhamos acesso ao conteúdo desse, desse documento, né, o do que seria dito. Eu realmente não me recordo exatamente o que foi dito, mas a gente sempre procurava fazer perguntas que esclarecessem o conteúdo da declaração de quem participava da live, que o presidente, geralmente, convidava uma pessoa pra acompanhá-lo na live.”

Como se observa, a testemunha de defesa revelou que a empresa concessionária de serviço público, ante o sucesso de audiência, tornou padrão transmitir as lives presidenciais, como espécie de cobertura ao vivo do evento semanal. Em pouco tempo, ajustou com a “equipe” da Presidência da República uma espécie de contrapartida: uma entrevista sem contrapontos à fala e condicionada ao interesse do entrevistado em responder. O reflexo óbvio é que a parte “jornalística” se tornou caudatária da live, seguindo a pauta ditada por Jair Messias Bolsonaro, e não por editores ou editoras do programa.

Dessa forma, a transmissão da Jovem Pan, concessionária de serviço público, se tornou uma espécie de amplificador das redes sociais do então Presidente. Não se tratava, porém, de qualquer canal amplificador, mas de uma emissora de televisão. Além disso, a retransmissão acontecia durante um programa jornalístico, Os Pingos nos Is. Agrega-se à live, com isso, as credenciais socialmente reconhecidas ao jornalismo, embora entrevistadoras e entrevistadores não dispusessem de real autonomia para definir a linha de perguntas, expor contradições da fala ou questionar a verdade factual do que foi dito.

Além disso, a análise do programa de 04/08/2021, disponível na internet, demonstra que a live compõe de forma bastante harmônica o conteúdo do programa. Isso porque a parte inicial do Os Pingos nos Is é composta integralmente por notícias sobre decisões do TSE e do STF contrárias aos interesses de Jair Messias Bolsonaro e de comentários unissonamente críticos aos fatos noticiados.

O programa aborda, por exemplo, a abertura do Inquérito Administrativo nº 0600371-71, motivada pela live de 29/08/2021, e a inclusão do então Presidente nas investigações do STF sobre fake news. Essas e outras atuações das Cortes, inclusive o trâmite das AIJEs relativas ao pleito de 2018, são apontadas como parciais, cerceadoras da liberdade de expressão e exemplificativas da incapacidade de Ministros de lidar democraticamente com a vitória do primeiro investigado.

Todos os comentaristas convergem para a conclusão de que os meios judiciais estariam sendo utilizados para perseguir o primeiro investigado. Guilherme Fiúza afirma: “essa atuação ostensiva está gritante [...] querem ou melar os votos do passado ou impedir que os votos do futuro possam ser auditáveis” (dos 36min20seg aos 36min37seg).

Augusto Nunes diz que o STF não teria aceitado o resultado das eleições de 2018 e, notoriamente se referindo a projeções para 2022, daria vantagem a Lula. Ademais, indaga por que, então, a Corte teria medo de uma “urna à prova de fraudes”, já que isso “garantiria a lisura de sua vitória, a vitória que não haverá”. O jornalista ainda diz que “o Supremo é um partido de oposição, está na coligação do PT, e quer prender o Presidente da República e o Vice” (dos 40min50seg aos 41min21seg).

O programa se estende por quase 43 minutos nessa temática. Após um intervalo, passa a tratar da CPI da Covid-19, tendo por enfoque a crítica ao relator Omar Aziz, Senador da oposição (PSD). Os comentaristas encampam uma defesa do governo de Jair Messias Bolsonaro. O último a falar é José Maria Trindade, que assegura que o Ministério da Saúde impediu a compra de vacinas negociadas por intermediários em troca de propina, observando que, “fosse nos governos anteriores, seria uma grande festa, uma grande ‘surrupa’ ” (dos 51min55seg aos 53min06seg).

O apresentador Vitor Brown anuncia, na sequência, uma enquete: “o voto impresso auditável torna as eleições mais seguras ou menos seguras?” (aos 58min50seg).

Poucos minutos depois (em 1h05min30seg), a live presidencial entra no ar, pautando a dinâmica do programa. A transmissão recebe a legenda: “exclusivo: Jair Bolsonaro em Os Pingos dos Is – Presidente da República fala agora à bancada do programa”. O primeiro investigado e Filipe Barros falam por aproximadamente 45 minutos e, na sequência, tem início a entrevista feita pela equipe da Jovem Pan, que se prolonga por mais de uma hora.

Da transcrição da entrevista, observa-se que todas as perguntas feitas partem da premissa inverídica de que o IPL nº 1361/2021 continha provas irrefutáveis de que o sistema eletrônico de votação havia sido violado nas Eleições 2018. A transmissão jornalística, portanto, embarca nas afirmações feitas na live, tendo Jair Bolsonaro e Filipe Barros como fontes únicas da informação, sem qualquer contraponto factual. A atuação do TSE somente é referida como alvo de suspeita. O único debate passa a ser o que fazer, afinal, para impedir que a suposta fraude se repita nas Eleições 2022.

Discute-se a abertura de uma CPI, inclusive para verificar os contratos firmados pelo TSE na área de tecnologia. O primeiro investigado aproveita para disparar mais um pensamento intrusivo, ao indagar se não haveria “algum país” interessado em que fosse eleito um candidato mais alinhado com interesses externos. Em poucos minutos desenvolvendo essa ideia, já cogita que uma conspiração internacional poderia utilizar o hackeamento de urnas para esse fim. Volta a falar das “quatro linhas” da Constituição, para dizer que, se o que o Judiciário está fazendo está fora delas, a resposta também deverá estar.

Em certo momento, ingressa na transmissão um dos consultores técnicos do Deputado Filipe Barros. O especialista chega a dizer que os achados do inquérito não sugeriam interferência na etapa da totalização – ou seja, resultados não poderiam ser alterados. No entanto, lança outras informações descontextualizadas, no sentido de que o TSE reconhece “vulnerabilidades”, e que isso demonstraria um cenário diferente do que é difundido ao público.

Pouco depois, traz, também fora de contexto, uma menção ao envolvimento de iranianos em algum ataque na internet e fala em ciberguerra. Jair Bolsonaro aproveita a deixa para sugerir que um “ditador” pode chegar ao poder sem armas, apenas hackeando o sistema eletrônico de votação, o que é confirmado pelo consultor técnico.

O Deputado Federal Eduardo Bolsonaro também se junta ao programa e anuncia, em primeira mão, que iniciaria a coleta de assinaturas para instaurar a “CPI das urnas”. O parlamentar indicou que a iniciativa era voltada para apurar as “mais variadas possibilidades de fraude”, citando, por duas vezes, “matéria em que o Boris Casoy mostra várias testemunhas – depois de 2018, depois do primeiro turno –, mostrando que apertava um número e aparecia outro candidato”.

Nesse contexto, Ana Paula Henkel indaga se houve prevaricação do ex-Secretário da STI, diante do que o parlamentar assegura que as condutas de servidores precisam ser objeto de investigação. Vitor Brown, o apresentador, agradece por algumas vezes a audiência de mais de 250 mil pessoas ao vivo.

O programa mantém sua aparência jornalística, por meio da dinâmica de perguntas, respostas e comentários dos diversos participantes, sem que, a qualquer momento, seja sugerida a necessidade de alguma checagem dos fatos.

Em seu depoimento em juízo, Augusto Nunes reconhece que as perguntas foram feitas sem que a equipe da Jovem Pan tivesse acessado os documentos extraídos do IPL nº 1361/2018. O jornalista disse que tampouco procurou posteriormente realizar algum tipo de checagem das declarações feitas ao vivo e transmitidas pela emissora. Chegou mesmo a afirmar que não tinha detectado nenhum fato que valesse comentar. No entanto, em resposta aos advogados de defesa, reafirmou o interesse jornalístico no que foi dito na live.

O depoimento denota que o arranjo entre a Jovem Pan e a Presidência da República, pelo qual a emissora dava ampla difusão à live, em horário nobre, sem que os jornalistas pudessem formular questionamentos substanciais, não era percebido como um problema por Augusto Nunes, que considerou a fala do então Presidente e de Filipe Barros fonte fidedigna o bastante para a cobertura do tema (ID 15886321, pp. 4-9):

“O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIN VARGAS (juiz instrutor): Nessa ocasião, o Senhor, ou posteriormente, o Senhor teve acesso a inquérito da Polícia Federal que trataria da invasão da rede do Tribunal Superior Eleitoral e foi divulgado pelo Deputado Filipe Barros na live?

O SENHOR AUGUSTO NUNES (testemunha): Não.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIN VARGAS (juiz instrutor): Não?

O SENHOR AUGUSTO NUNES (testemunha): Não, não. Nós não sabíamos.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIN VARGAS (juiz instrutor): E, após a entrevista, o Senhor chegou a buscar algum tipo de checagem a respeito dessa suposta adulteração dos votos em 2018?

O SENHOR AUGUSTO NUNES (testemunha): Não, não.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Não chegou a investigar, como jornalista, como comentarista?

O SENHOR AUGUSTO NUNES (testemunha): Não. Não investiguei. Não investiguei.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Mas o Senhor, diante das afirmações que os entrevistados fizeram, o Senhor chegou a se convencer de que haveria risco grave à fraude nas eleições de 2022?

O SENHOR AUGUSTO NUNES (testemunha): Não, eu não tratei desse assunto praticamente em nenhum programa porque eu sempre me baseio em fatos, em provas documentais. Eu não via a existência de alguma coisa que pudesse ser comentada como um fato. O que eu dizia sempre e digo a respeito de todos os assuntos é que qualquer dúvida deve ser investigada. Só. Eu não fiz nenhuma contestação nem afirmação de qualquer sentido.

[...]

O DOUTOR EDUARDO AUGUSTO VIEIRA DE CARVALHO (advogado dos investigados): [...] A testemunha disse que não teve acesso, formalmente, ou informalmente, não sei, ao inquérito. A dúvida é: a testemunha conhece os fatos alusivos àquele inquérito da Polícia Federal, de número 1361/2018, que tratou da invasão do sistema do TSE, por hacker?

O SENHOR AUGUSTO NUNES (testemunha): Eu soube o que foi publicado, né, eu não tive acesso especial a nada. Não, não, não conheço, não examinei o documento. Não, não, não houve nenhum tratamento especial, não, pro programa. A gente não recebeu nada.

O DOUTOR EDUARDO AUGUSTO VIEIRA DE CARVALHO (advogado dos investigados): Diante desse tema, a testemunha divisa a existência de interesse jornalístico de perguntas a respeito ou esclarecimento desse fato?

O SENHOR AUGUSTO NUNES (testemunha): Sim, sem dúvida. Sem dúvida, porque era um assunto, o programa tratava dos assuntos que estava, que seriam já, ou que... assuntos que já tinham sido objeto de reportagens ou artigos em jornais, ou nós imaginávamos que seria no dia seguinte. O nosso interesse era puramente jornalístico.

A entrevista é bastante longa e sua íntegra está nos autos (ID 158764862, pp. 25-71). A seguir, destaco alguns trechos que evidenciam que a cobertura da emissora apenas reverberou o que havia sido dito na live, sendo formuladas perguntas que, ademais, estimularam novas conjecturas e ataques ao TSE a partir de premissas falsas ou descontextualizadas a respeito do sistema eletrônico de votação.

“O SENHOR AUGUSTO NUNES (jornalista e comentarista político): Eu pergunto, Presidente, deputado, se diante das... se é possível agora, ou se pretendem fazer isso, pedir explicações ao TSE sobre as graves irregularidades constatadas nesse relatório.

O SENHOR FILIPE BARROS (deputado federal): Augusto, eu acho que é o caso do Congresso Nacional, a Câmara dos Deputados, abrir uma CPI, a CPI das urnas eletrônicas; a CPI da Secretaria de Tecnologia de Informação do TSE. Aliás, os contratos que estão lá dentro, tramitando, os contratos firmados do TSE com várias empresas, via de regra, ocorrem sob sigilo. Por que sob sigilo, se nós estamos falando sobre a democracia brasileira? Eu acho que chegou a hora. Nós estamos... a Câmara dos Deputados está madura pra propor e fazermos uma CPI das urnas eletrônicas e do TSE.

[...]

O SENHOR JAIR MESSIAS BOLSONARO (presidente da República): É uma tranquilidade pra gente, porque as cartas tão na mesa. Só não enxerga quem não quer, até a parte daquela imprensa que tudo que eu faço, ou que a gente mostrou a semana passada e disse que era fake news, que era mentira. Aí, o Ministro Alexandre me colocando em inquérito de fake news... não fala fake news hoje, não, mais, fala em inquérito da mentira, me acusando de mentiroso. Isso é uma acusação gravíssima, gravíssima; ainda mais num inquérito que nasce sem qualquer embasamento jurídico, que não pode começar com ele: ele abre, ele apura e ele pune. Sem comentários. Está dentro das quatro linhas da Constituição? Não está. Então, o antídoto para isso também não é dentro das quatro linhas da Constituição. Aqui, ninguém é mais macho do que ninguém. Agora, mais democrata do que vocês, eu tenho certeza: eu e grande parte da população tem certeza que eu sou.

[...]

O SENHOR JAIR MESSIAS BOLSONARO (presidente da República): Ô, Vitor Brown, deixa eu botar uma pulga aí na tua orelha. Isso não é uma questão que interessa apenas pra nós, brasileiros – é o PT, é o PSL, é o PP, PTB, não, né –, interessa apenas a nós brasileiros. Não vou citar nomes. Será que não tem países outros, interessados em botar na presidência pessoas que sejam mais simpáticas, nas relações comerciais, com esses países? Não vou responder pra vocês. Eu acho que tá respondido.

[...]

O SENHOR GUILHERME FIUZA (jornalista e escritor): Boa noite, Presidente; boa noite, deputado. Deputado Filipe Barros, então estamos diante de uma prova de que as eleições de 2018 foram violadas. Isso foi reconhecido pelo Tribunal Superior Eleitoral e ponto final. A pergunta que eu lhe faço como um representante do Parlamento... só não sabemos da extensão da interferência na eleição, mas evidentemente que pode ter sido ampla, né? Agora, a pergunta que eu lhe faço, Deputado Filipe Barros, é sobre a situação dentro da Câmara dos Deputados e na Comissão Especial do Voto Auditável. A partir deste... desta demonstração cabal de que o sistema de votação foi violado, reconhecido pelo TSE, algum deputado da Comissão tem a possibilidade de rejeitar a emenda que prevê justamente a salvaguarda para que isso não volte a ocorrer?

O SENHOR FILIPE BARROS (deputado federal): Ô, Fiuza, quero dizer também que eu disponibilizei esse inquérito aos deputados, não só aos membros da Comissão Especial, como a todos os 513. Disponibilizei no final da tarde de hoje, coloquei no sistema da Câmara, protocolei, pra que todos possam ter acesso, assim como nós. A atual configuração da Comissão Especial nós somos minoria , nós, de 34 membros, somos em, aproximadamente, 14 ou 15, no máximo. Então, se não houver uma mudança na composição da Comissão Especial, o voto impresso será derrotado, na tarde de amanhã, na Comissão Especial.

O SENHOR JAIR MESSIAS BOLSONARO (presidente da República): Ô, Fiuza, olha só: a composição da Comissão é uma... é um extrato da Câmara. Tava tudo tranquilo pra ser aprovada, por larga margem de votos. Depois que o Excelentíssimo Senhor Ministro Barroso foi pra dentro da Câmara dos Deputados, reuniu-se com várias lideranças, a maioria desses líderes trocaram os seus respectivos indicados na Comissão, por parlamentares que assumiram o compromisso de votar contra o relatório. Então é isso que aconteceu. É outra interferência do Barroso, uma interferência explícita do Barroso. Se eu faço isso, de acordo com art. 84 da Constituição, eu tô incurso em crime de responsabilidade, e ele não devia fazer isso. Ele poderia, se fosse convidado, falar alguma coisa lá. Agora, ir lá, de forma quase que escondida, foi quase que sorrateiro, e, no dia seguinte, os integrantes da Comissão – uma parte considerável – ser trocados, para derrubar o voto impresso. E, depois, vem o ministro com toda a truculência dele, falando grosso, dizendo que as urnas são invioláveis, que... que o presidente da República... ele não pode acusar ninguém de mentiroso sem prova, mas acusou o presidente da República de mentiroso, de fazer fake news. Se faz isso comigo – quer fazer isso comigo –, imagine o que não faz com um do povo qualquer por aí. São donos da verdade, são donos da tua vida, são os senhores da morte. Não pode o Ministro Barroso ter uma atitude como essa; é uma atitude deplorável, perante toda a sociedade e também junto aos seus pares.[...] agora, o que há de mais sagrado, numa democracia, é o voto. Quem já não ouviu falar de fraude [inaudível] ou quebra. Nós estamos advertindo, com antecedência, sobre a possibilidade – possibilidade – de fraude em 2022. Não queremos problemas. Se o candidato do Barroso – nós sabemos quem é –, segundo o Datafolha, vai ganhar, talvez no primeiro turno, é mais um motivo para ele querer o voto impresso, com contagem pública, que teria a certeza que o candidato do Barroso seria eleito em 22. Então, a prova cabal está aí. Queriam prova? Está aí. Quem forneceu a prova? O próprio TSE. Eles chamam isso aqui – não sou advogado, não; cê é advogado, Filipe?

O SENHOR FILIPE BARROS (deputado federal): Sou.

O SENHOR JAIR MESSIAS BOLSONARO (presidente da República): É o réu confesso, é o réu confesso. Tá aqui: o réu confesso. Estão nos autos.

O SENHOR FILIPE BARROS (deputado federal): E isso, Presidente, é importante, porque põe em xeque todas as respostas que o TSE tem dado nos últimos dias. Porque se o TSE é quem faz, quem administra as eleições, e quando nós falamos alguma coisa a imprensa corre para pegar a versão oficial do TSE, essa versão, na verdade, não vale de absolutamente nada. Porque a própria pessoa que administra as eleições e que, nesse caso, confessa a invasão, tentando nos desmentir.

[...]

O SENHOR JOSÉ MARIA TRINDADE (jornalista): Pois é. Muito boa noite, Presidente Bolsonaro; boa noite, Deputado Filipe. Olha, quando se fala em apurar eleições, invadir o computador da... do Tribunal Superior Eleitoral para apurar eleições, aí a gente vê que não tem muito sentido, porque a apuração é feita na urna. Agora, entrar no código-fonte da urna eletrônica, isto é grave. Os senhores apresentam não é uma denúncia, é uma prova. Eu perguntaria ao Deputado Filipe exatamente isso: por que o Tribunal Superior Eleitoral, sabendo disso, omitiu, não tomou providência? E ao Presidente Bolsonaro é sobre esta reação da Justiça, abrindo inquérito que, teoricamente, poderia colocá-lo como inelegível. Veja bem, o senhor inelegível e o ex-Presidente Lula elegível. O senhor aceitaria um resultado assim do TSE?

[...]

O SENHOR JAIR MESSIAS BOLSONARO (presidente da República): Não dá para aceitar; não dá para aceitar o que o TSE – não quero acusar todo mundo lá, né –, o que que o Barroso induziu o TSE a fazer com essas provas. Eu acho que os demais seis ministros... e perguntar, agora, o Barroso: e esse inquérito se tinha acesso a ele? Por que, sabendo disso, nós não ficando sabendo aqui? Isso começou em 2018, agora. Agora, não, três anos; num inquérito de três anos sem resposta. Se não é o Filipe oficiar a Polícia Federal pra pegar esse inquérito, ninguém ia saber de nada. [...] O meu jogo é dentro das quatro linhas. Agora, se começar a chegar algo fora das quatro linhas, eu sou obrigado a sair das quatro linhas; é coisa que eu não quero. É como esse inquérito do Senhor Alexandre de Moraes. Ele abre o inquérito – e não é adequado pra abrir isso –, ele investiga e ele pune, ele prende. É a mesma coisa. Essa urna aqui, agora, tá comprovado; tá comprovado pelo próprio TSE que ela é, que ela é penetrável. Se a gente deixar as eleições acontecer e, depois, um lado: o meu lado, por exemplo, falar “ó, eu perdi”. Eu vou recorrer a quem? Ao próprio Supremo Tribunal Federal. Vou recorrer ao próprio TSE. Não tem cabimento isso.

[...]

O SENHOR JAIR MESSIAS BOLSONARO (presidente da República): Eu queria alertar os deputados federais e senadores, né, possíveis candidatos a governo de estado, que isso não é uma coisa pra fraudar apenas, possivelmente, o presidente da República.

O SENHOR FILIPE BARROS (deputado federal): Sim.

O SENHOR JAIR MESSIAS BOLSONARO (presidente da República): Pode fraudar todos vocês. Como nós tamos apresentando aqui, apresentamos indícios fortíssimos de [interrupção da gravação] na [interrupção da gravação] São Paulo o ano passado. Isso pode acontecer em vários locais do Brasil. E eu falei agora há pouco, outros países têm interesse em ter gente na Presidência – à frente de governo de estado, à frente de grandes cidades – , pessoas mais simpáticas a esse governo da [ininteligível] homem de fora. Não preciso entrar em detalhe com vocês, isso é uma realidade. Esses hackers, né, podem vir de fora do Brasil para exatamente interferir nas eleições aqui. E depois que abrir as urnas, a gente vai recorrer a quem? Ao Ministro Barroso? Ao TSE? Vão dar voz pra nós? Olha aqui o inquérito, no final de 2018. Tá comprovado. Tá indo pra três anos. Uma coisa simples, que dificilmente, né, vai ser possível chegar no final da linha, porque os logs foram apagados, onde tava as impressões digitais. O... o... [interrupção da gravação] tem lá. O TSE passou um pano no copo, não tem mais digital. E escreve aqui. Ninguém tá inventando isso. O próprio TSE diz que os logs foram apagados – as impressões digitais. Mas diz que entrou, sim, em Aperibé, no Rio de Janeiro. Qual, qual a solução? Nada contra o atual prefeito, pode ser até que ele tenha uma votação fantástica... é... de qualquer maneira, lá. Mas pode ter havido fraude lá; mas pode ter havido fraude no Brasil em várias áreas em 2018, porque o hacker conseguiu o código-fonte. Ele entrou no coração do sistema.

O SENHOR FILIPE BARROS (deputado federal): É importante dizer, Presidente, que Aperibé foi comprovado. E, nesse relatório, é... eles deixam em aberto a possibilidade de ter identificado fraude em outras cidades. [...] porque o hacker teve acesso a todo o código-fonte.

O SENHOR JAIR MESSIAS BOLSONARO (presidente da República): [interrupção da gravação] que o Barroso tem batido no peito e falado grosso por aí, que as urnas são impenetráveis: mentira, Barroso, mentira. Mentira. Vamo falar... impenetrável. Mentira, Barroso. Mentira, Ministro Barroso. Vossa Excelência está mentindo. E tem esse inquérito aqui. [...] Agora, a nossa Polícia Federal vai continuar esse inquérito, porque a Polícia Federal está a serviço do Brasil. Não é sob minha influência a PF. Eu tenho ascendência – Ministro da Justiça, diretor-geral da PF. Isso aqui vai ser prioridade total pra Polícia Federal continuar investigando. Agora, independente disso, Ministro Barroso, reconheça, saia grande. A gente pode errar. Saia grande dessa situação. O que tava em jogo... é... são as eleições de 22, que interessa pra todos nós, brasileiros, e pra alguns outros países também. Repito: tem gente na Presidência, gente à frente de governos estaduais, de grandes cidades – são cidades importantes, que tenha jazidas, que tenha recursos, os mais baratos possíveis –, botar gente simpática a esses países. Ou não é verdade? Quantos países têm interesse no Brasil? Muitos países têm interesse no Brasil. Nós temos interesse também em vários países. Mas a forma de exercer essa ascendência aqui, no Brasil, não é justa. Possibilidade enorme de fraudar as eleições. Tá escrito aqui, assinado pelo pessoal do TSE, que as urnas são violáveis. Queriam prova, estão aí as provas, assinada pelo próprio Janino.

[...]

O SENHOR FILIPE BARROS (deputado federal): Não. Apenas agradecer o Professor Mário, que tem nos acompanhado na comissão especial desde o início. Me ajudou a decifrar esse, esse inquérito... é... que utiliza muitas palavras técnicas. E, desde que eu obtive acesso a esse inquérito, consultei não só o Professor Mário como inúmeros especialistas, pra que a gente não incorresse em nenhuma injustiça ou fake news. O fato é um: é possível invadir. Dizer que as urnas são invioláveis é fake news.

[...]

O SENHOR GUILHERME FIUZA (jornalista): Bem, Professor. Então, eu ia perguntando se... é... é... agora nós sabemos que as urnas, nas eleições de 2018, foram... enfim, ficaram passíveis de violação, né, por essa invasão ao sistema. E eu queria perguntar ao senhor se também na etapa de totalização... é... pode ter havido violação?

O SENHOR MÁRIO GAZZIRO (professor): Ah... provavelmente, não. Porque isso foi... isso aconteceu antes, tá? Anteriormente, tá? Mas a gente nunca sabe que tipo de informação foram roubados. Mas, provavelmente, aquela ação que tá descrita no... no inquérito, tá, que houve todo uma... uma... uma... uma ação por parte interna do TSE, de reestruturar, tá, eles se adequaram bastante, tá? E dá pra ver que foi feita uma grande ação pra suprir as vulnerabilidades, tá? Ou seja, um TSE, que até então sem... sempre falava pro público que era invulnerável, tá, internamente, pra Polícia Federal, e internamente, nos memorandos, a gente consegue ver, pelos documentos, que eles assumem, tá, que havia... que existiam vulnerabilidades antigamente. Então, a gente vê um TSE com um discurso bem diferente do que ele faz pro público no geral, tá? [...]

[...]

O SENHOR MAIR MESSIAS BOLSONARO (presidente da República): É... Professor, por favor. É... esse, esse hacker não foi descoberto. Ele se revelou, ele se apresentou. Um outro pode ter feito um trabalho com mais profundidade, que, porventura, pudesse termos suspeitas fortes de ter e ter adulterado números da votação?

O SENHOR MÁRIO GAZZIRO (professor): Olha, que... como eu disse, fica no reino da... da conjectura. Tudo pode, tá? Como dizia o... o... o Ministro... o ex-Presidente Marco Maciel, né, tudo pode acontecer, inclusive nada, tá? A gente tá exatamente nesse ponto. O fato de não ter as provas faz com que a gente não consiga concluir.

[...]

O SENHOR FILIPE BARROS (deputado federal): Ou seja, além delas não serem auditáveis, quando existe indícios de fraude, o próprio TSE apaga os indícios de fraude.

[...]

O SENHOR MÁRIO GAZZIRO (professor): Nós tivemos recentemente uma denúncia do... do hacker que foi entrevistado, né, por... por mim e pelo... pela equipe do professor... do... do deputado, tá, nós tivemos uma... uma confissão de que havia uma ou... – tem que ser constatado –, mas de que haviam elementos... é... no grupo que atacou em 2020, que haviam gente do Irã, tá? E, provavelmente, vindo do Irã, não... não são meros hackers, não são crianças invadindo coisas, né, invadindo governo pequenos. Pode muito bem ser um caso de ciberguerra, né, de tentar... de ativismo e de avaliação. Então, uma coisa que já foi levado, inclusive, ao conhecimento do deputado, e ao conhecimento do... do... do pessoal de guerra eletrônica, tá? Então, a gente já tem relatos, tá, é... foi colhido dentro da cadeia tá, o hacker que.... que... que foi entrevistado recentemente, tá... é... comentando num... um acesso que... é... na... na... nessa ocasião, ele não invadiu totalmente o sistema do TSE, mas ele conseguiu cópias da base de dados, tá? Esse hacker assumiu que tinha gente do Irã no grupo dele. Então, a gente não sabe até que ponto tá tendo... é... tem essa questão da hegemonia internacional envolvida, tá? E de... da chamada a.... das guerras eletrônicas, né, que é uma coisa crítica, né? [...] A de... a denúncia de que havia... ah... membros... gente do Irã na... o... junto com... com a equipe que... do... dos hackers que invadiram em 2020, né, que eles ten... que eles fizeram a... a... o ataque, né, devia ter se... chamado muito a atenção e aberto uma nova linha de investigação – inclusive internacional, né – com relação a isso. E não se vê isso, tá? O que se vê é simplesmente um desdém, daí dizer: “Ah, provavelmente é mentira do hacker”. Gente, isso é uma acusação muito grave, pra países externos e [ininteligível]. Foi pra... o próprio TSE mandou prender um hacker em Portugal pra entrar aqui. Esse hacker em Portugal, ele pode estar a serviço de outros países ainda, tá, na rede europeia.

O SENHOR VITOR BROWN (apresentador): Presidente.

O SENHOR JAIR MESSIAS BOLSONARO (presidente da República): Comple... Ô Professor, complementando. Então, não precisa de armas prum ditador chegar ao poder. Ele chega por hacker também, né? Para um traidor assumir o comando de um país.

O SENHOR MÁRIO GAZZIRO (professor): Hum-hum. Exato.

O SENHOR JAIR MESSIAS BOLSONARO (presidente da República): Não precisa ser pela força. Ele chega através do hacker, usando esse sistema eleitoral que nós temos. E tá comprovado pelo próprio TSE que ele não é blindado, como diz o Ministro Barroso – lamentavelmente, como diz o nosso Ministro Barroso –, que mente descaradamente. [...] E aquele... esse negócio de roubar 1 a 1, já era – votinho por votinho, já era. Isso aí é... é coisa do passado, agora é no atacado. Acerta o programa – pode acertar, eu não estou dizendo que sim; pode acertar. Se um hacker desse entrou aqui, imagine – o Professor falou em hackers iranianos. E nós sabemos como funciona essa questão no mundo todo. Pode simplesmente botar alguém que interessa no governo aqui. Que vai ser simpático a esse país.

[...]

O SENHOR VITOR BROWN (apresentador): Inclusive, Presidente, o Deputado Eduardo vai entrar no ar com a gente em instantes. Ele já tá conectando aqui e daqui a pouquinho a gente vai entrevistar o deputado, justamente sobre esse pedido dele, da... da abertura da CPI das urnas. Daqui a pouquinho ele deve conectar com a gente. Antes, eu queria fazer mais uma pergunta ao senhor, Deputado Filipe Barros. Qual que é a expectativa pra amanhã, então? Agora, diante dessa revelação, dessa informação importante que o senhor e o Presidente trouxeram hoje aqui nessa entrevista, desse inquérito da Polícia Federal e desse relatório do Tribunal Superior Eleitoral. Será que isso pode mudar o ambiente pra tornar a situação mais propícia à aprovação da PEC, amanhã, do voto impresso auditável, deputado?

O SENHOR FILIPE BARROS (deputado federal): Vitor, nós estamos falando de provas. O que nós mostramos aqui são provas, assinadas pelo próprio Tribunal Superior Eleitoral. Com base nisso, eu espero... é... que as lideranças partidárias, que os meus colegas, deputados, deputadas, que os presidentes nacionais de cada um dos partidos sejam sensibilizados e, mais uma vez, retomem a composição original da comissão especial, fazendo com que a gente consiga aprovar na comissão especial a matéria amanhã, e que vá pra Plenário. E, no Plenário, que vença quem tem voto. Agora, é importante que a gente tenha uma deliberação disso na comissão especial, favorável, pra que a matéria possa então seguir ao Plenário. Só quero dizer que, numa democracia... é... você ser favorável ou contrário a determinada matéria é... é natural. O que nós não podemos é continuar fazendo esse debate sob as premissas falsas que o próprio Tribunal Superior Eleitoral tem divulgado pra imprensa.

[...]

O SENHOR JAIR MESSIAS BOLSONARO (presidente da República): [...] E nós aqui, cada vez mais... é... apontamos pra direção, juntamente com a opinião pública, que algo de muito grave estava acontecendo há algum tempo no TSE. E parece que essas pessoas que dominavam lá – são poucas pessoas – fazem agora um lobby junto ao próprio Ministro Barroso – eu não sei por que motivo, né, o que que tá acontecendo com ele, pra ele ser, simplesmente, o pitbull do Supremo Tribunal Federal. É o pitbull. “Não pode, a urna tá qua... tá aqui, eletrônica. É precisa, é auditável, é bacana, é intransponível, é impenetrável. E não se toca mais no assunto.” Por que acreditar nele? Com essa CPI, a gente vai botar pra fora isso aí, porque eu vou colaborar com a CPI também, tá? Agora, dá tempo ainda dos outros ministros, os seis ministros do TSE, que, no meu entender, embarcaram nessa... nessa onda aí, do... do Barroso – bem como o próprio Alexandre de Moraes, agora, inclusive abriu inquérito contra mim. Tem que voltar atrás, pô! Tem que voltar atrás. [...] As cartas estão na mesa; nós queremos – mais do que isso –, o povo exige eleições limpas, democráticas, um voto democrático. A certeza de quem você, Fiuza, votou foi [interrupção da gravação]. Mais ainda, a contagem pública dos votos. Não temos problema de quem vai ganhar a eleição ano que vem; quem ganhar, ganhou. E não mergulhar o Brasil num... num clima de incertezas, desconfianças, e não sei mais o que pode acontecer. Fraudar a vontade popular é um crime. Dizer pro Senhor Barroso, e isso aí é um a... é um ato atentatório à democracia. Senhor Ministro Barroso, isso é um ato atentatório à democracia – comprovado. O próprio documento do TSE. Não sou eu que tô dizendo, não é a Polícia Federal que chegou a essa conclusão – não é a Polícia Federal. O próprio TSE escreve aqui, confirma que entraram na... é... interferiram nas eleições de Aperibé, Rio de Janeiro. E não fizeram nada. [...] Olha, eleições sob suspeita não são eleições. Isso não é democracia. E, Senhor Ministro Barroso, lamento, mas o senhor está atentando contra a democracia. Isso é crime; isso é crime. E não queira acusar os outros daquilo que, pelo que tudo indica, pelo que tudo indica, o senhor é.

[...]

O SENHOR FILIPE BARROS (deputado federal): Ô Augusto, só pra complementar... é... é... o que eu falei mais cedo. É... um hacker, com toda essa estrutura – um hacker ou um grupo de hacker, a gente não sabe exatamente quem foi o que... é... as... as pessoas que fizeram isso, né? Com toda essa estrutura, que usa uma VPN do Panamá, pra não ser identificado, que tem tempo, mais de seis meses, pra ficar dentro do sistema do TSE, que faz toda essa logística, certamente não é pra influenciar...

O SENHOR AUGUSTO NUNES (jornalista): É... Aperibé.

O SENHOR FILIPE BARROS (deputado federal): ...nas eleições de Aperibé.

O SENHOR JAIR MESSIAS BOLSONARO (presidente da República): Eu quero, eu não conheço Aperibé. Quando eu for no Rio, eu vou fazer uma parada inopinada com o helicóptero da Força Aérea lá em Aperibé. Atenção, pessoal de Aperibé, me aguarde aí. Valeu!

O SENHOR VITOR BROWN (apresentador): Bom, e agora sim. Conforme prometido, nós já conseguimos contato com o Deputado Eduardo Bolsonaro, aqui conosco. O Deputado Eduardo, que anunciou agora há pouco nas redes sociais que vai pedir a abertura da CPI das urnas. Seja bem-vindo, deputado. Boa noite.

O SENHOR EDUARDO BOLSONARO (deputado federal): Boa noite, Vitor, Fiuza, Augusto Nunes, Ana Paula, Filipe Barros, Jair Bolsonaro. É... tomando conhecimento dessas notícias, e sendo elas públicas, existe um fato determinado, com suspeitas fundadas, para que nós venhamos a abrir uma CPI, para que, de fato, a gente possa ouvir todos os lados envolvidos, né? O Filipe Barros demonstrou através, não da sua opinião, mas de um relatório da Polícia Federal, onde Giuseppe Janino, que é tido como o pai das urnas eletrônicas, sim, admite que o sistema foi invadido. Agora, a estranheza é: foi invadido em outubro; por que somente em novembro foi aberto esse inquérito para uma investigação? E, pra além disso, como restou demonstrado aí, através da leitura dos documentos produzidos pela Polícia Federal, nada... é... é... obsta que, antes de abril de 2018, esse hacker, ou outros hackers, possam ter acesso aos... ao nosso código-fonte. Código-fonte é... é... é o código necessário pra você organizar o software que faz as eleições. Recentemente, eu compartilhei nas minhas redes sociais uma matéria da Record, onde Boris Casoy mostra – ou da Rede TV, se não me engano – , onde Boris Casoy mostra testemunhas dizendo, relatando exatamente isso que tá sendo mostrado aqui, pessoas que apertavam o número 1 e, direto, era computado o voto para o candidato do PT, né? Antes mesmo que a pessoa pudesse apertar a tecla do “confirma”, do “corrige” ou de “anular”. Então as suspeitas são fundadas e isso daí, na minha opinião, é mais do que uma prova cabal, necessária, pra que nós mudemos o nosso sistema eleitoral. Quem se contrapor a esse tipo de coisa, tá negando a realidade.

[...]

SENHORA ANA PAULA HENKEL (comentarista): Ah... Deputado Bolsonaro. Eu tava aqui pesquisando, né, sobre o ex-secretário aí, de tecnologia do TSE, né, o Giuse... Giuseppe Janino, porque essas informações de hoje são gravíssimas, e eu achei aqui uma entrevista dele pra Revista Crusoé, agora em julho desse ano, onde afirma que a concepção da urna eletrônica te... é... foi uma grande sacada, que fazer o e... o equipamento totalmente autônomo, sem comunicação externa. E, mais à frente dessa entrevista, ele diz que o software das urnas também não tem nenhuma possibilidade de comunicação externa. E, perguntado sobre a... a per... uma... uma pergunta recorrente que eles recebem, né, se invadem a Nasa, o FBI, o Pentágono, por que não invadiriam a urna eletrônica? E aí ele responde: “É simples. Ela está isolada. Para um hacker invadir a urna, ele teria de pegar uma de cada vez e tentar quebrar todas as barreiras de segurança”. Enfim, a entrevista é grande, mas a entrevista agora, de julho desse ano, não bate com o inquérito, aí, da Polícia Federal, de 2018. Nesse caso aqui, deputado, o que fazer diante... ah... dessa, se é prevaricação ou... ou... ou... eu não sei qual é a palavra legal que podemos usar nesse sentido – estão todos muito chocados aqui, inclusive, nas redes sociais, com o que foi apresentado hoje. O que fazer diante... é... desse ex-secretário de tecnologia do TSE, que hoje é assessor do Ministro Barroso? Quais são as posições e os caminhos que podemos... ah... tomar... até vocês, como legisladores, e... ah... eleitos diretamente pelo povo?

[...]

O SENHOR EDUARDO BOLSONARO (deputado federal): Ana Paula, daí a... a... a minha iniciativa de abrir uma CPI, né? Ah... se eu conseguir as assinaturas necessárias – salvo engano, são 171 assinaturas de deputados federais. Abrindo uma CPI, o que ocorre é: os parlamentares que formam a CPI, eles passam a ter poderes próprios de su... de juízes. Ou seja, inquirir pessoas para que, sob juramento, prestem os seus depoimentos, né? Elas não podem, na verdade, é mentir, sob o crime de perjúrio. E, além disso, passa-se a ter poderes pra requisitar documentos. Então, esse é o objetivo. Eu, inclusive, faço aqui um apelo a todos vocês que estão nos ouvindo para que, assim que estiver pronto, nós... vocês pressionem os seus parlamentares. Solicite ao seu deputado federal para que assine esse requerimento e possamos abrir essa CPI o quanto antes. E assim chamar as pessoas envolvidas para prestar os devidos esclarecimentos. Porque o fato novo e determinado que existe é esse inquérito da Polícia Federal. Não pode o TSE agora, com documentos assinados pelos próprios técnicos do TSE, dizer que não sabia dessas irregularidades, dessas invasões nas urnas eletrônicas. É como o Presidente Jair Bolsonaro disse, o Ministro Barroso está mentindo quando ele diz que o sistema é inviolável. Isso é um absurdo. [...]

[...]

O SENHOR JAIR MESSIAS BOLSONARO (presidente da República): Vamos lá. A CPI do Covid tá funcionando. É uma CPI da farsa, da mentira, tá? Tá funcionando, pra bater no governo, pra caluniar o governo. E ela foi instaurada, foi aberta, por decisão do Barroso. Então, por questão de coerência, eu acho que o Barroso devia amanhã lançar uma campanha pra assinarem a CPI do Eduardo Bolsonaro – questão de coerência, nada mais além disso. Afinal de contas, eu vou em... pedir, amanhã, respeitosamente, se o Barroso estiver em Brasília, né, vou mandar entregar uma cópia desse aqui lá no gabinete dele no... no... no TSE, pra ele tomar conhecimento, e apoiar a CPI. A CPI Fake news do Barroso.

[...]

O SENHOR GUILHERME FIUZA (jornalista): Boa noite, Deputado Eduardo Bolsonaro. Sobre o objeto da... da CPI que o senhor está propondo, né? O senhor... é... evidentemente, tá se baseando... é... nessa revelação, que está chocando a todos, que as eleições de 2018... é... foram objeto aí... é... de... de... de violação, né? Não sabemos a extensão dessa violação. Eu queria lhe perguntar que outros objetos o senhor já identifica, em ações recentes, de autoridades da... do... do Tribunal Eleitoral... é... para... é... que sejam escritas também... é... nesta... nesse pedido de CPI?

O SENHOR EDUARDO BOLSONARO (deputado federal): Perfeito, Fiuza. Inicialmente, para se abrir uma CPI são necessários dois requisitos. O primeiro é um fato determinado. Então, o fato determinado que nós vamos analisar aqui é essa questão das eleições de 2018 e essa invasão do hacker, comprovada através de relatório da Polícia Federal, que, pelo menos, desde abril de 2018 até novembro de 2018, teve acesso a códigos-fontes e outros acessos dentro do sistema eleitoral, que até então era dito inviolável. Então, esse é o fato determinado. O segundo requisito é a assinatura dos deputados federais. Havendo 171 assinaturas, o presidente da Casa, no caso, o Arthur Lira, pode... é... permitir a instauração dessa CPI. E, como não existem outras CPIs funcionando na Câmara dos Deputados até o momento, é totalmente plausível essa abertura. [...] Ora, eu compartilhei, Fiuza, nas minhas redes sociais, recentemente, mais uma vez, uma matéria em que o Boris Casoy mostra várias testemunhas – depois de 2018, depois do primeiro turno –, mostrando que apertava um número e aparecia outro candidato. Outras pessoas reclamando que tentaram votar e não conseguiram. Enfim, as fraudes são as mais variadas possíveis possibilidades. Então, a gente só quer entender isso. E, realmente, não só em mim, Fiuza, mas à população brasileira, de maneira geral, causa muita estranheza toda essa resistência. Quanto mais o TSE resiste em ter um voto eletrônico com o voto impresso ao lado, tal qual vai ocorrer agora no Paraguai, as pessoas ficam mais desconfiadas. A quem interessa uma eleição sem transparência, Fiuza?

[...]

O SENHOR VITOR BROWN (apresentador): Deputado, Presidente, alguma consideração?

O SENHOR JAIR MESSIAS BOLSONARO (presidente da República): Eu só quero agradecer a oportunidade. É... vocês prestaram um grande serviço à democracia e a nossa liberdade. É essa a imprensa livre que nós de fato queremos. Obrigado, aí, a todos vocês, em nome aí do meu prezado Augusto Nunes.

O SENHOR VITOR BROWN (apresentador): Perfeito. E, só pra confirmar, Presidente, o senhor vai disponibilizar nas redes sociais esse material a... a que o senhor e o deputado fizeram menção? Esse inquérito e o relatório? Vai tudo pras redes sociais. Perfeito, então. Obrigado, Presidente. Boa noite, mais uma vez.”

É possível notar que Jair Messias Bolsonaro – que admite ter recebido o inquérito pouco antes do início da transmissão e que não o tinha estudado – foi construindo, ao longo da live e da entrevista, uma narrativa bastante específica, ao juntar pequenos fragmentos da exposição, por vezes prolixa, de Filipe Barros.

A criação vai se desenrolando diante da audiência. Ao início da live, o então Presidente da República invoca o já consolidado gatilho a respeito do código-fonte, para dizer, sem mais, que, ao acessá-lo, o hacker “pode tudo, pode até você apertar o 1 e sair o 13, pode você apertar o 17 e sair nulo”. Filipe Barros apostou em elementos de maior complexidade, tentando chamar a atenção para o “caminho” do hacker dentro dos computadores do TSE.

Porém, o primeiro investigado logo identifica um gancho de fácil assimilação para incrementar a fábula da manipulação de votos em 2018: a menção ao pleito suplementar de Aperibé. “Senha”, “sistema”, “excluir candidatos” e “afetou” são termos chamativos que servem ao objetivo de forjar uma versão simples, direta e inteligível de um fato absolutamente inverídico.

O primeiro investigado rapidamente converteu a informação de que houve acesso indevido a uma senha de oficialização do sistema CAND (o que era um fato) em prova de que os resultados da eleição no município foram adulterados (o que é inteiramente falso). Afirmou, então, que ninguém montaria um aparato cibernético para afetar somente aquela localidade. Foi o suficiente para começar a especular que a suposta fraude se espalhou por todo país e por vários cargos e que deveria envolver até mesmo interesses internacionais em colocar um “traidor da pátria” no poder.

Como saldo do dia, além da audiência, surgem as participações especiais, inclusive de Eduardo Bolsonaro, anunciando ao vivo a abertura de uma CPI para investigar contratos do TSE. Os comentaristas do programa Os Pingos Nos Is não disfarçam o misto de comoção e entusiasmo com o que estavam presenciando.

Em 05/08/2021, dia seguinte à divulgação pública do IPL nº 1361/2018, a Comissão Especial viria a derrubar o parecer de Filipe Barros e a recomendar a rejeição da PEC nº 135/2019. Era uma quinta-feira, dia usual das lives presidenciais – aquela da véspera havia sido extraordinária – e Jair Messias Bolsonaro voltou a usar as redes para reafirmar a necessidade de aprovação do voto impresso para impedir fraude nas Eleições 2022.

Na ocasião, o primeiro investigado explorou a recém-elaborada ideia de que uma conspiração internacional com objetivos golpistas estaria por trás do hackeamento objeto do IPL nº 1361/2018. Após desfiar a lista de supostas fraudes alardeadas nos dias anteriores, afirmou expressamente que resultados eleitorais poderiam ter sido alterados em Aperibé.

O então Presidente da República foi enfático na “advertência” de que, sem a aprovação da PEC nº 135/2019, o pleito de 2022 estaria imediatamente sob suspeita. Insinuou que alguma medida teria que ser tomada nesse cenário, pois estava em jogo a “liberdade”. Ele então esboçou a convocação para o 7 de setembro de 2021, na linha da antagonização institucional com o Judiciário. Esse intento, como é notório, foi levado adiante um mês depois.

Há dois últimos pontos a enfatizar, nessa live sequencial à de 04/08/2021.

Primeiro: o então Presidente ressaltou que seus alertas estavam sendo feitos com antecedência e disse que levar o tema adiante, no período eleitoral, seria algo com objetivo de tumultuar o pleito. Como visto, isso foi justamente o que veio a fazer na reunião de 18/07/2022, na antevéspera do início das convenções partidárias.

Segundo: os números da audiência ao vivo, informados pelo próprio orador, chegaram a 310.000 acessos por diversos canais.

Deixando à margem passagens mais virulentas dirigidas contra o então Presidente do TSE, destaco trechos que ilustram a prática discursiva do primeiro investigado, cujos traços típicos já foram identificados ao longo deste voto  (ID 158764864, a partir da p. 10):

“O SENHOR JAIR MESSIAS BOLSONARO (presidente da República): [...] A semana passada [live de 29/07/2021], o TSE, on-line, respondia tudo o que eu mostrava aqui. Já ontem [live de 04/08/2021], que eu avisei, inclusive, as mi... nas minhas mídias sociais, que ia ter às 19h, um... um novo... fatos novos pra falar sobre... fatos novos pra falar sobre a confiabilidade das urnas, o TSE não rebateu. Não tinha o que rebater.

Tudo o que eu apresentei ontem, aqui, foi produzido pelo Tribunal Superior Eleitoral, como, por exemplo: o próprio TSE relatou a invasão no sistema em 2018. E relatou, em novembro, depois que o hacker falou que – o hacker ou alguém de outro país, ou pago por uma empresa, ou interessado no resultado das eleições de 2018 fez. Não é apenas um hacker. Poder ser um hacker? Pode ser um hacker. Mas, por que não interferência até de outro país, ou outros países, pra ter na cadeira da presidência alguém mais sensível aos problemas desse outro ou desses outros países?

O Brasil é um país que garante a segurança alimentar pra mais de um bilhão de pessoas no mundo. O Brasil é um país importantíssimo. Muita gente quer dominar o país. Sem entrar, falar nome aqui, vocês viram há pouco tempo, um governador de estado falando que vai privatizar tudo do seu estado para o capital daquele país.

O que foi tratado também, no dia de ontem, aqui, diz o seguinte aqui: “E-mail do então servidor do TSE, [...], em junho de 2019, relatando que o TSE apagou todos os dados sobre o caso”. O próprio funcionário do TSE, quando foi descoberto que alguém, por interesse não sei de quem, ficou, de abril a novembro de 2018 – antes das eleições, durante o período eleitoral, durante o primeiro, no primeiro turno e no segundo turno – teve lá dentro. Teve acesso a código-fonte, teve acesso a tudo. [...] esse servidor do TSE, assinou o documento dizendo que o TSE apagou os logs. Eu não sabia o que era log. Log eram as pegadas. O próprio TSE apagou as pegadas. Imagine se eu tivesse respondido pro Ministro Celso de Mello, quando ele tava lá, responsável pelo caso de interferência na PF, se eu tivesse sumido com – que não era documento –, era um chip, né… [...] Um pendrive meu, ia me acusar do quê? De obstrução da justiça. Isso é crime. E, aqui, o próprio servidor assina embaixo e diz que foi apagado, foram apagados os logs, as pegadas, pra não se chegar onde, até onde interferiu o servidor. Fica por isso mesmo.

Mais abaixo, o próprio servidor diz também “Não houve invasão, não houve alteração de contagem de votos por ocasião das eleições de 2018”. Mas, em Aperibé pode ter havido isso. E foi uma eleição suplementar em Aperibé. Bem, quem se elegeu em 2018 em Aperibé, eu acho que foi um mandato tampão, né, terminou no final de 2020. O atual prefeito de Aperibé, desconheço qualquer coisa que desabone a tua conduta. Agora, pode ter inferido também nas eleições de vereadores de Aperibé.

E eu apresento uma coisa que é um indício tão robusto, que muita gente diz que é prova: eleições em São Paulo eu vou repetir aqui , eleições em São Paulo, o ano passado, com 0,39% dos votos apurados, o sistema travou. [...] Quando o sistema voltou a funcionar, algumas horas depois, já foi lá pros 100%. A mesma ordem foi mantida, do primeiro ao oitavo. Isso pode acontecer? Pode. Tem chance? Tem. É pequena? É pequena, mas pode. Mais um detalhe: retirando-se as casas decimais ou se abstraindo das casas decimais, o percentual do primeiro, os percentuais do primeiro ao oitavo foram exatamente os mesmos do primeiro ao oitavo, depois de 100%. Estatisticamente, isso pode acontecer? Pode acontecer, como você pode dizer pra mim, né, quando é que eu vou ganhar cinco vezes na loteria? Ué, não sei. [...]

Eu mostrei aqui, a Folha de São Paulo “Vamos pegar em armas”. Nunca joguei fora das quatro linhas da Constituição, nunca. Não tem nada meu fora das quatro linhas da Constituição. Não tem nenhuma ameaça minha. O que eu tô ameaçando agora é: se a população de São Paulo assim o desejar, eles vão ter um movimento marcado por eles dia 7 de setembro, de acordo com o horário, se tiver um convite da liderança, eu participarei. Não existe dever maior de lealdade ao seu país, à democracia e à liberdade do que você estar do lado do povo.

A própria nota do Senhor Ministro [Luiz Fux] também fala que o Supremo Tribunal Federal – cadê a nota aí? Ah, tá na minha mão aqui –, que o Supremo Tribunal Federal, de forma coesa, ou seja, os onze, segue ao lado da população brasileira, em defesa do Estado Democrático de Direito. Estado Democrático de Direito é você ter eleições limpas, transparentes, confiáveis. Agora, ao lado do povo brasileiro sem qualquer sentido pejorativo. Eu convido os senhores ministros do Supremo Tribunal Federal a me acompanhar em São Paulo. Dou a palavra pra um deles.

Será que os senhores ministros, ou parte deles, não vê que tá acontecendo no Brasil? Não vê que a preocupação do povo com o voto impresso não é uma questão de birra, não é uma pinimba, não é uma briga de criança? Olha o que está acontecendo na Argentina. Eu vou pegar a própria imprensa – que jornal que é este aqui? Se puder levantar, eu agradeço aí: “O complexo paradoxo [tosse]... o complexo paradoxo econômico argentino. O único país americano mais pobre do que um século atrás”. De escolhas erradas, equivocadas. A esquerda tá cada vez mais forte dentro da Argentina. [...]

Nós aqui no Brasil não temos pra onde fugir. Esses países menores ao nosso lado têm o Brasil. Pra onde nós vamos fugir? Se um dia voltar de novo a esquerda, pela votação limpa, paciência. O povo fez a sua opção. Vá viver no novo paraíso socialista, até que acabe o dinheiro daqueles que produzem alguma coisa. Daí vamo viver todo mundo na igualdade. Nisso a esquerda não mente, a esquerda prega a igualdade. Parabéns à esquerda, e é verdadeira a esquerda. Só não diz que é a igualdade na miséria. [...]

Vamo pro encerramento? Pronto, já começa agora as intimidações: “Especialistas – é o país do especialista, né, tem especialista pra tudo aqui – veem possível crime de responsabilidade e improbidade de Bolsonaro em live”. Isso é liberdade de expressão. Pra mim, vai valer a liberdade de expressão, tá lá no artigo 5º da Constituição. [...]

Qual o problema de termos uma maquininha, acoplada à urna eletrônica, para imprimir o voto e ele cair dentro da urna? Qual o problema? Por que Vossa Excelência [Ministro Barroso] é radicalmente contra isso? É mais uma forma de nós garantirmos a lisura e a eleição do seu candidato, porque o seu candidato, o Data Folha diz que tem 49% e diz que, no segundo turno, se tiver, terá 60%. Eu vou ligar pro teu candidato se porventura eu disputar eleições e ele ganhar: “Parabéns, boa sorte, tô fora, tá? Se precisar de mim, tô pronto, mas se não precisar, tô fora, vou cuidar da minha vida. Fiz a minha parte, o povo escolheu soberanamente você.” E vamo ver o que acontece. Agora, uma eleição sob suspeita, como está desde agora, isso nós tamos avisando antes. Se fosse durante o período eleitoral, aí seria... teria uma... [inaudível] tumultuar, tumultuar a eleição. Nós tamos fazendo antes; qualquer lado pode questionar as eleições. Se eu ganhar, eu não vou questionar, porque vou ter que recorrer ao Supremo Tribunal Federal. Vai cair na mão, com toda certeza, do Barroso, do Alexandre de Moraes... num vô perder tempo.

Então, nós estamos aqui advertindo, mostrando com antecedência, dizendo que tudo pode ser pacificado, não custa nada. Dinheiro da economia tá reservado pra isso, e não vão ser dois bilhões de reais, não; vai ser menos de um bilhão de reais. O Presidente do Paraguai, eu conversei com ele, disse que manda pra cá alguns de seus servidores da Justiça Eleitoral, com a urna do Paraguai. O Paraguai tá muito mais evoluído do que nós; tá aqui pra nos dar exemplo. Não tem problema nas eleições do Paraguai, com o voto impresso, que é uma maneira de ser contado publicamente e de ser auditado. Precisamos de paz, de harmonia, e não de ódio.

Repito: não tô atacando o Supremo Tribunal Federal; tô questionando o Ministro Barroso e o Ministro Alexandre de Moraes. Os senhores têm que entender que não são donos do mundo, não são os donos da verdade. Os senhores não foram eleitos pra decidir o futuro do povo. Quem foi eleito foi eu e o Congresso brasileiro. Vocês foram eleitos pra interpretar a Constituição. É o lugar de vocês. Vocês não podem continuar legislando, dando piruada, interferindo, dizendo o tempo todo que eu ou o Parlamento deve ou não deve fazer. [...]

Eu quero eleições no ano que vem. O povo quer eleições no ano que vem: limpas, democráticas, auditáveis, com a contagem pública de votos porque, se não for assim, é uma eleição sob suspeição. Eleição sob suspeição dá problema pra nação. Por que essa bronca de não querer o voto impresso? Os argumentos usados pelo Ministro Barroso até agora, lamento, são mentirosos! Fala em PCC, em milícia e ORCRIM, que podem ter acesso ao voto. [...]

A todos do Brasil, o meu muito obrigado a quem me assistiu até agora. Dá uma licença, sai um pouquinho da frente aí: Facebook, YouTube, Instagram, nós temos na ordem de 100 mil nos assistindo; Pingo nos Is 160 mil; Jovem Pan News, 45 mil; Folha Política, cinco. Obrigado pela...pela audiência de todos vocês. E não se esqueçam de uma coisa, por favor: mais importante que a sua própria vida é a sua liberdade. Que Deus abençoe o nosso Brasil.”

Após a intensa repercussão da live/entrevista de 04/08/2021, o IPL nº 1361/2018 se tornou um dos instrumentos prediletos do primeiro investigado e de seu grupo político para disseminarem informações falsas sobre a ocorrência de fraudes no sistema eleitoral. Nesse sentido, a análise dos autos do Inquérito nº 5007377-27, formado a partir daquele inquérito policial, revelou mais uma temerária exploração do conteúdo, já distorcido, do episódio do hackeamento das redes do TSE em 2018.

O fato ocorreu em 06/08/2021, quando estava iminente a votação da matéria em Plenário. Eduardo Bolsonaro, elevando o nível de antagonização com o TSE, provocou a Polícia Federal a investigar “possível conduta criminosa” do então Secretário de Tecnologia da Informação do TSE, por conta de uma palestra em que o servidor defendeu as urnas. O parlamentar apresentou notitia criminis na qual narrou que, em 28/04/2021, durante evento promovido pelos TREs de Tocantins e do Mato Grosso do Sul, o Secretário defendeu que “durante os 25 anos de história da urna, até o momento nenhum caso de fraude foi detectado”.

Para sustentar a inusitada imputação de crime eleitoral, invocou, justamente, a live realizada por seu pai, Jair Messias Bolsonaro, e Filipe Barros no dia 04/08/2021, quando “divulgaram denúncias embasadas no inquérito 1361/2018 da Polícia Federal, que comprovam, segundo o próprio Tribunal Superior Eleitoral, que os sistemas daquela Corte, bem como dados sigilosos, foram alvos de uma invasão em que um hacker teria acessado o código-fonte das umas eletrônicas”. O documento foi juntado ao IPL nº 1361/2018, vindo aos autos em atendimento a diligência requerida pelos investigados (ID 158852107, pp. 96-99).

Em 26/08/2021, o Delegado que examinou a notitia criminis pouco se impressionou com o relato. Salientou que as “denúncias embasadas no inquérito 1361/2018 da Polícia Federal já são objeto de apuração”. Concluiu que, não havendo Eduardo Bolsonaro “apresentado novos elementos de prova, não há a necessidade de qualquer providência adicional” (ID 158852107, pp. 103-104).

Como se observa, partindo de uma informação a princípio correta – a rede do TSE foi atacada por um hacker e este chegou a afirmar que acessou, no ambiente de desenvolvimento, códigos-fonte de programas – o parlamentar criou uma hipótese desconexa, visto que o inquérito mencionado não indica qualquer suspeita de fraude eleitoral.

O último ingrediente da fórmula é a inversão de narrativas: a informação técnica prestada pelo Secretário de Tecnologia da Informação, em evento público, acaba sendo denunciada como criminosa por contradizer as afirmações dissociadas da verdade factual, feitas pelo então Presidente da República e pelo Deputado Federal em live de 04/08/2022.

O episódio demonstra que a vigorosa disputa para que o primeiro investigado fosse reconhecido como autoridade no tema, “vencendo” o TSE, era uma bem assentada estratégia política. Essa estratégia viria a ser reavivada continuamente, fazendo com que os episódios acumulados potencializassem a mensagem comunicada aos chefes das Missões Diplomáticas quase um ano após o IPL nº 1361/2018 ter sido alardeado como prova de fraude eleitoral.

A exaustiva análise da live/entrevista de 04/08/2021 e de seus desdobramentos demonstra o quanto é árdua a tarefa de resgatar sentidos verídicos quando os atributos da competência e da confiança – bases da comunicação que são essenciais para a evolução da sociedade humana – são abalados pela desordem informacional. O exemplo pontual mostra o alto custo de se tentar restabelecer a normatividade epistêmica (em que confiar) e de coordenação (em quem confiar). De outro lado, mostra como é fácil manter esse estado de degradação comunicacional com o objetivo de mobilizar apoio político e eleitoral.

Com efeito, ao evocar, na reunião com os embaixadores em 18/07/2022, o momento em que o IPL nº 1361/2018 foi “revelado”, Jair Messias Bolsonaro voltou a acionar todo o arsenal desinformativo forjado quase um ano antes. Simplesmente, seguiu desconsiderando todas as informações oficiais do Tribunal e os resultados parciais da investigação. Relembre-se que, a essa altura, o inquérito contava com informações sobre a identidade do hacker, a motivação puramente econômica e a correlação com ataques a outras instituições.

O mínimo que caberia ao então Presidente era buscar se atualizar sobre os documentos. Não se descarte que o novo compartilhamento pudesse ser negado para preservar a investigação, considerando-se o desastroso tratamento que anteriormente foi dado ao material pelo primeiro investigado, por Filipe Barros e por Mauro Cid. Mas, se o acesso fosse negado, isso também significaria que o primeiro investigado não dispunha de informações atualizadas e que, portanto, não haveria nenhum motivo legítimo para reviver a entrevista de 04/08/2021.

Contudo, o primeiro investigado seguiu apostando na narrativa conspiracionista do ano anterior. Agiu como se o IPL nº 1361/2018 estivesse congelado naquele primeiro documento, a Informação STI nº 32. E se ateve à forma distorcida com que o inquérito foi apresentado ao público em 2021, em meio ao estardalhaço causado pelo Programa Os Pingos Nos Is. Assim, seguiu reafirmando que ele continha a prova de que votos foram adulterados em 2018.

É por isso que, do ponto de vista discursivo, há uma continuidade entre a live de 04/08/2021 e a reunião de 18/07/2022 que não pode ser ignorada. O Presidente da República evocou aquele momento como um marco significativo de sua suposta luta pela higidez das eleições, tendo por principal adversário o TSE.

Não é possível, em nenhuma das duas ocasiões, conceder ao Chefe de Estado o crédito de um erro de boa-fé. Essa é uma excludente de responsabilidade incompatível com o cargo ocupado. O mesmo se pode dizer do Deputado Filipe Barros, que cumpriu, na live de 04/08/2021, o relevante papel de “autoridade” incumbida de apresentar e “traduzir” o IPL nº 1361/2018.

Ademais, independente das repercussões penais do caso, não há dúvidas, no que importa a esta ação, que o primeiro investigado e Filipe Barros são responsáveis pela ampla divulgação, na internet, do conteúdo de um inquérito policial, bem como pela forma com que o exploraram publicamente. Os mandatários ignoraram o sigilo próprio a qualquer investigação dessa natureza. Dela fizeram uso inteiramente fora do fundamento que levou o delegado federal a remeter as cópias integrais ao Relator da PEC nº 135/2018.

Quase um ano depois, mesmo com o indiciamento de Mauro Cid pela divulgação do material nas redes, Jair Messias Bolsonaro sacou o IPL nº 1361/2018 para persuadir a comunidade internacional de que as Eleições 2022 corriam sério risco de serem fraudadas. Para o público que acompanhava a transmissão pela internet e pela televisão, tratava-se de um poderoso elemento de coesão das bases de apoio ao pré-candidato à reeleição. Por meio dele, em segundos, foi possível trazer à lembrança um momento de grande êxtase vivido naquele 04/08/2021.

 

2.2.3 Live de 12/08/2021

 

A última live a ser abordada ocorreu em 12/08/2021, dois dias após o arquivamento definitivo da PEC nº 135/2019 por decisão do Plenário da Câmara dos Deputados, que ocorreu em 10/08/2021. Perdida a batalha no Legislativo, o então Presidente não deu sinais de aceitar a derrota política. Ao contrário.

A transmissão foi utilizada para reforçar o discurso desinformativo. Foram repetidas informações falsas e descontextualizadas sobre o sistema eletrônico de votação e ataques a Ministros e servidores do TSE. Sob esse aspecto, a live é uma retrospectiva das anteriores, desde 29/07/2021, em que todos os “destaques” são alinhavados, demonstrando a continuidade discursiva entre elas.

Mas o primeiro investigado, de forma espantosa, foi além. A ideia conspiratória que havia gestado, sobre o imaginário conluio envolvendo Ministros, servidores do TSE e autoridades internacionais, recebe detalhes minuciosos. O então Presidente passa a narrar cenas bem específicas, aptas a estimular a imaginação da audiência, descrevendo os supostos passos e pensamentos do hacker, com notas de mistério.

A fantasia temerária atinge o ápice quando ele afirma para seu público, de forma literal, que, nas Eleições 2018, houve um “acordo” para que hackers desviassem ou excluíssem 12 milhões de votos que teria recebido. Afirma, mais, que o quantitativo de votos não teria sido suficiente para garantir a vitória “do outro lado” e que, por isso, os contratantes teriam “dado o calote”, o que, enfim, teria levado o hacker a tornar pública a invasão.

Incapaz de admitir como legítima a derrota da pauta política no Congresso, o primeiro investigado ainda fez uma aberta acusação de interferência do TSE na Polícia Federal para impedir o inquérito de avançar. Lutando contra moinhos de vento, advertiu que a apuração iria até o fim e comemorou sua estratégia de difundir o IPL nº 1361/2018 pelas redes sociais, ciente de que nenhuma ordem de retirada poderia recompor o estado anterior de reserva da investigação.

Embora experimentado nos ritos parlamentares e ciente de que o arquivamento da PEC nº 135/2019 significava que a proposta não poderia voltar a ser debatida na mesma legislatura, o primeiro investigado não atenuou o discurso de que o voto impresso era a única via de assegurar eleições limpas. Não houve nenhum distensionamento. Ele repetiu que as Eleições 2022 corriam um grande risco: a manipulação de votos para assegurar o que chamou de a “volta da esquerda”.

As acusações de que o Poder Judiciário ultrapassou as “quatro linhas” e a sugestão de que poderia ser preciso reagir fora delas flertam com a frase “ninguém tá pregando aqui um Golpe de Estado”. Ao mesmo tempo, o então Presidente lembra à audiência que o que mais quer “é que, no ano que vem [2022], tenhamos eleições limpas”. Esse desejo, contudo, era impassível de ser intimamente satisfeito, pois a visão que o Presidente eleito em 2018 compartilhava com seus seguidores é a de que vivíamos em uma “democracia de contar voto no escondidinho”.

Por duas vezes, o primeiro investigado declarou, na live, sua desconfiança das urnas. Disse que o motivo disso é que “apresentou provas” e nada foi feito. Prometeu que iria “até o final”, cumprindo uma “missão de Deus”. Fez referências diretas ao pleito de 2022, a possíveis candidaturas e mesmo a um imaginado governo do adversário. Salientou que o problema não seria o povo escolher o “retrocesso”. Ao mesmo tempo, somente cogitava que sua derrota ocorresse em eleições manipuladas. Daí, retomou seu clamor por eleições limpas, com contagem pública de votos, a despeito da proposta já recusada.

Houve ainda, nessa live, uma forte exploração da dinâmica de dizer e desdizer: afirmações gravíssimas foram verbalizadas e, em seguida, o primeiro investigado simula “cancelar” o sentido do que foi dito, ponderando que se trata apenas de uma hipótese, de algo que se ouviu. Em algumas vezes, porém, foi-lhe irresistível fechar o raciocínio com a reafirmação.

Um exemplo é o trecho: “pra [...] não falar amanhã que Bolsonaro mentiu, sem provas, tô adiantando −, não tenho provas. Então, mas alguma coisa aconteceu”. Construções desse tipo foram utilizadas para plantar suspeitas de interferência do TSE na investigação da Política Federal, para inventar uma fábula em torno do ataque hacker e até mesmo para tratar de sua futura candidatura.

Uma vez compreendido como operam os pensamentos intrusivos, fica simples entender a motivação desse uso da linguagem. Na prática, não faz diferença que o raciocínio seja concluído com a negativa do fato ou com sua reafirmação. A partir do momento que já foi narrado para o público, em minúcias, que o hacker investigado no IPL nº 1361/2018 teria sido contratado para excluir 12 milhões de votos de Jair Messias Bolsonaro, pouco importa que, depois, o então Presidente da República diga que não possui provas disso. A “hipótese” já está consolidada e pronta para gerar desconfiança. Adereços impactantes da narrativa, como o quantitativo de votos – que, não à toa, foi repetido seis vezes – e o criativo calote auxiliam nesse objetivo.

O TSE divulgou nota pública restabelecendo a verdade dos fatos. Diante dos absurdos ditos na live, explicou de forma simples (mas técnica) algumas camadas de segurança que fazem com que as urnas eletrônicas sejam usadas há 25 anos de forma exitosa, em especial, assegurando a autenticidade e o sigilo do voto (https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2021/Agosto/fato-ou-boato-hacker-nao-desviou-votos-da-urna-eletronica-nas-eleicoes-presidenciais-de-2018). Porém, como é usual no desafio do enfrentamento à desinformação, uma nota reiterando uma verdade já conhecida não consegue competir com a excitação provocada pela mentira novidadeira.

Transcrevo, abaixo, parte da live de 12/08/2021, para demonstrar principalmente a estratégia de fixação dos pensamentos intrusivos, por meio do falso cancelamento de afirmações graves verbalizadas e já assimiladas em seu contexto. Poupa-se a repetição excessiva de pontos já repisados, inclusive os insidiosos comentários sobre Ministros e servidores (ID 158764866, pp. 3-11 e 16-17):

“O SENHOR JAIR MESSIAS BOLSONARO (presidente da República): [...] Agora, Ministro Barroso, o Senhor que é Presidente do TSE, fiquei sabendo agora que o Ministro Alexandre de Moraes determinou o quê? Que as publicações, como tenho na minha página, dos “linkzinhos” ali da, do inquérito da Polícia Federal têm que ser retirados, né. Qual o prazo que ele deu? Tem o prazo aí? E o que mais também? [...] Afastou o delegado responsável pelo inquérito. Esse inquérito começou em novembro de 2018, dois anos e meio, por que que não chegou no final? No relatório final? Pelo que tudo indica − não posso afirmar aqui −, interferência, porque todas as informações, quase todas, que o delegado precisava lá do... do TSE, ele obteve. [...]

Agora, houve interferência na PF? Dois anos e meio? Quando seria concluído esse processo? Se a gente fica quieto aqui, não ia ser concluído nunca. Agora, a medida afastar o delegado encarregado do inquérito, com toda a certeza, o diretor-geral da PF vai botar outro delegado lá e, obviamente, né, o que nós queremos é agilidade, rapidez, que com todas essas informações − que está na minha página na internet, e Vossa Excelência Alexandre de Moraes mandou retirar agora −, o pessoal já copiou, todo mundo já copiou. Eu tenho cópias aqui. Segredo de justiça? O que estavam fazendo, não deixando esse inquérito ir pra frente, é um crime contra a democracia. Não querem apuração. [...]

Afastar o delegado? Eu acho que a Polícia Federal vai ouvir esse delegado, por que que o atraso na apuração daquele inquérito, que ali, sim, uma comprovação clara com provas do próprio TSE de interferência. Querem intimidar quem? A justiça é para todos. Todo mundo no Brasil, né, ou grande parte dos brasileiros, querem a certeza de quem votar, o voto vai pra lá. Eu não devia nem tá perdendo tempo com isso, tem muita coisa importante pra eu fazer no Brasil, mas eu tenho que pensar nas eleições do ano que vem, não por mim, mas pelo futuro do Brasil. [...]

Bem, o que acontece? Nós tivemos aqui uma votação no Parlamento, essa semana, sobre uma PEC lá da Bia Kicis, que o relator era o Felipe Barros, que não conseguiu 308 votos, conseguiu 229, a favor, e 218, contra, ou seja, ganhou, mas não levou, faltou quórum. Regra do jogo. Paciência. [...] Alguma coisa mais sobre o voto impresso aí, pessoal? Acho que tá de bom tamanho, né?

Vamos ver amanhã qual vai ser a decisão do diretor-geral da Polícia Federal, Senhor Maiurino, sobre essa decisão do prezado Ministro Alexandre de Moraes, que afastou o delegado do inquérito. Nós queremos que esse inquérito vá pro final, já tá todo documentado lá. Com essa decisão do Alexandre de Moraes, eu acho que só não tem a cópia do inquérito quem não quer, ou acha que apagou, se tirar do meu site apagou, resolveu o assunto?

As provas estão lá e olha a história que eu quero contar aqui: não tenho provas. É apenas aí uma suposição. Alguém acha que o hacker era um hacker turista? Ele não tinha o que fazer, lá em abril de 2018, ano das [inaudível] presidenciais, daí ele ficou passeando lá no TSE, teve acesso ao código-fonte, teve acesso à senha do Ministro [...], teve acesso à senha de outro funcionário. O tempo foi passando, ele ficava lá, pra lá, pra cá.... viu o código-fonte, teve acesso ao código-fonte. Tivemos o primeiro turno, tivemos o segundo turno e, daí, em novembro, esse hacker − que continua desconhecido, né −, ele resolve dizer o que aconteceu.

Aí, teve o inquérito, o próprio TSE disse que sim, ele passeou dentro do coração dos computadores do TSE, que contam votos, que fazem apuração, né, o próprio TSE diz que as pegadas foram apagadas, que os logs foram apagados, pelo próprio TSE, apagando marcas do que foi feito lá – e com os logs podia saber de tudo o que aconteceu.

E, daí, então, por que, por que esse hacker, né, ou esse grupo de hacker, essa ou essas pessoas resolveram denunciar? Olha onde nós chegamos. Não tenho provas – pra... pra Globo não falar amanhã que Bolsonaro mentiu, sem provas, tô adiantando −, não tenho provas. Então, mas alguma coisa aconteceu. Começam as pessoas a pensar, né, por que que o hacker ficou oito meses e depois resolveu fazer uma matéria, né, e falar o que aconteceu lá? E tudo estava na mão do TSE. É fácil saber se ele entrou ou não. O TSE diz que entrou e entrou por oito meses. Será que o pessoal do TSE, aquela meia dúzia que toma conta do [inaudível] do TSE, não sabia e deixou correr frouxo?

Que a história ou estória que chega pra gente, estória, né, sem o “h”, com “e”, estória, ou história, não sabe, era que o acordo com esses hackers seria de desviar 12 milhões de votos do candidato Jair Bolsonaro? Sumir com 12 milhões de votos? Repito, não tenho provas e não sei se isso é verdade, mas a história que estamos apurando é essa, 12 milhões de votos. Bem, acabou o segundo turno, né, e esses 12 milhões de votos não foram suficientes pro outro lado [interrupção da gravação], a 45%, assusta pô, mas só essa pequena diferença? Era uma onda a meu favor no Brasil todo, uma onda enorme, gigantesca. Bem, o que que poderia ter sido acontecido?

Não tenho provas e não sei se é verdade. Como o trabalho dos hackers, contratado pra tirar esses 12 milhões de votos, não foram suficientes, o outro lado ganhou, os hackers teriam levado um calote de quem os contratou para sumir com 12 milhões de votos. Levaram um calote, resolveram denunciar, resolveram melar o jogo. A gente sabe que o outro lado é especialista nisso, em dar calote nos outros, é especialista − até quando o cara se candidata a um cargo mais baixo possível no Brasil. Então, essas, essas histórias, estórias ou histórias, vão continuar rondando por aí.

Em vez do Senhor Ministro Alexandre de Moraes, do Senhor Barroso, colaborar com as investigações, chamam o delegado, por que que parou o processo? Eu vou levantar agora, com números mais precisos, desde quando é que foi a última ação do delegado encarregado desse inquérito. Parou. Por que parou? Parou por quê? Interferência do TSE? Que não é... não é a primeira vez que se tem notícias, né, de possíveis fraudes por ocasião das eleições.

Agora, é justo a gente viver no ano, no final de ano pré-eleitoral, o ano eleitoral é o ano que vem, sob a suspeição de possíveis fraudes?

O que que o [inaudível] TSE tá fazendo para acabar com essa dúvida? “Ah, estamos botando novas camadas, tem 40 camadas”... Aquilo é brincadeira, pô! O hacker tava lá dentro, o grupo de hacker. Talvez, até, talvez, não tenho certeza, com a conivência daquela cúpula minúscula do TSE, que tá lá há quase 20 anos lá dentro, [...].

E a decisão do, do Senhor Ministro Alexandre Moraes é afastar o delegado? Vamos ter eleições? Vamos ter eleições. Mas eleições limpas, eleições democráticas. Tem que ter eleições com contagem pública de votos. Não podemos − meia dúzia de pessoas − continuar contando as eleições numa salinha secreta. Acabou, o resultado é esse.

E, outra coisa gravíssima, poderia até ser orientado, né, se porventura... Não é dessa forma que é feito. Então, acaba as eleições, cê vai lá fora, cinco da tarde, e fica lá por trinta minutos, a tal da zerézima, né, uma tripa pendurada lá fora, que você vê quantos votaram naquela seção, quantos votos foram pra presidente, governador, federal, sei lá. Tu vê lá.

Agora, por que que esses dados não entram on-line? Por que que à noite de domingo, eu não posso, aqui em Brasília, por exemplo, acessar a minha seção eleitoral que eu votei no Rio e ver ó: eu votei lá na... em frente à I Divisão do Exército, a Escola Rosa Alves da Fonseca, né, na minha seção tal. Eu vou ver lá quantos votos eu tive pra... pra presidente, quantos votos teve lá o nosso governador, senador, federal, estadual.

Por que que não apresenta on-line isso? Só aproximadamente quinze dias depois? É mais uma suspeita! Estão esperando o quê? Estão acertando o quê? Tão fazendo uma conta de chegada do final pro começo? Pra quando apresentar: “olha, tá aqui, ó. Quinze dias depois, em média, né? Tá aqui, ó, as... as... o resultado, aí, das seções eleitorais” – são mais de 400 mil no Brasil. Alguém pode fazer um programinha, né? Botar um pendrive lá e fazem a contagem. Só que essa contagem vai bater com o número oficial. Será que... que nesses quinze dias... Será? Eu tô desconfiando, sim. Estou desconfiando. Será que foram feitos acertos? Porque poderia ser liberado no mesmo dia, esse boletim on-line.

Vocês, busquem... que me acusavam ditador, né, troglodita, né, pessoa que quer dá o golpe... eu tô falando de democracia, mas não é essa democracia de contar voto no escondidinho, não; é essa democracia de descobrirem que o hacker ficou oito meses dentro lá dos computadores, no coração da informática do TSE, e ninguém sabia de nada. Será que não sabiam de nada? Quem tava fazendo esse trabalho lá dentro? E não é o hacker turista, que resolveu: “Ah, eu não tenho o que fazer, vou ficar aqui em casa aqui, passeando aí na... dentro do TSE?” O que que tá acontecendo?

Ainda querem nos calar, me botar inquérito. Já vejo aí, ó, jornalista amestrados, dado o que eu tô falando, 49 anos de cadeia a minha pena. Se eu perder o mandato hoje, né, ou quando deixar o mandato, vou responder um processo – porque o processo vai ficar lá dentro do Supremo. 49 anos de cadeia. Mais dois anos, aproximadamente, por ter aí vazado o inquérito em segredo de justiça, da Polícia Federal. Um inquérito que interessa para todos nós. Se interessa pra todos nós, tem que ser público. Ou não tem que ser público? Ia ficar escondido até quando, se eu não falo? Ia ficar escondido até quando esse inquérito lá dentro?

Na primeira live minha [de 29/07/2021], o TSE botou uma equipe ali pra me rebater. A cada coisa que eu falava aqui, imediatamente rebatiam lá. A segunda live [de 04/08/2021] – que não foi na quinta, foi na quarta seguinte –, eu falei que ia ter essa live; eu publicizei essa minha intenção. E comecei fazendo a live – eles não sabiam do que se tratava, né – com documentos do TSE. Por que não me rebateram on-line? Por que não me rebateram on-line? Porque os documentos eram do TSE. Queriam provas, apresentei provas.

Eu devia ser elogiado pelo Ministro Barroso e pelo Ministro Alexandre de Moraes: parabéns! [interrupção da gravação] Já começaram [a ouvir] o coronel que estava do meu lado aqui, por ocasião da primeira live. Não sei o que... o que aconteceu lá... eu vou ter... conversar amanhã com ele, já que ele trabalha conosco, né? Também, o TSE decidiu que o... o Ministro da Justiça tem que ser ouvido, porque ele esteve presente aqui na primeira live e falou alguns trechos de dois inquéritos da Polícia Federal que apontavam que as urnas não podiam ser auditáveis, precisavam do voto impresso pra poder auditar e ter a confiança nas eleições.

Agora, vai um delegado da PF ouvir o Ministro da Justiça. O que que tá acontecendo? Cadê a democracia no Brasil? Onde se espera que tenha que vir exemplo, não vem. Vem truculência, vem ameaças, vem outro inquérito do fim do mundo, como o primeiro, que mantém um jornalista preso, que mantém um deputado federal preso. E quem tá atentando contra a democracia sou eu? Imaginem, povo brasileiro, se o outro lado tivesse ganho as eleições – na fraude, ou na possibilidade de fraude, ou na suspeição ou não – como estaria o Brasil agora? Estaria garantidíssimo esse sistema de... de eleições que, pelo menos metade da, do Congresso, né, metade dos que votaram agora, nessa semana, desconfiam, não têm a convicção de que esse processo de votação é certo ou não.

E dizer aos deputados que votaram contra, tá? Pode haver, sim, problemas por ocasião das suas eleições, em 22. Cê vai reclamar pra quem? Se for pro TSE, a resposta vai ser padrão: as urnas são confiáveis. Se entrar com recurso pro Supremo, nem sei se vai caber ou não, não vai ser julgado.

Quem é que essas pessoas querem eleito ano que vem? Depois eu vou falar o nome dessa pessoa. Cês sabem o que ela nos levou, de 14 anos do governo de esquerda que tivemos no Brasil, há pouco tempo. Queremos isso para o Brasil? [...] Essa minha cadeira, realmente, tem “criptonita”, mas eu tenho uma missão, uma missão de Deus – entendo dessa maneira. Quem não quiser entender, paciência. Respeito. E vou até o final.

O que eles querem? A volta da corrupção e da impunidade. Não se esqueçam, povo brasileiro, que quem ganhar as eleições em 22, no primeiro semestre de 23 indica mais dois pro Supremo. Dizem hoje que sou eu ou Lula, né? Então, se eu for reeleito, se for disputar as eleições, se for reeleito, indico mais dois. E se o Lula, que vai disputar a eleição, né? Ele indica dois. Qual o futuro do nosso Brasil? Qual o perfil dos candidatos indicados por mim e qual o perfil dos candidatos indicados por Lula?

[...]

Ninguém tá pregando aqui um golpe de Estado, dizendo que eu sou o certo. Eu quero é que o ano que vem tenhamos eleições limpas. Se qualquer pessoa ganhar, foi uma escolha do povo. Vão arcar com as consequências. Tem muita gente que não gosta de mim. É direito teu não gostar de mim. Agora, alguns querem, por não gostar de mim, se porventura disputar a eleição – atenção TSE, não tô dizendo que eu vou disputar a eleição, não, deixar bem claro, eu posso ou não disputar. Votar no “nove dedos”, de raivinha, “ah, pra sacanear o Bolsonaro, se ele vier candidato, vou votar no outro lado”. Cê tá fazendo um mal contra você mesmo. Tô mostrando a Venezuela, cê quer isso pras tuas filhas, pros teus netos? Cê quer isso pra eles? [...]

Agora, tem algo pior que pode acontecer com nosso Brasil: é você perder a liberdade por péssimas escolhas. Tem milhares de pessoas melhores do que eu pelo Brasil, milhares. Mas, infelizmente, a grande maioria fica... se acomoda, fica em casa. Não quer disputar aí... política. Reclamam de deputado: “ah, o deputado votou contra... isto eu não gostei dele”. Ué, anota o nome dele pra não repetir. Se bem que se não tivermos como auditar os votos, poderá... poderá acontecer que... que esses deputados, né, tenham sucesso nas eleições. “Ah, o Bolsonaro tá desconfiando”. Estou, sim, desconfiando. Afinal de contas eu apresentei as provas na segunda live minha e o TSE apagou as provas. Mas, tudo bem. [...]

Ao final da transmissão, o primeiro investigado, como de costume, informou os números da audiência ao vivo: “[t]emos aqui, o nosso Facebook, YouTube, Instagram, na ordem de 90 mil; Pingos Nos Is, 180 mil; Jovem Pan News, 40 mil; Folha Política, três; Brasil Patriota, um”. Esses números são compatíveis com a checagem feita com base no vídeo que segue disponível nos canais de YouTube do primeiro investigado e do programa Os Pingos Nos Is. No total, o conteúdo, somente nesses dois canais, soma mais de 543 mil visualizações (226 mil no primeiro canal e 317 mil no segundo).

A live de 12/08/2021 constituiu um importante marco comunicacional da estratégia política do primeiro investigado. Ao recapitular as informações falsas ditas em ocasiões anteriores, despejar frases alarmistas e desenvolver narrativas imaginárias cada vez mais bem elaboradas, o então Presidente da República estimulou um senso de coesão política, centrado no repúdio ao Poder Judiciário e ao sistema eletrônico de votação.

A mensagem de que é preciso manter a vigilância daquele momento até o pleito de 2022 é perfeitamente comunicada. E pôde, de fato, ser facilmente acionada na retomada do tema em 18/07/2022.

2.3 As projeções apresentadas no discurso (futuro): o alarmismo em torno da suposta ameaça de “repetição” da fraude nas Eleições 2022 como justificativa para a não aceitação de resultados

As lives de 2021 acima mencionadas foram exitosas em sua proposta pragmática de cultivar o sentimento de que uma ameaça grave rondava as Eleições 2022 e que essa ameaça partia do TSE. O conspiracionismo se conservou latente e foi acionado com facilidade no ano eleitoral.

Na reunião com os Chefes de Missão Diplomática, Jair Messias Bolsonaro retomou a epopeia dos ataques ao sistema eletrônico de votação sem provas, acrescentando mais um capítulo à saga: a derradeira tentativa das Forças Armadas de apresentar supostas soluções para evitar fraudes no pleito iminente.

Em seu discurso impermeável a argumentos técnicos e inabalável diante da derrota política da PEC nº 135/2019, Jair Messias Bolsonaro seguiu se recusando a admitir o papel do TSE como autoridade constitucionalmente investida da governança eleitoral. Diante de embaixadoras e embaixadores e do público alcançado pela transmissão, afirmou que era imperativo aceitar o que quer que tivesse sido proposto pelas Forças Armadas na Comissão de Transparência, como derradeira tentativa de salvar as Eleições 2022 da suposta fraude.

As Forças Armadas passaram, efetivamente, a ocupar um papel central na estratégia do primeiro investigado para confrontar o TSE no âmbito da normatividade de coordenação. E isso acabou dando contornos muito problemáticos à mensagem difundida em 18/07/2022 para a comunidade internacional e para a sociedade.

Em um discurso que tratava do pleito iminente, o então Chefe de Estado brasileiro mencionou “Forças Armadas” por dezoito vezes, sempre com uma percepção hiperdimensionada do convite para integrar a Comissão de Transparência do TSE. O pré-candidato lembrou à audiência, por duas vezes, sua condição como “chefe supremo” das Forças Armadas, em ambas para indicar que não endossaria uma farsa. Para se ter uma ideia, a palavra “democracia” apareceu apenas quatro vezes e em nenhuma delas foi reconhecida como um valor associado à realidade do processo eleitoral.

O clima não passava despercebido pela comunidade internacional, conforme se pode ilustrar por trecho do depoimento do ex-Ministro-Chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira. A testemunha, arrolada pela defesa, descreve a preocupação do representante diplomático dos Estados Unidos da América com a instabilidade democrática no Brasil. O foco do receio não era algum risco de fraude no sistema de votação, mas a instabilidade política provocada pelo movimento de recusa à legitimidade dos resultados eleitorais. Nesse sentido, disse a testemunha: “Eles tinham preocupação sobre a situação dessas discussões políticas e conflitos, né? [...] Mas sobre a funcionalidade do sistema, não” (ID 158766496, pp. 9-10).

O último marco temporal do discurso de 18/07/2022 diz respeito à projeção para o futuro. Sua função pragmática, derradeira, foi incutir um temor de que as Eleições 2022 fossem maculadas pela manipulação de votos. Efetivamente, o primeiro investigado desenhou a possibilidade – a “hipótese” – de não aceitação dos resultados do pleito de 2022, caso não satisfeitas as condições que considerava inegociáveis para garantir “eleições limpas”.

No discurso, o notório pré-candidato à reeleição adotou a estratégia de indicar que qualquer medida extrema que acaso viesse a eclodir não lhe poderia ser imputável. Essa estratégia se erige sobre três recursos narrativos:

a) o primeiro investigado teria procurado, a todo tempo, travar um diálogo institucional saudável e respeitoso acerca do sistema eletrônico de votação;

b) todas as falas de Jair Bolsonaro a respeito do sistema eletrônico de votação teriam sido propositivas, visando melhorias que aumentassem a segurança e que poderiam ser implementadas em tempo hábil para o pleito de 2022; e

c) o pré-candidato teria plena disponibilidade de aceitar uma derrota legítima nas urnas, jamais insinuando, endossando ou estimulando a ideia de golpe para a manutenção do poder.

Na última etapa do exame dos fatos, será demonstrado que, do ponto de vista da análise discursiva, cada uma dessas narrativas possui caráter falacioso. Tendo em vista que algumas delas reverberaram na contestação, serão também examinadas neste tópico as teses defensivas que, em síntese, propõem que o discurso de 18/07/2022 pode ser interpretado de modo a afastar ou mitigar as consequências da conduta do primeiro investigado sobre os bens jurídicos eleitorais.

2.3.1 A falácia do diálogo institucional: o monólogo irredutível e a estratégica antagonização a Ministros do TSE

Conforme já mencionado, a transmissão da reunião de 18/07/2022 reverberou de forma ampla, reforçando informações falsas de descrédito ao sistema eletrônico de votação e à atuação do TSE como órgão central de governança eleitoral.

Nesse cenário, o TSE, em mais um esforço de rebater a severa desinformação divulgada não apenas para os diplomatas, mas para toda a sociedade, publicou, horas após a reunião no Palácio da Alvorada, uma nota rebatendo ponto a ponto as afirmações falsas feitas por Jair Bolsonaro. De se notar que, como a maior parte do discurso voltava a veicular desinformação antiga, a nota reúne esclarecimentos que já tinham sido prestados publicamente (https://www.
justicaeleitoral.jus.br/fato-ou-boato/checagens/tse-reune-conteudos-que-explicam-alegacoes-do-presidente-jair-bolsonaro/#).

Os investigados, em sua contestação, apresentaram uma leitura do contexto que levou o TSE a publicar a nota. Sustentando as boas intenções do então Presidente da República, que teria apenas levantado dúvidas e manifestado sua opinião em tema de interesse de toda a sociedade, concluíram que, após a nota, “o debate público foi completo”. Leia-se trecho da contestação (ID 157977291, pp. 21-22):

“60. O debate público foi completo! O primeiro Investigado, de forma legítima, como Chefe de Estado, revelou seu ponto de vista à comunidade internacional e a Justiça Especializada, pronta e eficazmente, também de forma legítima, enquanto instituição republicana guardiã da lisura do processo eleitoral externou seu contraponto. Ao final do debate público, fértil e desinibido, esfumaçaram-se quaisquer efeitos teóricos deletérios sobre os cânones democráticos.

61. A resposta do C. TSE, aliás, foi amplamente divulgada pela mídia, com emprego de termos duros e cáusticos até mesmo para discursos jornalísticos. [...]

63. Portanto, qualquer possibilidade – ainda que remota e inventiva – de lesão à legitimidade das eleições foi prontamente estancada pela Justiça Eleitoral que, ademais, se valeu da oportunidade para prestar relevantes esclarecimentos públicos e reforçar, ainda mais, a certeza de integridade do sistema eleitoral do Brasil.

64. A legitimidade dos processos eleitorais e a higidez substancial da própria democracia servem-se muito bem de debates que tais. São construções permanentes de sindicância pública.”

(Sem destaques no original.)

A tese não deixa de causar certa perplexidade.

Na compreensão dos investigados, a necessidade de uma gigantesca e permanente mobilização de esforços de órgãos públicos e da sociedade civil para combater a desordem informacional não seria motivo de assombro.

Conteúdos falsos a respeito de temas de grande impacto na vida das pessoas circulando, em alta velocidade, nas redes sociais não seriam uma das maiores mazelas da sociedade frente ao atual paradigma comunicacional, seriam apenas um convite a um “debate público, fértil e desinibido.

E, quando tais conteúdos falsos são veiculados pelo Chefe de Estado, ameaçam a confiabilidade no sistema de votação e obrigam o órgão de governança eleitoral, mais uma vez, a agir rapidamente na quase inglória missão de minimizar os danos, o que se teria é uma muito satisfatória dinâmica em favor da “legitimidade dos processos eleitorais e a higidez substancial da própria democracia”.

Os investigados chegaram a invocar julgado do STF em que se assentou que “pronunciamentos judiciais devem ser compreendidos como última palavra provisória [...] sem, em consequência, fossilizar o conteúdo constitucional” (ADI nº 4650, Rel. Luiz Fux, DJE de 24/02/2016). Isso para embasar a afirmação de que, nesta AIJE, “a hipótese dos autos retrata um claro diálogo institucional entre a Justiça Eleitoral e o Chefe do Poder Executivo na conformação de um tema político consistente de legitimidade do processo eleitoral brasileiro” (ID 157977291, p. 23).

O voto do Relator da ADI nº 4650, contudo, usou do fundamento acima transcrito para sinalizar que a decisão do STF, no feito julgado, não impedia, por si, uma eventual nova rediscussão, no Congresso, a respeito de outro modelo de financiamento empresarial. Isso fica evidente no item 6 da ementa – que se segue imediatamente aos cinco itens transcritos na contestação –, cujo teor é o seguinte: “[a] formulação de um modelo constitucionalmente adequado de financiamento de campanhas impõe um pronunciamento da Corte destinado a abrir os canais de diálogo com os demais atores políticos (Poder Legislativo, Executivo e entidades da sociedade civil)”.

Portanto, o que disse o STF na ADI nº 4650 é que a declaração de inconstitucionalidade da lei que então tratava do financiamento por pessoas jurídicas devolvia o tema ao Congresso, para avaliação dentro dos parâmetros fixados no controle concentrado. Não há analogia que permita que se empregue trechos do acórdão citado para defender que o Chefe do Poder Executivo pode disseminar desinformação a respeito do desempenho das funções administrativas do TSE em reunião oficial, perante diplomatas de quase uma centena de países.

A construção é, de fato, espantosa, pois ignora premissas inafastáveis, relativas à abordagem do fenômeno das fake news e ao regime de responsabilidade dos agentes públicos.

Primeiro, conforme já exposto nas premissas de julgamento, está comprovado que o “desmentido” sequer é capaz de circular com a mesma velocidade das notícias falsas, quanto menos de reverter danos sociais, institucionais, emocionais e mentais já causados.

Segundo, à luz do art. 85 da Constituição, não é dado ao Presidente da República levar a público alegações de fraude eleitoral por manipulação de voto com vistas a uma temerária confrontação ao TSE, especialmente quando lhe era plenamente possível acessar as informações corretas que já haviam desmentido essas alegações.

Terceiro, fosse o primeiro investigado a vítima originária do engodo em torno do IPL nº 1361/2018, caberia a ele recorrer a canais institucionais, especialmente o contato com o TSE, a fim de melhor compreender os fatos em apuração e, após isso, avaliar medidas compatíveis com o cargo ocupado.

Portanto: nem opinião, nem dúvida, nem denúncia – não foi disso que tratou o evento de 18/07/2022. A fala do primeiro investigado foi composta por conteúdos falsos e por ataques insidiosos à reputação de Ministros do TSE. Ambos os enfoques miraram esgarçar a confiabilidade do sistema de votação e da própria instituição que tem a atribuição constitucional de organizar eleições.

O primeiro investigado não promoveu nenhuma abertura ao diálogo, pois esse conceito que envolve interação de boa-fé. Com efeito, a exposição feita no Palácio da Alvorada não partiu da necessária escuta às inúmeras explicações já apresentadas pela Justiça Eleitoral. Quanto menos almejou chegar a um consenso. Apresentou apenas um monólogo, que tomou como “realidade” eventos imaginários, que não se sustentavam diante de evidências objetivas, explicações técnicas e argumentos racionais.

Na contestação, a defesa ainda conclama que se faça um “exame sereno e desapaixonado” do discurso, “com as lentes do necessário diálogo institucional e da inadiável promoção da transparência eleitoral”. Reiteram que foi feito apenas um “convite ao diálogo público continuado para o aprimoramento permanente e progressivo do sistema eleitoral e das instituições republicanas”. No ponto, enfatizam que todos os Chefes de Poderes estavam convidados para a apresentação” havendo inclusive “convite expresso enviado para o C. Tribunal Superior Eleitoral” (ID 157977291, p. 13).

No ponto, enfatizam que todos os Chefes de Poderes estavam convidados para a apresentação”. O convite direcionado ao Min. Edson Fachin, então Presidente do TSE, comprovaria, segundo esse argumento, que as intenções do encontro eram as melhores possíveis. Ocorre que, neste feito, o que está em exame são as ações do primeiro investigado, inclusive seus atos discursivos. Essa análise, pragmática, adequadamente levou em consideração:

a) a mensagem comunicada no contexto em que proferida a fala, que pode ser sintetizada na afirmação de que houve manipulação de votos nas Eleições 2018 e que é iminente o risco de que isso se repita nas Eleições 2022; e

b) a responsabilidade por accountability, que não permite que supostas boas intenções sejam escusa para que:

b.1) o Presidente da República distorça o teor de documentos extraídos de uma investigação policial a que teve acesso; e

b.2) faça insinuações no sentido de que sucessivos Presidentes do TSE deveriam “favores” ao adversário do primeiro investigado e, por isso, teriam interesse em manter um sistema inauditável.

O primeiro investigado vocalizou acusações contra Ministros do TSE na reunião de 18/07/2022, em uma linha de continuidade com outras feitas nas lives de 2021, conforme citações literais transcritas neste voto. Eram imputações, e não opiniões.

Por isso, caso o Presidente da República soubesse de fatos que as embasassem, deveria, por dever de ofício, reportar às autoridades competentes para a apuração de ilícitos. Como não tinha respaldo fático, forjou gravíssima ofensa à honra dos magistrados, feita publicamente perante Chefes de Missões Diplomáticas, com o único propósito de provocar repúdio ao Tribunal Superior Eleitoral.

A antagonização pessoal, direta e reiterada que o então Presidente da República direcionou a Ministros Presidentes do TSE nunca foi casual. Ocorreu em uma bem formatada disputa no âmbito da normatividade de coordenação. O primeiro investigado instigou a sociedade e a comunidade internacional a não confiar no TSE (instituição), pois a gestão das eleições estaria dominada por um reduzido número de pessoas que teriam meios e interesse para adulterar resultados, direcionando votos da chapa do primeiro investigado para uma das chapas adversárias.

A fala é conspiracionista e atentatória ao livre exercício da função administrativa basilar da Justiça Eleitoral.

Em síntese, cada vez que explorava as credenciais da Presidência da República para contestar a competência e a confiabilidade do TSE por meio de ataques à integridade dos magistrados e dos servidores, o primeiro investigado contribuiu para criar um curto-circuito cognitivo frente à pergunta básica que guia a espécie humana em sua exitosa jornada na produção de conhecimento coletivo: em quem confiar?

A tese do “diálogo institucional” não se amolda aos fatos e deve, assim, ser rechaçada.

2.3.2 A falácia da defesa das “eleições limpas e transparentes”: o negacionismo irredutível frente a dados empíricos, a consensos políticos e a informações técnicas

Os investigados também sustentaram, em sua defesa, que a manifestação do ex-Presidente da República na reunião de 18/07/2022 encontra-se respaldada pela liberdade de expressão e pelas prerrogativas inerentes à posição de Chefe de Estado.

Nessa linha, apostam que uma “leitura imparcial e serena” leva a concluir que Jair Messias Bolsonaro proferiu “falas permeadas de conteúdos técnicos, que buscam debater um tema importante (transparência do processo eleitoral), dispostas ao longo de mais de 1h (uma hora) de apresentação”; “no afã de contrapor ideias e dissipar dúvidas sobre a transparência do processo eleitoral”, debate que seria “inadiável” e que estava “na ordem do dia” (ID 157977291, pp. 10, 13 e 18, passim).”

Todavia, se a confiabilidade do sistema eletrônico de votação era uma pauta fervilhante faltando menos de três meses para o pleito, em um país onde jamais se comprovou adulteração de votos desde que utilizado esse sistema, isso se deveu exclusivamente à desordem informacional que bombardeou a sociedade sobre o tema.

A apresentação de Jair Messias Bolsonaro para embaixadoras e embaixadores não estava permeada de conteúdos técnicos destinados a dissipar dúvidas. Toda a narrativa, amparada em elementos inverídicos e distorcidos, era pura e simplesmente de que o sistema não era seguro, que fraudes ocorreram em 2018 e que havia risco iminente de que se repetissem em 2022.

De fato, já se apontou que o reclame por “transparência” é uma constante nas falas do ex-Presidente sobre o tema, e foi concebido de uma forma que se mostrava inatingível. Nessa narrativa:

a) não bastou discutir o voto impresso em 2021, pois a decisão do Congresso por rejeitá-lo seria decorrente de indevida interferência do TSE;

b) não bastou que as Forças Armadas fossem convidadas para integrar a Comissão de Transparência, pois a dinâmica de funcionamento da comissão e a recusa de propostas foram traduzidas como evidência de que tudo era uma “farsa”.

c) não bastou que o TSE, por todos os meios institucionalmente possíveis, explicasse o funcionamento das urnas à sociedade, pois sempre haveria – ali, onde o conhecimento leigo é insuficiente para compreender a linguagem técnica – um fio a ser puxado para fabricar mais uma falsa alegação sobre fraudes e conluios.

Mais de um ano antes do pleito, o primeiro investigado dizia que tudo o que queria era transparência em 2022 e que havia tempo para corrigir as falhas que, afirmava, teriam permitido direcionar parte dos seus votos em 2018 para o adversário. De forma alarmista, afirmava que o Brasil teria tido uma chance “única”, porque, mal calculada a fraude, o volume de votos desviado em um imaginário “acordo com hackers” – 12 milhões de votos – não teria sido suficiente para mudar o resultado da eleição. Sustentava que o voto impresso seria o remédio para todos os males.

A PEC nº 135/2019, mesmo se aprovada, jamais seria suficiente para saciar a sede por transparência nos moldes reivindicados, porque isso envolvia a inconstitucional pretensão de afastar a ingerência do TSE na implementação de qualquer sistema. O primeiro substitutivo da PEC relegava ao TSE editar normas e adotar medidas necessárias para assegurar o sigilo do exercício do voto. Diante das críticas de outros apoiadores do voto impresso, esse texto foi removido na segunda versão. Mas evidentemente não eliminou a necessidade de o TSE desenvolver a tecnologia que tornasse a proposta operacional – mesmo sob a vigilância de um projetado “Conselho de Tecnologia Eleitoral”, que integrava a proposta.

Trecho do depoimento do Deputado Federal Filipe Barros confirma que, de fato, a atuação da autoridade eleitoral seria imprescindível para assegurar que as urnas com comprovante impresso pudessem entrar em operação. A testemunha admitiu que a Comissão Especial não se ocupou do tema (ID 158886322, pp. 79-80):

“O DOUTOR EDSON DE RESENDE DE CASTRO (membro auxiliar do Ministério Público Eleitoral): Perfeito. Na discussão da comissão... é... sobre o voto impresso... é... a comissão chegou a discutir, ainda que informalmente, né, ainda que não pra constar no texto da PEC, que talvez não fosse essa... esse o momento adequado, sobre a regulamentação, sobre a implementação, sobre como seria o voto impresso, a questão da impressora, eventual pane na impressão e como resolver isso pra... é... pra não vulnerar o sigilo do voto. Isso chegou a ser discutido com base, inclusive, na experiência que nós já tivemos no passado, né, de problemas com impressão... é ... na urna?

O SENHOR FILIPE BARROS BAPTISTA DE TOLEDO RIBEIRO (testemunha): Sim, nós debatemos muito isso, porque as preocupações que o Ministro Barroso colocava, na época como presidente do TSE, elas estavam sendo bem colocadas. Por exemplo, aquela que eu comentei mais cedo de o risco de alguém sair com a cédula ou então roubarem a urna que estaria as cédulas impressas. Então, tudo isso a gente debateu e eu me lembro que eu peguei, como referência pro meu relatório, uma portaria, uma resolução do TSE, quando foi aprovado o voto impresso, antes dele ser declarado inconstitucional, o TSE fez uma portaria e colocou essas várias hipóteses, né, se acontecer um problema na impressora, se um eleitor, por duas vezes, disser que aquilo que foi impresso não bate com aquilo que foi votado na urna eletrônica. Então, nós não chegamos, no relatório, a essas minúcias, justamente porque eu tinha o entendimento de que isso deveria ser feito pela autoridade eleitoral... né... mas a gente debateu isso muito na comissão especial, sobre essas preocupações válidas do Ministro Barroso e tentamos encontrar caminhos, foi quando, então, nós encontramos essa regulamentação do próprio TSE e foi aí, basicamente seguindo essa regulamentação, que eu fiz o meu relatório.”

Apesar de estar consciente da grande complexidade de questões operacionais do projeto, o Relator da PEC nº 135/2019 elaborou substitutivo em que previu a vigência imediata da emenda constitucional, “com suas disposições devendo ser integralmente implementadas para as eleições de 2022”.

Sem aqui tangenciar o mérito do debate legislativo, importa observar que essa regra, caso aprovada, exigiria da Justiça Eleitoral equacionar em poucos meses o planejamento e a logística, inclusive desenvolvimento de projeto e processos licitatórios, para substituir integralmente o parque de 577 mil urnas. Ou seja, considerado o contexto dos fatos em análise, é muito provável que a descomunal tarefa se tornasse mais combustível para notícias falsas voltadas para desgastar a imagem da instituição.

A testemunha Victor Hugo, que, na condição de Deputado Federal no mandato 2019-2022, havia sido líder do governo na Câmara dos Deputados, mostrou desconhecimento quanto às propostas que constaram da última versão do substitutivo apresentada por Filipe Barros.

Por exemplo, o texto previa a apuração “exclusivamente de forma manual, por meio da contagem de cada um dos registros impressos de voto, em contagem pública nas seções eleitorais”. Já Victor Hugo imaginava que essa contagem seria excepcional, tendo em vista a inviabilidade prática de contar 140 milhões de votos. A recontagem também foi prevista por Filipe Barros, sem qualquer condicionante, ao passo que a testemunha imaginava que haveria requisitos para solicitar a medida.

O ex-líder do governo não soube informar qual seria a ideia do então Presidente da República sobre essas questões. Também ignorava se havia sido discutido o que fazer em caso de falhas na impressora. Enquanto isso, o primeiro investigado, nas lives, se dispunha a negociar urnas com o Paraguai. Os aspectos ligados à implementação concreta de um novo sistema eram minimizados: a PEC previa que tudo estivesse pronto em 2022 e o primeiro investigado, Presidente de um país com eleitorado de 157 milhões de pessoas, assegurava ao público que nele confiava que a questão poderia ser resolvida em tratativas com um país que possui 4,8 milhões de eleitores.

Na compreensão da testemunha Victor Hugo, os debates da Comissão se davam “em abstrato”, e seria preciso uma lei, ou uma resolução do TSE, para tornar a proposta operacional. Essa abstração, porém, colide com o “cronograma” estimado, de implementação completa para o pleito de 2022. Confira-se trecho do depoimento em que a testemunha responde a perguntas do Ministério Público Eleitoral sobre esse tema, sem ser capaz de ir além da descrição “abstrata” do funcionamento do voto impresso defendido pelo ex-Presidente (ID 158886323, pp. 15-16):

“O SENHOR MAJOR VITOR HUGO (testemunha): O presidente em diversas oportunidades, em diversas lives, não me recordo se nessa em particular, mas eu tenho certeza que em várias lives ele falou sobre o procedimento que era defendido por nós no parlamento, inclusive nos debates, na imprensa, que era a mesma urna eletrônica que é utilizada agora, só que com uma impressora ao lado. A pessoa iria realizar, digitar o seu voto, iria apertar o confirma. Nesse momento seria impresso o voto. Ela não teria contato com o papel impresso, protegido por um aquário, não sei, como uma proteção de vidro, de acrílico, mas ela poderia conferir se o que ela votou efetivamente, se a tela batia com o papel impresso. Um nova... apertar um outro botão, cortaria o papel, ele cairia dentro de uma urna física. E havendo questionamentos ou dúvidas sobre o resultado entre aquilo que foi, que teria sido digitado e aquilo que está depois na zerésima, na zerésima não, no relatório de votos, poderia se abrir então a urna física e fazer a conferência para ver se houve algum problema entre a digitação e efetivamente o que foi impresso. Então, isso que era defendido. E eu me recordo do Presidente Bolsonaro defender isso inúmeras vezes, em momentos diferentes.

O DOUTOR EDSON DE RESENDE CASTRO (membro auxiliar do Ministério Público Eleitoral): Problemas do tipo com a impressora ali no momento do voto, né, de a impressão embolar e o voto efetivamente não sair ali daquela, da impressora e cair na urna. Coisas que nós já tivemos no passado. Isso chegou a ser conversado? Ele tinha uma ideia formada sobre como resolver essa questão sem ferir o sigilo do voto do eleitor?

O SENHOR MAJOR VITOR HUGO (testemunha): Não sei se sobre essa questão específica, né, uma possível pane na impressora, eu não me recordo do presidente ter abordado. E eu não me recordo dessa discussão também ter chegado nesse nível de detalhamento quando da votação da proposta do voto impresso, mas era uma questão semelhante se houvesse uma pane na urna, por exemplo, quando, mesmo sem impressora, quando do voto digital. Se houvesse uma pessoa digitando um número e aparecesse um outro candidato. Talvez alguém do TRE teria de ser acionado para tentar resolver. Então, nesse momento, mesmo sem impressora, talvez o sigilo do voto ficasse comprometido nesse momento. Então, mas não me lembro se essa discussão em si, essa específica, foi abordada pelo presidente em algum momento, e não me recordo dessa discussão ter sido também tomada quando da tramitação da PEC na Câmara.

 O DOUTOR EDSON DE RESENDE CASTRO (membro auxiliar do Ministério Público Eleitoral): Sim, Major, outra coisa. Com relação a esta recontagem dos votos, né. A contagem dos votos em papel, no caso de haver alguma dúvida. Havia alguma ideia de quais situações de dúvidas poderiam levar a essa contagem dos votos em papel para conferir com o voto, com o resultado eletrônico?

O SENHOR MAJOR VITOR HUGO (testemunha): Então. Quando a gente fez a discussão na Câmara do Deputados, como era num nível de proposta a emenda constitucional, era um nível muito mais, vamos dizer assim, mais abstrato. Não chegava a ser um nível operacional, talvez de uma resolução do TSE ou de uma lei, né, ou de um, não sei, de algo que pudesse ... no nível de detalhe que o Senhor está se referindo. Quando a gente estava na discussão da PEC, a gente estava falando dos parâmetros constitucionais, então a gente não mergulhava tanto. Por isso que eu não me recordo assim de quais seriam os parâmetros ou os critérios para se possibilitar um questionamento. Mas eu acho que isso na regulamentação posterior deveria ser abordado. E essa ideia também de que somente seria verificada ou aberta a urna física se houvesse a suspeita, essa era uma ideia que eu tinha na minha cabeça como algo que a direita, ou parte da direita defendia, para não se tornar algo inviável. Tinha que contar todos os votos. Imagina contar 140 milhões de votos de todas as urnas. Então, a possibilidade de se estabelecerem critérios pra aí sim possibilitar que o Judiciário deferisse a contagem de determinada urna em particular, ou critérios estatísticos. Vamos fazer estatisticamente de tantas urnas, era algo que seria discutido quando da regulamentação.

O DOUTOR EDSON DE RESENDE CASTRO (membro auxiliar do Ministério Público Eleitoral): O ex-presidente tinha essa ideia, falava alguma coisa a respeito disso, de como seria isso? Também não?

 O SENHOR MAJOR VITOR HUGO (testemunha): Não me recordo se o presidente chegou a verbalizar algo nesse sentido. Não tenho ciência se ele tinha uma ideia clara se era para recontar todos. Tipo assim, vamos ter uma... e aí faço a contagem de todos. Que também, a depender da quantidade de votos de uma determinada urna, poderia não ser tão trabalhoso, não sei. Mas não lembro se ele tinha uma ideia clara se todos seriam contados, se só um percentual estatístico a ser definido, né, um percentual para poder, a partir dali, se assegurar estatisticamente que o resultado está correto, ou se ele também tinha na cabeça dele algumas hipóteses, né, que poderiam ensejar um pedido e o Judiciário deferir a contagem.

O DOUTOR EDSON DE RESENDE CASTRO (membro do Ministério Público Eleitoral): Por último, Major. Ele tinha ideia ou comentava a respeito de como que seria uma contagem dos votos em papel, que chegassem a um resultado diferente do resultado eletrônico? Qual que seria a opção entre o resultado eletrônico e uma contagem manual, qual dos dois prevaleceria? Se tinha uma ideia, se conversavam a respeito de qual opção que seria adotada nesse caso de divergência?

O SENHOR MAJOR VITOR HUGO (testemunha): Eu não sei qual a ideia do presidente. Eu posso dizer assim que a impressão geral que eu tinha, a partir das discussões na Câmara, era que deveria prevalecer a contagem manual. Diante do fato de que ela pode ser feita e refeita várias vezes e se chegar a um número preciso. O voto estaria sendo impresso para isso, inclusive, para que... mas eu não sei se essa era a ideia do presidente. Posso dizer que a nossa visão geral era que a existência do voto impresso era para ela ser a última palavra.”

No que importa para esta ação, fica nítido a partir do que foi dito nas lives e no depoimento de Victor Hugo que, para o primeiro investigado, não era prioritário saber se a proposta do voto impresso era exequível. Tanto que nem mesmo chegou a tratar do tema com o líder do governo e membro da Comissão Especial.

Esse alheamento era um trunfo, pois, sem adentrar o debate sobre a viabilidade concreta da proposta da PEC nº 135/2019, o primeiro investigado seguia dizendo que dificuldades materiais, óbices técnicos ou riscos ao sigilo relatados pelo TSE eram provas ou indícios de um conluio contra a transparência das eleições. Ao argumento de que “democracia não tem preço”, ofereceu-se para negociar as urnas em 2021. O gesto seria repetido diante de embaixadoras e embaixadores em 2022, para argumentar que nada impedia que fossem acolhidas as propostas das Forças Armadas.

Em 10/08/2021, a PEC nº 135/2019 foi rejeitada em Plenário. Ocorre que isso, como visto, em nada afetou o discurso do então Presidente da República. Dois dias depois, em 12/08/2021, ele faria a live que foi acompanhada pelo ex-Deputado Federal Victor Hugo. Este, em juízo, destacou que o primeiro investigado estava “tratando sobre segurança, transparência, processo eleitoral e sobre a vontade do campo da direita de instituir o voto impresso, nos termos da PEC que a gente tinha tentado aprovar, mas não tinha sido possível”.

Ou seja: a PEC havia sido rejeitada e, ainda assim, o, à época, Presidente da República insistia que somente o comprovante impresso poderia prover a almejada segurança de que votos não poderiam ser desviados. E, mais, disse isso enquanto afirmava que haveria uma acordo com hackers, em 2018, para desviar 12 milhões de votos. Seguiu em sua estratégia vertiginosa, em que dizia uma coisa e depois buscava cancelar as implicações lógicas das palavras proferidas. Declarou, então: “antes que perguntem, eu não tenho provas”. Isso para, logo depois, deixar escapar: “mas alguma coisa aconteceu”.

Passados onze meses desde a rejeição do voto impresso e superado o marco temporal de um ano antes do pleito, o primeiro investigado, parlamentar experiente que chegara à Presidência da República, sabia que nenhuma proposta de alteração legislativa poderia ser implementada na data em que se reuniu com embaixadoras e embaixadores. Ainda assim, empenhava-se em manter “na ordem do dia” a discussão sobre a transparência das eleições, conduzida invariavelmente com base em alegações de fraudes inexistentes.

Faltando dois meses e meio para a eleição, disse para diplomatas o mesmo que falara nas live de 2021: que havia tempo para fazer as correções e que estava falando disso antes do pleito, pois não pretendia dar um golpe. Somente desejava transparência – é o que dizia. Em menos de uma hora de fala, em um discurso para Chefes de Missão Diplomática, o hoje ex-Presidente, por nove vezes, fez apelos relativos à transparência:

“O que eu mais quero, por ocasião das eleições, é a transparência.”

“Repito, o que nós queremos são eleições limpas, transparentes, onde o eleito realmente reflita a vontade da sua população.”

“O que nós entendemos aqui no Brasil é que, quando se fala em eleições, elas têm que ser totalmente transparentes, coisa que não aconteceu em 2018.”

“Porque, quando se fala em eleições, se vem à nossa cabeça transparência.”

“Nós queremos confiança e transparência no Sistema Eleitoral Brasileiro.”

“Nós queremos transparência. Nós queremos a democracia de verdade.”

“Agora, pessoas que devem favores a ele não querem um sistema eleitoral transparente.”

“Porque sei que os senhores todos querem a estabilidade democrática em nosso país. E ela só será conseguida com eleições transparentes, confiáveis.”

“Nosso objetivo é transparência e confiança nas eleições. Quem ganhar, o outro lado tem que se conformar, estamos a 3 meses das eleições.”

A redenção possível, na leitura do então Presidente da República, se fazia por um único caminho: as Forças Armadas, comandadas por seu “chefe supremo”. A “participação das Forças Armadas” é o que asseguraria “o contrário” de um “golpe”, termo que foi por ele próprio utilizado. Nenhuma medida extrema se faria necessária, desde que observada a condicionante que ele sugeria: estava “questionando antes porque temos tempo ainda de resolver esse problema”.

A atuação das Forças Armadas na Comissão de Transparência foi mais um ponto explorado pelo primeiro investigado na tentativa de descrédito ao TSE, durante o discurso apresentado a embaixadoras e embaixadores. Relembre-se que competência (deter o conhecimento) e benevolência (ter interesse em transmitir o conhecimento) são justamente os dois predicados relevantes para definirmos “em quem confiar”. E, no contexto, os elogios feitos ao comando de defesa cibernética militar – independentemente de, em si, serem legítimos – tinham por único propósito indicar que o corpo técnico do TSE não estava à altura de recusar sugestões feitas na Comissão de Transparência.

Jair Messias Bolsonaro comentou, no dia 18/07/2022, que o TSE iria avaliar algumas propostas depois do pleito daquele ano. Inconformado, mas sem apresentar qualquer fundamento técnico, completou essa informação com seu próprio parecer: “[t]odas as sugestões apresentadas pelas Forças Armadas podem ser cumpridas até 2 de outubro e, se tiver qualquer despesa extra, o Poder Executivo arranja recurso para tal”.

Na contestação apresentada nos autos, a defesa buscou definir o discurso do primeiro investigado a partir da simplicidade da linguagem: “promoveu exposição simples e espontânea, com os elementos disponíveis”; “expôs, às claras, sem rodeios, em linguagem simples, fácil e acessível, em rede pública, quais seriam suas dúvidas e os pontos que – ao seu sentir – teriam potencial de comprometer a lisura do processo eleitoral” (ID 157977291, pp. 18 e 21).

Porém, nada há de simples no bem elaborado jogo mental de insistir na reivindicação por transparência ao mesmo tempo em que se deslegitima dados empíricos, consensos políticos e decisões técnicas que sustentam a robustez dos mecanismos de transparência já existentes.

O negacionismo se coloca como premissa: o então Presidente da República não aceita como satisfatório nenhum método de auditoria existente; não aceita que a rejeição da PEC nº 135/2019 tenha sido legítima; e não aceita que possam existir boas razões técnicas para o TSE recusar e diferir a análise de parte das propostas apresentadas pelas Forças Armadas. O discurso de 18/07/2022 não apresenta nenhuma saída para a audiência: as eleições caminhariam fatalmente para a frustração dos desejos do Chefe do Executivo de que o Brasil pudesse ter eleições transparentes em 2022.

Vê-se que não está em escrutínio a posição política do primeiro investigado a favor do voto impresso, ou mesmo a qualidade técnica das sugestões feitas na Comissão de Transparência.

Avalia-se a prática discursiva, que tratou contrariedades ao querer do ex-Presidente da República como verdadeiras derrotas da democracia e creditou essas derrotas a uma fantasiosa conspiração orientada a impedir que as urnas fossem auditáveis.

Avalia-se o estímulo a pensamentos intrusivos que disseminaram angústia, preocupação e a percepção de que a democracia estaria em risco por culpa do TSE.

Avaliam-se, ainda, os efeitos pragmáticos, sobre o processo eleitoral, de se verbalizar a contínua frustração de um desejo por transparência, e que contém, em si, a negação de uma verdade factual, qual seja: dispomos de um sistema de votação seguro, transparente e que tem entregado, consistentemente, resultados autênticos e ágeis.

É uma tautologia dizer que sistemas informatizados podem evoluir. Ocorre que o primeiro investigado não apresentou às embaixadoras e aos embaixadores nenhuma proposta de melhoria de sistemas.

O que fez foi dizer que as Forças Armadas tinham soluções que poderiam impedir que fraudes se repetissem. Defendeu o voto impresso e lamentou que o STF tivesse declarado inconstitucionais leis que encampavam a proposta. Despejou especulações atrozes sobre tópicos técnicos, sem compromisso com a verdade factual, em ritmo vertiginoso.

Discutir melhorias sobre o sistema de votação brasileiro não é apenas, como se colhe do depoimento do ex-Ministro das Relações Exteriores, uma proposta inusitada para uma reunião do Presidente da República com diplomatas estrangeiros. É uma versão que não se reflete nas palavras, na atitude e no momento escolhidos pelo primeiro investigado. O clamor obstinado por transparência evidencia que não havia como demover o então Presidente da República do propósito de esgrimir contra elementos racionais – dados empíricos, consensos políticos ou decisões técnicas – e de elevar a tensão institucional.

Não houve, portanto, comportamento orientado pelo suposto desejo por “eleições limpas e transparentes”.

É o primeiro investigado quem constrói a narrativa imaginária da fraude. Não importa que em seguida busque se desvencilhar dela, como se espanasse poeira dos próprios ombros. O pensamento intrusivo é acionado reiteradas vezes: o anseio vigoroso por transparência no pleito de 2022 somente faz sentido em um contexto em que, alegadamente, a transparência não existe. Simplesmente, seres humanos não usam de linguagem veemente para expressar desejos acerca daquilo que já consideram realidade.

2.3.3 A falácia da aceitação pacífica dos resultados: a normalização da premissa conspiracionista e o flerte com o golpisimo

A linha narrativa da defesa busca convencer que a energia empregada pelo primeiro investigado para contestar a atuação da Justiça Eleitoral sempre se guiou por um desejo sincero de melhorias do sistema. Segundo essa versão, Jair Messias Bolsonaro, ao dizer que tudo o que queria era uma eleição na qual o ganhador fosse realmente o mais votado, expressava um sentimento genuíno. As dúvidas que o atormentariam não poderiam ser tomadas por “hostilidade antidemocrática ao sistema eleitoral”.

Já se discorreu sobre a dinâmica dos pensamentos intrusivos e, mais especificamente, sobre o modo como o apelo por transparência se destinava a incutir o sentimento de que algo precisaria ser feito para evitar a manipulação de votos em 2022. A análise pragmática da íntegra do discurso de 18/07/2022 impede que fragmentos pretensamente ingênuos da fala possam apagar os sentidos gerais, comunicados a todas e todos que assistiram à apresentação.

A questão central posta neste feito não é decifrar a motivação íntima que moveu o primeiro investigado para marcar a reunião com os Chefes de Missão Diplomática e para proferir o discurso que proferiu. A discussão está no âmbito da accountability, exigindo que se avalie objetivamente o comportamento do primeiro investigado ao planejar e realizar o evento.

Havia expectativas coletivas legítimas em torno da conduta do então Presidente da República candidato à reeleição. Por isso, não se pode ter por premissa que juntou palavras ao acaso, sem compromisso real com a mensagem que estava comunicando. Não há como tratá-lo como alguém que não teria domínio sobre os efeitos do seu ato discursivo.

Sempre que dizia estar disposto a aceitar o resultado das eleições, o primeiro investigado utilizava uma condicionante: se as eleições fossem limpas. Afirmava isso à exaustão, impregnando o debate público com a mensagem implícita de que, inversamente, não estaria obrigado a aceitar resultados em caso de fraude eleitoral. Conforme se acostumou a dizer, preferia jogar “dentro das quatro linhas”, mas não recusava que pudesse ser levado a usar as armas “do outro lado”, sempre em uma suposta defesa da democracia.

No ano anterior, esse mote foi repetido diversas vezes, até mesmo com a promessa de um telefonema para eventual adversário que fosse vitorioso: “[s]e eu disputar as eleições e perder, eu quero ligar pra seja quem for [...], se eu puder colaborar, tô à disposição”, disse o primeiro investigado, em live transmitida pela Jovem Pan, no programa Pingos Nos Is, em 04/08/2021. Havia sempre um “porém”. Na passagem citada, ele foi apresentado da seguinte forma: “[a]gora, deixo bem claro: esse hacker ficou lá vários meses, dentro do TSE. Ele pode ter adulterado, sim, números. Como, no futuro, em 22, pode acontecer fraude também” (ID 158764865, p. 13).

É fato notório que o prometido telefonema do primeiro investigado ao candidato vitorioso nas Eleições 2022 jamais se concretizou. Seu primeiro pronunciamento público após o segundo turno ocorreu no dia 01/11/2022, durou aproximadamente um minuto e não contemplou a aceitação dos resultados, ou o cumprimento ao vencedor.

Em lugar disso, o primeiro investigado disse que “[o]s atuais movimentos populares são fruto de indignação e sentimento de injustiça de como se deu o processo eleitoral”. Ele se referia aos bloqueios nas estradas. Disse, ainda: “sempre fui rotulado como antidemocrático e, ao contrário dos meus acusadores, sempre joguei dentro das quatro linhas da Constituição”. A íntegra foi transmitida pela TV Brasil (https://www.youtube.com/watch?v=V9tg5Tus7hE).

Não houve, portanto, sequer um aceno no sentido de que dava por concluído, de forma legítima, o processo eleitoral. O silêncio sobre a aceitação dos resultados soma-se às insinuações sobre irregularidades no pleito e, ainda, à narrativa de perseguição. Ou seja, divulgados os resultados eleitorais, não houve distensionamento. O primeiro investigado optou por manter mobilizada sua base política por meio da mesma prática discursiva que empregou ao longo da campanha.

No depoimento que prestou em juízo, Anderson Torres, por algumas vezes, afirmou que, nas poucas conversas que teve com o primeiro investigado após a derrota, este se mostrava decepcionado, mas plenamente disposto a aceitar o resultado e seguir adiante. Confira-se trecho (ID 158886324, pp. 55-56):

“O DOUTOR RODRIGO LOPEZ ZILIO (membro auxiliar do Ministério Público Eleitoral): Certo. E, para encerrar, eu sei que existe, evidentemente, uma relação hierárquica, entre o presidente da República e o ministro da Justiça, mas eu queria que... se o Senhor puder afirmar, se houve alguma conversa sua com o então presidente da República sobre... Primeiro, sobre a pertinência do conteúdo dessas lives, especificamente, no sentido das críticas que ele fazia ao sistema eleitoral; e também se houve uma mesma conversa, nesses mesmos termos, sobre a necessidade de aceitação das regras do jogo e do resultado eleitoral. Conversa entre o Senhor e ele desses três temas.

O SENHOR ANDERSON GUSTAVO TORRES (testemunha): Nós não conversamos especificamente sobre isso, Doutor. Mas eu, como eu disse ao Senhor, eu vi essa manifestação dele, num podcast, antes da eleição, dizendo que não teria problema nenhum, com o resultado da eleição. E confesso ao Senhor que, depois da eleição, na visita que eu fiz a ele, eu vi que realmente ele... ele... ele não teria problemas com o resultado da eleição; ele estava triste, chateado; gostaria de ter ganhado a eleição, mas não ganhou a eleição. Não teria qualquer desdobramento, em relação a isso. Eleição acabou, eleição acabou, fim de papo.”

O problema é que, se houve alguma manifestação explícita e incondicionada do primeiro investigado em favor da aceitação concreta dos resultados divulgados, isso não veio a público. Perante a sociedade brasileira, a promessa de aceitação pacífica dos resultados – a envolver algum respeito a símbolos democráticos, fosse um telefonema, um discurso ou a participação em solenidade oficial – nunca se concretizou.

De outra forma não poderia ser. Afinal, o primeiro investigado tinha cultivado publicamente uma ideia fixa, difundida de forma contundente na reunião de 18/07/2022, de que havia uma conspiração para eleger seu adversário e que os supostos conspiradores dispunham de meios para manipular resultados eleitorais.

O primeiro investigado não colocava essa ideia no plano das hipóteses – ou seja, algo que tivesse que ser testado diante de fatos e argumentos técnicos. Sua prática discursiva foi traçada, desde muito tempo, para indicar que sua derrota nas urnas seria a prova cabal de que os resultados foram adulterados. A manipulação de votos sempre foi tratada como uma premissa absoluta; como a explicação única que conferia sentido à narrativa persecutória do então Presidente.

Jair Bolsonaro não havia ganhado em primeiro turno o pleito de 2018. A PEC nº 135/2019, que propunha o voto impresso, foi rejeitada. As condenações contra Lula, seu iminente adversário, foram anuladas no STF. Uma investigação foi instaurada para apurar se o então Presidente da República havia divulgado um inquérito policial sigiloso. Sugestões das Forças Armadas à Comissão de Transparência não foram aceitas em sua totalidade. O TSE se abriu às missões de observação internacional.

Tudo isso foi alinhavado por Jair Messias Bolsonaro, na reunião de 18/07/2022, com a sua pessoal convicção de que as urnas foram manipuladas em 2018 para buscar impedir que ele fosse eleito. A conspiração não teria tido êxito, por sorte, mas agora era necessário agir para impedir uma nova tentativa de fraude em 2022.

Nenhuma alternativa foi oferecida na narrativa. A prática discursiva do primeiro investigado foi traçada para indicar que sua derrota nas urnas seria a prova cabal de que os resultados foram adulterados.

A mensagem se valeu de sentidos implícitos, que podem ser facilmente decodificados no contexto do discurso. Como exemplo, releia-se o seguinte trecho, que parte da percepção pessoal de Jair Bolsonaro quanto à sua popularidade, salta para afirmar que pessoas que “devem favores” a seu adversário “não querem um sistema eleitoral transparente” e, por fim, insinua que a comunidade internacional não deveria dar ouvidos ao que diz o TSE sobre a confiabilidade dos resultados:

“Como os senhores viram no começo aqui, em vídeos passando meus, eu ando o Brasil todo. Sou muito bem recebido em qualquer lugar. Ando no meio do povo. O outro lado não. Sequer toma café ou almoça no restaurante do hotel. Come no seu quarto. Porque não tem aceitação. Agora, pessoas que devem favores a ele não querem um sistema eleitoral transparente. Pregam o tempo todo que imediatamente após anunciar o resultado das eleições, os respectivos chefes de estado dos senhores devem reconhecer imediatamente o resultado das eleições.

Há outros momentos da fala em que os contornos são ainda mais explícitos. Em um deles, o então Chefe de Estado coloca as Eleições 2022 “sob o manto da desconfiança”, tendo por base a falsa afirmação de que o TSE admitiu a possibilidade de manipulação de resultados em 2018. Desse ponto de partida, condiciona a legitimidade do pleito à sua pessoal “certeza” de que votos sejam destinados corretamente – algo que, na dimensão psíquica do primeiro investigado, era impossível, já que nenhuma explicação técnica é por ele aceita como suficiente. Suas palavras são as seguintes:

“A desconfiança do sistema eleitoral tem se avolumado. Nós não podemos enfrentar umas eleições sob o manto da desconfiança. Nós queremos ter a certeza de quem eleitor para quem o eleitor votou, o voto vai exatamente para aquela pessoa. O próprio TSE diz que em 2018 números podem ter sido alterados.”

A fala dirigida à comunidade internacional e ao público das redes sociais em 18/07/2022 anunciava que, apesar dos esforços do então Presidente da República e de seu grupo político, a fraude era uma rota quase inevitável traçada para o pleito de 2022. Impressiona a naturalidade com que informações falsas sobre o sistema eletrônico de votação, desprovidas de qualquer lastro, foram reverberadas na ocasião, juntamente com comentários insidiosos sobre Ministros do TSE.

O discurso está embebido em conspiracionismo, mas não só. Trata-se de um conspiracionismo já banalizado, assumido como trivial. A reunião de 18/07/2022 mostrou ao mundo um Presidente da República que transformou em algo corriqueiro afirmar que o sistema eleitoral de seu país foi fraudado, e que dirigentes do órgão de governança eleitoral tinham interesse em que a fraude se mantivesse possível, para beneficiar algum candidato de preferência. É espantoso.

O mesmo Presidente da República, um ano antes, havia afirmado que hackers foram contratados para desviar 12 milhões de votos e depois denunciaram o fato porque não foram pagos pelo “outro lado”. Uma fantasia que foi sendo escrita em transmissões ao vivo, à medida que o primeiro investigado imaginava novas manobras que seriam destinadas a manter a manipulação de resultados e as atribuía ao TSE.

Em 2022, os contornos da narrativa se tornam mais dramáticos e Chefes de Missões Diplomáticas são desencorajados a trazer missões de observação eleitoral para o Brasil, pois somente serviriam para encobrir uma farsa. Farsa esta que, no dizer do maior mandatário eleito do país, que se via mais como um comandante militar, não contaria com a conivência das Forças Armadas.

O discurso ativou sentimentos negativos, de que a democracia está em risco por conta de um sistema corruptível e de que era preciso fazer algo para impedir que o pior ocorresse. Em nenhum momento foi seriamente cogitada a alternativa de o primeiro investigado ser derrotado no voto democrático. Medidas extremas começaram a se tornar palatáveis, porque seriam justificadas ante a iminência de uma perda irreversível dos valores da pátria.

São gatilhos que, infelizmente, trazem à memória Golpes de Estado, tais como o que mergulhou o Brasil no autoritarismo.

Com efeito, um Golpe de Estado não se anuncia como tal. Seus perpetradores buscam convencer a sociedade da legitimidade da tomada ou conservação do poder, à margem de regras pré-estipuladas. Hans Kelsen, no ponto, enfatizava a importância de que esse convencimento se dê no plano internacional.

No século XIX, a ideia de golpe de Estado foi compreendida como “atentado às leis e à Constituição”, uma ruptura da ordem jurídica para tomada ou conservação do poder. No século XX, acresce-se mais uma camada de análise ao fenômeno: os golpes passam a ser pensados como técnica. Assim, em dadas circunstâncias, sujeitos motivados a tomar o poder engendram uma atuação tática para se aproveitar de uma fragilidade do sistema, algo que tem tido mais importância que uma concepção amadurecida de estratégia política (BIGNOTTO, Newton. Golpe de Estado: história de uma ideia. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021, p. 34).

Congregando todos esses sentidos, a última justificativa adotada para a decretação do AI-5 foi a de que “fatos perturbadores da ordem são contrários aos ideais e à consolidação do Movimento de março de 1964, obrigando os que por ele se responsabilizaram e juraram defendê-lo, a adotarem as providências necessárias, que evitem sua destruição”. Estão presentes todos os elementos de suporte de um governo autoritário: pretensão de legitimidade, imposição de uma ordem interna, acontecimento fundador e tática de tomada e manutenção do poder.

O discurso de 18/07/2022 foi um flerte perigoso com o golpismo. Em pleno regime democrático, um Presidente eleito tornou hábito advertir à sociedade que, se até o momento, estava “dentro das quatro linhas da Constituição”, talvez, em algum ponto, fosse obrigado a sair delas, para defender uma certa noção de democracia pela qual a nação ansiaria. A perturbação a ser enfrentada seria oriunda da Justiça Eleitoral, que, segundo o primeiro investigado, se mostraria negligente e conivente com a manipulação de votos e outras formas de fraude.

Nesse cenário temerariamente descrito pelo então Chefe de Estado, as Forças Armadas estariam tentando vencer a batalha técnica contra o TSE. O tribunal seguiria relutante em incorporar melhorias que, conforme relatado às embaixadoras e aos embaixadores, poderiam debelar a fraude. Em todo caso, foram advertidos para não permitir que missões de observação internacional fossem utilizadas para chancelar uma “farsa” – na prática, qualquer resultado que não desse ao primeiro investigado larguíssima vitória no primeiro turno.

Foi juntada, aos presentes autos, cópia da minuta de decreto de estado de defesa apreendida em 12/01/2023, pela Polícia Federal, na residência de Anderson Torres – ex-Ministro da Justiça e Segurança Pública do governo de Jair Bolsonaro – durante diligência determinada pelo Min. Alexandre de Moraes no âmbito do Inquérito nº 4879, que tramita no STF. A minuta encontrava-se dentro de uma “pasta preta, com brasão da república e os dizeres: ‘Ministério da Justiça/Gabinete do Ministro’” (ID 158839056, p. 6).

O texto, redigido em rigorosa conformidade com a técnica legislativa, trata de um “Estado de Defesa [...] com vistas a restabelecer a ordem e a paz institucional, a ser aplicado no âmbito no Tribunal Superior Eleitoral”, “com o objetivo de garantir a preservação ou o pronto restabelecimento da lisura e correção do processo eleitoral presidencial do ano de 2022”. Transcrevo a íntegra do documento (ID 158571842, pp. 6-8):

“DECRETO Nº         DE         DE 2022

Decreta Estado de Defesa, previsto nos arts. 136, 140 e 141 da Constituição Federal, com vistas a restabelecer a ordem e a paz institucional, a ser aplicado no âmbito no Tribunal Superior Eleitoral, para apuração de suspeição, abuso de poder e medidas inconstitucionais e ilegais levadas a efeito pela Presidência e membros do Tribunal, verificados através de fatos ocorridos antes, durante e após o processo eleitoral presidencial de 2022.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso das suas atribuições que lhe conferem os artigos 84, inciso IX, 136, 140 e 141 da Constituição,

DECRETA:

Art. 1º Fica decretado, com fundamento nos arts. 136, 140, 141 e 84, inciso IX, na Constituição Federal, o Estado de Defesa na sede do Tribunal Superior Eleitoral, em Brasília, Distrito Federal, com o objetivo de garantir a preservação ou o pronto restabelecimento da lisura e correção do processo eleitoral presidencial do ano de 2022, no que pertine à sua conformidade e legalidade, as quais, uma vez descumpridas ou não observadas, representam grave ameaça à ordem pública e a paz social.

§1º. Fica estipulado o prazo de 30 (trinta) dias para cumprimento da ordem estabelecida no caput, a partir da data de publicação desse Decreto, podendo ser prorrogado uma única vez, por igual período.

§2º. Entende-se como sede do Tribunal Superior Eleitoral todas as dependências onde houve tramitação de documentos, petições e decisões acerca do processo eleitoral presidencial de 2022, bem como o tratamento de dados telemáticos específicos de registro, contabilização e apuração dos votos coletados por urnas eletrônicas em todas as zonas e seções disponibilizadas em território nacional e no exterior.

§3º Verificada a existência de indícios materiais que interfiram no objetivo previsto no caput do art. 1º a medida poderá ser estendida às sedes dos Tribunais Regionais Eleitorais.

Art. 2° Na vigência do Estado de Defesa ficam suspensos os seguintes direitos:

I - sigilo de correspondência e de comunicação telemática e telefônica dos membros do Tribunal do Superior Eleitoral, durante o período que compreende o processo eleitoral até a diplomação do presidente e vice-presidente eleitos, ocorrida no dia 12.12.2022.

II - de acesso às dependências do Tribunal Superior Eleitoral e demais unidades, em caso de necessidade, conforme previsão contida no §3° do art. 1°,

§1°. Durante o Estado de Defesa, o acesso às dependências do Tribunal Superior Eleitoral será regulamentado por ato do Presidente da Comissão de Regularidade Eleitoral, assim como a convocação de servidores públicos e colaboradores que possam contribuir com conhecimento técnico.

Art. 3° Na vigência do Estado de Defesa:

I - Qualquer decisão judicial direcionada a impedir ou retardar os trabalhos da Comissão de Regularidade Eleitoral terá seus efeitos suspensos até a finalização do prazo estipulado no §1°, art. 1°,

II - a prisão por crime contra o Estado, determinada pelo executor da medida, será por este comunicada imediatamente ao juiz competente, que poderá promover o relaxamento, em caso de comprovada ilegalidade, facultado ao preso o requerimento de exame de corpo de delito à autoridade policial competente;

III - a comunicação será acompanhada de declaração, pela autoridade, do estado físico e mental do detido no momento de sua autuação;

IV - a prisão ou detenção de qualquer pessoa não poderá ser superior a dez dias, salvo quando autorizada pelo Poder Judiciário;

V - é vedada a incomunicabilidade do preso.

Parágrafo único. O Presidente da Comissão de Regularidade Eleitoral constituir-se-á como executor da medida prevista no inciso l, do §3° do art. 136, da Constituição Federal.

Art. 4° A apuração da conformidade e legalidade do processo eleitoral será conduzida pela Comissão de Regularidade Eleitoral a ser constituída após a publicação deste Decreto, que apresentará relatório final consolidado conclusivo acerca do objetivo previsto no caput do art. 1°.

Art. 5° A Comissão de Regularidade Eleitoral será composta por:

1 - 08 (oito) membros do Ministério da Defesa, incluindo a Presidência;

II - 02 (dois) membros do Ministério Público Federal;

II - 02 (dois) membros da Polícia Federal, ocupantes do cargo de Perito Criminal Federal;

IV - 01 (um) membro do Senado Federal;

V - 01(um) membro da Câmara dos Deputados;

VI - 01(um) membro do Tribunal de Contas da União;

VII - 01 (um) membro da Advocacia Geral da União; e,

VIII - 01 (um) membro da Controladoria Geral da União.

Parágrafo único. À exceção das autoridades constantes do inciso I, cuja indicação caberá ao Ministro da Defesa, as indicações dos membros dos órgãos e instituições que integrarão a Comissão de Regularidade Eleitoral deverão ser feitas em até 24 (vinte e quatro) horas após a publicação deste Decreto no Diário Oficial da União, devendo as designações serem formalizadas em ato do Presidente da Comissão de Regularidade Eleitoral.

Art. 6°. Serão convidados a participar do processo de análise do objeto deste Decreto, quando da apresentação do relatório final consolidado, as seguintes entidades:

I - 01 (um) integrante da Ordem dos Advogados do Brasil

II - 01 (um) representante da Organização das Nações Unidas no Brasil

III - 01 (um) representante da Organização dos Estados Americanos no Brasil

(Avaliar a pertinência da manutenção deste dispositivo na proposta)

Art. 7°. O relatório consolidado final será apresentado ao Presidente da República e aos Presidentes do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, e deverá conter, obrigatoriamente:

I - apresentação do objeto em apuração

II - a metodologia utilizada nos trabalhos

III - as contribuições técnicas recebidas

IV - as eventuais manifestações dos membros componentes

V - as medidas aplicadas durante o Estado de Defesa, com as devidas justificativas

VI - o material probatório analisado

VII - a relação nominal de eventuais envolvidos e os desvios de conduta ou atos criminosos verificados, de forma individualizada.

Parágrafo único. A íntegra do relatório final consolidado será publicada no Diário Oficial da União.

Art. 8° Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.

 

Brasília, de    de     2022

201° ano da Independência

134° ano da República

 

Jair Messias Bolsonaro”

(Destaques no original.)

Conforme se sabe, a juntada do documento sofreu forte objeção por parte dos investigados.

Argumentaram, em síntese, que a minuta é apócrifa e “não identifica efetiva intenção e realidade/materialidade de seu conteúdo”, razão pela qual não pode ser admitida como prova. Apontaram que um laudo pericial demonstrou que o papel “jamais foi sequer tocado pelo primeiro investigado” e que as digitais detectadas demonstram que houve “contaminação” do material e “quebra da cadeia de custódia da prova”, tornando-o nulo para todos os fins. Salientaram também que não há notícia “de qualquer ato praticado no contexto da realidade fenomênica para [a] consecução” do estado de defesa, como a necessária oitiva prévia do Conselho da República do Conselho de Defesa Nacional.

Quanto aos pontos suscitados, os investigados têm parcial razão. Isso porque não consta dos autos evidência de que Jair Messias Bolsonaro tenha tocado no documento. A perícia papiloscópica examinou 11 fragmentos de digitais existentes na minuta e conseguiu identificar duas pessoas que constavam “em lista [...] como ‘exclusão de buscas’” – ou seja, são achados irrelevantes, por se tratar de pessoas que sabidamente tiveram contato com o papel durante a diligência de apreensão (ID 158839056, p. 18).

Tampouco é possível concluir, no atual estágio de investigações, que o primeiro investigado tenha tido conhecimento da minuta. Por fim, não consta dos autos indício de que o então Presidente da República tenha disparado o procedimento constitucional para decretar estado de defesa, como a convocação do Conselho da República ou do Conselho de Defesa Nacional.

Ocorre que isso não é suficiente para descartar por inteiro a pertinência da minuta em comento ao feito presente.

Em primeiro lugar, cabe rememorar que não constitui objeto da presente ação apurar a autoria da minuta e sua repercussão criminal, tampouco investigar a orquestração concreta de um golpe de estado.

Conforme foi afirmado desde o momento em que se admitiu a juntada do documento aos autos, era lícito ao autor argumentar que a minuta pudesse evidenciar as alegadas repercussões da reunião de 18/07/2022. A correlação entre os fatos se dá a partir da prática discursiva. Sob esse ângulo, é evidente que a minuta materializou, em texto formalmente técnico, uma saída para o caso de surgirem indícios de fraude eleitoral em 2022. Isso em contexto no qual a hipótese de fraude era tratada como equivalente à derrota do candidato à reeleição presidencial.

Em segundo lugar, ao testemunhar em juízo, Anderson Gustavo Torres reconheceu que manuseou e leu parcialmente a minuta, em sua residência.

Esse fato não é sem relevância, pois atesta tanto a existência do documento, na forma como tornada pública e juntada aos autos, quanto o fato de que o ex-Ministro da Justiça do governo do primeiro investigado teve acesso à proposta. Apócrifa que seja, ela tratava da criação de uma “Comissão de Regularidade Eleitoral”, presidida por representante do Ministério da Defesa, que teria poder de avaliar “a conformidade e a legalidade” do “processo eleitoral presidencial do ano de 2022”.

Em terceiro lugar, para os fins desta ação e à luz dos elementos coletados nestes autos, o que mais impressiona no episódio é que a minuta tenha sido tratada como algo banal pelo então titular do Ministério da Justiça.

O texto não provocou qualquer assombro em Anderson Torres. Não lhe inspirou, de imediato, contactar o então Presidente da República ou adotar qualquer outra providência para apurar o ocorrido. Supondo-se que seja verídica sua versão de que o documento foi colocado por assessores na pasta que levou para casa, é incompreensível que não tenha buscado esclarecer com sua equipe a origem da minuta.

É pertinente lembrar que, em juízo, Anderson Torres foi informado de que teria direito a não responder às indagações que pudessem levar à sua autoincriminação. Poderia, assim, ter silenciado sobre a minuta apreendida em sua residência, por se tratar de fato em razão do qual está sendo investigado (ID 158886324, p. 34). A testemunha, porém, não deixou de responder a qualquer pergunta, e acabou descrevendo uma cena de bastidores bastante sintomática de um processo eleitoral atravessado pelo flerte com o golpismo. Vejamos.

A minuta do decreto de estado de defesa tratava-se de um texto preparado para dar forma jurídica a uma violenta intervenção no TSE, que poderia culminar na invalidação das eleições presidenciais. Sob pretexto de apurar “abuso de poder e suspeição” por parte da “Presidência e de membros do tribunal”, cogitou-se criar um órgão de exceção, formado quase majoritariamente por militares, que seria responsável por dizer se o TSE agiu ou não de modo conforme e legal nas eleições presidenciais.

Segundo depôs Anderson Torres, alguém teria feito a minuta chegar às suas mãos, furtivamente. O primeiro aspecto espantoso é que o então Ministro da Justiça não se sobressaltou com o fato de um documento dessa ordem surgir entre os papéis trazidos do Ministério. Sem curiosidade, e despreocupado, contentou-se em não saber exatamente quem teria apresentado a minuta de estado de defesa em seu gabinete. Transcrevo trecho do depoimento a esse respeito (ID 158886324, pp. 35-36):

“SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): [...] O Senhor já declarou, na Polícia Federal, que a minuta foi entregue ao Senhor, por pessoa da qual não se recorda, no seu gabinete, no Ministério da Justiça. O Senhor confirma essa declaração?

O SENHOR ANDERSON GUSTAVO TORRES (testemunha): Exatamente, Excelência. Eu levava todos os dias duas ou três pastas para casa, com documentos, em razão da sobrecarga de trabalho. Muitas vezes, a residência da gente vira uma extensão do trabalho. E lá, muitas vezes até deitado já, eu analisava ali o que era importante, o que não era importante, o que era documento... às vezes, eu despachava até à mão o que tinha que voltar para o Ministério; o que era descartável, eu já ia colocando ao lado. E foi dessa maneira que isso foi... que isso chegou até mim, que eu tive ciência dessa pseudominuta de decreto.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Nesse tempo, nesse meio tempo, o Senhor se recorda de algum elemento que possa auxiliar a identificar a pessoa que teria entregado essa minuta?

O SENHOR ANDERSON GUSTAVO TORRES (testemunha): Excelência, não... Não me recordo, porque chegavam muitos documentos ao gabinete. Essa pasta... inclusive, a servidora que foi ouvida também, também não se recorda. [...]

[...]

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Tá. Na época que esse documento chegou às suas mãos, ou na sua mesa, no Ministério da Justiça, o Senhor se recorda de alguma circunstância... por exemplo, se tinha mais pessoas presentes, se se tratava de uma reunião que estava na agenda, algo nesse sentido? O Senhor lembra como chegou isso na sua mesa?

O SENHOR ANDERSON GUSTAVO TORRES (testemunha): Não lembro, Excelência. Acredito que isso não chegou à minha mesa; não sei se isso chegou à minha mesa. Isso veio pela minha pasta de documentos, mas eu não me lembro de ter lido isso, de ter visto isso no Ministério da Justiça.”

O que fez, então, o Ministro da Justiça, foi deixar de lado a minuta. Não concluiu a leitura das três páginas que tinha diante de si. Não voltou depois a atentar para o destino dos papéis. Na audiência, qualificou seu teor como “folclórico”, “lixo” e “absurdo”. Mas fato é que o documento foi encontrar abrigo embaixo de um porta-retrato do casal. Na audiência, Anderson Torres ainda disse que “isso [o texto da minuta] andou aí pela esplanada” (ID 158886324, pp. 35-38):

“O SENHOR ANDERSON GUSTAVO TORRES (testemunha): [...] Então, enfim, não me recordo e não tive como tentar ver. Eu, na verdade, para te ser bem sincero, eu nem me recordava dessa minuta. Isso foi colocado para descarte ali. E, por alguma questão doméstica, foi colocado embaixo de um... na frente... assim, embaixo de um porta retrato ali nosso, meu e da minha esposa... e, enfim, eu digo ao Senhor que não teve a menor importância. O texto é um texto folclórico, sem a menor viabilidade jurídica. Eu li, enfim... imediatamente, eu coloquei para ser descartado. Isso não tem a menor condições de... Enfim, é tudo uma loucura o que está escrito nessa... nessa pseudominuta.

[...]

Eu fui ver isso, como eu disse ao Senhor, à noite, ali na minha casa. Quando eu comecei a ler... que tirei do envelope e que comecei a ler e que vi o absurdo, imediatamente voltei e já coloquei para descarte imediato uma coisa sem pé nem cabeça. Como eu disse ao Senhor, o texto é folclórico, né? É uma aberração o que está escrito ali naquele texto.

[...]

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Tá. E, na ocasião, o Senhor chegou... lembra de ter tratado com alguém, a respeito do teor desse documento, embora absurdo?

O SENHOR ANDERSON GUSTAVO TORRES (testemunha): Negativo. Como eu disse ao Senhor, esse documento não saiu do meu quarto; esse documento não saiu do meu quarto, né? E, enfim, não tratei com ninguém, não levei isso ao conhecimento do presidente, não levei isso ao conhecimento de absolutamente ninguém. O que eu vi aqui, já preso aqui, o que eu tive conhecimento, pela televisão, é que, enfim, parece que parlamentares, outras pessoas, receberam a mesma minuta, ou minutas, contendo isso. Parece que isso... enfim, não sei se foi distribuído, não sei... não sei. Isso andou aí pela esplanada, e a notícia que eu tive, a respeito disso foi exatamente essa. Agora, volto a dizer ao Senhor: não determinei, não fiz, não mandei fazer. Jamais, como eu disse, eu sempre falo: eu não... Se o Senhor me permite um minuto, Excelência, eu nunca questionei o resultado da eleição. [...]

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Tá. Eu vou fazer uma pergunta ao Senhor... o Senhor já declarou a esse respeito, mas para deixar bem claro, né? O Senhor já declarou na Polícia Federal que a minuta seria descartada, por não ter viabilidade jurídica. O Senhor confirma essa declaração? Pode dizer quais elementos que o levaram a essa conclusão?

O SENHOR ANDERSON GUSTAVO TORRES (testemunha): Na verdade, Excelência, eu... Como eu disse ao Senhor, eu nem lembrava dessa minuta. Eu comecei a ler... [...] Eu não li a minuta inteira, quando eu... nesse dia. Quando eu comecei a ler isso, com sono, à noite... quando eu vi o absurdo que era, eu voltei isso para dentro do papel e não li a minuta. Isso é uma coisa descarte, isso é lixo. Essa minuta é um lixo; de imediato, ela é um lixo. Então, eu não tenho detalhes para dizer ao Senhor de como é que é a viabilidade jurídica, porque ela era um lixo. Decretar estado de defesa, no âmbito do TSE! Coisas... aberrações jurídicas que estavam escritas ali. O que eu li ali, o que eu comecei a ler, eu falei: meu Deus! Nós já em plena transição, já no final da transição, já com a cabeça em outro local, já saindo dali, não tinha que se discutir isso. [...]”

A testemunha explicou que não tomou nenhuma providência sobre a minuta de decreto de estado de defesa – fosse para apurar sua origem, fosse para noticiar ao então Presidente da República ou a outras autoridades que a havia recebido – porque o tema não seria da alçada do Ministério da Justiça. Mais um aspecto que causa perplexidade: o, à época, Ministro da Justiça igualou uma proposta golpista, que foi trazida por alguém com acesso a seu gabinete, a anotações inúteis a serem descartadas ao final do governo (ID 158886324, p. 38):

“O SENHOR ANDERSON GUSTAVO TORRES (testemunha): Isso, como eu disse ao Senhor, primeiro, esse assunto não é assunto do Ministério da Justiça. Eu jamais levaria um documento desse ao presidente da República, eu jamais atropelaria e jamais teria uma atitude dessa. Então, da minha parte, infelizmente, eu não consegui... isso saiu ali... por alguma questão doméstica, isso saiu da minha área de atuação e foi para essa... embaixo desse porta-retratos, e eu realmente não joguei isso no lixo, no final do ano, como deveria... como joguei documentos que não tinham valor para o nosso trabalho, para o Ministério, enfim, para o país.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Tá. O Senhor disse aí que jamais levaria ao presidente. O Senhor não tratou desse assunto com o presidente, o ex-presidente, ou mesmo com o Ministro da Casa Civil?

O SENHOR ANDERSON GUSTAVO TORRES (testemunha): Zero.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Nem comunicando que recebeu um documento apócrifo? Nada?

O SENHOR ANDERSON GUSTAVO TORRES (testemunha): Não. Como eu disse ao Senhor, foram poucas vezes que nós tivemos com o presidente da República, após a eleição. Foram poucas vezes que nós estivemos com ele. E eu jamais levei isso a ele, jamais levei um assunto desses a ele, até porque isso, como volto a dizer ao Senhor, isso não é da minha alçada, isso não é atribuição, esse tipo de assunto, se eventualmente fosse tratado, não seria no Ministério da Justiça.”

Cabe lembrar que Anderson Torres, no ano anterior, havia participado de uma live ao lado de Jair Messias Bolsonaro sobre o sistema eletrônico de votação e, não obstante as absurdas especulações lançadas pelo então Presidente e por Eduardo Gomes, afirmou que “tudo o que foi dito” era corroborado por relatórios da Polícia Federal. O depoente também esteve envolvido na preparação da live, dias antes. Sugeriu que o perito Ivo Peixinho chegasse ao Palácio do Planalto com ele, o que não foi atendido e, no local, apresentou ambos os peritos presentes ao então Presidente da República. Depois, os convocou para reportar suas impressões no Ministério da Justiça.

Anderson Torres, contudo, não teve a mesma proatividade ao deparar-se, em meio a documentos trazidos do Ministério da Justiça, com uma minuta tecnicamente bem-acabada, que descrevia de forma minuciosa um procedimento para intervir no TSE. A testemunha argumentou que o teor absurdo justificaria sua inércia. Porém, ao contrário: o que se poderia esperar da mais alta autoridade jurídica do Poder Executivo é, exatamente, que, diante da “aberração”, se preocupasse em apurar a ocorrência. Ao que parece, nem mesmo sua assessoria, apontada como responsável pela seleção do material que levava para casa, foi indagada sobre como, afinal, a minuta teria chegado a seu gabinete (ID 158886324, pp. 39-40 e 47-48):

“O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Tá. Só para ficar claro, Doutor Anderson. O Senhor disse que o Senhor levava documentos para casa, para analisar, como parte do expediente que era necessário. Quem que fazia essa seleção para o Senhor, para poder levar essa documentação?

O SENHOR ANDERSON GUSTAVO TORRES (testemunha): Era... a minha assessoria fazia essa seleção.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): E deixava à sua mesa, para que o Senhor pudesse pôr na mala e levar isso?

O SENHOR ANDERSON GUSTAVO TORRES (testemunha): Todos os... eu nunca carreguei pastas, Doutor. Pasta, pasta, mala... eu carregava essas pastinhas do Ministério. Sempre carreguei duas, três, quatro pastas, no final do dia, embaixo do braço, para casa. Essas pastinhas de capa dura, em que a gente coloca documento dentro, envelope e... Eu nunca fui de carregar pastas, e eram essas pastas que eu levava para casa, geralmente uma contendo agenda e minutas de discurso para eventos do dia seguinte, sugestão de discursos e tal; outra, com esses documentos gerais... documentos vindos das secretarias, documento de alguém que não conseguia agenda comigo, colocava dos meus secretários nacionais, assessores, enfim. Era assim que funcionava.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Eu só queria pegar esse fluxo, né? A sua assessoria deixava em sua mesa. Ao final, o Senhor pegava e levava. É isso?

O SENHOR ANDERSON GUSTAVO TORRES (testemunha): Isso. Exatamente. Ao final do dia, às vezes, a assessoria descia comigo até o elevador, quando tinha que tratar de alguma coisa. Enfim, o fluxo sempre foi esse.

[...]

O DOUTOR WALBER DE MOURA AGRA (advogado do PDT): Para terminar agora. Eu gostaria... Vossa Senhoria falou que, em dois momentos, duas coisas, perdoe-me, antitéticas: primeiro, que a minuta, me permita chamá-la, denominá-la de minuta do golpe, ela é folclórica e, depois, disse que era uma aberração. Ela é uma aberração, com toda certeza. Vossa Excelência não se lembra de onde foi entregue, ou quem o entregou, a minuta do golpe. Mas Vossa Senhoria falou que algum assessor faz suas pastas e entrega, pelo excesso de trabalho, Vossa Senhoria tem que levar para casa. Essa pessoa não leu – e como era um documento tão aberrante –, essa pessoa não comentou... é normal que um documento de extrema importância, com acinte inenarrável às instituições democráticas da República, tenha passado às suas mãos, sem despertar a atenção da sua assessoria [...]?

O SENHOR ANDERSON GUSTAVO TORRES (testemunha): Excelência, o volume de documentos que chegam é muito grande. E não me chamaram a atenção, não trouxeram isso para mim, como fato relevante. Não sei te dizer exatamente isso. O que eu sei te dizer é que é uma minuta, é uma aberração, é um lixo – chamo isso aí de lixo – e foi para onde ele foi designado, que foi para o lixo. Quando eu comecei a ler, eu nem me dei ao trabalho de terminar de ler, porque esse tipo de assunto, como eu disse, não cabe ao Ministério da Justiça, e a gente jamais tratou, ou comentou, qualquer coisa nesse sentido.

O DOUTOR WALBER DE MOURA AGRA (advogado do PDT): [...] Diante da antevisão de uma aberração, de um lixo tão grave à democracia quanto essa minuta do golpe, não seria, até por dever público funcional, dar publicidade e investigar algo tão acintoso, sob crime até de prevaricação aos princípios democráticos?

O SENHOR ANDERSON GUSTAVO TORRES (testemunha): Doutor, eu não determinei providências, ou nada, em razão daquela...

O DOUTOR TARCISIO VIEIRA DE CARVALHO NETO (advogado): Presidente, pela ordem. Aqui, a testemunha está sendo acusada diretamente. Me parece que a pergunta é totalmente impertinente e descabida. Fica o registro.

O DOUTOR MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Doutor, o direito ao silêncio já está assegurado à testemunha. Ela responde se quiser, ressalvada a sua não autoincriminação.

O SENHOR ANDERSON GUSTAVO TORRES (testemunha): Exatamente. Como eu disse aqui, só para fechar o raciocínio, eu não determinei providências por não ver nenhum valor. Como eu disse, eu considerei aquilo uma aberração; eu não vi nenhum valor naquilo. Aquilo era uma loucura, um lixo. Por isso, não determinei... não vi... determinar... enfim. E não só eu. Como eu disse, várias – pelo menos é o que a televisão disse –, outras pessoas também receberam e agiram da mesma forma: lixo. É um lixo aquilo.”

O relato, em síntese, é de quem, exausto ao final de um dia de trabalho, tivesse contato com um texto trivial e enfadonho, e, na manhã seguinte, nem mesmo lembrasse do que havia lido. A minuta de estado de defesa, cujo teor abordava uma intervenção direta do Poder Executivo nas atribuições do Tribunal Superior Eleitoral, não entrou minimamente no horizonte de preocupações do então Ministro da Justiça.

Ilustra-se, com isso, a banalização do golpismo nos bastidores de um governo que tinha à frente um mandatário habituado a difundir mentiras a respeito do sistema eletrônico de votação e a pregar o risco iminente de haver uma fraude em 2022. Os termos que aqui utilizo são fortes, mas são inevitáveis diante do quadro instalado.

Para que o comportamento do primeiro investigado não causasse escândalo, as autoridades próximas creditavam suas falas à sua simplicidade ou ao seu temperamento. As declarações, como se observa por depoimentos e mesmo por trechos da defesa, eram tratadas com complacência, tendo em vista que não se destinariam a serem transformadas em atos.

Nessa linha, por exemplo, argumenta-se que o Conselho da República e o Conselho da Defesa Nacional não foram acionados para avaliar a proposta de estado de defesa. Isso, porém, não tem relevância para o caso.

Primeiro, porque quem decide por um golpe de estado também decide o grau de encenação de ritos democráticos dos quais pretende se valer. Seria ilógico avaliar a seriedade de um golpe, ato ilegítimo contra o ordenamento, com base em seu rigor na observância às etapas que esse mesmo ordenamento erige para atos legítimos. Por isso mesmo, o teor da minuta de estado de defesa, juntada aos autos, é um exemplo de como a técnica poderia ser usada para conferir um verniz de legitimidade a uma cogitada ruptura institucional.

Segundo, porque está evidenciada a convergência discursiva entre a apresentação feita às embaixadoras e aos embaixadores, em 18/07/2022, e a minuta revelada em 12/01/2023. Não se tratava de um papel ao vento, mas, sim, de documento que estava na residência do ex-Ministro da Justiça. No âmbito desta AIJE, não importa quem o redigiu. O ponto a salientar é que, no ambiente gestado por contínuos questionamentos quanto à idoneidade do TSE e à transparência do sistema eletrônico de votação, a circulação da minuta nos bastidores do governo não causou qualquer desassossego.

Neste tópico, portanto, não se está concluindo que foi preparado um golpe de estado envolvendo o ex-Presidente da República, seu ex-Ministro da Justiça ou terceiros. Os elementos que foram reunidos nos autos não permitem assentar esse fato. Esta AIJE não se destina a apurar a prática do crime de abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 357-L do Código Penal) ou outros da mesma natureza.

O que se conclui é que o golpismo foi um efeito da prática discursiva exercitada na reunião de 18/07/2022. Em outras palavras, é uma falácia afirmar que haveria uma disposição do primeiro investigado para, em algum momento, aceitar como legítimo um resultado eleitoral que lhe fosse desfavorável.

Do ponto de vista pragmático, o primeiro investigado fez a semeadura de pensamentos intrusivos relativos a uma imaginária fraude eleitoral praticada com conivência do TSE.

Fez germinar a ideia, fundada em informações falsas, de que algo precisaria ser tentado para evitar que resultados fossem manipulados em 2022.

Lamentou que tivessem sido arrancados os brotos promissores do voto impresso e podou as sugestões das Forças Armadas.

Sugeriu que salvar a colheita poderia exigir dele abandonar as quatro linhas da Constituição.

Os frutos previsíveis eram a desconfiança, o conspiracionismo, o medo e o estado de urgência.

Não é de surpreender que, no meio desses frutos, aparecessem ideias radicais de ruptura do sistema, com a falsa crença de que poderiam ser um novo terreno para plantar sua visão de democracia e liberdade.

Importante dizer, ao final dessa análise, que a minuta de decreto de estado de defesa e sua receita de intervenção no TSE, encontrada sob um porta-retrato na residência do ex-Ministro da Justiça do governo Bolsonaro, está longe de ser o fato central desta ação. É apenas uma imagem, quase uma parábola, de como pensamentos intrusivos, em tudo assemelhados aos que o primeiro investigado difundiu, são capazes de naturalizar absurdos.

3. Subsunção dos fatos às premissas de julgamento

3.1 Standard probatório aplicável às ações eleitorais sancionadoras

Conforme visto na abertura deste voto, o conceito de abuso de poder é de natureza aberta, sem definição expressa no art. 22 da LC nº 64/1990. As espécies de poder em jogo – econômico, político e midiático – orientam a compreensão básica do tipo abusivo. No entanto, o ilícito somente se perfaz se for também evidenciada a gravidade das circunstâncias em que foi praticada a conduta (art. 22, XIV, LC nº 64/1990).

A gravidade é um juízo de valor que se faz a respeito dos fatos provados. Sob um primeiro ângulo, qualitativo, examina-se sua reprovabilidade. Sob um segundo, quantitativo, analisa-se a forma como essa conduta reverberou no contexto de uma específica eleição, o que pode considerar a votação obtida, mas também diversos outros fatores. Compõe-se assim a tríade para apuração do abuso: conduta, reprovabilidade e repercussão.

Corriqueiramente, afirma-se que a condenação em ação eleitoral sancionadora exige prova robusta. Nem sempre, porém, observam-se os impactos dessa afirmação sobre cada um dos elementos componentes do abuso. E isso é necessário porque não se demonstra, pelos mesmos meios, que uma conduta foi praticada, que ela é altamente reprovável e que teve repercussão significativa. Para estabelecer quais elementos probatórios podem subsidiar a conclusão quanto a cada um desses pontos, é necessário aprofundar o conceito de “prova robusta”, com atenção à fluidez e à complexidade próprias das práticas abusivas.

A robustez não é atributo de uma prova em particular, mas, sim, do conjunto probatório. É a qualidade que atende ao standard da “prova clara e convincente (clear and convincing evidence). Trata-se de um padrão de rigor intermediário, situado entre dois outros modelos existentes.

O padrão menos denso adotado no Direito é o da “prova preponderante” (preponderance of the evidence). Esse modelo se aplica às ações cíveis em geral, autorizando o julgador a decidir a demanda em favor da parte que melhor demonstrar suas alegações.

O padrão mais denso dentre todos é a “prova além da dúvida razoável” (beyond a reasonable doubt), próprio ao processo penal. Segundo esse modelo, a condenação somente pode ser proferida se forem extirpadas todas as objeções relevantes à versão dos fatos sustentada pela acusação.

O standard aplicado às ações eleitorais sancionadoras – prova robusta, ou prova clara e convincente (clear and convincing evidence) – situa-se entre os outros dois outros modelos e mostra-se apto a assegurar o equilíbrio processual buscado.

Por um lado, tendo em vista as severas restrições a direitos políticos fundamentais que podem ser impostas aos réus, a prova preponderante não é suficiente. Devem ser demonstrados elementos essenciais que confiram suporte à versão narrada na petição inicial.

Mas, por outro lado, a efetiva tutela aos bens jurídicos eleitorais exige abdicar do rigor próprio ao processo penal. Não é preciso ir “além da dúvida razoável” para aplicar a responsáveis e beneficiários as consequências jurídicas de condutas ilícitas que estejam suficientemente provadas.

É exatamente nesse standard probatório intermediário que as circunstâncias em que a conduta é praticada – tal como referido no art. 22, XIV, da LC nº 64/1990 – ganham relevo. Isso porque tais circunstâncias, devidamente evidenciadas, podem ser utilizadas como prova indiciária que permita concluir pela reprovabilidade e, principalmente, pela repercussão da conduta.

A prova indiciária exige que fatos específicos tenham sido objetivamente comprovados nos autos, capazes de levar à conclusão de que outros ocorreram. Não se confunde com a presunção, que é uma conclusão subjetiva e genérica extraída da experiência comum. Na precisa lição da Ministra Maria Thereza Rocha de Assis Moura:

“[...] a presunção, à diferença do indício, prescinde de um processo lógico que parta de um dado de fato específico, concreto e certo; é o resultado de uma preventiva e genérica dedução empírica, fundada sobre a probabilidade em abstrato.

Aí reside, a nosso ver, a diferença substancial entre indício e presunção simples, ou do homem: esta é a ilação que o magistrado tira de um fato conhecido, partindo tão-somente da experiência comum, para afirmar, antecipadamente, como provável, fato desconhecido. Vale dizer, antes que de outra forma seja provado. Aquele, o indício, remonta, de fato específico certo, concreto, a uma conclusão, cujo conteúdo é fornecido de proposição geral, ditada da lógica ou da experiência comum.

[...]

Em síntese: a presunção é subjetiva, abstrata e genérica. O indício é objetivo, concreto, específico. Ambos não podem nem devem ser confundidos.”

(MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. A prova por indícios no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. Sem destaques no original.)

A má-fé não pode ser presumida e, por isso, não é possível aplicar graves sanções eleitorais com base em inferências subjetivas e genéricas. É vedado cassar diplomas ou impor inelegibilidade com fundamento em mera presunção. Porém, a condenação em ação eleitoral sancionadora é plenamente compatível com a utilização da prova indiciária, pois esta corresponde à demonstração objetiva de um fato que autoriza, por raciocínio lógico, reputar-se comprovado um segundo fato.

A compatibilidade das provas indiciárias com a exigência de prova robusta foi tema de julgado de Relatoria do Min. Luis Felipe Salomão (RO-El 7299-06, DJE de 14/12/2021), de cuja ementa extraio o seguinte trecho:

“8. As condenações por abuso de poder devem ser apoiadas em provas robustas, o que não se opõe à validade da prova indiciária, desde que os elementos coligidos sejam verídicos, seguros e coesos. Precedentes. Esse entendimento está em conformidade com o disposto no art. 23 da LC 64/90, segundo o qual "[o] Tribunal formará sua convicção pela livre apreciação dos fatos públicos e notórios, dos indícios e presunções e prova produzida, atentando para circunstâncias ou fatos, ainda que não indicados ou alegados pelas partes, mas que preservem o interesse público de lisura eleitoral".

9. A necessidade de se valer de indícios decorre, muitas vezes, da própria natureza do ilícito, pois não é incomum que a prática abusiva se revista de aparência de legalidade, ou seja dissimulada, de modo que somente a partir das circunstâncias e da relação entre diversos fatos comprovados será possível demonstrar sua ocorrência.”

(Sem destaques no original.)

Logo, ao se perquirir a prova robusta, é necessário levar em conta o conjunto probatório como um todo. Não se deve descartar, a priori, pequenos fragmentos, que bem podem vir a formar um mosaico apto a revelar a ilicitude. Especialmente quando se está diante de narrativas sobre práticas complexas – por exemplo, envolvendo diversas pessoas e dispersão territorial e temporal –, uma análise consistente da prova exige indagar se estão demonstrados fatos específicos que autorizam inferir, com segurança, que os ilícitos foram cometidos. Se a resposta for positiva, a condenação é cabível.

Na verdade, a utilização de algum grau de inferência é elementar à tipologia do abuso de poder e à análise de causalidade exigida para concluir pela violação a bens abrangentes e dessubjetivados como a isonomia, a normalidade eleitoral e a legitimidade dos resultados. Incabível esperar que se tenha um vestígio material de dano causado por práticas abusivas imateriais. Por exemplo, não há que se exigir a “prova” (diabólica) de que um grupo determinado de pessoas se reconhece como influenciado pelo desvio de finalidade da função pública ou pela manipulação midiática, ou de que esse grupo adotou comportamentos no processo eleitoral discrepantes daqueles que teria sem a influência ilícita.

Note-se a diferença: uma prática como a captação ilícita de sufrágio, que viola a liberdade da pessoa cooptada, deixa como vestígio a contrapartida pelo voto – ou, ao menos, sua promessa. Comprovada a oferta de vantagem pela pessoa candidata, em troca do voto de eleitora ou eleitor determinado, a condenação se impõe.

Já no caso do abuso de poder econômico em que se discutisse o mesmo fato básico, não bastaria demonstrar a dimensão monetizável da barganha. A análise de valores (absolutos, ou relativamente ao pleito em disputa) é apenas um ponto de partida. Deve-se avaliar o grau de reprovabilidade e sua intensidade, sempre no contexto do pleito, indispensáveis para a conclusão pelo desbordo na aplicação de recursos financeiros na campanha.

É por isso que se tem assinalado, ao longo desta ação, que, embora a rigor a prova incida sobre o fato componente da causa de pedir, a qualificação jurídica da conduta repercute sobre a iniciativa probatória. As circunstâncias em que foi praticada a conduta compõem um panorama que permite dizer se é legítimo inferir (jamais presumir) que a isonomia, a normalidade eleitoral ou a legitimidade dos resultados foram lesadas.

A tutela efetiva desses bens jurídicos impõe observar que não estamos mais em uma democracia liberal clássica, em que as eleições seriam mera competição entre candidatos em um mercado de votos. Na democracia contemporânea, a Cidadania é dotada de centralidade.

Eleitoras e eleitores são titulares de prerrogativas difusas de atuação no processo eleitoral, a ser entendido como “o espaço discursivo [...] no qual [...] exercem sua competência decisória de formação dos mandatos eletivos”. O exercício dessas prerrogativas, de forma livre e desembaraçada, é, em si, fundante da legitimidade democrática. (GRESTA, Roberta Maia. Teoria do processo eleitoral democrático: a formação dos mandatos eletivos a partir da perspectiva da Cidadania. Tese (doutorado). UFMG (Belo Horizonte), 2019, p. 411.).

O Direito Eleitoral Sancionador, no regime da Constituição de 1988, cumpre função de preservar o ambiente eleitoral contra perturbações ilegítimas. É papel da Justiça Eleitoral avaliar se candidatos e candidatas, agentes públicos, detentores de meios midiáticos e empresários, dentre outros, respeitaram as condições necessárias para que o processo eleitoral se desenvolvesse de forma propícia à plena participação política do eleitorado em todas as suas dimensõesao longo da campanha, no debate público, no momento da votação e, ainda, na conclusão do processo, com a proclamação dos resultados e a diplomação dos eleitos.

Em síntese, o abandono do critério da “potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição” e a adoção do requisito da “gravidade das circunstâncias” consolida a adoção do standard da prova “clara e convincente” na aferição do abuso. Deixa-se de perquirir o impossível – conjecturar se a conduta ilegítima foi decisiva, ou não, para fazer um número significativo de eleitoras e eleitores mudarem seu voto – para, objetivamente, avaliar:

a) se existe prova das condutas que constituem o núcleo da causa de pedir; e

b) se há elementos objetivos que autorizem:

b.1) estabelecer um juízo de valor negativo a seu respeito, de modo a afirmar que são dotadas de alta reprovabilidade (gravidade qualitativa); e

b.2) inferir, com necessária segurança, que essas condutas foram nocivas ao ambiente eleitoral (gravidade quantitativa).

Passo, com base nesse padrão probatório, à solução da controvérsia.

3.2 Solução da controvérsia fática à luz do standard da prova robusta

Após aprofundada análise da prova produzida nos autos e de fatos públicos e notórios pertinentes, torna-se simples dirimir a controvérsia fática, que foi sintetizada na abertura do capítulo 2 deste voto.

Em primeiro lugar, restou comprovado que o teor do discurso proferido por Jair Messias Bolsonaro em 18/07/2022, no Palácio da Alvorada, disseminou severa desordem informacional a respeito do sistema eletrônico de votação. Refuta-se, quanto ao ponto, a tese da defesa de que a fala teria se inserido em um diálogo institucional salutar, caracterizando um momento em que o Presidente da República externaria opiniões, ainda que fortes, voltadas para aperfeiçoar o sistema de votação.

Relembre-se que a desordem informacional, tal como explicado nas premissas de julgamento, configura-se quando distorções da normatividade de coordenação (que nos ensina em quem confiar) acabam por degradar a normatividade epistêmica (que nos diz em que conteúdo confiar), produzindo impactos negativos sobre a distribuição social do trabalho cognitivo e sobre o processo de tomada de decisões válidas ou corretas.  

No caso dos autos, a repetição massiva de informações falsas sobre o sistema eletrônico de votação e as especulações insidiosas sobre Ministros e servidores do TSE cumpriram o papel de conservar bolhas imunes ao contraponto de informações oficiais a respeito da autenticidade dos resultados eleitorais. Essa estratégia manteve a coesão de um grupo em permanente estado de alarme. Ao mesmo tempo, consolidou o então Presidente da República como fonte primária da cadeia de transmissão do conhecimento, com base no qual os seguidores tomariam decisões.

Conforme visto, chegou-se ao ponto em que o primeiro investigado não tinha mais nenhuma preocupação em ter sua autoridade contestada. O grau de ousadia na difusão de informações falsas crescia à medida que notava que a vigilância epistêmica dos seguidores havia cedido. Não havia risco de contraponto a praticamente qualquer coisa que dissesse.

Foi assim que o então Chefe de Estado afirmou diante de embaixadoras e embaixadores que tinha em seu poder “dezenas e dezenas de vídeos” que mostrariam que “por ocasião das eleições de 2018 [...] o eleitor ia votar e simplesmente não conseguia votar [...] ou quando ele apertava o número 1 e depois ia apertar o número 7, aparecia o 3 e o voto ia para outro candidato”. Essa contundente e irreal descrição de adulteração de votos foi vista pelo público que acompanhou a transmissão do evento de 18/07/2022, e interpretada em um contexto no qual a autoridade do primeiro investigado era reforçada pela plateia de diplomatas que o ouvia.

Após a instrução, a defesa sustentou, em alegações finais, que teria ficado comprovada a existência de subsídios concretos para as afirmações feitas na reunião de 18/07/2022, o que se evidenciaria pela existência do IPL nº 1361/2018 e pelo depoimento dos peritos da Polícia Federal acerca de “vulnerabilidades” no sistema. Não há, porém, sustentáculo para essas pretendidas conclusões, pois, conforme visto, a prova dos autos, de forma coesa, aponta justamente para o oposto dessa versão.

Demonstrou-se cabalmente que não havia documentos ou opiniões técnicas que embasassem as contundentes afirmações do primeiro investigado no sentido de que o pleito de 2018 foi marcado por intensa manipulação de votos, com conivência do TSE. O IPL nº 1361/2018 não versava sobre fraude eleitoral. Ivo Peixinho e Mateus Polastro foram firmes em dizer que a Polícia Federal jamais identificou risco de adulteração de resultados de eleições realizadas pelo sistema eletrônico. Nada nos autos respalda “traduzir” o termo “vulnerabilidades” como sinônimo de programação fraudulenta da urna para alterar votos.

Aliás, a sugestão dos peritos de que o vídeo sobre o pleito de 2014 fosse remetido para análise formal evidentemente não indica que tenham se impressionado pelo material produzido pelo “entusiasta” Marcelo. Ao serem solicitados a opinar, seguiram um protocolo estrito, informando que qualquer conclusão dependeria de exame pericial adequado.

Enfatizo que Ivo Peixinho e Mateus Polastro são dois profissionais de altíssima qualificação técnica, que foram surpreendidos, em uma atípica reunião no Palácio do Planalto, pela exibição de um vídeo amador em que uma planilha de Excel foi apresentada como suposta prova de adulteração de resultados. Cumpriram seu dever funcional, mesmo no atípico cenário da convocação, do tema e dos participantes da reunião. Os peritos, em juízo, disseram que não se sentiram constrangidos. Isso, diante do absurdo do episódio, somente se deve ao notório preparo dos dois policiais federais para lidar com situações de pressão e mesmo com a conduta desviante de autoridades públicas hierarquicamente superiores.

A cautela e o procedimento recomendados pelos peritos não foram adotados. O primeiro investigado tampouco levou em consideração os esclarecimentos prestados pelo TSE, desde 2021, sobre o IPL nº 1361/2018. As declarações factualmente falsas e distorcidas que fez perante as embaixadoras e os embaixadores são inescusáveis. O então Presidente da República deliberadamente explorou uma investigação em curso, reiterou inverdades sobre as urnas e escalou a agressividade das acusações feitas a Ministros do TSE. Tudo com o único propósito de minar a credibilidade do órgão de governança eleitoral do país.

Não há dúvidas de que a prática discursiva do primeiro investigado se orientou pragmaticamente para difundir suspeitas graves e infundadas acerca da atuação do TSE e do sistema eletrônico de votação, com vistas a descredibilizar não apenas os resultados do pleito, mas todo o processo eleitoral brasileiro. Houve, inclusive, apelo implícito para que fossem canceladas missões de observação internacional, de modo que não dessem “ares de legitimidade” a uma “farsa”.

A difusão da crença de que houve fraude eleitoral sistêmica no pleito presidencial de 2018, enriquecida com os detalhes sobre a fantasiosa conspiração para impedir a reeleição de Jair Messias Bolsonaro, não é um fator acidental. Trata-se de um forte componente de mobilização política coletiva, em que cada pessoa supre com um componente passional (o pertencimento ao grupo) a falta de um suporte epistêmico (validação de conteúdo) para suas decisões.

As características do discurso proferido em 18/07/2022, em linha contínua com as lives de 2021, têm perfeita aderência ao modelo comunicacional descrito na obra Engenheiros do caos. Tal como mencionado nas premissas de julgamento, a prática discursiva exercitada por Jair Messias Bolsonaro naquelas ocasiões: a) mostra-se “mais concentrada na intensidade da narrativa que na exatidão dos fatos”; b) recusa a intermediação do tratamento dos temas pelo TSE; c) prioriza o engajamento (adesão imediata), mitigando ou eliminando o tempo de reflexão; e d) estimula fortemente a lealdade de seus simpatizantes, explorando o medo das eleitoras e dos eleitores face a uma inventada conspiração para fraudar as Eleições 2022.

A degradação da normatividade epistêmica pela normatividade de coordenação tornou-se o modus operandi dos atos discursivos do primeiro investigado. Em 18/07/2022, todos os recursos disponíveis foram explorados por ele para reforçar a pretensa credibilidade de suas afirmações: os símbolos da Presidência, a presença da comunidade internacional e de autoridades governamentais, o alcance nas redes sociais, a evocação das lives de 2021, a existência de um inquérito da Polícia Federal e a ideia de uma simbiose entre a Presidência da República e as Forças Armadas.

A performance foi indubitavelmente um movimento de ataque na disputa que o primeiro investigado resolveu travar com o TSE no âmbito da normatividade de coordenação. Independentemente de motivações íntimas para esse movimento, seu efeito pragmático é o de estimular engajamento político a partir não de pautas propositivas, mas da mobilização de paixões, especialmente medo e raiva. O curto-circuito provocado por esse mecanismo é ilustrado pela persistência da circulação das informações falsas divulgadas pelo então Presidente da República a respeito do sistema eletrônico de votação adotado no Brasil, bem como pela naturalização da hostilidade com que ele passou a tratar a Justiça Eleitoral.

Em segundo lugar, a reunião teve nítida finalidade eleitoral, mirando influenciar o eleitorado e a opinião pública nacional e internacional. Esse ponto abrange tanto o discurso quanto o perfil do evento.

O discurso teve conotação eleitoral, inserindo-se no contexto das eleições presidenciais de 2022, ao menos sob as seguintes óticas:

a) o tema central foi alertar para a iminência de uma suposta fraude nas Eleições 2022, aos moldes do que se afirmou ter ocorrido em 2018, quando votos teriam sido transferidos de Jair Bolsonaro para Fernando Haddad;

b) com reiteradas menções à polarização direita/esquerda, o candidato à reeleição exaltou seu governo e buscou se apresentar como “favorito” pelo eleitorado, por personificar valores do “povo”, apresentando um explícito contraste com seu principal adversário, que não teria “aceitação” popular e endossaria pautas que Jair Messias Bolsonaro apresentou como danosas para o país; 

c) foi apresentada uma narrativa inventada segundo a qual três sucessivos Presidentes do TSE viriam atuando para garantir a vitória de Lula em 2022:

c.1) tornando-o elegível;

c.2) convidando as Forças Armadas para participar da Comissão de Transparência sem, segundo Jair Bolsonaro, intenção real de acolher sugestões que efetivamente impedissem a manipulação de resultados em 2022; e

c.3) adotando diversas medidas que seriam destinadas, na leitura do candidato à reeleição, a prejudicar o seu “lado”;

d) foram abordadas de forma expressa, e crítica, as missões de observação internacional previstas para 2022, sendo sugerido às embaixadoras e aos embaixadores presentes que desencorajassem o envio das missões, já que se destinariam apenas a conferir aparência de legalidade a um processo eleitoral viciado; e

e) foi abertamente dito que o “Poder Executivo” garantiria recursos para implementar as sugestões das Forças Armadas até 2 de outubro daquele ano, defendida no discurso como a única forma remanescente de “estancar a possibilidade de manipulação de números”.

O perfil do evento também assumiu feição eleitoral. O argumento da defesa de que o público-alvo se limitou às embaixadoras e aos embaixadores presentes e não tinha capacidade eleitoral ativa é duplamente falho.

Primeiro, porque o evento foi transmitido pela TV Brasil e pelas redes sociais do primeiro investigado. Isso fez com que a mensagem chegasse a cidadãs e cidadãos brasileiros no momento em que as eleições já constituíam tópico de intenso interesse da sociedade. As pessoas foram, ainda, expostas aos aspectos estéticos do evento, visualizando o pré-candidato à frente de uma plateia de quase cem embaixadoras, embaixadores e autoridades, discursando a respeito do processo eleitoral iminente.

Em síntese, viram um pré-candidato, diante de qualificada audiência, tratar do pleito vindouro, afirmar sua superioridade sobre o principal adversário, exaltar seu governo e explorar informações falsas e narrativas persecutórias com vistas a atrair simpatizantes para sua iminente candidatura.

Segundo, porque os Chefes de Missão Diplomática também eram destinatários da mensagem de cunho eleitoral – não destinada a cooptar voto, mas, sim, conquistar adesão estratégica à sua narrativa. O primeiro investigado, comprovadamente, planejou a reunião para se contrapor à “Sessão Informativa para Embaixadas”, realizada no TSE em 31/05/2022. Sua fala buscou desencorajar as missões de observação internacional. A sugestão do TSE, de que as nações prontamente reconhecessem como eleito quem assim fosse declarado ao final da apuração, foi contestada. 

O então pré-candidato sabia que a aceitação dos resultados pela comunidade internacional tinha se tornado um tema-chave do pleito de 2022 – exatamente em função das informações falsas disseminadas contra as urnas eletrônicas e a Justiça Eleitoral. E tinha o objetivo de fazer sobressair para os convidados sua versão fabricada acerca do IPL nº 1361/2018.

No tópico, portanto, não há como prevalecer a tese da defesa de que a atuação do Chefe do Estado, no evento, foi compatível com suas atribuições institucionais, especialmente a representação perante países estrangeiros.

Em terceiro lugar, é notório que a prática discursiva exercitada em 18/07/2022 converge com a adotada na campanha dos investigados, que explorou os ataques à credibilidade das urnas eletrônicas e do TSE para mobilizar bases eleitorais. Essa estratégia assumiu basicamente três vertentes:

a) invocar a autoridade do Presidente da República e das Forças Armadas para contestar a confiabilidade do TSE e de seu corpo técnico, em uma disputa direta no âmbito da normatividade de coordenação, explorando um sentimento antissistema como estratégia para produzir engajamento político, especialmente nas redes sociais;

b) construir uma narrativa épica de perseguição política ao primeiro investigado – descrito como vítima em sua fantasiosa luta para livrar o Brasil de fraudes eleitorais inexistentes, atribuídas a Ministros e servidores do TSE supostamente interessados em impedir sua reeleição – de modo a angariar simpatia para tal candidato; e

c) explorar o conspiracionismo, utilizando-se de pensamentos intrusivos para incutir em seu eleitorado a sensação de pertencimento (a um grupo, a uma “causa”) suficiente para assegurar a alta coesão da base, que foi impulsionada a manter-se unida e a ignorar contradições da fala do candidato, bem como conflitos de interesses dentro do grupo, tendo em vista o “objetivo maior” de livrar o país da chaga da fraude eleitoral.

A apresentação do primeiro investigado em 18/07/2022 possui características discursivas e performáticas destinadas a instigar uma desconfiança inteiramente infundada no órgão de governança eleitoral. Trata-se, como já explicado, de poderosa ferramenta de engajamento político. Encenando o papel de líder competente e benevolente, disposto a enfrentar o “sistema” em nome da democracia, o então pré-candidato pôde colher dividendos eleitorais. Ao fim e ao cabo, explorou o alarde que fez em torno das urnas eletrônicas para tentar convencer que sua reeleição era essencial para debelar uma farsa que somente ele tinha coragem de expor e enfrentar.

Não há como atenuar a contundência do discurso anti-institucional do primeiro investigado sobre o sistema eletrônico de votação. Não obstante, consta das alegações finais dos investigados uma declaração afirmando que “não se crê agora, nem em tempo algum, terem sido vulneradas as urnas eletrônicas no pleito de 2018 ou, com efeito, de 2022 – ou em qualquer outra eleição, geral ou local”. Na peça, a postura do TSE é descrita como “leal e institucionalmente irmanada com a genuína proteção da democracia”, registrando-se o “abundante zelo e elogiável competência” do tribunal nos testes públicos de segurança.

São palavras escritas no compreensível empenho da defesa técnica em redimir a degradação a elementos basilares da sobrevivência da democracia. Essas palavras, todavia, não encontram eco na realidade da campanha dos investigados.

Há uma linha de continuidade entre a fala de 18/07/2022, as lives de 2021 e a campanha que se iniciaria dias depois. A própria estrutura do discurso se assenta sobre essa continuidade. O primeiro investigado evocou as denúncias de fraude que vinha fazendo desde o ano anterior e alertou o público de que, à medida que as propostas por ele apoiadas eram recusadas, mais se acentuava o risco de manipulação de votos. Seu prognóstico era o de que, dessa vez, a alegada fraude poderia culminar no êxito de uma mirabolante conspiração para eleger um adversário.

Testemunhas que privavam do convívio do primeiro investigado relataram que o candidato derrotado possuía uma disposição íntima de transferir o cargo de forma pacífica. Verídicos ou não, esses relatos são inócuos para os fins desta AIJE. Fato é que não houve, por parte dele, postura pública da qual se extraia a retratação de declarações falsas, o reconhecimento à autoridade do TSE como órgão de governança eleitoral, a cessação de especulações infundadas sobre o pleito de 2018 e, menos ainda, a aceitação expressa dos resultados das Eleições 2022.

Assim, no caso em análise, é irrelevante que não tenha havido pedido de votos ou entrega de material de propaganda às embaixadoras e aos embaixadores. A reunião de 18/07/2022 se insere no contexto eleitoral por outro liame, na verdade bem mais consistente: a prática discursiva.

Em quarto lugar, comprovou-se, com riqueza de detalhes, que a estrutura pública da Presidência e as prerrogativas do cargo de Presidente da República foram direcionadas em favor da candidatura dos investigados. E o foram por iniciativa consciente do primeiro investigado. Foi ele quem planejou a reunião com Chefes de Missão Diplomática. Foi ele quem formatou a justificativa para convidar embaixadoras e embaixadores a comparecerem, em poucos dias, ao Palácio da Alvorada. Foi ele, ainda, quem definiu e aprovou o conteúdo apresentado.

Nada foi debatido com o Ministro Chefe da Casa Civil, com o Ministro das Relações Exteriores ou com o Assessor Especial da Presidência. A primeira dessas autoridades, Ciro Nogueira, disse em juízo que a reunião foi superdimensionada e que poderia ter sido evitada. Os slides exibidos não eram de conhecimento prévio das três testemunhas da defesa e não passaram por revisão, nem mesmo, para avaliar a correção do uso da língua inglesa.

Sempre sob a pretensa escusa de seu linguajar “simples”, o então pré-candidato à reeleição, no dia 18/07/2022, transformou o púlpito presidencial em palanque: exaltou seu governo, apontou-se como vítima de um imaginário complô político, atacou Ministros do TSE, reiterou inverdades a respeito da manipulação de votos e do teor de investigação da Polícia Federal e até mesmo prometeu liberar recursos públicos para implementar propostas das Forças Armadas recusadas na Comissão de Transparência do TSE. Tudo isso foi atrelado a menções ao pleito de 2022 e ao suposto “risco” de ser forjada a eleição de um adversário, passando, assim, a mensagem de que não apenas era mais apto para o cargo, como também essencial para a sobrevida da democracia no país.  

A partir das ideias concebidas em sua mente para reafirmar sua liderança política e eleitoral por meio da antagonização com a Justiça Eleitoral, Jair Messias Bolsonaro ordenou que rodassem as engrenagens da máquina pública. E elas giraram em alta velocidade, permitindo que, em pouquíssimos dias, um evento de grande magnitude política e de ampla visibilidade se concretizasse.

Convites foram rapidamente disparados e prontamente atendidos pela quase totalidade das(os) diplomatas. Todas as providências logísticas foram adotadas rapidamente para que fosse montado o aparato no Palácio do Alvorada. Não há como subestimar o volume de serviço público envolvido em todas as cautelas e formalidades demandadas por um evento com tantos representantes diplomáticos de mais alta classe.

A imprensa esteve presente, e a emissora governamental transmitiu o evento ao vivo. Quanto a esta, os investigados alegaram que a cobertura da TV Brasil foi justificada por se tratar de evento realizado pelo Presidente da República. O argumento, contudo, torna-se silogístico, uma vez que o discutido nos autos é justamente o desvio de finalidade de bens e prerrogativas detidos pelo primeiro investigado, em função do cargo.

Assim, é indubitável que a cobertura da TV Brasil foi viabilizada porque, formalmente, tratava-se de evento da Presidência. Mas isso é apenas um elemento basilar da causa de pedir, pois somente se pode discutir desvio de finalidade nos casos em que se está diante de quem detenha poder público.

A defesa também alegou que os valores despendidos para realizar o evento foram módicos, eis que giraram em torno de R$12.000,00. O argumento, porém, desconsidera que foram explorados bens impassíveis de serem estimados financeiramente.

As insígnias e os protocolos da Presidência da República compuseram o cenário e a dinâmica do evento. O Brasil, por seu Chefe de Estado, recebeu embaixadoras e embaixadores na residência oficial do governante, que desfiou seu monólogo e, dando-se por satisfeito, dispensou sua plateia de luxo. Não houve reuniões ou tratativas subsequentes. O evento foi encerrado. A participação dos Chefes de Missão Diplomática se resumiu a ouvir a apresentação e a fazer cumprimentos protocolares.

Uma vez que toda a preparação para o dia 18/07/2022 – envolvendo bens, pessoal, recursos e, sobretudo, o peso simbólico da instituição da Presidência da República – visava tão-somente propiciar ao primeiro investigado a realização de um discurso dotado de inequívoca finalidade eleitoral, torna-se simples concluir que a estrutura e as prerrogativas detidas em função do cargo foram empregadas em favor da campanha dos investigados.

Em quinto lugar, os números relativos ao alcance do vídeo na internet não deixam dúvidas de que a transmissão pela TV Brasil e pelas redes sociais potencializou a difusão do discurso de 18/07/2022 e, com isso, da desinformação divulgada pelo primeiro investigado. Esse ponto foi tratado em minúcias ao longo do voto, e por isso apenas se rememora os dados de acesso disponíveis nos autos:

a)  perfil do primeiro investigado no Facebook, apurado em 18/08/2022 (um mês depois do fato): 589.000 visualizações, 55.000 comentários e 72.000 curtidas;

b) perfil do primeiro investigado no Instagram, apurado em 18/08/2022 (um mês depois do fato): 587.000 visualizações e 11.000 comentários;

c) Twitter da TV Brasil, próximo a 23/08/2022 (data da concessão da liminar): 1.186 retweets, 77 tweets e 3.904 curtidas, sendo que o link exibe, no vídeo, o total de 62.200 espectadores;

d) transmissão ao vivo pela TV Brasil, no Facebook: 178.000 visualizações da postagem na página, 348.400 pessoas alcançadas, 20 mil reações (curtidas e similares) na postagem da página e 43.300 reações, comentários e compartilhamentos.

Cabe ressaltar que o engajamento no canal do YouTube da TV Brasil e do primeiro investigado não constam dos autos, o que se deve ao fato de que o vídeo foi removido por iniciativa da plataforma, em 10/08/2022, quando reconheceu que o material violava suas diretrizes, por contestar resultados eleitorais oficiais.

Seja como for, os números aferidos são apenas um ponto de partida para estimar a reverberação do evento na internet. Isso porque a comunicação muitos-para-muitos, nas redes, permite que a desinformação se alastre rapidamente, com crescimento exponencial a cada compartilhamento. É fato notório que o primeiro investigado possui dezenas de milhões de seguidores em diversas plataformas. No caso, os meios privados e públicos empregados na difusão do evento de 18/07/2022 potencializaram seu alcance e, com ele, todos os efeitos nefastos da mensagem.

Em sexto lugar, é possível concluir, com a segurança necessária, que a estratégia de descredibilização das urnas eletrônicas e os ataques à Justiça Eleitoral contribuíram significativamente para estimular um ambiente de não aceitação dos resultados.

Conforme dito ao se tratar das premissas de julgamento, esse aspecto deve ser visto com atenção, pois não é o caso de avaliar se pessoas específicas foram intimamente transformadas pela mensagem do primeiro investigado e levadas, por exemplo, a acampar em frente a quartéis pedindo intervenção militar. Esse não é o ponto.

O ponto é que restou evidenciado que a prática discursiva exercitada em 18/07/2022 pelo primeiro investigado, de incitar a desconfiança no sistema eletrônico de votação e na própria Justiça Eleitoral, tinha como função pragmática transmitir a mensagem de que as Eleições 2022 estavam sob risco de serem fraudadas. O êxito desse objetivo é mensurável pelo forte engajamento de sua base de apoio nas redes sociais, mantida em contínuo estado de excitação e, até mesmo, de paranoia.

Esse engajamento não se mede apenas em números de curtidas e comentários nas postagens. Impressiona, também, a ausência de contestação factual minimamente expressiva por parte de apoiadores e – conforme a instrução cabalmente demonstrou – por parte de seu núcleo de governo mais próximo. Ao ser capaz de inspirar um vigoroso sentimento de pertencimento a partir da suposta missão de vencer a guerra contra a manipulação de resultados, o então Presidente da República efetivamente rompeu todas as barreiras da vigilância epistêmica de seus simpatizantes. Mentiras ditas e repetidas tornaram-se dogmas, impermeáveis a evidências factuais em sentido contrário e, até, ao mínimo exercício de sensatez.

Os conteúdos falsos foram reforçados por performances em que trechos de documentos técnicos eram tirados de contexto e explorados à exaustão para convencer que o primeiro investigado dizia a verdade. A comoção gerada pelas sucessivas “denúncias” e “anúncios de provas de fraude”, que nunca foram exibidas, criou uma plateia cativa para a narrativa fantasiosa. Figuras públicas, como o então Ministro da Justiça, Anderson Torres, e o Deputado Federal Filipe Barros, já haviam emprestado a autoridade de seus cargos para chancelar o discurso conspiracionista do então Presidente da República. Entre 2021 e 2022, os absurdos escalaram de forma delirante.

Firme no propósito de manter elevada a mobilização de suas bases, o primeiro investigado, às vésperas do período eleitoral, dobrou as apostas. Concebeu um evento de feição internacional. Tinha como único propósito aniquilar eventuais efeitos positivos da iniciativa do TSE de oferecer informações técnicas às Embaixadas interessadas em compreender o sistema eletrônico de votação e o papel da Justiça Eleitoral.

O evento de 18/07/2022 foi, sem dúvida, planejado e executado como um contra-ataque na guerra desinformacional que o primeiro investigado cultivou sem trégua. Jamais, de sua parte, foi colocado um ponto final na narrativa da fraude.

Após ser derrotado na tentativa de reeleição em 2022, o primeiro investigado não reconheceu publicamente a vitória de seu adversário. O silêncio – por parte de quem havia abraçado uma contundente campanha anti-institucional, que teve por alvos preferenciais a Justiça Eleitoral e o sistema de votação – é bastante eloquente. O primeiro investigado deixou que seguissem pairando no ar os pensamentos intrusivos com os quais transformou a contestação à autenticidade dos resultados em pauta eleitoral de primeira ordem.

Jair Messias Bolsonaro não agiu apenas para convencer eleitoras e eleitores de que era a melhor opção política em um ambiente normal e republicano. Atuou obstinadamente para plantar a ideia de que qualquer resultado diferente de sua reeleição traria consigo sólidas suspeitas de fraude.

Os investigados, em sua defesa, sustentaram que não se pode estabelecer qualquer correlação entre o discurso proferido em 18/07/2022 e fatos que ocorreram tanto ao longo do período eleitoral quanto após a diplomação e a posse, especialmente porque praticados por terceiros, sem prévia ciência, anuência ou participação do primeiro investigado. Todavia, a correlação – que não se confunde com imputar diretamente ao ex-Presidente responsabilidade por conduta de terceiro – é, sim, possível.

Os fatos constitutivos desta AIJE – a reunião de 18/07/2022 e o discurso nela proferido – ocorreram em um contexto, dentro do qual estão sendo avaliados. O contrário seria aderir a uma visão artificial, estanque e indevidamente simplificadora de um evento complexo. Algo incompatível com a função pragmática da linguagem e o paradigma comunicacional em que estamos imersos.

O estágio atual da compreensão do fenômeno das fake news não mais permite que sejam ignorados seus impactos neurológicos e comportamentais, além de sua relevância para a degradação dos processos de tomada de decisões individuais e coletivas. O caos informacional é capaz de gerar severas implicações políticas.

No caso dos autos, é perfeitamente correto inferir que os atos discursivos de Jair Messias Bolsonaro foram aptos a influenciar pessoas que confiavam nele como fonte de informações, levando-as a considerar ilegítimos os resultados das Eleições 2022. Em perspectiva pragmática, não há como escapar da conclusão de que o primeiro investigado almejava um convencimento geral de que a Justiça Eleitoral não merecia credibilidade.

Além disso, conforme já explicado nas premissas de julgamento, o ato discursivo de Jair Messias Bolsonaro é, por si, apto a ser considerado danoso ao processo eleitoral. Não é preciso cogitar atos concretos de terceiros. À luz da accountability, o Presidente da República é responsável por violar a expectativa de que, como candidato à reeleição, assumisse um comportamento compatível com a preservação do ambiente democrático.

Sob essa ótica, é mesmo espantosa a ideia de que a pronta reação do TSE às inverdades requentadas na reunião com embaixadoras e embaixadores teria assegurado uma espécie de “equilíbrio” do processo eleitoral.

Veja-se: é certo que cabe ao órgão de cúpula da governança eleitoral brasileira enfrentar com vigor a desinformação que possa provocar ruídos e perturbações perniciosos ao exercício do voto. O que não é aceitável, em nenhuma medida, é que, nessa tarefa, seja preciso digladiar com a Presidência da República, em um cenário no qual o Chefe de Estado torna-se um dos maiores e mais potentes líderes da “engenharia do caos” no país – para usar o termo cunhado na obra já citada neste voto.

Por isso, é também possível concluir que a minuta de decreto de estado de defesa apreendida na residência de Anderson Gustavo Torres, em 12/01/2023, é um exemplo de como a estratégia político-eleitoral do primeiro investigado, fortemente exercitada na reunião de 18/07/2022, impactou sobre a normalidade e a legitimidade das eleições. A naturalidade com que a existência do documento foi tratada pelo ex-Ministro da Justiça denota como o tecido democrático foi esgarçado pelas falsas afirmações sobre manipulação de votos.

De fato, frente a tantas falas anti-institucionais de um Presidente da República que escolheu o ataque à Justiça Eleitoral como ferramenta estratégica para buscar se reeleger, a escalada de agressividade e de descompromisso com a verdade tornou-se trivial. Em meio a tanto barulho já em curso, a minuta não causou estrondo. Foi tratada como um simples papel, que casualmente falava em estancar uma “grave ameaça à ordem pública e à paz social” imputada ao TSE. O então Ministro da Justiça, em juízo, descreveu a minuta como “folclórica”, “absurda”, “lixo”. E apenas a colocou de lado, para ser esquecida.

O que escapou à testemunha é que, a rigor, os adjetivos que escolheu também poderiam ser usados para qualificar as afirmações sobre urnas que autocompletariam o voto e sobre Ministros, servidores e hackers que conspirariam contra a democracia. E, não obstante o quão inverossímeis sejam essas afirmações, cá estamos, há pelo menos três ciclos eleitorais, vendo o debate público se pautar de forma substancial por tal sorte de mentiras.  

A instrução processual evidenciou um estado de letargia diante de absurdos jurídicos, sejam os ditos pelo ex-Presidente ou aqueles consignados na bem-acabada minuta de estado de defesa. Esse estado é, essencialmente, o avesso de um estado de normalidade democrática. Por isso, a minuta não é um elemento anômalo ao cenário instalado. A inércia do então Ministro da Justiça, e de quantos tenham recebido o texto, em apurar sua autoria e as circunstâncias envolvidas em sua confecção se ajusta perfeitamente ao todo.

Por outro lado, não é possível a esta altura concluir, como afirmou o autor da AIJE, que a minuta também evidenciaria que estava sendo gestado um golpe de estado no âmago do governo. Sem prejuízo da apuração que se conduza em feitos próprios, não há elementos nos presentes autos que permitam avançar a tal ponto.

Isso dá razão apenas parcial à defesa, quando repudia o valor probante da minuta apreendida na residência de Anderson Torres. Até o momento, não se sabe quem a redigiu, quem a fez chegar ao Ministro da Justiça e se havia um plano para levar a cabo a intervenção no TSE para invalidar os resultados da eleição presidencial de 2022.

O laudo pericial realizado no documento não produziu resultados relevantes para esclarecer o ocorrido. E, de fato, não há evidência de que Jair Messias Bolsonaro tenha tido contato com esse documento específico ou que tenha anuído com a proposta. Por fim, não foi nem mesmo alegada pelo autor que o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional tenham sido convocados para cumprir atribuições constitucionais previstas no procedimento para decretar estado de defesa. Somente os investigados tratam do ponto, observando que não houve notícia desse fato.

Porém, isso não elimina toda a utilidade da prova.

O documento estava na residência do ocupante de cargo da mais alta confiança do Presidente da República. Anderson Torres já havia utilizado relatórios da Polícia Federal para indevidamente endossar, durante uma live em 2021, as falsas (diga-se, folclóricas) denúncias de fraude eleitoral apresentadas pelo primeiro investigado e pelo Coronel Eduardo. Também havia adotado conduta atípica e insistente ao abordar os peritos Ivo Peixinho e Mateus Polastro no contexto da citada live, mostrando-se até mesmo ávido por deles extrair uma confirmação da ocorrência de uma fraude. Sua movimentação ateve-se aos bastidores e jamais se traduziu em providência concreta para atender a sugestão dos peritos, de remeter uma planilha para análise.

A minuta de decreto e a medida que nela era proposta, portanto, ao menos rondaram o entorno do Presidente da República. Este seguia, após o pleito, proferindo discursos codificados, com a persistente menção à tentativa de encontrar uma solução “dentro das quatro linhas” da Constituição. Enquanto isso, ao alcance da mão do Ministro da Justiça, um documento permitia visualizar formas jurídicas que poderiam ser utilizadas para responder aos contínuos reclames de Jair Messias Bolsonaro de que algo precisava ser feito para impedir o êxito da suposta manipulação de resultados em 2022.

O fato é que, fechando os olhos para a similitude discursiva, faltou ao ex-Ministro da Justiça, em seu depoimento, designar a proposta de intervenção no TSE, sob a forma de “estado de defesa”, pelo que realmente era: golpista em sua essência, e perigosamente compatível com a lógica defendida pelo então Presidente da República na reunião com os Chefes de Missão Diplomática, em 18/07/2022.

A intensa atividade instrutória neste feito conduz à conclusão segura de que as condutas que constituem o núcleo da causa de pedir estão devidamente demonstradas, de forma clara e convincente, por fatos incontroversos, fatos cabalmente provados e inferências objetivas, as quais não se confundem com presunções.

3.3 Aferição dos requisitos jurídicos das práticas abusivas imputadas aos investigados

Nesta última etapa do voto, passa-se a examinar se a moldura fática delineada nos autos amolda-se aos ilícitos imputados pelo autor aos investigados. Serão aferidas a tipicidade, a gravidade qualitativa (reprovabilidade), a gravidade quantitativa (repercussão) e a responsabilidade, sob a ótica do uso indevido dos meios de comunicação e do abuso de poder político.

Em seguida, serão examinadas as consequências legais aplicáveis.

3.3.1 Uso indevido dos meios de comunicação

Para facilitar a compreensão dos pontos, a conduta será inicialmente cotejada com os requisitos configuradores do abuso de poder midiático.

A exauriente análise pragmática do discurso proferido pelo primeiro investigado em 18/07/2022 não deixou dúvidas de que o então Presidente da República difundiu informações falsas a respeito do sistema eletrônico de votação, direcionada a convencer de que havia grave risco de que as Eleições 2022 fossem fraudadas para assegurar a vitória de candidato adversário.

O evento foi transmitido ao vivo pela TV Brasil e por perfis do próprio pré-candidato em diversas plataformas, alcançando ampla repercussão e provocando, até mesmo, a remoção do conteúdo por iniciativa do YouTube. Os dividendos eleitorais eram facilmente estimáveis ante a popularidade desse tipo de conteúdo na internet e o conhecido êxito das lives de 2021 para gerar e manter mobilização política de caráter altamente passional e impermeável a contestações factuais vindas de fora da bolha.  

Assim, no que diz respeito à tipicidade, a conduta se amolda à difusão deliberada e massificada, por meio de emissora pública e das redes sociais, de severa desordem informacional sobre o sistema eletrônico de votação e sobre a governança eleitoral brasileira, em benefício da candidatura dos investigados. Pontua-se que:

a) na reunião de 18/07/2022, o primeiro investigado sustentou que houve manipulação de votos nas Eleições 2018; inércia, conivência e até interesse de pessoas ligadas ao TSE que prejudicaram investigação de indícios de fraude eleitoral; e conluio para que o sistema se mantivesse vulnerável e pudesse ser manipulado para eleger um adversário;

b) a mensagem atentou diretamente contra a confiabilidade dos resultados eleitorais e, ainda, contra o papel institucional do TSE na preparação e organização do pleito, no desenvolvimento de sistemas, na interlocução com Embaixadas, na Comissão de Transparência Eleitoral e no Programa de Missões de Observação Eleitoral;

c) o discurso não abordou informações oficiais sobre o funcionamento do sistema eletrônico de votação, tampouco explicações dadas pelo TSE para o não acatamento de sugestões das Forças Armadas, concentrando-se em minar a autoridade do órgão de cúpula da Justiça Eleitoral de forma deliberada;

d) as informações falsas sobre fraudes que jamais ocorreram e a antagonização direta com o TSE foram exploradas estrategicamente ao longo do mandato do primeiro investigado e da sua campanha em 2022 para a formação de “bolhas”, em uma prática discursiva cuja continuidade foi evidenciada pela evocação das lives de 2021 na fala de 18/07/2022; 

e) conspiracionismo, vitimização e pensamentos intrusivos foram fortemente explorados no discurso de 18/07/2022 para incutir a ideia de que as Eleições 2022 corriam grande risco de serem fraudadas e de que o então Presidente da República, em simbiose com as Forças Armadas, estaria levando adiante uma cruzada em nome da transparência e da democracia;

f) a transmissão pela TV Brasil e pelas redes sociais da emissora e do primeiro investigado fizeram com que a mensagem do dia 18/07/2022 se alastrasse rapidamente, efeito potencializado pela tendência das informações falsas, sobretudo em temas políticos, a circular com maior velocidade e produzir mais engajamento que informações verídicas; e

i) o evento ocorreu quase um mês antes do início da propaganda eleitoral, em momento no qual já era notória a pré-candidatura de Jair Messias Bolsonaro à reeleição, e possibilitou a projeção midiática antecipada de temas que foram explorados continuamente na campanha, assegurando aos investigados vantagem eleitoral triplamente indevida: em função do momento, em função do veículo e em função do conteúdo.

Também está configurada a gravidade da conduta, em seu aspecto qualitativo e quantitativo, especialmente considerando-se os elementos contextuais que não podem ser ignorados ao analisar os efeitos da prática discursiva.

Em primeiro lugar, é patente a alta reprovabilidade da conduta, tendo em vista que:

a) o núcleo fático que embasa a causa de pedir consiste em condutas praticadas pessoalmente pelo primeiro investigado, em momento de iminente início da campanha à reeleição para Presidente da República, não havendo dúvida sobre sua ciência do contexto em que acionou ferramentas já conhecidas para produzir engajamento e elevou a novo patamar o tensionamento em torno da segurança das urnas;

b) sob a ótica da accountability, o comportamento assumido pelo primeiro investigado colide frontalmente com a exigência de que pessoas que pretendem se candidatar e detentores de cargos eletivos adotem condutas que reflitam a “assimilação e respeito de uma cultura de adesão incondicional aos valores democráticos” (normalidade eleitoral, conforme conceituada por Rodrigo Zilio em trecho já citado);

c) o primeiro investigado violou ostensivamente deveres do Presidente da República inscritos no art. 85 da Constituição, em especial o de zelar pelo exercício livre dos Poderes instituídos e dos direitos políticos e pela segurança interna, tendo em vista que:

c.1) assumiu injustificada antagonização direta com o TSE, buscando vitimizar-se e desacreditar a competência do corpo técnico e a lisura do comportamento de Ministros;

c.2) para levar a atuação do TSE ao absoluto descrédito internacional, despejou sobre as embaixadoras e os embaixadores mentiras atrozes a respeito da governança eleitoral brasileira;

c.3) contestou, perante a comunidade internacional, as decisões do STF e do Congresso que culminaram na rejeição do voto impresso, negando legitimidade a procedimentos democráticos que produziram resultados que o desagradaram;

c.4) hiperdimensionou e distorceu o significado do convite às Forças Armadas para a Comissão de Transparência, utilizando-o para defender que os militares assumissem posição de precedência em temas eleitorais técnicos;

c.5) criticou o programa para convidados internacionais do TSE e desencorajou o envio de missões de observação pelos países estrangeiros, chegando praticamente a denunciar o órgão de cúpula da Justiça Eleitoral brasileira, perante a comunidade internacional, pela prática de fraude sistêmica, sem qualquer fundamento;

c.6) difundiu ameaças veladas sobre uma possível necessidade de sair das “quatro linhas da Constituição”, tendo em vista a rejeição da proposta de voto impresso e de parte das sugestões das Forças Armadas na Comissão de Transparência, criando falsa legitimação para eventuais pensamentos golpistas que se insinuassem;

c.7) condicionou a aceitação de resultado eleitoral eventualmente desfavorável a critérios impossíveis de serem satisfeitos, eis que, em última análise, equivaliam a seu convencimento íntimo de que o TSE bem desempenhava sua missão; e

c.8) explorou o papel de “comandante supremo” das Forças Armadas para pavimentar a justificativa de uma atuação incisiva dos militares voltada a desmascarar supostas “farsas” no âmbito do TSE;

d) a discrepância entre as declarações feitas pelo primeiro investigado e a realidade não constituem mera imprecisão ou equívoco, mas, sim, desabrida manipulação de sentidos, conduzida com método, para manter suas bases políticas mobilizadas por elementos passionais a serem explorados para fins eleitorais;

e)  o então Presidente da República desprezou o farto material produzido pelo TSE a respeito do funcionamento das urnas, bem como as checagens publicadas na página “Fato ou Boato” e os achados do IPL nº 1361/2018, optando por exercitar, perante os Chefes das Missões Diplomáticas, a mesma prática discursiva utilizada em lives do ano anterior, e por reafirmar sua desconfiança infundada na atuação do TSE;

f)  sem jamais recorrer a vias institucionais para se informar adequadamente sobre o processo eleitoral, o então Chefe de Estado utilizou a reunião de 18/07/2022 para demarcar sua firme disposição em continuar a usar as redes sociais como meio para difundir “dúvidas”, meramente retóricas, e a incitar insegurança, desconfiança e conspiracionismo – combustíveis para um crescente sentimento coletivo anti-institucional;

g) o conteúdo comunicado às embaixadoras e aos embaixadores, às espectadoras e aos espectadores da TV Brasil e ao público que acompanhou o evento pelas plataformas não tinha qualquer aptidão para dissipar pontos obscuros, servindo, ao contrário, para incitar um estado de paranoia coletiva diante do amontoado de informações falsas ou distorcidas, relativas a tema de alta complexidade técnica;

h) a liberdade de expressão não alberga a opção do primeiro investigado por fazer afirmações falsas a respeito de uma investigação policial ou por fabricar uma teoria conspiracionista sobre fraudes eleitorais que envolveriam Ministros e servidores do TSE, sendo inconcebível que o Chefe de Estado usasse de um evento oficial, transmitido ao vivo, para fazer diversas declarações inverídicas, até muito literais, no sentido de que as Eleições 2018 teriam sido marcadas pela manipulação de votos.

Em segundo lugar, é patente que os fatos apurados nesta AIJE foram extremamente nocivos para o ambiente democrático, pois está demonstrado que:

a) a reunião de 18/07/2022 contribuiu de forma significativa para o caos desinformacional a respeito da governança eleitoral e do sistema eletrônico de votação, problema que, notadamente a partir das Eleições 2018, tem levado parte da sociedade a assumir uma posição de repúdio institucional à Justiça Eleitoral e de recusa pura e simples à credibilidade de informações técnicas oficiais;

b) o evento não constituiu um fato isolado ou acidental, convergindo com a prática discursiva que marcou a abordagem dos temas pelo primeiro investigado, o que lhe permitiu acionar a militância a partir de simples menções a episódios que são amarrados pelo conspiracionismo: atuação de Ministros do STF quando ainda eram advogados, ataque a faca na campanha de 2018, supostas fraudes nos pleitos de 2014 e 2018, investigação de hackeamento objeto do IPL nº 1361/2018, questionamento da realização das Eleições 2020, rejeição do voto impresso em 2021 e atividades da Comissão de Transparência Eleitoral;

c) a “engenharia do caos” é um fator basilar da dinâmica de mobilização política que vinha sendo exercitada por Jair Messias Bolsonaro nas redes, de forma sistemática, ao menos desde as lives de 2021, e que pode ser caracterizado por:

c.1) recusa à intermediação do conhecimento por instituições especializadas (no caso, o TSE e qualquer outra instituição que ateste a autenticidade do sistema);

c.2) priorização do engajamento (ação imediata) em detrimento da reflexão por parte do emissor e dos destinatários da mensagem, efeito que é intensificado pela menção parcial, descontextualizada e distorcida de documentos técnicos, com a finalidade de simular a existência de lastro para as informações falsas; e

c.3) exploração de aspirações (desejo por transparência) e medos (ameaças conspiratórias) para promover um sentimento de pertencimento ao grupo, capaz de minar a vigilância epistêmica do público e eliminar contrapontos argumentativos ao discurso do pré-candidato;

d) o discurso de 18/07/2022, ao expor à comunidade internacional a batalha travada pelo primeiro investigado contra o TSE, acentuou as distorções da normatividade de coordenação (em quem confiar) que degradam a normatividade epistêmica (em qual conteúdo confiar), com graves riscos à imagem do país como nação democrática, de forma injustificada;

e) o primeiro investigado, fazendo uso estratégico das redes sociais para disseminar desinformação técnica e estimular repúdio à Justiça Eleitoral, logrou firmar-se, em âmbito nacional, como “fonte alternativa” de informações a respeito do sistema eletrônico de votação e da governança eleitoral brasileira, convencendo parcela difusa do eleitorado de sua competência (deter conhecimentos verdadeiros) e benevolência (disponibilidade de compartilhar conhecimentos verdadeiros), atributos que, para seus seguidores, foram convalidados em razão da imponência do evento no Palácio da Alvorada, transmitido ao vivo;

f) compreendidas em seu contexto e respeitados os marcos temporais fixados no próprio discurso, todas as afirmações de Jair Messias Bolsonaro durante o discurso puderam ser decodificadas com base nas lives de julho e agosto de 2021 e aproveitadas para, em evento de grande alcance midiático e faltando menos de três meses para as eleições, reafirmar a mensagem de que o Brasil caminhava para a manipulação de resultados eleitorais com vistas a impedir a reeleição do primeiro investigado;

g) em dimensão pragmática, o discurso de 18/07/2022, os atributos do orador e as circunstâncias do evento foram capazes de acionar sentimentos negativos e incitar pensamentos intrusivos em larga escala, contribuindo de modo significativo para a perturbação do ambiente no qual eleitoras e eleitores se informariam e viriam a tomar decisões importantes;

h) a avaliação dos efeitos dessa conduta dispensa prova de comportamentos individuais, como a mudança de voto de pessoas determinadas, tendo em vista que normalidade eleitoral diz respeito à própria estabilidade democrática na qual são discutidos temas de interesse coletivo e avaliadas as opções de voto, admitindo-se, no ponto, inferências a partir de elementos concretos, a saber:

h.1) rápida circulação do vídeo do discurso de 18/07/2022 nas redes sociais e cobertura ampla do episódio pela imprensa, inclusive a tradicional;

h.2) aptidão do vídeo para reavivar temas debatidos nas lives de julho e agosto de 2021;

h.3) necessidade de pronta reação do TSE para divulgar nota de esclarecimento, em 19/07/2022, também com ampla repercussão na mídia – o que, longe de representar um saudável diálogo institucional, demonstra a comoção pública causada pela reunião de 18/07/2022;

h.4) atravessamento, durante todo o período de campanha, do tema da segurança das urnas, não obstante obedecidos, sem qualquer contratempo técnico, todos os procedimentos de fiscalização e auditoria previstos nas resoluções, cabendo lembrar, no ponto, duas notórias investidas do Partido Liberal – PL, ao qual filiado Jair Messias Bolsonaro: a contratação de “auditoria paralela”, de peculiar metodologia, e o questionamento administrativo dos resultados da eleição presidencial com base em factoide, que rendeu à agremiação multa por litigância de má-fé em montante superior a R$ 22.000.000,00;

h.5) naturalização do esgarçamento institucional, marcado na prática discursiva do então Presidente da República por afirmações mentirosas, gravíssimas e cada vez mais ousadas sobre uma imaginária manipulação de votos a serviço de uma inventada conspiração no âmbito do TSE;

h.6) difusão de pensamentos intrusivos de que medidas extremas poderiam vir a ser adotadas em caso de vitória de seu adversário, diuturnamente tratada como evidência de fraude, ficando em aberto, no discurso do então Presidente da República, quais meios materiais seriam empregados para tanto; e

h.7) banalização do golpismo pelo então Presidente da República e seu entorno próximo, bem ilustrada pela apatia do ex-Ministro da Justiça do governo primeiro investigado, em dois episódios de escandalosa incitação à instabilidade democrática: a live de 29/07/2021, quando Anderson Torres emprestou a autoridade de seu cargo para afirmar que documentos da Polícia Federal corroboravam grosseiras denúncias de fraude apresentadas pelo primeiro investigado e por Eduardo Gomes; e a inércia em apurar a autoria e o pano de fundo da minuta de decreto de defesa, que, em texto ajustado à técnica legislativa, propunha uma intervenção no TSE a pretexto de restabelecer “a lisura e correção do processo eleitoral presidencial do ano de 2022”;

i) a expressiva votação da chapa investigada (58.206.354 votos no segundo turno, representando 49,1% dos votos válidos) sinaliza, no caso específico, êxito da estratégia de explorar o caos desinformacional como ferramenta de engajamento político apta a minimizar ou eliminar a problematização das inverdades factuais difundidas pelo cabeça da chapa;

j) ao não reconhecer publicamente a legitimidade da eleição de seu adversário em 2022, o primeiro investigado manteve ativa, perante suas bases mais fiéis, a mensagem acerca de riscos de fraude que demandariam reação patriótica, sem jamais transmitir, por meios semelhantes aos empregados em 18/07/2021 (TV Brasil e redes sociais), mensagem enérgica e inequívoca de repúdio à gravíssima convulsão social que se instalou no Brasil após o pleito (com bloqueios de estradas, conflitos com autoridades policiais, acampamentos diante de quartéis, incêndio de ônibus, atentado a bomba e, no dia 08/01/2023, invasão e depredação das sedes dos 3 Poderes em Brasília) e que tinha por mote único a recusa de legitimidade aos resultados eleitorais.

Por fim, está configurada a responsabilidade do primeiro investigado, tendo em vista que os atos foram pessoalmente praticados por ele. Não há como acolher as alegações da defesa que pretendem eximir Jair Messias Bolsonaro de suportar as consequências jurídicas da grave difusão de desinformação com finalidade eleitoral. Saliente-se, diante dos parâmetros traçados pela modelo de accountability, que:

a) não é relevante (tampouco possível) sondar as operações mentais que possam ter levado o primeiro investigado a escolher e concatenar as palavras que voluntariamente proferiu em 18/07/2022;

b) não importa saber o quanto do IPL nº 1361/2018 o primeiro investigado leu, se quis ser fiel ao texto e equivocou-se, ou se agiu conscientemente, fingindo acreditar que a investigação versava sobre fraude eleitoral quando sabia que disso não se tratava;

c) a dúvida e a ignorância não são excludentes de responsabilidade ante o gravíssimo teor da mensagem difundida em 18/07/2022, mas, sim, fatores que impunham parcimônia ao então Presidente da República e recomendavam que deferisse escuta ativa ao órgão de cúpula da governança eleitoral;

d) a suposta simploriedade com que é descrita, pela defesa, a personalidade do anterior ocupante do mais alto cargo do Poder Executivo do país não o autoriza a, diante de documentos técnicos sobre um ataque cibernético, repetir, por meses a fio e com crescente riqueza de detalhes imaginários, que houve uma fraude eleitoral nas Eleições 2018, nas quais inclusive se sagrou vencedor;

e) a condição de Presidente da República candidato à reeleição era incompatível com a utilização de evento oficial, com a presença de representantes diplomáticos e transmissão em emissora pública e nas redes sociais do primeiro investigado, para externar percepções leigas, acusações levianas e dados absolutamente incorretos sobre fatos técnicos, sendo plenamente exigível que o primeiro investigado avaliasse que seu discurso não tinha caráter propositivo e tampouco convidava a diálogo.

Assim, está configurado, nos autos, o uso indevido de meios de comunicação, perpetrado por Jair Messias Bolsonaro mediante difusão massiva de gravíssima desordem informacional sobre o sistema eletrônico de votação e a governança eleitoral brasileira na reunião de 18/07/2022 no Palácio da Alvorada, que foi convocada e protagonizada pelo então Presidente da República, pré-candidato à reeleição, e transmitida pela TV Brasil e pelas redes sociais do primeiro investigado.

3.3.2 Abuso de poder político

Na petição inicial, a causa de pedir jurídica foi definida como uso indevido de meios de comunicação e abuso de poder político. Considerada a natureza da conduta, que envolveu a realização de evento oficial pelo então Presidente da República e sua difusão na televisão e na internet, os ilícitos acabam compartilhando elementos comuns.

Sendo assim, neste tópico, reputa-se integrada a análise já feita ao se tratar do uso indevido dos meios de comunicação, cabendo apenas complementar o exame com aspectos específicos do abuso de poder político ainda não tangenciados no tópico anterior.

A particularidade do abuso de poder político está na utilização do cargo de Presidente da República para a consecução das finalidades eleitorais ilícitas do evento de 18/07/2022. O desvio de finalidade não se limitou ao uso de bens e serviços públicos, pois o que mais sobressaiu na ocasião, e que de fato torna o evento no Palácio da Alvorada um episódio aberrante, foi o uso das prerrogativas e o poder simbólico da Presidência da República e da posição de Chefe de Estado para degradar o ambiente eleitoral.

A própria linha da defesa passa por reconhecer a magnitude simbólica de um encontro convocado pelo Chefe de Estado para se dirigir a embaixadoras e embaixadores de países estrangeiros. Equivoca-se, contudo, ao supor que isso seja capaz de blindar o discurso. Na verdade, é porque o primeiro investigado personificava a Presidência da República e falava em nome da nação brasileira que seus atos discursivos se tornam passíveis de desvio eleitoreiro.

Os bens, serviços e prerrogativas da Presidência da República não são passíveis de apropriação pelos – sempre temporários – ocupantes da cadeira. Tudo o que se coloca à disposição da pessoa eleita tem por finalidade estrita o desempenho de um mandato em nome de toda a sociedade. Por força do princípio republicano, cabe a cada Presidente lembrar que é apenas mais uma pessoa no percurso da construção da democracia brasileira. Devem trazer consigo a responsabilidade de cultivar e fortalecer símbolos e instituições que serão passados adiante por várias gerações.

Símbolos e instituições estes que são tão fortes quanto frágeis. Sua força é evidenciada na coesão social que impulsiona a sociedade brasileira a reafirmar-se como comunidade política democrática, o que vimos ocorrer, com vigor renovado, após os atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023. Mas há uma fragilidade que decorre da natureza plural da democracia.

Acolher diversas visões de mundo e convidar as pessoas que as encampam para compartilhar os mesmos símbolos e as mesmas instituições é desafiador e exige paciência. Há sempre o risco de que propostas totalizantes surjam e seduzam com a promessa, falsa, de uma sociedade em que não haja contradição e conflito de interesses. É nesse contexto que a apropriação de símbolos e o repúdio a instituições podem incitar riscos acentuados à estabilidade democrática.

No caso dos autos, a extrema gravidade do uso indevido de meios de comunicação foi potencializada pelo uso dos símbolos da Presidência da República como arma anti-institucional, visando levar a atuação da Justiça Eleitoral ao completo descrédito perante a sociedade e a comunidade internacional.

No que diz respeito à tipicidade do abuso de poder político, tem-se que o primeiro investigado, valendo-se de seu cargo de Presidente da República e em manifesto desvio de finalidade, atuou para obter vantagens desproporcionais no processo eleitoral que se avizinhava.

Quanto ao ponto, cabe lembrar que já está assentado, sob diversos ângulos, o caráter eleitoral da reunião de 18/07/2022, considerando-se a temática, a comparação entre pré-candidatos, a convergência do discurso com a campanha e a mobilização das bases políticas que em breve seriam acionadas para atuar no pleito. Partindo-se dessa premissa fática, destaca-se que:

a) de acordo com o entorno próximo ao primeiro investigado, a justificativa por ele apresentada para realizar o evento foi a competência privativa do Presidente da República para, em nome do Brasil, “manter relações com Estados estrangeiros” (art. 84, VII, da Constituição), não obstante o tema das eleições, tal como explicado pelo Ministro Chefe da Casa Civil e pelo Ministro das Relações Exteriores, não dizer respeito à política externa;

b) definida a realização do evento e sua inédita temática, a estrutura da Presidência foi movimentada em velocidade recorde para viabilizar que, em três dias úteis, o primeiro investigado tivesse à sua disposição uma plateia formada por quase uma centena de diplomatas e outras 21 autoridades brasileiras, além de cobertura da EBC, para transmissão ao vivo do evento pela TV Brasil;

c) a plateia de luxo e o evento de grande magnitude serviram exclusivamente para que o primeiro investigado fizesse uma apresentação que se resumiu a um apanhado de informações falsas sobre os resultados eleitorais e sobre a atuação do TSE, e todo o aparato foi desfeito sem que fosse tratado qualquer tema de interesse bilateral ou multilateral dos países representados;

d) a única urgência evidenciada para a grande mobilização da máquina pública – e para a exploração da boa-fé de embaixadoras e embaixadores que se prontificaram a comparecer – foi a de permitir que o primeiro investigado desse vazão a seu descontentamento com as ações realizadas durante o Programa para Convidados Internacionais do TSE, semanas antes, em especial com o alerta feito pelo Min. Edson Fachin contra as ameaças do “vírus da desinformação”;

e) a transmissão do evento pela EBC e pelas redes sociais fez chegar a brasileiras e brasileiros uma imagem de grande valor estratégico para a pré-candidatura do primeiro investigado: eleitoras e eleitores viram o Chefe de Estado, do púlpito, lecionar para diplomatas estrangeiros sobre as eleições brasileiras, transmitindo a ideia de que ele era reconhecido pela comunidade internacional como autoridade na matéria, o que reforçou sua pretensão de estabelecer-se como “fonte alternativa” e de intensificar o engajamento de suas bases.

Não há dúvidas da gravidade da conduta, sob o aspecto qualitativo e quantitativo.

Na hipótese, a alta reprovabilidade da conduta está demonstrada pelos seguintes aspectos:

a) bens, serviços e prerrogativas da Presidência da República foram explorados para construir um potente símbolo na disputa travada pelo primeiro investigado com o TSE no âmbito da normatividade de coordenação, o que acentuou o caráter danoso da desinformação divulgada e, com isso, o poder de engajamento do primeiro investigado, em parâmetros inacessíveis por qualquer outra candidatura;

b) o primeiro investigado, em ato de incomensurável gravidade, fez uso de suas credenciais de Chefe de Estado e de Governo para:

b.1) legitimar o acervo de desinformação repetida no evento;

b.2) conferir à polarização eleitoral carga valorativa em nome da nação, fixando por premissa que a eventual vitória de seu adversário seria prova da ocorrência de fraude, pois, nessa visão, a escolha popular livre jamais produziria resultado diverso da sua reeleição;

b.3) tentar convencer a comunidade internacional de que as eleições brasileiras eram marcadas por fraudes sistêmicas e pela atuação corrupta do órgão de governança eleitoral, expondo para o mundo uma imagem negativa e inverídica da democracia brasileira; e

b.4) advertir as nações estrangeiras para não enviar missões de observação internacional ao Brasil, assumindo uma rota de colisão evidente com o TSE e, assim, deixando explícito para os convidados o curto-circuito institucional que o Presidente da República estimulava de forma obstinada;

c) o então Presidente da República também explorou, de forma acintosa, sua competência privativa relativa ao “comando supremo das Forças Armadas” (art. 84, XIII, da Constituição), para, em flerte nada discreto com o golpismo, insinuar que o convite para a Comissão de Transparência colocava os militares como garantes da lisura eleitoral, inclusive por meio de seu comando de defesa cibernética, e que poderiam atuar “para que o ocorrido nas eleições de 2018 [ou seja, a adulteração de votos] não viesse a ocorrer novamente”; e

d) a recorrente menção às “quatro linhas da Constituição” transformou o respeito a limites constitucionais em ato de benevolência do primeiro investigado, fazendo com que, na mesma medida, fosse normalizada uma eventual medida “fora das quatro linhas”, caso necessária, a critério do então Presidente da República, para debelar fraude eleitoral sistêmica.  

No que diz respeito aos efeitos nocivos do desvio de finalidade eleitoreira dos bens, serviços e prerrogativas da Presidência da República sobre o ambiente democrático, basta assinalar, como reforço a tudo o que foi dito, que o cargo detido pelo primeiro investigado foi um componente fundamental de sua empreitada para antagonizar com o Tribunal Superior Eleitoral no âmbito da normatividade de coordenação.

O ponto remete ao precedente fixado no RO-El 0603975-98 (Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJE de 10/12/2021), quando se reconheceu que o uso de redes sociais, por deputado federal, para disseminar desinformação sobre as urnas no dia do pleito, configurava abuso de poder político, tendo em vista que o cargo e a imunidade parlamentar foram utilizados para convencer da veracidade das falsas afirmações que induziam ao descrédito da Justiça Eleitoral.

Pois bem.

No caso em julgamento, todos esses fatores foram elevados exponencialmente, uma vez que, na reunião de 18/07/2022:

a) o orador era o Presidente da República, mais alto mandatário do país, que soma dezenas de milhões de seguidores em diversas plataformas;

b) não foi realizada apenas uma live, mas a transmissão de um evento de caráter oficial, marcado pelo desvio de finalidade;

c) a transmissão ocorreu não somente nas redes sociais do primeiro investigado, mas também em canal de emissora pública;

d) o então Chefe de Estado reverberou a falsa denúncia de fraude que, a essa altura, já havia levado à cassação do diploma de um deputado federal no RO-El 0603975-98 e, indo muito além disso, agregou à narrativa diversas outras gravíssimas e inverídicas afirmações; e

e) o fato ocorreu a menos de três meses antes da eleição e serviu para alinhavar a continuidade de uma prática discursiva extremamente nefasta, trazida das lives de julho e agosto de 2021, e levada adiante durante a campanha eleitoral.

A responsabilidade pessoal do primeiro investigado configura-se, de forma inequívoca, com base no código de conduta imposto ao Presidente da República pelo art. 85 da Constituição. Essa norma, por si, impunha comportamentos que não foram observados pelo primeiro investigado e que desgastaram o tecido democrático.

As condutas apuradas nesta AIJE demonstram que o primeiro investigado negligenciou relevantes premissas simbólicas da relação entre os Poderes da República e explorou, no interesse exclusivo de sua estratégia eleitoral, prerrogativas, bens e serviços empregados para viabilizar um evento que teve por único fim veicular discurso extremamente danoso à normalidade eleitoral.

Assim, também se conclui pela ocorrência do abuso de poder político, praticado de forma pessoal por Jair Messias Bolsonaro, que concebeu, definiu e ordenou que se realizasse, em tempo recorde, evento estratégico para sua pré-campanha, no qual fez uso de sua posição de Presidente da República, de Chefe de Estado e de “comandante supremo” das Forças Armadas para potencializar os efeitos da massiva desinformação a respeito das eleições brasileiras apresentada à comunidade internacional e ao eleitorado.

3.3.3 Aferição das consequências jurídicas aplicáveis

Uma vez configurados o uso indevido de meios de comunicação e o abuso de poder político, conclui-se que a chapa composta por Jair Messias Bolsonaro e Walter Souza Braga Netto auferiu benefícios ilícitos na disputa presidencial de 2022.

Diante disso, considerando-se a incidência ex lege das consequências previstas no art. 22, XIV, da LC nº 64/1990, cabe apreciar a pertinência de: a) declarar a inelegibilidade, por oito anos subsequentes ao pleito de 2022, de quantos hajam contribuído para a prática dos atos ilícitos; e b) cassar o diploma das candidaturas beneficiadas; c) remeter os autos ao Ministério Público Eleitoral; e d) avaliar outras providências que a espécie comportar.

No caso dos autos, tem-se de plano prejudicada a cassação dos diplomas dos investigados, uma vez que foram derrotados no pleito. Isso, contudo, não afasta o efeito declaratório da decisão quanto ao reconhecimento de que a chapa presidencial composta por Jair Messias Bolsonaro e Walter Souza Braga Netto foi favorecida por condutas ilícitas no pleito de 2022.

Fixada a responsabilidade pessoal e direta de Jair Messias Bolsonaro pelas práticas ilícitas, impõe-se declarar sua inelegibilidade, pelo período de oito anos a contar das Eleições 2022.

Ademais, tendo em vista que a decisão não está sujeita a recurso dotado de efeito suspensivo automático (art. 121, § 3º, do Código Eleitoral) deve-se providenciar a imediata anotação da hipótese restritiva na inscrição eleitoral de Jair Messias Bolsonaro.

Por outro lado, não há elementos que autorizem a declaração de inelegibilidade de Walter Souza Braga Netto, tendo em vista não haver prova de sua contribuição pessoal para as práticas ilícitas.

Como derradeiras providências neste julgamento, concluo pela pertinência da comunicação da decisão:

a) à Procuradoria-Geral Eleitoral, para análise de eventuais providências na esfera penal;

b) ao Tribunal de Contas da União, considerando-se o comprovado emprego de bens e recursos públicos na preparação de evento em que se consumou o desvio de finalidade eleitoreira; e

c) ao Min. Alexandre de Moraes, na condição de Relator, no STF, dos Inquéritos nos 4878/DF e 4879/DF, e ao Min. Luiz Fux, na condição de Relator da Petição nº 10.477/DF, para ciência e providências que entenderem cabíveis.

4. Considerações finais

Ao final da extensa análise das alegações e provas produzidas, dos fatos e indícios e das teses jurídicas debatidas nos autos, dizer que o caso em julgamento amolda-se ao precedente fixado no RO-El 0603975-98 (Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJE de 10/12/2021) é muito pouco. Quase um eufemismo.

A verdade é que os ilícitos comprovados neste feito em tudo transbordam os critérios que haviam sido aplicados naquele julgamento, e me levam a ter que recorrer a termos contundentes, que reflitam a gravidade de tudo o que foi apurado.

Os ilícitos transbordam na leviandade com que foram tratadas investigações em curso e documentos técnicos, cujo teor foi publicizado fora de contexto e com distorções severas.

Transbordam no uso das prerrogativas do cargo público e do comando das Forças Armadas para promover o acirramento de tensões institucionais, inclusive após o pleito, marcado pela ausência de um esperado gesto de inequívoca aceitação dos resultados eleitorais pelo então Presidente da República.

Transbordam na virulência com que se tentou deturpar a trajetória de vida de três Ministros Presidentes do TSE, apenas para criar inimigos imaginários, que liderariam uma inventada conspiração para fraudar resultados eleitorais.

Transbordam na covardia das acusações forjadas contra servidores da Justiça Eleitoral, pessoas cujas atitudes concretas, nos episódios examinados, dão mostra de sua competência técnica e de seu compromisso institucional.

Transbordam na degradação da cadeia de confiança, que levou a um cenário de caos informacional que vem provocando danos graves ao debate democrático.

Transbordam na manipulação de sentidos, em que supostos desejos de liberdade, transparência e estabilidade democrática são mesclados a uma violência discursiva extrema, destinada a fazer da desconfiança infundada na Justiça Eleitoral um fator de mobilização político-eleitoral.

Transbordam, enfim, no golpismo, sob a forma de um flerte perigoso com soluções extremas supostamente motivadas pelo desejo de eleições transparentes e autênticas, obstinadamente repetido para jamais ser saciável.

Os ilícitos perpetrados pessoalmente pelo primeiro investigado, na condição de Presidente da República, Chefe de Estado e candidato à reeleição em 2022, esgarçaram a normalidade democrática e a isonomia. Ao propor uma cruzada contra uma inexistente conspiração para fraudar eleições, o primeiro investigado não estava perdido em autoengano. Estava fazendo política e estava fazendo campanha. A recusa de valor ao conhecimento técnico a respeito das urnas e a repulsa à autoridade do TSE foram manejadas como ferramentas de engajamento.

As lives realizadas em julho e agosto de 2021 conectam-se discursivamente à reunião de 18/07/2022, em uma espiral de inverdades cada vez mais ousadas. O primeiro investigado, de forma hábil, conseguiu se impor para parte do eleitorado como fonte confiável a respeito do sistema de votação e exerceu esse papel com desprezo às informações técnicas e à verdade dos fatos. Mobilizando sentimentos negativos, acirrou tensões institucionais e instigou a crença de que a adulteração de resultados era uma ameaça que rondava o pleito de 2022.

A banalização do golpismo – meramente simbolizada, nestes autos, pela minuta que propunha intervir no TSE e dormitava, sem causar desassossego, em uma pasta na residência do ex-Ministro da Justiça – é um desdobramento grave de ataques infundados ao sistema eleitoral de votação. O primeiro investigado não é, certamente, o único elo que conecta esses fenômenos. Mas é pessoalmente responsável pela preparação, execução e transmissão do encontro de 18/07/2022 e, sobretudo, pelos efeitos pragmáticos da mensagem que deliberadamente difundiu naquela data.

A mensagem comunicada no contexto foi a de que era absolutamente improvável que o TSE fosse capaz de entregar resultados autênticos nas Eleições 2022.  Uma mensagem factualmente falsa, que alcançou a comunidade internacional, representada pelos convidados presentes, e o eleitorado, que acompanhou o evento pela TV Brasil e pelas redes sociais. A pompa e circunstância da ocasião, bem como a proximidade ao período eleitoral, amplificaram o impacto do já familiar discurso sobre fraude eleitoral.

A cadeira ocupada pelo primeiro investigado lhe impunha zelar pelo livre exercício da competência da Justiça Eleitoral, pelos bens jurídicos eleitorais inerentes ao exercício de direitos políticos e, ainda, pela segurança interna. Mas, a toda evidência, agiu frontalmente contra esses deveres.

O evento de 18/07/2022 foi planejado como uma resposta ao TSE, ante o incômodo do primeiro investigado com o alerta do então Presidente do Tribunal contra o “vírus da desinformação”. As prerrogativas de Chefe de Estado, os bens e serviços públicos (inclusive da estatal EBC) e as redes sociais do primeiro investigado foram postas em ação para realizar um evento de maior envergadura, status e alcance sobre o tema. Mas tratava-se de um espelho distorcido, em que o primeiro investigado desfiou um monólogo insidioso sobre o sistema de votação eletrônico, a Justiça Eleitoral e as eleições iminentes.

Com habilidade, costurou os retalhos de informações falsas, já tão naturalizadas em sua fala que soavam legítimas.

Usou como linha o simulacro de desejo por eleições transparentes e por resultados autênticos.

Bordou o discurso com um apelo rude para que a comunidade internacional não desse ouvidos ao TSE.

E arrematou os pontos com o alerta de que algo precisava ser feito – uma ação ainda sem verbo, mas que partia da ideia de que a simbiose Presidência da República/Forças Armadas jamais aceitaria uma imaginária farsa eleitoral.

O resultado dessa tapeçaria não ornou com os fundamentos sobre os quais o Brasil se constrói, como comunidade política e como Estado Democrático de Direito: soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana e pluralismo político.

A missão da Justiça Eleitoral converge, e seguirá convergindo, com esses fundamentos, ao concretizar eleições em que se assegura a todas as cidadãs e a todos os cidadãos o uso de um sistema de votação íntegro, transparente, auditável e em constante evolução tecnológica.

A sociedade civil, as instituições democráticas e a comunidade internacional serão sempre bem-vindas ao diálogo construtivo, sem receios de críticas, testes que demonstrem vulnerabilidades passíveis de aprimoramento e aprendizado com a experiências de outros países.

O TSE também se manterá firme em seu dever de, como órgão de cúpula da governança eleitoral, transmitir informações verídicas e atuar para conter o perigoso alastramento da desinformação que visa desacreditar o próprio regime democrático.

As agressões violentas à Justiça Eleitoral, na verdade, confirmam a importância da instituição para a salvaguarda da democracia. Realizamos eleições que são um exemplo para o mundo e que permitem a transmissão célere e pacífica do poder democrático.

Isso, sem dúvida, desagrada àqueles que nutrem projetos autoritários de poder. O golpismo, que no século XXI paira na superfície do tecido social, exige vigilância ininterrupta por parte de democratas de qualquer espectro. Cabe a todos nós reafirmar diariamente um pacto de civilidade, pano de fundo para que opiniões políticas e preferências eleitorais possam ser manifestadas de forma livre.

Por isso, o caos informacional em torno do sistema eletrônico de votação e a grave crise de confiança institucional por ele gerado devem ser enfrentadas em conjunto. Não apenas por tribunais, magistradas, magistrados, servidoras e servidores. Mas, também, por todas as cidadãs e todos os cidadãos, titulares que são do direito a um devido processo eleitoral: isonômico, normal e legítimo. Eleitoras e eleitores têm direito não apenas a votar livremente, mas a participar de um debate público calcado em informações verídicas, para que possam formar opiniões e manifestar preferências, em ambiente de estabilidade democrática.

Soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana e pluralismo político: que possamos diuturnamente nos aprimorar, como sociedade, a partir desses fundamentos.

Que o sentido e as nuances de cada um deles sejam construídos no debate de ideias, a salvo de ideologias totalitárias.

Que as bandeiras que eles inspiram possam pautar as divergências políticas salutares à democracia, jamais servir para conclamar a eliminação de adversários, vistos como inimigos.

Que sejam, enfim, a chave para reconstruir pontes de diálogo, pois, citando José Luiz Aidar Prado, “a única forma de atravessar os imaginários cristalizados das fantasias ideológicas é coletivamente pela palavra, rompendo [...] as palavras de ódio, os performativos de injúria, sem cair na polarização imaginária, criando vida coletiva onde ela tenderia a inexistir ou a existir somente na forma de rebanhos que seguem o líder” (PRADO, José Luiz Aidar. 2010-2020: as redes e a democracia em crise. In: PEREIRA, Heloisa Prates; PRADO, José Luiz Aidar; PRATES, Vinícius. Comunicação em rede na década do ódio: afetos e discursos em disputa na política. Barueri, SP: Estação das Letras e Cores, 2022, pp. 43-44.).

Por uma última vez, então, neste voto: soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana e pluralismo político. Se estas forem as multicitadas “quatro linhas da Constituição”, que possamos cultivá-las, com afeto, com responsabilidade e sem medo.

DISPOSITIVO

Ante todo o exposto, não conheço da preliminar de incompetência da Justiça Eleitoral e da prejudicial de “redelimitação” da demanda, tendo em vista tratar-se de questões já decididas pelo TSE, em Plenário.

Ainda em sede preliminar, rejeito a preliminar de ilegitimidade passiva ad causam do segundo investigado e a alegação de nulidade processual, bem como indefiro o requerimento de reabertura da instrução.

No mérito, julgo parcialmente procedente o pedido para condenar o primeiro investigado, Jair Messias Bolsonaro, pela prática de abuso de poder político e de uso indevido de meios de comunicação nas Eleições 2022 e, em razão de sua responsabilidade direta e pessoal pela conduta ilícita praticada em benefício de sua candidatura à reeleição para o cargo de Presidente da República, declarar sua inelegibilidade por 8 (oito) anos seguintes ao pleito de 2022.

Deixo de aplicar a cassação do registro de candidatura dos investigados, exclusivamente em virtude de a chapa beneficiária das condutas abusivas não ter sido eleita, sem prejuízo de reconhecer-se os benefícios ilícitos auferidos, por ambos os investigados.

Deixo também de declarar a inelegibilidade do segundo investigado, Walter Souza Braga Netto, em razão de não ter sido demonstrada sua responsabilidade para a consecução das práticas ilícitas comprovadas nos autos.

Tendo em vista o não cabimento de recurso com efeito suspensivo, determino a comunicação imediata desta decisão à Secretaria da Corregedoria-Geral Eleitoral para que, independentemente da publicação do acórdão, promova a devida anotação no histórico de Jair Messias Bolsonaro, no Cadastro Eleitoral, da hipótese de restrição à sua capacidade eleitoral passiva.

Comunique-se a decisão, também em caráter imediato, mediante envio do voto e posteriormente do acórdão:

a) à Procuradoria-Geral Eleitoral, para análise de eventuais providências na esfera penal;

b) ao Tribunal de Contas da União, considerando-se o comprovado emprego de bens e recursos públicos na preparação de evento em que se consumou o desvio de finalidade eleitoreira; e

c) ao Min. Alexandre de Moraes, na condição de Relator, no STF, dos Inquéritos nos 4878/DF e 4879/DF, e ao Min. Luiz Fux, na condição de Relator da Petição nº 10.477/DF, para ciência e providências que entenderem cabíveis.

É como voto.

O SENHOR MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES (presidente): Agradeço ao eminente Ministro Benedito Gonçalves pelo voto, pelo aprofundado estudo que fez e consulto o Ministro Raul Araújo, se Vossa Excelência pretende, prefere votar hoje, ou, em virtude do adiantado da hora, prefere que nós iniciemos a sessão de quinta-feira com o voto de Vossa Excelência?

O SENHOR MINISTRO RAUL ARAÚJO: Boa noite, Senhor Presidente, Senhora Ministra Cármen Lúcia, Senhores Ministros, Senhor Vice-Procurador-Geral Eleitoral, senhoras e senhores advogadas e advogados, servidoras e servidores da Corte, a todos que acompanham os nossos trabalhos. Cumprimento, em especial, o eminente relator, Ministro Benedito Gonçalves, que nos traz um voto profundo, com excelente exame acerca do caso.

Pondero, entretanto, eminente Presidente, que, em função do adiantado da hora, talvez na quinta-feira fosse mais adequado que continuássemos os nossos trabalhos e este julgamento que já se perfaz até esta hora adiantada.

O SENHOR MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES (presidente): Sem problema, Ministro Raul. Até na quinta-feira, talvez, o Ministro Benedito faça um resuminho para nós também.

O SENHOR MINISTRO RAUL ARAÚJO: Para relembrarmos.

O SENHOR MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES (presidente): Para relembrarmos.

O SENHOR MINISTRO BENEDITO GONÇALVES (relator): Uma hora e meia está bom.

 

 

PROCLAMAÇÃO DO RESULTADO (provisório)

 

O SENHOR MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES (presidente): Eu proclamo o resultado parcial do julgamento: O Ministro Relator não conheceu da preliminar de incompetência da Justiça Eleitoral, também não conhecendo da prejudicial de redelimitação da demanda, tendo em vista tratar-se de questões já decididas pelo Tribunal Superior Eleitoral em Plenário.

Também o eminente Ministro Relator, em sede preliminar, rejeitou a preliminar de ilegitimidade passiva ad causam do segundo investigado e a alegação de nulidade processual, bem como indeferiu o requerimento de reabertura da instrução.

No mérito, Sua Excelência julgou parcialmente procedente o pedido para condenar o primeiro investigado, Jair Messias Bolsonaro, pela prática de abuso de poder político e de uso indevido dos meios de comunicação nas Eleições 2022, em razão de sua responsabilidade direta e pessoal pela conduta ilícita praticada em benefício de sua candidatura à reeleição para o cargo de presidente da República, Sua Excelência declarou sua inelegibilidade por 8 (oito) anos seguintes ao pleito de 2022, deixou de aplicar a cassação de registro da candidatura dos investigados, exclusivamente em virtude de a chapa beneficiária das condutas abusivas não ter sido eleita, reconhecendo que os benefícios ilícitos foram auferidos por ambos os investigados.

Também no voto, deixou de declarar a inelegibilidade do segundo investigado, Walter Souza Braga Netto, em razão de não ter sido demonstrada sua responsabilidade para consecução das práticas ilícitas comprovadas nos autos.

Sua Excelência, também em virtude da ausência do cabimento de recurso com efeito suspensivo, determinou a comunicação imediata da decisão à Secretaria da Corregedoria-Geral Eleitoral para que, independentemente da publicação do acórdão, possa promover a devida anotação no histórico de Jair Messias Bolsonaro no cadastro eleitoral, da hipótese de restrição à sua capacidade eleitoral passiva. Também determinou a comunicação da decisão, em caráter imediato, mediante envio de voto e posteriormente do acórdão, à Procuradoria-Geral Eleitoral para análise de eventuais providências na esfera penal, ao Tribunal de Contas da União, considerando-se o comprovado emprego de bens e recursos públicos na preparação do evento em que se consumou o desvio de finalidade eleitoreira e ao Ministro Luiz Fux, na condição de relator da Petição 10.477, e a mim, na condição de relator, ambos do Supremo Tribunal Federal, dos Inquéritos 4878 e 4879.

Após o voto do eminente relator, o julgamento foi suspenso para continuidade na próxima sessão. Informo que o julgamento será retomado na próxima quinta-feira, dia 29 de junho, a partir das 9h da manhã.

 

EXTRATO DA ATA

 

AIJE nº 0600814-85.2022.6.00.0000/DF. Relator: Ministro Benedito Gonçalves. Representante: Partido Democrático Trabalhista (PDT) – Nacional (Advogados: Walber de Moura Agra – OAB: 757-B/PE e outros). Representados: Jair Messias Bolsonaro e outro (Advogados: Tarcisio Vieira de Carvalho Neto – OAB: 11498/DF e outros).

Decisão: Retomado o julgamento, o relator (i) não conheceu da preliminar de incompetência da Justiça Eleitoral e da prejudicial de "redelimitação" da demanda, (ii) rejeitou a preliminar de ilegitimidade passiva ad causam do segundo investigado e a alegação de nulidade processual; (iii) indeferiu o requerimento de reabertura da instrução; e, no mérito, julgou parcialmente procedente o pedido, para condenar o primeiro investigado, Jair Messias Bolsonaro, pela prática de abuso de poder político e de uso indevido de meios de comunicação nas Eleições 2022, e declarar sua inelegibilidade por 8 (oito) anos seguintes ao pleito de 2022, não aplicando a cassação do registro de candidatura dos investigados, exclusivamente em virtude de a chapa beneficiária das condutas abusivas não ter sido eleita, e deixando de declarar a inelegibilidade do segundo investigado, Walter Souza Braga Netto, em razão de não ter sido demonstrada sua responsabilidade para a consecução das práticas ilícitas comprovadas nos autos. Por fim, determinou a comunicação imediata da decisão: (a) à Secretaria da Corregedoria-Geral Eleitoral para que, independentemente da publicação do acórdão, promova a devida anotação no histórico de Jair Messias Bolsonaro no Cadastro Eleitoral da hipótese de restrição a sua capacidade eleitoral passiva; (b) à Procuradoria-Geral da República, para análise de eventuais providências na esfera penal; (c) ao Tribunal de Contas da União, considerando-se o comprovado emprego de bens e recursos públicos na preparação de evento em que se consumou o desvio de finalidade eleitoreira; e (d) ao Ministro Alexandre de Moraes, na condição de relator, no STF, dos Inquéritos n° 4878/DF e 4879/DF, e ao Ministro Luiz Fux, na condição de relator da Petição nº 10.477/DF, para ciência e providências que entenderem cabíveis.

Em seguida, o julgamento do processo foi suspenso para continuidade na próxima sessão.

Registradas as presenças, no Plenário, do Dr. Walber de Moura Agra e da Dra. Ezikelly Silva Barros, advogados do representante, Partido Democrático Trabalhista (PDT) – Nacional; e do Dr. Tarcisio Vieira de Carvalho Neto, advogado dos representados, Jair Messias Bolsonaro e Walter Souza Braga Netto.

Composição: Ministros Alexandre de Moraes (presidente), Cármen Lúcia, Nunes Marques, Benedito Gonçalves, Raul Araújo, Floriano de Azevedo Marques e André Ramos Tavares.

Vice-Procurador-Geral Eleitoral em exercício: Carlos Frederico Santos

 

SESSÃO ORDINÁRIA REALIZADA EM REGIME HÍBRIDO EM 27.6.2023.

 

 VOTO

 

O SENHOR MINISTRO RAUL ARAÚJO: Senhor Presidente, eminentes Pares, cumprimento o e. Relator, Ministro Benedito Gonçalves, pelo trabalho hercúleo e pelo denso e percuciente voto, saudando também o ilustre Vice-Procurador-Geral Eleitoral e os nobres advogados das partes investigante e investigadas, pelo elevado nível dos debates.

Feito esse breve registro, rememore-se que o objeto central da demanda é a apuração da conduta imputada a JAIR MESSIAS BOLSONARO, que, na qualidade de então Presidente da República e candidato à reeleição, realizou, em 18.7.2022, reunião com diversos embaixadores de países estrangeiros dentro das instalações do Palácio da Alvorada, com transmissão pela empresa pública TV Brasil (EBC).

Na perspectiva da parte autora, o discurso proferido pelo primeiro investigado teve como temáticas a vulnerabilidade do sistema de votação adotado no processo eleitoral brasileiro e a parcialidade de membros do Supremo Tribunal Federal - STF e do Tribunal Superior Eleitoral - TSE, lançando mão, em sua compreensão, de retórica cujo eixo estruturante consistiu em fomentar “desordem informacional”, com nítido viés político-eleitoral, a servir como combustível para causar efervescência em seu eleitorado mediante a propagação de fatos sabidamente inverídicos.

O investigante imputa a JAIR MESSIAS BOLSONARO a prática de abuso de poder político e uso indevido dos veículos e meios de comunicação social, consubstanciados na prática de três ilícitos eleitorais, os quais serão analisados na sequência.

I – EXAME DAS PRELIMINARES

1.1. Da incompetência da Justiça Eleitoral

Inicialmente, renovam os investigados a tese de pretensa incompetência da Justiça Eleitoral para processar e julgar o feito.

Como cediço, a temática da competência jurisdicional em razão da matéria é de ordem absoluta e imbrica-se com diversos direitos e garantias fundamentais, entre eles o do Devido Processo Legal e seu consectário do Juiz Natural. 

Todavia, é inviável o acolhimento da preliminar, pois a alegação trazida pela parte autora confunde preliminar e mérito ao invocar a incompetência da Justiça Eleitoral sob o fundamento de que o ato inquinado teria sido praticado como ato de Governo, sem caráter eleitoral.

Conforme a jurisprudência pátria, “[p]ara aferição da competência jurisdicional, os fatos sob análise são aqueles delineados na peça acusatória de ingresso, in status assertionis" (STJ: HC nº 295.458/SP, Quinta Turma, Rel. Min. REYNALDO SOARES DA FONSECA, DJe de 29/8/2016). No mesmo sentido: RO-El nº 0601585-09/SE,rel. Min. SÉRGIO BANHOS, DJe de 10.6.2022; AIJE (nº 0601864-88/DF, rel. Min. JORGE MUSSI, DJe de 25.9.2019.

Na espécie, a causa de pedir apresentada pela petição inicial qualifica como eleitorais os fatos debatidos – quais sejam, a reunião realizada em 18.7.2022, o discurso ali proferido e a subsequente divulgação do conteúdo –, subsumindo-os aos ilícitos do abuso do poder político e do uso indevido dos meios de comunicação, previstos no art. 22 da LC nº 64/1990, razão pela qual a pretensão possui nítido cariz eleitoral, a legitimar a atuação deste ramo do Poder Judiciário.

A pertinência, ou não, da imputação, por outro lado, é tema afeto exclusivamente ao exame do mérito.

Assim, consistindo a causa de pedir, na forma apresentada pela parte autora, em matéria com inequívocos contornos eleitorais, conforme já assentou o Plenário deste Tribunal Superior em diversas oportunidades – (a) ad referendum no presente feito, pela rejeição desta preliminar, bem como (b) nas Rps nºs 0600549-83/DF, 0600550-68/DF, 0600556-75/DF, 0600741-16/DF, todas de relatoria da e. Min. MARIA CLAUDIA BUCCHIANERI, ao analisar o caso pela ótica de propaganda eleitoral antecipada –, torna-se forçosa a atração da competência desta Justiça especializada.

À luz do estrito recorte fático versado na inicial, descabe falar em incompetência do TSE, de modo que acompanho o e. relator para rejeitar a preliminar de incompetência.

1.2. Da ilegitimidade passiva ad causam do candidato a Vice-Presidente

Os investigados também questionam a legitimidade do candidato a Vice-Presidente, WALTER SOUZA BRAGA NETTO, para figurar no polo passivo da demanda, à míngua de imputação específica, por parte dos autores, de qualquer participação, “direta ou indireta, nos atos questionados, inviabilizando-se, assim, a aplicação da sanção de inelegibilidade na espécie, única possível de aplicação frente ao insucesso da chapa no pleito eleitoral presidencial de 2022”.

Contudo, a presente AIJE foi ajuizada em 19.8.2022, quando os investigados compunham uma das chapas concorrentes às eleições presidenciais, sendo inafastável a conclusão de que, à época da deflagração da demanda, seria eventualmente aplicável a sanção de cassação do registro ou diploma na hipótese de a chapa sagrar-se vencedora do pleito.

Assim, a inclusão do então candidato a vice, enquanto sujeito de direitos, foi imprescindível para que lhe fosse oportunizado o exercício do contraditório e da ampla defesa, notadamente ao se considerar a potencialidade de o deslinde do feito afetar sua esfera jurídica.

Aliás, não à toa, o Verbete Sumular nº 38 do TSE dispõe que, “nas ações que visem à cassação de registro, diploma ou mandato, há litisconsórcio passivo necessário entre o titular e o respectivo vice da chapa majoritária”, pois sintetiza orientação jurisprudencial que resguarda o princípio da unicidade ou indivisibilidade da chapa.

Nesse mesmo sentido:

AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL [...]. PRESIDENTE DA REPÚBLICA. VICE–PRESIDENTE. TERCEIROS. PRELIMINARES. REJEIÇÃO. TEMA DE FUNDO. ABUSO DO PODER ECONÔMICO. USO INDEVIDO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO SOCIAL. ART. 22 DA LC 64/90 [...].

5. Rejeita-se a preliminar de ilegitimidade passiva do titular da chapa eleita, sendo a princípio possível a cassação do diploma ainda que não tenha participado diretamente do ilícito, pois os bens jurídicos tutelados pelos arts. 14, § 9º, da CF/88 e 22 da LC 64/90 são a normalidade e a legitimidade do pleito. Precedentes.

(AIJE nº 0601771-28/DF, rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 28.10.2021)

Perfilhar conclusão diversa, com as devidas vênias, implicaria desconsiderar o zelo da parte autora na inclusão do candidato a vice no polo passivo, fato que oportunizaria ao investigado a alegação de decadência do direito de ação e culminaria, por conseguinte, na extinção prematura do feito.

Dessa forma, tal como proposto pelo e. relator, acompanho-o para rejeitar a preliminar de ilegitimidade.

1.3. Da ampliação objetiva da demanda

Irresignam-se os investigados acerca da juntada, sob rótulo de “documento novo”, da minuta de decretação do Estado de Defesa, apreendida pela Polícia Federal na residência do ex-Ministro da Justiça e Segurança Pública do Governo de Jair Bolsonaro, Anderson Torres, logo após o malfadado dia 8.1.2023.

Externalizam objeção à pertinência da inclusão do predito documento, ao argumento de afronta à estabilização da demanda, bem como aos princípios da congruência, do contraditório e da segurança jurídica.

Articulam inexistir qualquer conexão com a demanda, além de perfazer documento apócrifo, que nem sequer pode ser juridicamente considerado como “documento”.

Sustentam, ainda, que chancelar sua inclusão seria admitir, por presunção, relação dos investigados com a predita minuta, além de ser medida descabida, porquanto a controvérsia já estava delimitada, havendo decadência quanto ao ponto.

Em seu judicioso voto, o eminente Relator entendeu que o tema se encontra atingido pela preclusão pro judicato, razão pela qual não conheceu da alegação, e, subsidiariamente, rejeitou-a.

Todavia, embora não se desconheça que, na sessão de 14.2.2023, esta Corte admitiu a juntada da malsinada Minuta, ainda que sob o rótulo de “fato superveniente”, não vislumbro, aqui, óbice à análise do tema agora no julgamento da ação. Explica-se.

Em primeiro lugar, há de se destacar que a doutrina conceitua preclusão como o “fato processual impeditivo que acarreta a perda de faculdade da parte. Pode decorrer simplesmente do transcurso do prazo legal (preclusão temporal); da incompatibilidade de um ato já praticado e outro que se deseje praticar (preclusão lógica); ou do fato de já ter sido utilizada a faculdade processual, com ou sem proveito para a parte (preclusão consumativa)” (THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil: teoria geral do direito processual civil e processo de conhecimento. 55. ed. v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 558)

Portanto, em qualquer das modalidades acima citadas, o elemento caracterizador da preclusão é “a perda da possibilidade de praticar um ato processual (CÂMARA, Alexandre Freitas. Manual de direito processual civil. 2. ed. Barueri [SP]: Atlas, 2023, p. 526), o que, por óbvio, pressupõe a existência de um ato processual passível de ser praticado pela parte interessada.

No caso dos autos, o tema relativo à indevida ampliação da causa de pedir decorrente da juntada aos autos da Minuta de Decreto de Estado de Defesa fora objeto de apreciação monocrática pelo eminente Relator (ID 158554507), em decisão interlocutória posteriormente referendada pelo Plenário do Tribunal Superior Eleitoral, em Acórdão de 14.2.2023.

Entretanto, o referendo da decisão pela Corte, admitindo a juntada daquela Minuta de Decreto, não altera sua natureza jurídica – qual seja, de questão processual apreciada em decisão interlocutória –, pois esta é definida pelo conteúdo, e não pelo emissor, a partir da constatação de que o ato jurisdicional possui conteúdo decisório, mas sem a aptidão de encerrar um procedimento (CPC, art. 203, §§ 1º e 2º).

Tanto é assim que a própria ementa do Acórdão acima mencionado resume a decisão proferida pelo Tribunal da seguinte forma: “Decisão interlocutória referendada” (ID 158704139), ponto ratificado em outras palavras, in verbis:

AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ELEIÇÕES 2022. PRESIDENTE. JUNTADA DE DOCUMENTO NOVO. FATOS SUPERVENIENTES. ADMISSIBILIDADE. DESDOBRAMENTO DE FATOS QUE COMPÕEM A CAUSA DE PEDIR. PEDIDO DE RECONSIDERAÇÃO. DECADÊNCIA. VIOLAÇÃO À ESTABILIZAÇÃO DA DEMANDA. INOCORRÊNCIA. QUESTÕES PREJUDICIAIS REJEITADAS. DECISÃO REFERENDADA.

1. Trata–se de decisão em que, rejeitadas as prejudiciais de decadência e de violação à estabilização da demanda, indeferiu–se pedido de reconsideração formulado contra a admissibilidade de documento novo juntado aos autos durante a fase de instrução.

(...)

6. Diante disso, na decisão de organização e saneamento do processo, consignou–se que os fatos constitutivos (o evento, o discurso e seu conteúdo) são incontroversos e que as partes disputam a narrativa sobre o significado e o impacto eleitoral do episódio. Ressaltou–se que, em matéria de abuso de poder, o exame da gravidade da conduta, sob o ângulo qualitativo e quantitativo, reclama especial atenção para a análise de elementos contextuais.

(...)

14. Os temas das ações propostas são de conhecimento público. Não há segredo de justiça. As decisões de admissibilidade, de concessão de tutela inibitória e de saneamento, bem como outras de caráter interlocutório, têm contemplado cuidadoso delineamento das matérias em discussão.

(...)

17. Mantido o indeferimento do pedido de reconsideração.

18. Decisão interlocutória referendada.

(Ação de Investigação Judicial Eleitoral nº 060081485, Acórdão, Relator(a) Min. Benedito Gonçalves, Publicação:  DJE - Diário de Justiça Eletrônico, Tomo 30, Data 03/03/2023)

Não havendo dúvidas quanto ao ponto, estabelece o art. 48 da Resolução TSE n. 23.608, de 18 de dezembro de 2019 – dispondo “sobre representações, reclamações e pedidos de direito de resposta previstos na Lei nº 9.504/1997 para as eleições” –, no capítulo específico relativo aos procedimentos especiais, dentre os quais figura a AIJE:

Art. 48. As decisões interlocutórias proferidas no curso da representação de que trata este capítulo não são recorríveis de imediato, não precluem e deverão ser novamente analisadas pela juíza ou pelo juiz eleitoral ou pela juíza ou pelo juiz auxiliar por ocasião do julgamento, caso assim o requeiram as partes ou o Ministério Público Eleitoral em suas alegações finais.

Em idêntico sentido é a Resolução TSE n. 23.478, de 10 de maio de 2016 – a qual “estabelece diretrizes gerais para a aplicação da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 - Novo Código de Processo Civil , no âmbito da Justiça Eleitoral” – cujo artigo 19 prescreve que “as decisões interlocutórias ou sem caráter definitivo proferidas nos feitos eleitorais são irrecorríveis de imediato por não estarem sujeitas à preclusão, ficando os eventuais inconformismos para posterior manifestação em recurso contra a decisão definitiva de mérito”.

Portanto, não sendo as decisões interlocutórias proferidas no curso da ação de investigação eleitoral recorríveis, inexiste ato processual de discordância disponível à parte inconformada, razão pela qual não se pode falar em preclusão da prerrogativa de provocar a Corte agora “por ocasião do julgamento”, caso assim requeira o interessado, “em suas alegações finais” (Res. TSE n. 23.608/19, art. 48), o que foi feito pelos ora investigados.

A doutrina eleitoral caminha no mesmo sentido, ao afirmar que “não há preclusão da matéria debatida nas decisões interlocutórias, tendo em vista que estas podem ser revistas pelo Juízo no momento do processo principal, conforme artigo 29 da Resolução TSE n. 23.462/15[1]. Assim, não há qualquer vedação para que o próprio Juízo prolator da decisão reanalise o tema da decisão interlocutória no julgamento principal do processo” (ROLLEMBERG, Gabriela, KUFA, Karina. Aspectos polêmicos e atuais da ação de investigação judicial eleitoral. In Tópicos avançados de direito processual eleitoral: de acordo com a Lei n. 13.165/15 e com o Novo Código de Processo Civil. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2018, p. 489).

Sob outra perspectiva, tampouco é legítimo afirmar que a nobre iniciativa do Relator em levar ao Plenário o referendo do tema atrairia a preclusão pro judicato, inviabilizando que a parte interessada reiterasse agora seus argumentos, pois tal proceder representaria, ao mesmo tempo, violação transversa a um direito expressamente reconhecido pela legislação eleitoral, em violação ao devido processo legal, e clara ofensa à garantia constitucional do contraditório (Constituição, art. 5º, LIV e LV).

Isso porque, nas palavras da doutrina, “contemporaneamente, em um Estado Constitucional, Democrático e de Direito, o princípio do contraditório possui também outros conteúdos, não só os meramente formais. Além dos direitos à comunicação dos atos processuais e à manifestação, também integram o princípio do contraditório os direitos à participação no desenvolvimento do processo, à influência no conteúdo das decisões judiciais, das partes de terem seus argumentos considerados e de não serem surpreendidas com a prolação de decisão surpresa. O princípio, assim, indubitavelmente, ganha aspectos substanciais” (SANTOS, Welder Queiroz dos. Direito processual civil: princípio do contraditório e vedação de decisão surpresa. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 56).

Ora, na dinâmica processual estabelecida pela Resolução TSE n. 23.608/2019, no que tange às decisões interlocutórias, o diálogo entre a parte e o órgão julgador ocorre por intermédio das razões trazidas nas alegações finais, sendo este o momento apropriado para que o interessado – já ciente de todo o desenvolvimento da instrução – argumente no sentido da irregularidade de algum ato jurisdicional.

Esse direito não pode ser negado à parte investigada, sob pena de violação ao devido processo legal e ao contraditório (Constituição, art. 5º, LIV e LV), em especial quando diante de gravosas medidas passíveis de serem aplicadas no âmbito da ação de investigação judicial eleitoral.

Por absoluta similaridade com o caso dos autos, confira-se o seguinte precedente do TSE, no qual não se conheceu de recurso interposto contra decisão interlocutória que analisara pedido de prova documental:

AGRAVO REGIMENTAL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. DECISÃO INTERLOCUTÓRIA. IRRECORRIBILIDADE. [...] EXAME DO AGRAVO REGIMENTAL. [...] PRELIMINAR DE CONHECIMENTO.

5. Decisões interlocutórias proferidas em AIJE são irrecorríveis de imediato por não estarem sujeitas à preclusão. Precedentes.

[...]

14. O indeferimento de medidas impertinentes, desnecessárias ou protelatórias não implica ofensa ao princípio do contraditório ou da ampla defesa, até porque, como os 8.000 documentos permaneceram nos autos, o Tribunal poderá, no momento apropriado, verificar o seu eventual valor probante juntamente com todas as demais provas produzidas no processo.

15. Todas as partes terão plena oportunidade de se manifestar sobre as conclusões periciais e, também, de requerer qualquer esclarecimento ou providência, inclusive eventual perícia complementar.

(AIJE nº 1943-58/DF, rel. Min. Herman Benjamin, DJe de 12.9.2018)

Portanto, independentemente do referendo conferido à decisão interlocutória proferida pelo ilustre Relator, o tema daquela questão processual relativo à juntada da Minuta persiste aberto à discussão.

Ademais, em reforço, ainda que se cogitasse de preclusão decorrente daquele julgamento ocorrido em 14.2.2023, há de se ressaltar que, naquela ocasião, apenas se tratou do aspecto processual de admissão da juntada da Minuta, de modo que a investigação prosseguisse e buscasse alguma comprovação de pertinência entre o tema da ação e aquele achado superveniente. Portanto, admitiu-se a juntada para que se pudesse verificar a existência, ou não, de relação de pertinência entre os eventos, à luz das investigações realizadas durante a instrução do processo.

Na referida assentada, entendeu-se, em juízo perfunctório, justificada a inclusão daquele inesperado achado nas investigações, porque: (a) não se poderia exigir da parte autora o pleno domínio de todos os fatos que pudessem influenciar no julgamento, (b) é “admissível fato superveniente que tenha relação com a causa de pedir, mesmo que não alegado pelas partes” (CPC, art. 435), uma vez que, em tese, poderia imbricar-se com o fato narrado na inicial, guardando relevante relação com a reunião questionada; (c) seria ônus da parte autora comprovar a pertinência entre o fato da reunião com embaixadores, evento apontado como elemento de campanha eleitoral, e aquele estranho achado superveniente.

Conforme consta expressamente da própria ementa, o que a Corte referendou foi a admissibilidade de juntada do documento, ou seja, a possibilidade de aquele achado posterior ao ajuizamento vir a ter sua pertinência investigada para, eventualmente, integrar-se aos elementos de prova a partir dos quais os atores processuais poderiam construir suas teses, sejam elas favoráveis ou contrárias à procedência da ação.

À evidência, sob pena de inegável ofensa à garantia do devido processo legal, não se pretendeu, nem se poderia, naquela decisão interlocutória, antecipar juízos umbilicalmente ligados ao próprio mérito da ação, desde logo fixando a existência de liame entre, de um lado, os fatos certos e objetivos, da reunião e do discurso que corporificam a causa de pedir trazida na inicial e, de outro, o ainda nebuloso e controvertido achado daquela Minuta de Decreto de Estado de Defesa.

Pelo contrário, a análise quanto à pertinência, ou não, dos eventos é tema próprio do julgamento final, após a conclusão da instrução, seja para reconhecer que o achado representa um desdobramento contido na causa de pedir – com posterior avaliação, no mérito, de seu peso na aferição da gravidade da conduta, como faz em seu voto o eminente Relator –, seja para rejeitar tal relação – hipótese na qual a juntada da Minuta revelar-se-á sem nexo e, assim, ofensiva à estabilização da demanda (CPC, art. 329) e ao prazo decadencial para ajuizamento da AIJE.

No caso dos autos, mesmo após a diligente instrução conduzida pelo ilustrado Relator, inexiste qualquer elemento informativo capaz de sustentar, para além de ilações, a existência de relação entre a reunião e a Minuta de Decreto – a qual, apócrifa e sem origem e data determinadas, persiste de autoria desconhecida –, a impedir qualquer juízo seguro de vinculação daquele achado com o pleito presidencial de 2022 (objeto da AIJE) ou com os investigados.

Num contexto de ausência de liame, a legislação processual expressamente rechaça o alargamento do objeto da ação, conforme dispõe o art. 329 do CPC.

Descabe, no presente feito – com objeto central predefinido e estabilizado e instrução finalizada –, persistir em pretender aproveitar elemento periférico e ainda estranho, carente de relação com os fatos narrados pela parte autora na inicial, sob pena de indevida extrapolação da causa de pedir, em verdadeira ampliação descabida.

Outro não é o entendimento do TSE, em precedente que se aplica à presente questão preliminar, também relativo à eleição presidencial, na qual se afirmou que “o pedido formulado pelo autor, na inicial da ação, delimita o seu objeto, não se admitindo a sua ampliação posterior para incluir elementos ou fatos que deixaram de figurar na petição inaugural”, razão pela qual “serão apreciadas as provas produzidas até a estabilização da demanda, de modo que é somente o rol daqueles fatos, com a exclusão de quaisquer outros, que compõe o interesse da jurisdição eleitoral e demarca o exercício da atividade das partes relativamente às provas. Nem mais e nem menos, sob pena de o processo se converter num campo minado de súbitas armadilhas e surpresas”, sendo então, naquela oportunidade, a preliminar acolhida, “para afastar os elementos ou fatos que deixaram de figurar nas petições iniciais e extrapolaram as causas de pedir das demandas” (AIJE nº 1943-58/DF, rel. designado Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe de 12.9.2018 – grifos acrescidos).

Dito isso, no ponto, impõe-se o reconhecimento do maltrato à estabilização da demanda, dado que agora – com a vantagem decorrente do conhecimento de todo o apanhado probatório, após o encerramento da instrução –, constata-se não se ter obtido, nem por via oblíqua, qualquer indício de que a Minuta guarde relação de pertinência com o evento impugnado.

Por todo o exposto – e sempre rogando as mais respeitosas vênias aos que pensam de modo distinto –, divirjo do e. Corregedor para acolher a preliminar de indevida ampliação objetiva da demanda, para decotar da análise do caso todo e qualquer elemento que tenha por base referências estranhas aos fatos descritos na inicial, consistentes na reunião realizada com embaixadores em período pré-eleitoral, o conteúdo do discurso ali proferido e sua divulgação.

1.4. Da ilegalidade na determinação de diligências complementares

Os investigados suscitam nulidade derivada da determinação, de ofício pelo e. relator, de diligências complementares ao longo da fase instrutória (id. 158764809).

Reclamam das balizas que permearam a instrução levada a efeito pelo Corregedor, em pretensa suplantação de atuação deficiente da parte autora.

Articulam parcialidade do Corregedor na condução do feito, ao proceder a uma verdadeira “delegação de poder instrutório” ao requisitar documentos à Casa Civil, pasta do Executivo Federal atualmente chefiada por ministro pertencente a grupo político notoriamente adversário dos investigados.

No entanto, sem razão os investigados.

O poder instrutório do Corregedor, nas AIJEs, é amplo e guarda certa discricionariedade, podendo o relator atuar de ofício, adotando linha instrutória que entender pertinente ao melhor deslinde do feito, no que será ulteriormente referendado, ou não, por seus pares.

Tal conclusão é albergada pelo teor do art. 23 da LC nº 64/1990, in verbis:

Art. 23. O Tribunal formará sua convicção pela livre apreciação dos fatos públicos e notórios, dos indícios e presunções e prova produzida, atentando para circunstâncias ou fatos, ainda que não indicados ou alegados pelas partes, mas que preservem o interesse público de lisura eleitoral.

No mesmo sentido, aliás, caminha a legislação processual comum, que reputou por bem dotar o órgão julgador do poder-dever de coligir provas tidas por necessárias ao julgamento de mérito do feito, ainda que de ofício:

Art. 370. Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito.

Destarte, ao determinar diligências outras que não aquelas tencionadas pelos investigados, o Corregedor encontra-se dentro de sua esfera de atuação. Ressalte-se, no caso, que Sua Excelência o e. Corregedor-Geral justificou tais medidas com base no seu poder-dever de angariar diversos elementos de convicção que se relacionem com as circunstâncias narradas na inicial.

Não é outro o sentido da jurisprudência do TSE:

ELEIÇÕES 2012. AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. REPRESENTAÇÃO. CONDUTA VEDADA. PREFEITO. ART. 73, VII, DA LEI 9.504/97. PUBLICIDADE INSTITUCIONAL. JULGAMENTO DA CAUSA DIRETAMENTE PELO TRIBUNAL REGIONAL. TEORIA DA CAUSA MADURA. POSSIBILIDADE. ART. 1.013, § 3º, DO CPC. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO CONTRADITÓRIO, À AMPLA DEFESA E AO DEVIDO PROCESSO LEGAL.

[...]

4. Ausência de violação à ampla defesa pelo fato de a produção de prova ter sido realizada por iniciativa do TRE. O poder instrutório é conferido também à instância recursal ordinária (art. 370 do CPC). Precedentes.

(AgR-REspE nº 543-38/SC, rel. Min. Admar Gonzaga, julgado em 28.11.2017, DJe de 2.2.2018 – grifos acrescidos)

Dessa forma, não há falar em desacerto em sua conduta, até mesmo porque perfaz medida sindicalizável pelos eminentes pares e, por tal razão, eventualmente desconstituível pelo órgão colegiado.

Por bem resumir o ponto sub examine, destaca-se que o art. 22, VI a VIII, da LC nº 64/1990 legitima e orienta o poder instrutório do Corregedor, ao albergar expressa permissão legislativa para que, na condução do processo, haja diligência probatória, ainda que, frise-se, ex officio:

Art. 22 da LC nº 64/1990:

[...]

VI - nos 3 (três) dias subseqüentes, o Corregedor procederá a todas as diligências que determinar, ex officio ou a requerimento das partes;

VII - no prazo da alínea anterior, o Corregedor poderá ouvir terceiros, referidos pelas partes, ou testemunhas, como conhecedores dos fatos e circunstâncias que possam influir na decisão do feito;

VIII - quando qualquer documento necessário à formação da prova se achar em poder de terceiro, inclusive estabelecimento de crédito, oficial ou privado, o Corregedor poderá, ainda, no mesmo prazo, ordenar o respectivo depósito ou requisitar cópias;

Assim, tenho por legítima a diligência de expedição de ofício à Casa Civil, uma vez que determinada por autoridade a quem compete sopesar a celeridade e duração razoável do processo com as necessárias garantias do contraditório e da ampla defesa, notadamente ao se considerar que a necessidade de requisição documental surgiu justamente, dentre outros motivos, “em razão da prova oral produzida a requerimento da [própria] parte ré”, conforme bem consignado pelo e. relator.

Por fim, é imprescindível rememorar que as provas produzidas não pertencem ao Juízo, mas, sim, ao processo, do mesmo modo que se pode dizer que tais documentos não são oriundos de determinado grupo político, mas, sim, pertencentes ao Estado Brasileiro, como bem destacou o e. Corregedor.

Dessa forma, sendo certo que (a) o resultado – e o acerto ou desacerto das diligências empreendidas – é medida aferível por este Colegiado, bem como que (b) o objeto das diligências não era predefinido, podendo revelar circunstâncias novas e que podem militar, inclusive, a favor dos próprios investigados, acompanho o e. Corregedor para rejeitar a preliminar, à míngua de qualquer demonstração concreta de exorbitância dos seus poderes instrutórios.

1.5. Da necessidade de reabertura da instrução por negativa de oitiva

Por fim, os investigados suscitam o desacerto operado pelo e. Corregedor ao encerrar a fase instrutória de forma pretensamente prematura, sem (a) a prova testemunhal do Sr. EDUARDO GOMES DA SILVA, tida por eles como imprescindível para o correto desenlace do feito, bem como sem a (b) cópia do Inquérito Policial cuja instauração foi noticiada pela rede emissora CNN em 24.3.2023 e mencionada pelo causídico dos investigados em audiência.

O e. relator justificou sua negativa e, ato contínuo, encerrou a instrução, com esteio nos seguintes fundamentos:

a) desnecessidade de produção de prova oral; e

b) desproporcionalidade na requisição de acesso a inquérito sigiloso, referido tão somente de modo en passant, com vistas a justificar suposta ocorrência de vulnerabilidade nos sistemas de votação. 

A desnecessidade probatória revela-se de pronto, ipso facto, uma vez que a notícia veiculada tem por manchete a seguinte oração: “Ministério Público Eleitoral denuncia quatro pessoas por hackear sistema do TSE: ataques ao sistema foram no dia das eleições municipais e prejudicaram acesso ao E-Título".

Nesse desencadear de ideias, em atenção ao princípio da cooperação e da boa-fé objetiva, registre-se ser dever das partes e de seus procuradores “[...] não produzir provas e não praticar atos inúteis ou desnecessários [...]” ao deslinde do feito, na estrita forma do art. 77, III, do CPC, preceito que reforça a necessidade de limitar a produção probatória aos elementos de fato relevantes para a decisão da lide (CPC, art. 370, parágrafo único, do CPC).

A dilação probatória tencionada pelos investigados escora-se em notícia que aborda invasão ao sistema de aplicativo e-Título do TSE, o que não se confunde – frise-se – com o processo eleitoral, com os sistemas das urnas eletrônicas ou, tampouco, com a contabilização dos votos.

Em igual forma, a produção da prova oral foi rejeitada em razão de ter sido considerada dispensável pelo e. relator, que, na condição de instrutor da presente AIJE, entendeu que tal medida já estaria suplantada pelos demais depoimentos colhidos.

Sua Excelência ainda destaca que os próprios investigados desistiram de “três testemunhas que haviam arrolado, exatamente por considerar que outras pessoas ouvidas supriram a necessidade de esclarecimento de fatos.”

Na condição de autoridade instrutora da AIJE, compete ao Corregedor a decisão sobre a pertinência, ou não, da produção probatória, medida a qual, repita-se, poderá ter seu acerto ou desacerto constatável em momento próprio, por ocasião do julgamento de mérito.

Dessa forma, por entender que o e. relator tão somente utilizou-se de seu poder-dever de gestão da atividade de produção probatória e que a legislação processual lhe confere a prerrogativa de indeferir, fundamentadamente, “[...]  as diligências inúteis ou meramente protelatórias” (art. 370, parágrafo único, do CPC), acompanho o e. Corregedor para rejeitar a preliminar, à míngua de demonstração concreta de exorbitância de seu poder instrutório.

1.6. Resumo das Preliminares

Ante todo o exposto:

I) acompanho o em Relator, rejeitando as preliminares de:

a) incompetência da Justiça Eleitoral;

b) ilegitimidade passiva do representado candidato a Vice-Presidente da República;

c) ilegalidade na determinação de diligências complementares; e

d) necessidade de reabertura da instrução por negativa de oitiva.

II) divirjo do em. Relator, para acolher a preliminar de indevida ampliação objetiva da demanda.

II - MÉRITO

O enfrentamento do mérito perpassa pelo balizamento de critérios para a mensuração da gravidade de determinada conduta – extraídos diretamente da Constituição e da Lei Complementar nº 64/1990 –, pressupostos para aferir se o comportamento tido por ilícito desafia a intervenção judicial, a partir de uma análise sobre se foi insuficiente para macular o processo eleitoral.

Nessa ordem de ideias, é sabido que a Constituição, a par de definir um rol de inelegibilidades, delega à lei complementar o papel de estabelecer “outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação”, estipulando os bens jurídicos protegidos – probidade administrativa, moralidade para exercício de mandato, normalidade e legitimidade das eleições – e o ato ilícito capaz de os violar, qual seja, o abuso de poder econômico ou político (art. 14, § 9º), in verbis:

Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:

I - plebiscito;

II - referendo;

III - iniciativa popular.

.............................................................

§ 9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.   

Em decorrência da previsão da Carta Magna, dispõe o art. 22 da Lei Complementar nº 64/1990 que:

Art. 22. Qualquer partido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleitoral poderá representar à Justiça Eleitoral, diretamente ao Corregedor-Geral ou Regional, relatando fatos e indicando provas, indícios e circunstâncias e pedir abertura de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político, obedecido o seguinte rito:  

........................................................

XIV – julgada procedente a representação, ainda que após a proclamação dos eleitos, o Tribunal declarará a inelegibilidade do representado e de quantos hajam contribuído para a prática do ato, cominando-lhes sanção de inelegibilidade para as eleições a se realizarem nos 8 (oito) anos subsequentes à eleição em que se verificou, além da cassação do registro ou diploma do candidato diretamente beneficiado pela interferência do poder econômico ou pelo desvio ou abuso do poder de autoridade ou dos meios de comunicação, determinando a remessa dos autos ao Ministério Público Eleitoral, para instauração de processo disciplinar, se for o caso, e de ação penal, ordenando quaisquer outras providências que a espécie comportar;  

 Ressalte-se o inciso XVI do citado artigo, incluído pela Lei Complementar 135, de 2010, segundo o qual, “para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam”, a ecoar a relação necessária – prevista desde o art. 14, § 9º, da Constituição – entre o ato ilícito e a efetiva vulneração dos bens jurídicos protegidos pela norma.

Segundo a doutrina, a inovação trazida pela Lei Complementar nº 135/2010 não afastou a obrigatoriedade de um juízo de valor quanto à aptidão do ato ilícito – a partir de sua gravidadepara ofender a normalidade e a legitimidade da eleição, mas apenas “desvincula a configuração do abuso de poder (em sua concepção genérica) do critério exclusivamente quantitativo – que é o resultado do pleito – até porque a ação de investigação judicial eleitoral pode ser julgada antes do pleito (...)” (ZILIO, Rodrigo López. Potencialidade, gravidade e proporcionalidade: uma análise do art. 22, XVI, da Lei Complementar nº 64/90. Revista Brasileira de Direito Eleitoral. Ano 4, n. 6, jan/jun. 2012. Belo Horizonte: Fórum, p. 201).

Desse modo, apenas se houver violação dos bens jurídicos tutelados é que cederá espaço o juízo de contenção exigível do magistrado que aprecia uma lide eleitoral, autorizando-se que o Estado-Juiz atue no caso concreto, de modo a reparar o processo eleitoral com vistas a restituir a sua integridade e a soberania do sufrágio.

Em raciocínio igualmente aplicável à decretação de inelegibilidade, afirma a doutrina que, “sob o prisma da democracia constitucional, a natureza antipopular dessas decisões e a própria missão institucional da Justiça Eleitoral, centrada em assegurar o respeito à vontade política do corpo social, conduzem a uma conclusão inarredável: no seio dos tribunais eleitorais os éditos de cassação, conquanto não tenham necessariamente, de ser muito raros – porque o controle dos pleitos é fundamental para o sistema democrático –, são, sem dúvida, decisões de ultima ratio, de modo que somente se legitimam em conjunturas absolutamente inescapáveis (...)” (ALVIM, Frederico Franco. Abuso de poder nas competições eleitorais. Curitiba: Juruá, 2019, p. 344/345, grifo nosso).

Em complemento, “a gravidade das circunstâncias é de ser vista exclusivamente como um mero parâmetro para a avaliação dos impactos do ilícito sobre a legitimidade e a normalidade da competição eleitoral, não estando o intérprete autorizado a extrair a gravosidade de maneira completamente descolada dos resultados da disputa, sobremodo em processos cujo julgamento ocorra em momento posterior ao da apuração das urnas” (Ibidem, p. 362, grifo nosso).

Assim, salvo em circunstâncias de concreta vulneração aos bens jurídicos tutelados – em juízo de valor que não pode se limitar à análise do ato ilícito em si, mas sim também aquilatar as consequências reais, fenomênicas, do fato –, eventual proeminência da atuação do Estado-Juiz sobre a soberania do sufrágio importaria em inadmissível subversão da única e exclusiva titularidade do poder na República, a saber, o Povo Brasileiro.

Nesse contexto, no âmbito da jurisdição eleitoral diante da impossibilidade de se dissociar a decisão judicial das consequências político-sociais dela advindas, notadamente quando impacta, direta ou indiretamente, na soberania popular a aferição de um conceito jurídico indeterminado como a gravidade dialoga diretamente com o princípio da intervenção mínima, segundo o qual a intervenção da Justiça Eleitoral, enquanto Estado-Juiz, deve se dar apenas quando estritamente necessário para garantir a soberania do sufrágio popular.

Não se trata de tomar o princípio da intervenção mínima pelo seu valor de face, sem a devida verticalização de sua aplicação ao caso concreto, como se fosse uma justificativa retórica para a indevida omissão institucional. Pelo contrário, trata-se de reconhecer os seus legítimos contornos e âmbitos de aplicação, de forma a lhe conferir dimensão necessária à manutenção de seu núcleo essencial hermenêutico.

Ressalte-se a dificuldade que nosso modelo de Governança Eleitoral, advindo da Constituição de 1934, impõe à distinção entre a atuação do Poder Judiciário Eleitoral enquanto governante do processo eleitoral, em atividade administrativa, e enquanto órgão do Estado-Juiz, incumbido, nesta última tarefa, do encargo de exercer fração especializada do Poder do Estado na tutela jurisdicional de condutas tidas por incompatíveis com as normas eleitorais.

Nesse contexto, o exercício das atividades administrativas direcionadas à governança eleitoral expõe uma faceta de proatividade do Órgão de Governança Eleitoral e de sua necessária atuação no processo eleitoral, desde a escolha ou rejeição de locais de votação, na seleção de mesários e até mesmo nas atividades de poder de polícia exercidas sobre a propaganda eleitoral. Vale dizer, a natureza dessa função pública, desse múnus, não permite conceber que seja regida pelo princípio da intervenção mínima

Nessa quadra, louve-se a incansável atuação do Tribunal Superior Eleitoral e de toda a Justiça Eleitoral na condução de campanha pública na defesa da integridade do processo eleitoral, da confiabilidade das urnas eletrônicas, seguras e invioláveis há mais de 26 anos, da transparência de todo o processo de apuração, totalização e divulgação dos resultados eleitorais, em nítida, notória e irreprochável defesa das instituições republicanas e do Estado Democrático de Direito no qual vivemos.

Todavia, embora a elogiável conduta altiva da Justiça Eleitoral tenha ocorrido em resposta a conteúdos similares àquele ora apreciado – advindos do investigado ou de outros agentes públicos –, distinta deve ser postura no exercício da função jurisdicional eleitoral, reservada à correção judicial de condutas tidas por indevidas, à homologação de registros de candidatura, à fiscalização de atos de campanha e, com especial relevo no caso dos autos, à imputação de atos de abuso de poder ou de fraude.

É nesse contexto, informado necessariamente pelo princípio da inércia da jurisdiçãone precedat iudex ex officio – e pela garantia constitucional do devido processo legal (art. 5º, LIV, da Constituição, em sua redação original e nunca questionada nesta República), que se deve reconhecer o momento apropriado à aplicação do princípio da intervenção mínima do Poder Judiciário Eleitoral.

De fato, no juízo de mérito sobre a procedência ou improcedência da pretensão versada na petição inicial, a aplicação do aludido princípio impõe aos magistrados o exercício da salutar autocontenção, mensurando com prudência a necessidade de intervenção do Poder Judiciário Eleitoral no processo eleitoral, dada a relevância estruturante do princípio constitucional da soberania do sufrágio, pedra de toque da própria democracia.

Não se trata de uma simples obediência das regras de julgamento derivadas do ônus probatório, mas de um dos princípios jurídicos a serem adicionados ao cotejo racional para aferição, no caso concreto, de eventual gravidade da conduta.

Nesse contexto, a incidência do princípio da intervenção mínima, enquanto freio de arrumação racional da atividade jurisdicional, é o fio condutor da seguinte pergunta: - a conduta analisada afetou o processo eleitoral com gravidade tal que exige, imperativamente, a intervenção do Poder Judiciário Eleitoral para assegurar a prevalência da soberania do sufrágio?

Em suma, a preterição do princípio da intervenção mínima da Justiça Eleitoral pode resultar em indevida afetação do princípio da soberania popular e, em última instância, na atuação deste Poder Judiciário Especializado ao largo da Constituição Federal, quando desrespeitados os requisitos acima apontados.

Fixadas essas balizas interpretativas e adentrando-se especificamente no caso em tela, é oportuno relembrar brevemente o histórico processual que formou o acervo fático-probatório em relação ao qual este Plenário está a exercer o Juízo de valor, bem como promover o adequado balizamento da causa de pedir.

Com a decisão de saneamento e organização do processo, proferida em 8.12.2022, delimitaram-se as questões de fato controvertidas, de modo a se operar a estabilização da demanda, nos termos do art. 329, II, do CPC.  Nada obstante, constou da referida decisão que “a segurança jurídica propugnada pelo art. 329, II, do CPC não impede a discussão de fatos que tenham relação direta com a causa de pedir já estabilizadae quea vedação apenas incide no caso de ser deduzida causa de pedir inteiramente autônoma

Na ocasião, o ilustre relator especificou que a controvérsia fática dos autos recai sobre as circunstâncias em que a reunião foi realizada e em que ocorreu sua divulgação nas redes” (id. 158487960).

Especificamente, o deslinde da controvérsia repousa na análise da relação entre a reunião com embaixadores ocorrida no Palácio da Alvorada em 18.7.2022 e as eleições de 2022 e na aferição da gravidade desse fato.

Contudo, em 14.2.2023, este Plenário, ao referendar a decisão que admitiu a juntada da minuta de decreto de Estado de Defesa encontrada na casa do ex-Ministro da Justiça e Segurança Pública do Governo do primeiro investigado, fixou o entendimento no sentido da admissão de “elementos que se destinem a demonstrar desdobramentos dos fatos originariamente narrados”, inclusive “supervenientes à propositura das ações ou à diplomação dos eleitos [...], circunstâncias relevantes ao contexto dos fatos, reveladas em outros procedimentos [...] ou, ainda, que sejam de conhecimento público e notório” (id. 158704139).

Ato contínuo, em 9.3.2023, o douto relator exarou decisão interlocutória, com esteio nos arts. 22, VI e IX, e 23 da Lei Complementar nº 64/1990, na qual determinou diligências tendo por base o conteúdo do discurso objeto desta AIJE, tendo destacado que:

[...] a fala possui marcadores cronológicos, que conectam passado, momento presente, e projeções para o futuro:

a) a alegada fraude ocorrida em 2018, passando pela advertência de que não poderia ter havido eleições em 2020 antes da “apuração total” do ocorrido;

b) a própria urgência de endereçar a mensagem aos embaixadores de países estrangeiros, na iminência do período eleitoral de 2022; e, por fim,

c) a enfática reivindicação, somente compreensível nesse arco narrativo alarmista, de que as Eleições 2022 fossem “limpas, transparentes, onde o eleito realmente reflita a vontade da sua população” (id. 158787068).

Portanto – conquanto a causa de pedir fática da presente AIJE seja a reunião com embaixadores ocorrida no Palácio da Alvorada no dia 18.7.2022 e sua transmissão pela TV Brasil e redes sociais de Jair Messias Bolsonaro –, a análise levada a efeito pelo e. relator abrangeu fatos e circunstâncias outros, que extrapolam bastante os contornos originais da pretensão autoral.

Nesse norte, em cumprimento a diligências determinadas pelo e. relator, sobreveio aos autos a seguinte documentação:

a) documentos extraídos do Inquérito nº 0600371-71 (ID 158764855);

b) prova documental requisitada à Casa Civil (IDs 158839073 a 158851459);

c) cópia integral do Inquérito Policial nº 1361/2018-4/DF, atualmente em trâmite sigiloso na 10ª Vara Federal de São Paulo/SP sob o número 5007377-27 (ID 158850900);

d) cópias dos Inquéritos ns. 4878/DF e 4879/DF, em trâmite no STF sob Relatoria do em. Min. Alexandre de Moraes, inclusive resultado dos exames periciais realizados na “minuta de decreto de Estado de defesa” (IDs 158835933 e 158839056);

e) juntada de cópia integral da Petição nº 10.477/DF, em trâmite no STF sob Relatoria do em. Min. Luiz Fux (ID 158871511).

Esse é, em suma, o cenário fático-probatório resultante da instrução processual levada a efeito pelo e. relator, alicerce sobre o qual repousam suas conclusões.

No ponto, imperioso esclarecer que a temática versada na preliminar (questão processual) relativa à ampliação objetiva da lide que admitiu a juntada aos autos da Minuta de decreto de Estado de Defesa encontrada na casa do ex-Ministro da Justiça e Segurança Pública em 8.1.2023não se confunde com a discussão de mérito, relativa à identificação de quais fatos participam da aferição do requisito da gravidade, elementar do alegado ato abusivo.

Isto é, ainda que admitida processualmente pela Corte a inclusão do documento dentro do conjunto de elementos de prova que participam do universo dialético da lide, sua efetiva aptidão para sustentar o convencimento motivado do julgador quanto à qualificação da reunião inquinada como ato abusivo permanecia, como permanece, tema em aberto, dependente da efetiva comprovação de pertinência entre aquele achado e os fatos descritos na inicial da demanda, o que não ocorreu.

Do contrário, ficaria bastante dificultado ou até inviabilizado o próprio exercício do direito de contraditório e ampla defesa para os investigados.

Nos termos da Lei Complementar nº 64/1990, art. 22, inciso XIV, sua leitura deixa claro que o ato ilícito consubstanciado na “interferência do poder econômico ou [no] desvio ou abuso do poder de autoridade ou dos meios de comunicação” possui um marco temporal claro, dies a quo da própria declaração de inelegibilidade, ao prescrever que o impedimento ao exercício da cidadania passiva ocorre “para as eleições a se realizarem nos 8 (oito) anos subsequentes à eleição em que se verificou” a prática do abuso.

Do mesmo modo, o incivo XVI do citado artigo dispõe que, "para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam", a deixar claro que a aferição de um ato de abuso deve ocorrer em si mesmo, a partir de seus próprios contornos, e não de decorrências ou desdobramentos insuscetíveis de demonstração segura.

Portanto, vê-se que o legislador, objetiva e expressamente, vinculou a análise da gravidade das circunstâncias configuradoras do ato abusivo ao pleito eleitoral.

Aprofundando o comando legal, sabe-se que “[...] a circunstância de os fatos terem sido praticados antes da existência de candidaturas registradas não inviabiliza, por si só, o reconhecimento [...] do abuso”, sendo certo, portanto, que a AIJE pode ter por objeto “fatos ocorridos antes mesmo das convenções partidárias (RO-El nº 0608809-63/RJ, rel. Min. RAUL ARAUJO FILHO, julgado em 9.5.2023, DJe de 19.5.2023 – grifos acrescidos).

A possibilidade de utilização de fatos anteriores, todavia, não encontra eco nos fatos futuros, posteriores à eleição e à diplomação.

Isso porque, se a vinculação entre o evento abusivo e a eleição é um critério finalístico, é evidentemente possível que atos anteriores repercutam no pleito e, inclusive, que tenham este como razão de ser. Todavia, em uma constatação lógica que ilumina o conteúdo das prescrições legais acima destacadas, fatos e circunstâncias incontroversamente ocorridas em momentos posteriores às eleições não tem o condão de influenciar um evento já ocorrido, encerrado. 

Em consequência, ainda que houvesse sido demonstrada irrefutável correlação entre a reunião que compõe a causa de pedir da inicial e o achado e documentos posteriormente agregados à instruçãoem especial a Minuta de Decreto de Estado de Defesa –, o que sequer ocorreu, conforme a seguir demonstrado, mesmo assim tais fatos não poderiam servir de base para a aferição da gravidade do ato tido por abusivo, pois os eventos posteriores são logicamente incapazes de vulnerar os bens jurídicos normalidade e legitimidade do pleito de 2022.

Em reforço, não se ignore que o legislador – corroborado pela jurisprudência do TSE – delimitou o contexto temporal objeto da AIJE a fim de resguardar, de um lado, a segurança jurídica do processo eleitoral e a necessária estabilidade para o exercício do mandato conquistado nas urnas eletrônicas, e de outro, a celeridade e a razoável duração do processo.

Assim é que o prazo decadencial para o ajuizamento da AIJE tem por termo inicial o registro da candidatura e por termo final o último dia para a diplomação dos eleitos.

Nesse norte, Esta Corte Superior já consignou que:

[...] no Direito Eleitoral, o Juiz Eleitoral, ao exercer o seu poder-dever de iniciativa probatória na busca da verdade real, precisa observar os freios impostos pela Constituição quanto à duração razoável do processo (art. 5º, LXXVIII), pela legislação eleitoral quanto ao prazo decadencial das ações eleitorais (art. 97-A da Lei 9.504/97) e pelo Código de Processo Civil no que concerne ao princípio da congruência (arts. 141 e 492)

k) Estas ações são de direito estrito, que não podem ser conduzidas pelo procedimento civil comum ordinário, e exigem prova pré-constituída para a retirada de candidato investido em mandato, de forma legítima, pelo voto popular. O curtíssimo prazo para a realização de atos processuais eleitorais busca preservar a soberania popular, ou seja, o voto manifestado pelo titular da soberania e o exercício do mandato de quem ganhou a eleição, democraticamente, nas urnas.

(AIJE nº 1943-58/DF, rel. designado Min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, DJe de 12.9.2018 – grifos acrescidos).

Não à toa, o TSE entende pela imprestabilidade de fatos descobertos após o prazo decadencial de propositura da AIJE:

ELEIÇÕES 2018. RECURSO ORDINÁRIO. CARGO DE GOVERNADOR. ABUSO DO PODER POLÍTICO [...] SEGURANÇA JURÍDICA [...]. AMPLIAÇÃO OBJETIVA DA DEMANDA. INVIABILIDADE. PROVIDO O RECURSO ORDINÁRIO PARCIALMENTE.

[...]

7.  Após a citação, a ampliação objetiva da lide depende da aquiescência dos demandados. E, ainda que houvesse aquiescência, na espécie, a descoberta de novos fatos ocorreu após o prazo decadencial de propositura da AIJE, o que obsta a utilização do instituto.

(RO-El nº 0603040-10/DF, rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, DJe de 1º.7.2021 – grifos acrescidos)

A fixação de um marco temporal delimitador, no âmbito do processo eleitoral, decorre, em realidade, de critério adotado pelo ordenamento jurídico eleitoral – e pela jurisprudência do TSE – com o fim de garantir que as relações jurídicas eleitorais sejam estabilizadas, de modo a evitar potenciais prejuízos decorrentes da eternização da litigância durante o exercício do mandato, em prestígio à segurança jurídica indispensável ao processo eleitoral e privilegiando-se, assim, a estabilidade do exercício do mandato e a continuidade administrativa.

Além disso, “[...] no âmbito eleitoral, a segurança jurídica assume a sua face de princípio da confiança para proteger a estabilização das expectativas de todos aqueles que de alguma forma participam dos prélios eleitorais” (RE nº 637485, rel. Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, DJe de 21.5.2013).

A título exemplificativo, citam-se os seguintes julgados, que bem denotam a importância da limitação do marco temporal como mecanismo que privilegia a estabilidade e a segurança do processo eleitoral:

ELEIÇÕES 2016 [...] FATO SUPERVENIENTE [...] PROVIMENTO.

[...] as circunstâncias fáticas e jurídicas supervenientes ao registro de candidatura que afastem a inelegibilidade, com fundamento no que preceitua o art. 11, § 10, da Lei nº 9.504/97, podem ser conhecidas em qualquer grau de jurisdição, inclusive nas instâncias extraordinárias, até a data da diplomação, última fase do processo eleitoral, já que em algum momento as relações jurídicas devem se estabilizar, sob pena de eterna litigância ao longo do mandato. Deve-se conferir máxima efetividade à norma específica dos processos judiciais eleitorais, em prol de valores como a segurança jurídica, a prestação jurisdicional uniforme e a prevalência da vontade popular por meio do voto.

(RO nº 96–71/GO, Rel. Min. Luciana Lóssio, PSESS em 23.11.2016 – grifos acrescidos).

ELEIÇÕES 2018 [...]. INELEGIBILIDADE SUPERVENIENTE [...] SUSPENSÃO JUDICIAL DOS EFEITOS VIGENTES NA DATA DA ELEIÇÃO E DA DIPLOMAÇÃO. IMPROCEDÊNCIA.  [...]. 

[...]

6. Independentemente de eventual discussão a respeito da jurisprudência desta Corte acerca do conceito de inelegibilidade superveniente, constata–se, no caso, a regular expedição do diploma, tendo em vista que o suporte fático da inelegibilidade, decorrente de condenação eleitoral em sede de ação de investigação judicial eleitoral, estava suspenso na data da diplomação e na data do pleito

7. A revogação de liminar, ocorrida em 13.5.2019, muito após o encerramento do processo eleitoral, não pode ser considerada no julgamento do recurso contra a expedição de diploma, sob pena de ofensa à segurança jurídica e à soberania popular

8. Uma vez vedada a arguição de alterações fáticas ou jurídicas supervenientes à data da diplomação para os fins de deferimento do registro, deve igualmente ser rejeitada a inelegibilidade cujos efeitos somente se concretizaram após o encerramento do processo eleitoral.

 9. No julgamento do RO 0600972–44, de relatoria do Min. Admar Gonzaga, PSESS em 5.12.2018, ficou registrado que "o disposto no art. 26–C, § 2º, da Lei Complementar 64/90 deve, tanto quanto possível, ser aplicado, nos seus estritos termos, notadamente se ainda em trâmite o processo de registro de candidatura e não ultimado o processo eleitoral". Impossibilidade de ampliação do termo ad quem, em face da necessidade de estabilização das relações políticas e jurídicas

CONCLUSÃO 

Recursos contra expedição de diploma julgados improcedentes.

(RCED nº 0603915-34/BA, rel. Min. SERGIO SILVEIRA BANHOS, DJe de 20.8.2020 – grifos acrescidos)

ELEIÇÕES 2022 [...] INELEGIBILIDADE [...] FATO SUPERVENIENTE. NÃO INCIDÊNCIA. INELEGIBILIDADE. ART. 1º, I, "D", DA LEI COMPLEMENTAR 64/90. INCIDÊNCIA. CONDENAÇÃO ELEITORAL. PRAZO DE OITO ANOS. EXAURIMENTO DA INELEGIBILIDADE APÓS O PLEITO. SÚMULA 19. NÃO PROVIMENTO.

[...]

8. A teor do verbete sumular 19/TSE "o prazo de inelegibilidade decorrente da condenação por abuso do poder econômico ou político tem início no dia da eleição em que este se verificou e finda no dia de igual número no oitavo ano seguinte (art. 22, XIV, da LC nº 64/1990)".

9. A ressalva contida no §10 do art. 11 da Lei 9.504/97 não se aplica ao caso, sendo certo que o transcurso do prazo de inelegibilidade apenas constitui fato superveniente apto a afastar a incidência da causa inelegibilidade se ocorrido antes do dia da eleição, nos termos do verbete sumular 70/TSE.

10. A jurisprudência deste Tribunal entende que o prazo final de inelegibilidade evidencia, apenas, o exaurimento dos efeitos de decisão constitutiva que permaneceu incólume no dia do pleito, não se confundindo, por outro lado, com a suspensão ou a anulação da própria causa constitutiva, hipótese em que há o afastamento do suporte fático-jurídico responsável pela inelegibilidade.

 Nesse sentido: REspE 14589, red. acórdão Min. Luiz Fux, DJE 13.9.2018; AgR–REspe 323–11, rel. Min. Luiz Fux, DJE de 7.8.2017; REspEl 23421, rel. Min. Rosa Weber, DJE 27.6.2018.11. De acordo com a orientação firmada neste Tribunal, o mero transcurso do prazo de inelegibilidade ocorrido três dias após o pleito não pode ser considerado situação fática ou jurídica superveniente capaz de afastar o óbice que incidia à candidatura no dia da eleição por força de condenação eleitoral amparada pela coisa julgada.

CONCLUSÃO

Recurso ordinário a que se nega provimento.

(RO-El nº 0600304-88/DF, rel. Min. SERGIO SILVEIRA BANHOS, PSESS de 3.11.2022 – grifos acrescidos)

Feito esse registro, rememoro que “a vedação ao uso abusivo do poder [...] visa a tutelar a igualdade de oportunidades entre os candidatos e o livre exercício do direito de sufrágio a fim de salvaguardar a normalidade e a legitimidade das eleições”, sendo certo que “a aferição da gravidade é balizada pela vulneração dos bens jurídicos tutelados pela norma, em face das circunstâncias do caso concreto suscetível a adelgaçar a igualdade de chances na disputa eleitoral” (AgR-REspe nº 452-83/SP, rel. Min. EDSON FACHIN, DJe de 7.2.2020 – grifos acrescidos). 

Diante desse contexto legal e jurisprudencial, faz-se mister reconhecer a data do pleito como marco temporal fatal, delimitador dos fatos e/ou provas elegíveis para a valoração da gravidade do ato abusivo.

Assim, com as máximas vênias, compreendo não ser possível, na presente AIJE, valer-se – para o fim de se aferir a configuração da gravidade do ato abusivo – de elementos fático-probatórios cujo referencial temporal seja posterior à data do pleito, razão pela qual não serão apreciados temas como a Minuta de Decreto de Estado de Defesa apreendida na residência do Sr. ANDERSON GUSTAVO TORRES em 12.1.2023 e os fatos relacionados à alegada não aceitação dos resultados eleitorais.

Ademais, ainda que se admitisse a aferição da gravidade com base em elementos futuros, ainda assim seria essencial demonstrar cabalmente a ligação causal entre a reunião que anima a causa de pedir e achados e eventos posteriores.

No caso concreto, todavia, considerar que os referidos fatos posteriores ao pleito possuem o condão de influir na análise da gravidade da conduta aqui apreciada, como se fossem desdobramentos do primeiro, resultaria em atribuir ao primeiro investigado inconcebível responsabilidade objetiva.

O fato de o Ministro da Justiça ser subordinado ao Presidente da República não torna este automaticamente responsável por eventuais atos ilícitos praticados por aquele, mormente porque não se admite que o vínculo subjetivo decorra de mera análise dedutiva.

Aliás, como se sabe, a medida (ou sanção) de inelegibilidade é de natureza personalíssima, o que reforça, ainda mais, a impossibilidade de se atribuir ao primeiro investigado a responsabilidade objetiva pela existência da referida Minuta, de desconhecida autoria, ou pelas nefastas ocorrências do dia 8.1.2023, dado que – repita-se – inexiste, nestes autos, qualquer elemento que efetivamente vincule Jair Messias Bolsonaro a tais fatos, sendo pacífico – repisa-se – o entendimento do TSE de que, para a configuração da prática do abuso de poder, “embora seja possível o uso de indícios para comprovar os ilícitos, a condenação não pode se fundar em frágeis ilações ou em presunções, especialmente em razão da gravidade das sanções impostas” (RO nº 1788-49/MT, rel. Min. LUÍS ROBERTO BARROSO, DJe de 28.3.2019).

Nesse sentido, veja-se o seguinte julgado desta Corte Superior:

AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. ELEIÇÕES 2016. PREFEITO. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. USO INDEVIDO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO SOCIAL. ART. 22 DA LC 64/90. RÁDIO. VEICULAÇÃO DE OFENSAS. PARTICIPAÇÃO DIRETA OU INDIRETA. FALTA DE PROVA ROBUSTA. INELEGIBILIDADE. NÃO INCIDÊNCIA. DESPROVIMENTO.

1. No decisum agravado, manteve-se a improcedência dos pedidos de AIJE ajuizada em face dos segundos colocados ao pleito majoritário de Morada Nova/CE em 2016 por uso irregular dos meios de comunicação social, haja vista a falta de prova robusta da participação nos fatos, anuência ou consentimento. 

2. Sobre o candidato apenas beneficiário da conduta abusiva, que não participou diretamente dos fatos e nem com eles anuiu, não pode incidir a inelegibilidade, cuja natureza é personalíssima, por ausência de contribuição com o ato ilícito. Precedentes. 

3. Na espécie, o TRE/CE assentou que, conquanto a divulgação feita no rádio contenha caráter manifestamente ofensivo aos vencedores do pleito majoritário, desbordando do direito à liberdade de expressão, não se extrai do acervo probatório o necessário liame entre os radialistas e os agravados a fim de se constatar consentimento ou anuência sobre os fatos

4. A Corte Regional ressaltou, ainda, que os agravados não participaram dos programas em que foram veiculadas as ofensas, tampouco tinham ingerência no conteúdo das emissoras, uma vez que não são proprietários ou sócios. 

5. Outrossim, os depoimentos e as postagens de rede social extraídos da moldura fática do aresto a quo apenas demonstram a preferência ou afinidade política, o que não implica automática ciência ou participação na prática do ilícito, sob pena de se transmudar a responsabilidade subjetiva em objetiva. Precedentes. 

6. Concluir de modo diverso demandaria reexame de fatos e provas, inviável em sede extraordinária, a teor da Súmula 24/TSE. 

7. Agravo regimental desprovido.

(AgR-REspe nº 75-62/CE, rel. Min. JORGE MUSSI, DJe de 29.11.2019 – grifos acrescidos)

Portanto, sem prejuízo da opinião pessoal de cada indivíduo sobre a quem compete a responsabilidade política dos episódios, sob o viés jurídico, não há nexo de causalidade entre os fatos.

Cumpre destacar, entretanto, que, conforme bem determinado pelo douto relator, as informações constantes destes autos serão encaminhadas à Procuradoria-Geral da República, para análise de eventuais providências na esfera penal, o que resguarda o interesse público na elucidação dos fatos ocorridos após as eleições presidenciais de 2022, a demonstrar que o reconhecimento da impertinência do ponto para a solução desta lide não significa ignorar a sua importância.

 

ESCLARECIMENTO

 

A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA: Ministro Raul, desculpa.

Presidente, eu queria só um esclarecimento.

O SENHOR MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES (presidente): Por favor, Ministra Cármen.

A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA: Cumprimentando, porque eu estou interrompendo o voto. Vossa Excelência me permite apenas um esclarecimento?

O SENHOR MINISTRO RAUL ARAÚJO: Claro.

A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA: Porque eu estou seguindo o voto com muito gosto, como sempre escuto os colegas.

Cumprimentando a todos, Senhor Presidente, Vossa Excelência, Senhores Ministros, Senhor Vice-Procurador-Geral Eleitoral, senhores advogados.

Apenas nessa passagem do voto, que, como disse, estou seguindo com muito gosto – Vossa Excelência teve a gentileza de nos encaminhar. Não me pareceu que no voto do Ministro Relator tivesse nenhuma referência a que este documento, que o Relator acolheu como juntada, tivesse nenhuma referência nem de autoria, nem de responsabilidade do primeiro investigado, se eu entendi, só para ficar claro, porque eu, por exemplo, no meu voto, nem uso este dado, Presidente. Eu fiz um voto apenas da cena que é o objeto do cuidado.

Mas como Vossa Excelência está se manifestando especificamente, e gostaria de entender se Vossa Excelência está excluindo  alguma coisa, mas sem pertinência com o que o Relator teria dito, porque, não sei se o Ministro Benedito acolhe a minha compreensão, no sentido de que Vossa Excelência não se manifestou sobre este documento, este rascunho, nem isso foi fundamento de voto.

Só para ficar claro, porque o Ministro está dizendo alguma coisa, Presidente, importante. A responsabilidade é personalíssima e isso foi reiterado no voto do Relator.

Obrigada.

O SENHOR MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES (presidente): Acho que o eminente relator... passo a palavra, antes, ao eminente relator, porque acho importante realmente, porque o voto, o longo voto do eminente relator, se baseou na reunião.

O fato de ter juntado essa minuta golpista, em nada afetou, que eu tenha lembrado do voto do eminente relator, e também não se apurou ainda – ainda não se apurou – a responsabilidade disso.

O eminente relator quer a palavra?

O SENHOR MINISTRO BENEDITO GONÇALVES (relator): Obrigado, Presidente. Inicialmente, saúdo Vossa Excelência, os demais integrantes da Corte, os advogados e todos os que estão assistindo.

Exatamente isso. No voto, fui claro, explicando, primeiro, não está se apurando aqui minuta. Foi um reflexo, poderia ser minuta ou outra questão, da conclusão que eu tive do meu voto, dos efeitos do discurso feito em “18” – duas vezes em “18” –, na reunião que se apura, no tocante à inverdade das urnas eletrônicas. Foi só isso.

O SENHOR MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES (presidente). Obrigado. Devolvo a palavra ao eminente Ministro Raul Araújo.

A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA: Obrigada, Ministro Raul.

O SENHOR MINISTRO RAUL ARAÚJO: Eu agradeço. Agora, acerca desse ponto, me parece que houve sim no voto do eminente relator – e podemos verificar isso facilmente, folheando –, houve sim farta referência não só a esse achado, à minuta de decreto, como a outros fatos posteriores, como caracterizadores de que haveria uma predisposição a atitudes de ruptura do processo democrático naquele governo que já se encerrou. Me parece que são fartas as referências dali constantes.

Então, retomo.

 

 VOTO (continuação)

 

Portanto, sem prejuízo da opinião pessoal de cada indivíduo sobre a quem compete a responsabilidade política dos episódios, sob o viés jurídico, não há nexo de causalidade entre os fatos.

Promovido o necessário decote do acervo fático-probatório apto a influenciar o juízo meritório, com a delimitação do objeto da lide à reunião realizada em 18.7.2022, ao teor do discurso ali proferido e à divulgação do ato, há, inicialmente, de se pontuar o seu teor eleitoral.

Conforme pontuou o ilustre relator, esta Corte Superior, ao analisar exatamente o mesmo contexto fático nos autos das já mencionadas Representações nºs 0600549-83, 0600550-68, 0600556-75 e 0600741-16 (relatoria da em. Ministra MARIA CLAUDIA BUCCHIANERI, DJe de 1º.10.2022), qualificou o fato como propaganda eleitoral irregular, a denotar o reconhecimento de que o conteúdo do discurso sob análise, ao menos pelo enfoque da representação eleitoral – cujo rito é deveras simplificado –, ostentou intuito eleitoreiro.

Quanto ao conteúdo do discurso sob análise, transcreve-se a compreensão exposta no acórdão de relatoria da em. Ministra MARIA CLAUDIA BUCCHIANERI nas citadas representações, cujas causas de pedir fáticas são idênticas à versada na presente AIJE:

“[...] se sustenta [...] que, no evento realizado no dia 18 de julho no Palácio do Planalto, o candidato Jair Messias Bolsonaro teria praticado propaganda eleitoral antecipada ao difundir, para embaixadores credenciados no Brasil, fatos sabidamente inverídicos e gravemente descontextualizados que atingiram a integridade do processo eleitoral e do sistema eletrônico de votações.

[...]

Difícil conceber uma eleição constitucionalmente “legítima”, se os pilares de sua subsistência (aceitabilidade das regras do jogo e confiança nos resultados) culminam por se converter em objeto de ataque.

[...]

[...] a aceitabilidade das regras do jogo e a confiança nos resultados proclamados (integridade do sistema de votação e apuração e confiabilidade dos resultados das urnas), são valores autônomos a merecerem a respectiva tutela jurídica, por serem pressupostos naturais e indispensáveis para eleições que sejam “normais” e “legítimas”, nos termos do art. 14, § 9º, da Constituição Federal.

[...]

[...] toda e qualquer intervenção desta Justiça Eleitoral sobre o livre mercado de ideias políticas deve sempre se dar de forma excepcional e necessariamente pontual, apenas se legitimando naquelas hipóteses de  desequilíbrio ou de excesso  capazes de  vulnerar princípios fundamentais outros, igualmente essenciais ao processo eleitoral, tais como a higidez e integridade do ambiente informativo, a paridade de armas entre os candidatos, o livre exercício do voto e a proteção da dignidade e da honra individuais.

[...]

No caso concreto, na reunião questionada, ocorrida em julho de 2022, como é de amplo conhecimento, foram veiculados diversos fatos sabidamente inverídicos a respeito do sistema eletrônico de votação e apuração. Fatos anteriormente já desmentidos e carentes de qualquer tipo de prova idônea. Fatos insistentemente rebatidos por esta Corte Superior, sem que exista qualquer elemento indiciário novo apto a afastar todas as explicações já apresentadas.

[...] numa democracia, não há de ter limites o direito fundamental à dúvida, à curiosidade e à desconfiança.

Cada cidadão é livre para crer ou descrer no que bem entender; para duvidar....

E essa ampla liberdade de pensamentos não pressupõe ou demanda elementos racionais que os justifiquem ou legitimem e não precisa fundar-se em discursos intersubjetivamente válidos.

[...]

Qualquer cidadão pode defender e desejar modelo de votação diferente daquele vigorante no país. Qualquer que seja o formato!

Pode sustentar o aprimoramento desse mesmo sistema. Pode propor modificações, sejam elas quais forem.

Tudo isso se insere, legitimamente, no espectro constitucional de proteção da liberdade de expressão, que é de gozar de posição preferencial em nosso ordenamento jurídico-constitucional, em especial no contexto político-eleitoral.

Tanto é assim que, há exatamente um ano, em agosto de 2021, foi votada e rejeitada a PEC 135/19, que previa alterações no formato da votação eletrônica utilizada no Brasil, com a introdução de elementos impressos de auditagem.

Proposta idêntica ou assemelhada pode vir a ser apresentada no futuro e todos e todas são livres para aderirem, apoiarem ou criticarem.

Revela-se diferente, contudo, a construção de narrativa fática falsa, para angariar apoio e adesão, mediante indução em erro, a esses questionamentos e a essas tentativas de mudanças. Aí, há uma falha no livre mercado de ideias, a impor atuação corretiva.

A deslegitimação do sistema, a partir da construção de fatos falsos, forjados para conferirem estímulos artificiais de endosso a opiniões pessoais, é comportamento que já não se insere no legítimo direito à opinião, dúvida, crítica e expressão, descambando para a manipulação desinformativa, via deturpação fática, em grave comprometimento da liberdade de “informação”, e com aptidão para corroer a própria legitimidade do pleito eleitoral.

[...]

[...] a todos e todas é lícito questionar, criticar, duvidar e repensar. Desejar modelos diferentes. Propor modelos diferentes.

A manipulação de fatos, no entanto, como forma artificial de angariar apoiamentos mediante indução em erro, comprometendo o direito de todos e todas a obterem informações minimamente íntegras, tudo isso com ataques que colocam o próprio “jogo democrático” em risco, é conteúdo que extrapola a liberdade discursiva [...] e que [...] qualifica-se como comportamento proscrito, seja durante a campanha, seja durante a pré-campanha [...].” (g.n.)

Naquela assentada, acompanhei o voto proferido pela ilustre relatora, razão pela qual, também aqui, comungo do entendimento exposto pelo nobre relator acerca da conotação eleitoral do evento realizado no Palácio da Alvorada em 18.7.2022.

Avançando no conteúdo, há de novamente reconhecer-se que nem todo o discurso veicula afirmações inverídicas, estando igualmente presentes trechos nos quais o investigado expõe sua posição política sobre temas abertos ao diálogo institucional público, em especial a discussão sobre o chamado voto impresso e as críticas às instituições e ao então potencial concorrente pelo cargo presidencial, censuráveis não por seu conteúdo, mas sim por configurarem propaganda eleitoral antecipada, portanto, irregular.

Consoante asseverou o colendo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI nº 4.451/DF: 

[a] Democracia não existirá e a livre participação política não florescerá onde a liberdade de expressão for ceifada, pois esta constitui condição essencial ao pluralismo de ideias, que por sua vez é um valor estruturante para o salutar funcionamento do sistema democrático. A livre discussão, a ampla participação política e o princípio democrático estão interligados com a liberdade de expressão, tendo por objeto não somente a proteção de pensamentos e ideias, mas também opiniões, crenças, realização de juízo de valor e críticas a agentes públicos, no sentido de garantir a real participação dos cidadãos na vida coletiva. (...) Tanto a liberdade de expressão quanto a participação política em uma Democracia representativa somente se fortalecem em um ambiente de total visibilidade e possibilidade de exposição crítica das mais variadas opiniões sobre os governantes. O direito fundamental à liberdade de expressão não se direciona somente a proteger as opiniões supostamente verdadeiras, admiráveis ou convencionais, mas também aquelas que são duvidosas, exageradas, condenáveis, satíricas, humorísticas, bem como as não compartilhadas pelas maiorias. Ressalte-se que, mesmo as declarações errôneas, estão sob a guarda dessa garantia constitucional. [ADI 4.451, rel. Min. Alexandre de Moraes, j. 21-6-2018, P, DJE de 6-3-2019, grifo nosso]

Tratando da dicotomia sobre a proteção da liberdade de expressão e a necessidade de combate à desinformação em campanhas eleitorais, Elder Goltzman explica:

O Estado, quando lida com a desinformação nas eleições e a combate, deve respeitar o direito que as pessoas têm de difundir suas opiniões por meio dos mais diversos canais, inclusive por aplicativos de mensageria instantânea e mídias sociais.

Por óbvio, não se defende que a liberdade de expressão abarque a desinformação orquestrada. O direito de exprimir ideais não protege quem pretende ludibriar os eleitores através de conteúdos editados, buscando enganá-los e confundi-los, utilizando artifícios e gatilhos emocionais. No entanto, sob a justificativa de minimizar a desinformação nas campanhas, tampouco pode o Poder Público restringir indevidamente a liberdade de expressão em sua esfera individual, coibindo canais que existem para difundir os pensamentos e opiniões.

 Ao passo que a desinformação eleitoral tem de ser repelida, a atuação estatal deve estar balizada no respeito à liberdade de expressão. Especialmente porque [...] a desinformação é um fenômeno complexo, repleto de nuances cujos desdobramentos são, em grande parcela, ainda desconhecidos”.

(GOLTZMAN, Elder Maia. Liberdade de expressão e desinformação em contextos eleitorais: parâmetros de enfrentamento com base nas sentenças da Corte Interamericana de Direitos. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p. 82-83.)

Essa circunstância prestigia a salutar intervenção mínima do Poder Judiciário no processo eleitoral, a qual somente se revela necessária – mormente em âmbito de AIJE – quando a conduta irregular, além de extrapolar a liberdade de expressão assegurada pela Constituição Federal, efetivamente macule a igualdade de chances e/ou o sufrágio universal (o processo eleitoral em si).

Fixada a premissa acima, são incontroversas a realização da reunião e seu conteúdo, restando verificar se está presente a efetiva vulneração dos bens tutelados pelo art. 14, § 9º, da Constituição e pelo art. 22 da Lei de Inelegibilidades, com a gravidade necessária à produção de seus nefastos efeitos.

De pronto, repita-se que o teor do discurso proferido pelo investigado foi permeado por excessos verbais, contendo, inclusive, informações inverídicas sobre o sistema eletrônico de votação, a exemplo da inexistente intervenção de hackers para “trocar votos entre candidatos”.

Cingida a apreciação da existência de abuso às afirmações inverídicas, desde logo, entendo inexistente o requisito da suficiente gravidade.

Em primeiro lugar, tendo em vista que o fato objeto da presente ação já foi apreciado por esta Corte Superior sob o enfoque da propaganda eleitoral irregular, faz-se mister destacar o entendimento desta Corte Superior em casos nos quais a conduta apurada em AIJE foi previamente objeto de medidas jurisdicionais prévias, voltadas ao pronto e efetivo enfrentamento do comportamento tido por ilícito.

No ponto, cita-se o julgamento conjunto dos ROs nºs 1251-75/AP e 2247-73/AP, no qual o TSE reformou acórdão do Tribunal local que havia julgado procedentes pedidos veiculados em AIJEs, cujas causas de pedir fáticas lastrearam-se na procedência de 37 representações eleitorais por propaganda irregular que tiveram como beneficiário das condutas o candidato à Chefia do Executivo estadual, que veio a ser eleito naquele pleito de 2014.

Esta Corte Superior, reformando a posição do Tribunal Regional – ao verificar que, à época das condutas, foram adotadas medidas aptas à imediata suspensão dos atos tido por irregulares, com o posterior sancionamento dos autores –, entendeu que tais providências foram capazes de amainar a gravidade exigida pelo art. 22, XVI, da LC nº 64/1990.

Veja-se a respectiva ementa do julgado:

ELEIÇÕES 2014. RECURSO ORDINÁRIO. JULGAMENTO CONJUNTO. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ABUSO DE PODER LIGADO AO USO INDEVIDO DE MEIOS DE COMUNICAÇÃO SOCIAL [...]. INOCORRÊNCIA. PROVIMENTO.

[...]

4. A livre circulação de pensamentos, opiniões e críticas visam fortalecer o Estado Democrático de Direito e a democratização do debate no ambiente eleitoral, de modo que a intervenção desta JUSTIÇA ESPECIALIZADA deve ser mínima em preponderância ao direito à liberdade de expressão. Ou seja, a sua atuação deve coibir práticas abusivas ou divulgação de notícias falsas, de modo a proteger a honra dos candidatos e garantir o livre exercício do voto.

5. A neutralidade que se impõe às emissoras de rádio e televisão, por serem objeto de outorga do poder público, não significa ausência de opinião ou de crítica jornalística. No caso dos autos, eventuais abusos constatados foram contornados pelo exercício do direito de resposta, obtendo–se, assim, a isonomia entre os candidatos.

[...]

7. Nesse contexto, o fato dos representados terem sido condenados em outras ações por propaganda eleitoral irregular não gera, como consequência automática, o reconhecimento de abuso de poder, mas ao contrário, dá a devida dimensão sobre terem eventuais excessos sido repelidos a tempo e modo oportunos e proporcionais às condutas.

8. Recursos ordinários providos.

(RO-El nº 1251-75/AP, rel. designado Min. ALEXANDRE DE MORAES, DJe de 9.11.2021 – grifos acrescidos)

De forma similar, este Plenário, no âmbito das representações por propaganda irregular acima citadas – que tiveram por objeto rigorosamente o mesmo discurso aqui tratado –, harmonizando o direito fundamental à liberdade de expressão e informação com a mínima intervenção, aplicou sanção de multa, tendo sido considerado prejudicado o pedido de remoção dos conteúdos indicados nas representações, justamente “ante a constatação, nesta data, de que todos já foram removidos”, a evidenciar, tal como no supracitado precedente, a adoção de providências para repelir a ilicitude constatada.

O julgado acima, na realidade, ecoa as ponderações lançadas ao longo deste voto, no sentido de que “[...] a intervenção da Justiça Eleitoral no processo eleitoral deve se dar apenas no caso de ser necessário o restabelecimento da igualdade e normalidade na disputa eleitoral ou para corrigir condutas que ofendam a legislação eleitoral [...]” (REspEl nº 0600093-07/PB, rel. Min. Sérgio Banhos, DJe de 8.9.2021), na medida em que  “[...] o caráter dialético imanente às disputas político-eleitorais exige maior deferência à liberdade de expressão e de pensamento, razão pela qual se recomenda a intervenção mínima do Judiciário nas manifestações e críticas próprias do embate eleitoral, sob pena de se tolher substancialmente o conteúdo da liberdade de expressão(AgR-RO nº 758-25/SP, rel. designado Min. Luiz Fux, julgado em 30.5.2017, DJe de 13.9.2017).

Portanto, a impreterível coibição de comportamentos irregulares dos candidatos pode encontrar resposta legítima, necessária e suficiente no emprego de outros instrumentos jurídico-eleitorais, em especial no campo da propaganda, restringindo-se o emprego da gravosa AIJE a casos excepcionais:

ELEIÇÕES 2014 [...]. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL [...] GOVERNADOR. VICE-GOVERNADOR. ABUSO DE PODER ECONÔMICO E USO INDEVIDO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO SOCIAL. NÃO COMPROVAÇÃO.

1. Com base na compreensão da reserva legal proporcional, compete à Justiça Eleitoral verificar, baseada em provas robustas admitidas em Direito, a ocorrência de abuso de poder, suficiente para ensejar as severas sanções previstas na LC nº 64/1990. Essa compreensão jurídica, com a edição da LC nº 135/2010, merece maior atenção e reflexão por todos os órgãos da Justiça Eleitoral, pois o reconhecimento desse ilícito poderá afastar o político das disputas eleitorais pelo longo prazo de oito anos (art. 1º, inciso I, alíneas d, h e j, da LC nº 64/1990).

2. A normalidade e a legitimidade do pleito, referidas no art. 14, § 9º, da Constituição Federal, decorrem da ideia de igualdade de chances entre os competidores, entendida assim como a necessária concorrência livre e equilibrada entre os partícipes da vida política, sem a qual se compromete a própria essência do processo democrático.

[...]

4. Conquanto algumas das publicidades realizadas pelo sindicato tenham sido julgadas regulares pela Justiça Eleitoral, outras extrapolaram os limites da liberdade de expressão e revelaram propaganda eleitoral negativa. Contudo, não há, na hipótese dos autos, fato grave a ensejar condenação, pois, nos termos da nova redação do art. 22, inciso XVI, da Lei Complementar nº 64/1990, não se analisa mais a potencialidade de a conduta influenciar no pleito (prova indiciária da interferência no resultado), mas "a gravidade das circunstâncias que o caracterizam". Entendimento que não exclui a possibilidade de eventuais publicidades irregulares serem analisadas em outra ação e em conjunto com outros possíveis ilícitos eleitorais. Conforme a jurisprudência deste Tribunal, "a caracterização do abuso do poder econômico não pode ser fundamentada em meras presunções e deve ser demonstrada, acima de qualquer dúvida razoável, por meio de provas robustas que demonstrem a gravidade dos fatos. Precedentes" (REspe nº 518-96/SP, rel. Min. Henrique Neves da Silva, julgado em 22.10.2015).

5. Recurso ordinário desprovido.

(RO nº 4573-27, rel. Min. GILMAR MENDES, DJe de 26.9.2016 – grifos acrescidos)

AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ALEGAÇÃO. ABUSO. PODER ECONÔMICO. PODER POLÍTICO. USO INDEVIDO. MEIOS DE COMUNICAÇÃO SOCIAL. VEICULAÇÃO. PUBLICIDADE INSTITUCIONAL. PERÍODO VEDADO. UTILIZAÇÃO. MÁQUINA PÚBLICA. DESEQUILÍBRIO. CAMPANHA ELEITORAL. IMPROCEDÊNCIA.

HISTÓRICO DA DEMANDA

Trata-se de representação, com fundamento nos arts. 22 e seguintes da Lei Complementar nº 64, de 1990, ajuizada pela Coligação Muda Brasil  (PSDB/DEM/SD/PTB/PMN/PTC/PEN/PTdoB/PTN) em face de Dilma Vana Rousseff e Michel Miguel Elias Temer Lulia, então candidatos, respectivamente, a Presidente e Vice-Presidente da República, a Coligação Com a Força do Povo (PT/PMDB/PDT/PCdoB/PP/PR/PSD/PROS/PRB), Wagner Pinheiro de Oliveira, presidente da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT), José Pedro Amengol Filho, Diretor Regional da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) em Minas Gerais, a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT), Pólis Propaganda e Marketing Ltda., João Cerqueira de Santana Filho, Diretor da Pólis Propaganda e Marketing Ltda., o Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores (PT), Ruy Falcão, presidente do Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores (PT), Arthur Chioro, Ministro de Estado da Saúde, Walter Freitas Junior, gerente da UBS Jardim Jacy, Vagner Freitas, presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT), a Central Única dos Trabalhadores (CUT), Maria das Graças Silva Foster, presidente da Petrobras S/A, a Petrobras S/A, Jorge Fontes Hereda, presidente da Caixa Econômica Federal (CEF), a Caixa Econômica Federal (CEF) e Aloizio Mercandante Oliva, Ministro-Chefe da Casa Civil.

2. Alegou o representante que, ao longo da campanha eleitoral de 2014, incluída a fase convencional, os representados teriam se beneficiado, em caráter continuado, "de uma série de irregularidades com o nítido propósito de desequilibrar a disputa", o que se caracterizaria abuso do poder econômico entrelaçado com abuso do poder político.

EXAME DOS AUTOS

[...]

5. As entidades e os órgãos não possuem legitimidade para figurar no polo passivo de Ação de Investigação Judicial Eleitoral, face à natureza das sanções cominadas.

[...]

7. Compete à Justiça Eleitoral, com base na compreensão da reserva legal proporcional, verificar, com fundamento em provas robustas admitidas em direito, a existência de grave ilícito eleitoral suficiente para ensejar as severas e excepcionais sanções de cassação de diploma e declaração de inelegibilidade. Precedentes.

8. Condutas menos graves ficam sujeitas a outras espécies de ações e sanções eleitorais, em atenção ao princípio da razoabilidade e proporcionalidade.

CONCLUSÃO

9. Ação de Investigação Judicial Eleitoral que se julga improcedente.

(AIJE nº 1547-81/DF, rel. Min. HERMAN BENJAMIN, DJe de 12.9.2018 – grifos acrescidos)

Ainda como corolário da premissa, fixada pelo TSE, de que a gravidade do ato ilícito pode ser limitada pela oportuna sustação de seus efeitos, relembre-se que a própria Corte – desta feita no legítimo exercício de suas atribuições administrativas – rebateu, no mesmo dia 18.7.2022, as informações inverídicas apresentadas na questionada reunião, enviando aos veículos de comunicação minudente relatório, o qual recebeu ampla repercussão jornalística.

Prosseguindo na análise da gravidade, conforme observou o ilustre relator, no que tange ao alcance do discurso com embaixadores em 18.7.2022, ficou “nítido que houve deliberado direcionamento do conteúdo para alcançar simpatizantes (seguidores) do já notório pré-candidato à reeleição” (fl. 152).

Essa constatação revela-se importante para a análise quantitativa da gravidade da conduta, pois – conquanto censuráveis trechos do discurso – é legítimo afirmar que seus destinatários apenas receberam informações que já haviam antes sido apresentadas, a reduzir sua aptidão para macular a legitimidade das eleições de 2022.

Sob essa perspectiva, é inegável a simetria do conteúdo do discurso sob análise com aqueles difundidos pelo primeiro investigado em outras oportunidades, consoante se extrai das transcrições das lives contidas nos ids. nºs 158764865, 158764856 e 158764866, o que reduz a capacidade do evento imputado – sobre o qual se debruça o julgador – de produzir forte e surpreendente impacto e resultados danosos.

Nesse sentido, confira-se o seguinte precedente no qual esta Corte Superior balizou a conclusão pela ausência de gravidade no comparativo entre os destinatários do conteúdo ilícito e o eleitorado do respectivo pleito:

ELEIÇÕES 2018. RECURSO ORDINÁRIO. AIJE. ABUSO DOS PODERES POLÍTICO E ECONÔMICO, USO INDEVIDO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO (ART. 22 DA LC Nº 64/1990) E ARRECADAÇÃO E GASTOS ILÍCITOS DE RECURSOS DE CAMPANHA (ART. 30–A DA LEI Nº 9.504/1997). GOVERNADOR E VICE–GOVERNADOR [...]. AUSÊNCIA DE PROVA ROBUSTA CAPAZ DE COMPROVAR AS PRÁTICAS ILÍCITAS RELATADAS. NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO ORDINÁRIO.

[...]

5.1. Com base no caderno probatório destes autos digitais, constata–se que não existem provas suficientemente capazes de assentar o alegado abuso do poder econômico, tampouco o uso indevido dos meios de comunicação social. Isso porque, embora os recorrentes tenham demonstrado a realização de diferentes modalidades de propaganda eleitoral negativa em desfavor de Rodrigo Rollemberg, não comprovaram que tais práticas foram aptas a beneficiar a candidatura de Ibaneis Rocha, de modo a comprometer o equilíbrio das eleições.

5.2. As ações de apoio ao candidato Ibaneis Rocha promovidas pelos sindicatos foram direcionadas, sobretudo, aos seus sindicalizados e, portanto, aos interesses de cada classe. Ainda, conquanto não sejam aceitáveis as condutas depreciativas direcionadas ao candidato recorrente, tais fatos não servem para confirmar, por si só, os ilícitos assinalados neste feito. Precedentes.

5.3. No segundo turno das eleições para o cargo de governador do DF, Ibaneis Rocha sagrou-se vitorioso com ampla margem de votos em relação a Rodrigo Rollemberg, tendo obtido cerca de 70% dos votos válidos. Portanto, à guisa de argumentação, mesmo que se considere a possibilidade de todos os sindicalizados e seus familiares terem votado em Ibaneis Rocha, o número de cerca de 300 mil eleitores, indicado pelos recorrentes, não é fator relevante para se inferir possível gravidade ao caso em discussão, tendo em vista o comparecimento de cerca de 1,5 milhão de eleitores às urnas do DF.

5.4. O critério quantitativo de votos não é mais um fator determinante para a caracterização dos ilícitos previstos no art. 22 da LC nº 64/1990, que passou a ter como requisito a gravidade da conduta. Contudo, pode ser considerado como reforço para fins de análise da prática do abuso de poder e de uso indevido dos meios de comunicação social. Precedentes.

[...]
7. Negado provimento ao recurso ordinário.

(RO-El nº 0603037-55/DF, rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, DJe de 23.3.2022 – grifos acrescidos)

No mais, embora a temática central do discurso questionado tenha sido a vulnerabilidade das urnas e a falácia acerca de inexistente fraude no cômputo dos votos eletrônicos, insta ressaltar os números relativos às eleições de 2022.

Para tanto, é imperioso rememorar o entendimento desta Corte Superior no sentido de que, “embora o art. 22, XVI, da LC 64/1990 tenha afastado, como elemento configurador do ilícito, a potencialidade de o fato alterar o resultado do pleito, nada impede que o julgador a utilize como aspecto secundário para aferição da gravidade” (REspe 357-73/SP, rel. Min. ALEXANDRE DE MORAES, DJe de 3.8.2021).

Dito de outro modo, apesar de o critério quantitativo de votos não ser mais um fator determinante à caracterização do ato abusivo, ainda deve ser considerado para fins de análise da prática de abuso de poder e de uso indevido dos meios de comunicação social.

Conforme noticiado por esta Corte Superior, o “[...] primeiro turno das Eleições Gerais de 2022, o maior pleito em 90 anos de existência da Justiça Eleitoral (JE)”, “[...] do total de um pouco mais de 156 milhões de eleitores aptos a votar, mais de 123 milhões compareceram às urnas, o que equivale a quase 80% do eleitorado apto [...]”. Além disso, o índice de abstenção ficou em 20,95%, próximo da média registrada em pleitos anteriores[2].

Também no exterior, o número de eleitores alcançou recorde, tendo sido “39,21% maior que o da última eleição, em 2018, quando ultrapassou 500 mil”[3]. Na mesma toada, o “[c]omparecimento de eleitores com deficiência cresceu 30% em 2022[4].

O cenário, a toda evidência, denota que – se a procedência da AIJE repousa no reconhecimento da relação entre a existência de um ato abusivo e a concreta vulneração dos bens jurídicos protegidos, em especial a normalidade e a legitimidade das eleições – não se pode ignorar que o comparecimento dos eleitores atingiu recorde sob diversos aspectos, a evidenciar, ao menos sob o aspecto quantitativo, a ineficácia do multicitado discurso para o fim de promover a abstenção do voto daqueles que creem que o sistema eleitoral brasileiro é falho – o que, frisa-se, não corresponde à verdade.

Pelo contrário, os números comprovam justamente a confiança do eleitorado brasileiro em seu sistema eleitoral, na medida em que a concordância ou discordância com as afirmações lançadas pelo investigado encontraram no seio do próprio processo eleitoral seu espaço de vocalização, em disputa marcada pelo acirramento.

Consoante ressaltou o eminente Ministro Presidente desta Corte Superior, ALEXANDRE DE MORAES, “os eleitores demonstraram maturidade democrática, compareceram às seções eleitorais, realizaram o ato de votar, concretizando a democracia com paz, harmonia e segurança[5].

Referido contexto evidencia que o conteúdo do discurso – nos seus trechos censuráveis – surtiu pouco efeito quanto ao suposto intento de “deslegitimar as urnas”, argumento central da tese do autor investigante. Do contrário, ter-se-ia verificado uma diminuição do número de eleitores, tendo em vista a expressiva representatividade política do primeiro investigado no cenário nacional.

Na realidade, do ato isolado imputado na inicial, não se pode extrair a gravidade exigida no art. 22 da LC nº 64/1990, notadamente quando estão em jogo uma eleição da magnitude que é a presidencial e a severidade das medidas e sanções imputáveis.

De outro lado, relativamente ao fato de a reunião ter sido transmitida pela EBC, não se verifica no ponto um fato autônomo, mas sim um desdobramento natural da realização da própria reunião pelo então Presidente da República, esta sim merecedora de um juízo de valor quanto à caracterização como ato abusivo.

Em outras palavras, tendo em vista que se tratou de um evento efetivamente organizado pela Presidência da República, em que presentes Chefes de Missão Diplomática, não se pode ignorar que à referida emissora de televisão – vinculada à Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República – compete, nos termos do art. 8º, VI, da Lei nº 11.652/2008, “prestar serviços no campo de radiodifusão, comunicação e serviços conexos, inclusive para transmissão de atos e matérias do Governo Federal”.

Constam dos autos diversos documentos que demonstram que a reunião com os embaixadores – independentemente dos trechos inverídicos ali contidos – foi um ato solene cujo protagonista foi o Presidente da República, tendo como ouvintes os embaixadores de diversas nações estrangeiras, o que, por si só, justifica a atuação da referida empresa pública, não lhe competindo, por certo, realizar juízo de discricionariedade prévio acerca do conteúdo a ser propalado pelo representante maior do Governo Federal. 

Ademais, no acórdão que referendou a decisão interlocutória na qual rejeitada a preliminar de litisconsórcio passivo necessário com a União (sustentada em razão dos fatos envolvendo a EBC), consignou-se que “aquelas pessoas jurídicas de direito público [UNIÃO e EBC] não adotaram qualquer medida voltada para assegurar a veiculação do material”, a reforçar a completa desvinculação da competência legal atribuída à emissora de TV com o intuito do primeiro investigante de propalar o descabido discurso.

Em outras palavras, seja qual fosse o conteúdo do discurso proferido pelo então Presidente da República, houvesse ou não sido realizada a questionada reunião com embaixadores, a empresa pública de telecomunicações iria naturalmente repercutir a agenda presidencial.

Assim, debater a qualificação da reprodução da reunião pela EBC como desvio de finalidade só tem sentido caso, previamente, considerada abusiva e grave a própria reunião transmitida, o que já foi afastado.

Coroando o quanto acima ponderado, não se pode perder de vista a relevante observação da doutrina de que a legitimidade e a normalidade das eleições – bens jurídicos tutelados na presente ação – não são tema sujeito a critérios peremptórios de avaliação, mas, sim, a uma noção de grau. In verbis:

“O problema que se coloca é que, no terreno contencioso, as autoridades à frente da Justiça Eleitoral são reiteradamente conclamadas a examinar a legitimidade de uma determinada eleição sob uma lógica artificialmente assertiva, quando é certo que a legitimidade responde, por natureza, a uma racionalidade gradativa ou escalonada, portanto contrário a raciocínios categóricos fundados em lógica binária.

Em última análise, a legitimidade eleitoral não veicula uma noção absoluta – uma questão de ser ou não ser, como se um pleito pudesse ser visto, tão simplesmente, como legítimo ou ilegítimo, como pretende o direito –, tratando-se, mais propriamente, de um problema de graduação, de ser mais ou ser menos, ou seja, de reproduzir com maior ou menor fidelidade as expectativas jurídicas alusivas às ‘condições ideais’ atinentes a um processo de escolha popular.” (ALVIM, Frederico Franco. Abuso de poder nas competições eleitorais. Curitiba: Juruá, 2019, p. 343, grifo nosso).

Assim, embora não se possa negar que as eleições de 2022 experimentaram um conjunto de percalços e dificuldades decorrentes de um contexto de instabilidade oriundo de discursos de conteúdo inverídico – do qual a fala do então Presidente JAIR MESSIAS BOLSONARO é exemplo significativo –, há de se igualmente reconhecer que a Justiça Eleitoral foi capaz de conduzir o pleito de forma orgânica, com ampla e livre participação popular, pronta proclamação do resultado e oportuna diplomação.

Em consequência, sendo a gravidade aferível pela vulneração aos bens jurídicos legitimidade e normalidade das eleições, mas sendo estes sujeitos a um juízo de valor de grau, fato é que a intensidade do comportamento concretamente imputado – a reunião de 18.7.2022 e o conteúdo do discurso – não foi tamanha a ponto de justificar a medida extrema da inelegibilidade.

Especulações e ilações outras, repita-se, não são suficientes para construir o liame causal e a qualificação jurídica do ato abusivo, razão pela qual o comportamento contestado, apreciado em si mesmo, como acima feito, leva à inescapável conclusão pela ausência de gravidade suficiente.

Diante de todo exposto, com a devida vênia dos entendimentos contrários, julgo improcedente o pedido.

 


[1] De teor idêntico àquelas antes citadas: “Art. 29. As decisões interlocutórias proferidas no curso da representação não são recorríveis de imediato, não precluem e deverão ser novamente analisadas pelo Juiz Eleitoral por ocasião do julgamento, caso assim o requeiram as partes ou o Ministério Público em suas alegações finais”.

[2] https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2022/Outubro/durante-sessao-plenaria-presidente-do-tse-apresenta-numeros-do-1o-turno-das-eleicoes-gerais-de-2022

[3] https://www12.senado.leg.br/radio/1/noticia/2022/09/30/numero-de-eleitores-brasileiros-no-exterior-bate-recorde-em-2022)

[4] https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2022/Dezembro/comparecimento-de-eleitores-com-deficiencia-cresceu-30-em-2022)

[5] https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2022/Outubro/durante-sessao-plenaria-presidente-do-tse-apresenta-numeros-do-1o-turno-das-eleicoes-gerais-de-2022

 

 VOTO

 

O SENHOR MINISTRO FLORIANO DE AZEVEDO MARQUES: Senhor Ministro Presidente ALEXANDRE DE MORAES; Senhora Ministra Vice-Presidente CÁRMEN LÚCIA; Senhor Ministro NUNES MARQUES; Senhor Ministro Corregedor BENEDITO GONÇALVES; Senhor Ministro RAUL ARAÚJO; Senhor Ministro ANDRÉ RAMOS TAVARES; Senhor Procurador-Geral Eleitoral PAULO GONET BRANCO; Senhores e senhoras advogados; Senhores, senhoras.

1. Cuida-se aqui de Ação de Investigação Judicial Eleitoral, apresentada pelo Partido Democrático Trabalhista – PDT em face de eventual conduta abusiva (abuso e desvio de poder político, uso indevido de meios de comunicação, havidos com desvio de poder) enquadrável na hipótese do art. 22 da Lei Complementar 64/90 (e outros adjetos), que teria sido praticada pelos Réus Jair Messias Bolsonaro e Walter Souza Braga Netto por ocasião de discurso proferido a representantes diplomáticos estrangeiros no Palácio da Alvorada em 18 de julho de 2022. Pede a inicial que, sendo reconhecida a conduta abusiva dos réus, seja declarada a inelegibilidade dos réus.

2. O circunstanciado e exaustivo relatório apresentado pelo Ministro Relator torna dispensável reportar neste voto maiores detalhes do transcurso da presente demanda e de sua dilação probatória adotando o teor do referido relatório. Aos elementos colhidos nos autos, retornarei apenas no quanto necessário para deslinde da demanda.

I. PREÂMBULO: UMA NOTA SOBRE A ESPECIFICIDADE DA AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL

3. Antes de adentrar nas questões processuais e no mérito da presente AIJE, cumpre divisar claramente os contornos desta peculiar lide.

4. A AIJE vem prevista no art. 22 da Lei Complementar 64/90 com o seguinte teor:

Art. 22. Qualquer partido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleitoral poderá representar à Justiça Eleitoral, diretamente ao Corregedor-Geral ou Regional, relatando fatos e indicando provas, indícios e circunstâncias e pedir abertura de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político, obedecido o seguinte rito:

Seu detalhamento processual vem descrito nos seus incisos.

5. Fixo essa premissa porque, no curso das alegações, advieram postulações que, ora e vez, pareceram querer reduzir a AIJE a uma contenda privada, desvestindo do seu caráter investigativo, eleitoral e dual.

6. Vê-se logo que, não obstante ter um caráter de pretensão resistida, em que o representante postula uma investigação que, ao final, pode ensejar a inelegibilidade do representado (investigado), a AIJE tem nítido propósito de investigação. De fato, como se vê no caput, representa-se ao Corregedor para que abra uma investigação eleitoral que tem dois escopos procedimentais: apurar um ilícito e, constatado e qualificado, aplicar uma sanção.

Tem, portanto, a AIJE um caráter dual: um aspecto investigativo de fatos, inquisitoriais e um aspecto dual de lide, opondo representantes e representados. Se fôssemos traçar um paralelo com a jurisdição criminal, teríamos que a AIJE tem uma configuração híbrida que reúne aspectos típicos de inquérito e ação penal no mesmo feito.

Algo sui generis, mas totalmente amoldado nas especificidades da jurisdição eleitoral.

7. Tenho comigo, assim, que, sem negar que a AIJE (como qualquer processo administrativo ou judicial, inquisitorial ou não, a teor da cláusula mandatória do art. 5º, LV da CF) deve deferência ao devido processo legal, não se pode tentar enquadrá-la na moldura de uma ação privada, de uma lide civil em que se opõem duas partes a quem cabe exclusivamente postular ou produzir as provas que julguem cabentes. Igualmente, os contornos da dilação probatória na AIJE são um tanto mais alargados do que na jurisdição civil.

 

II. PRELIMINARES

 

8. Antes de adentrar no mérito da presente AIJE, cumpre enfrentar as preliminares que foram aduzidas no curso do processo. Algumas já foram enfrentadas pelo E. TSE em sessão havida em 13.12.2022. Outras impugnações processuais surgiram no curso da instrução.

II.1. Das preliminares aduzidas inicialmente.

9. Originalmente foram trazidas duas preliminares, a saber: i) incompetência da Justiça Eleitoral; ii) Litisconsórcio passivo necessário com a União. Além disso, nas manifestações dos Representados em resposta à Representação, veio uma terceira alegação, qual seja: a iii) ilegitimidade passiva do Representado Walter Souza Braga Netto.

10. As primeiras duas preliminares foram analisadas pelo Plenário do TSE em sessão de 13.12.2022 na qual restou assentado que “a Justiça Eleitoral é competente para apurar desvios de finalidade de atos praticados por agentes públicos, inclusive o Chefe do Executivo, quando da narrativa se extrair que o mandatário valeu do cargo para produzir vantagens para si ou para terceiros. Entender o contrário seria criar uma espécie de salvo conduto em relação a desvios eleitoreiros ocorridos, justamente, no exercício do feixe de atribuições sensível do Presidente da República”.

11. A prejudicial de não formação de litisconsórcio passivo necessário com a União, por seu turno foi rejeitada na mesma Sessão de 13.12.2022 com o fundamento de que “É pacífica a jurisprudência no sentido da impossibilidade de pessoas jurídicas figurarem no polo passivo de AIJE”. E que “mesmo que a União e a Empresa Brasileira de Comunicação entendessem que a remoção de vídeo gravado pela TV Brasil acarretou prejuízo a seu patrimônio, não se tornariam litisconsortes necessários dos investigados. Ressalte-se que, no caso, nem mesmo isso ocorreu, pois aquelas pessoas jurídicas de direito público não adotaram qualquer medida voltada para assegurar a veiculação do material”.

12. Consoante disposto no art. 48 da Res.-TSE. 23.608, as decisões interlocutórias tomadas no curso do processo não são recorríveis de imediato, mas deverão ser reapreciadas quando do julgamento se assim for requerido pelas Partes ou pelo MPE nas alegações finais1. Os Representados não retomaram a preliminar de litisconsórcio passivo necessário com a União, razão pela qual a preclusão impede de reanálise.

1 Art. 48. As decisões interlocutórias proferidas no curso da representação de que trata este capítulo não são recorríveis de imediato, não precluem e deverão ser novamente analisadas pela juíza ou pelo juiz eleitoral ou pela juíza ou pelo juiz auxiliar por ocasião do julgamento, caso assim o requeiram as partes ou o Ministério Público Eleitoral em suas alegações finais.

13. O tema da ilegitimidade foi postergado para apreciação posterior, juntamente com o mérito. A Defesa reitera, contudo, a alegação de incompetência da Justiça Eleitoral e de extinção do feito sem julgamento do mérito em relação ao Investigado Walter Souza Braga Netto.

II.1.a. Da alegada incompetência da Justiça Eleitoral.

14. Os Representados reiteram a preliminar de incompetência da Justiça Eleitoral. Com toda a deferência à combatividade da Defesa, tal alegação ressoa completamente desprovida de plausibilidade. É, óbvio, competente a Justiça Eleitoral para processar AIJEs. E, como visto, o objetivo dessa medida é investigar a prática abusiva e desviada do agente público.

Qualquer autoridade, o que compreende a maior do país, o Chefe de Estado e de Governo da República. Logo, a despropositada preliminar, se acolhida, levaria, de um lado a: i) conferir imunidade do Chefe do Executivo quanto à prática de abuso de poder político ou econômico; e, de outro, ii) renunciar o TSE à sua competência (poder-dever legal) de investigar todas as Representações lastreadas no art. 22 da LC 64/90 quando os atos investigáveis fossem de autoria do Presidente da República.

15. De resto, a alegada circunstância de se tratarem os fatos investigados de ato de governo, insindicáveis na seara eleitoral, se confunde com a defesa e serão mais adiante analisados. Não poderia, porém, essa só alegação querer importar em exclusão da competência da Justiça Eleitoral. Até porque fazê-lo seria dar uma interpretação restritiva ao art. 22 da LC 64/90 o que não se admite (porquanto descabida a abdicação de competência), como também não encontra respaldo na remansosa jurisprudência desta Corte.

16. Desta forma, ratifico a decisão anterior havida pelo Plenário em 13.12.2022 para afastar a preliminar de incompetência da Justiça Eleitoral.

II.1.b. A ilegitimidade passiva do Investigado Walter Souza Braga Netto.

17. Ilegitimidade passiva, como é sabido, caracteriza-se pela inaptidão jurídica do réu de integrar o polo passivo. Na AIJE, a legitimação passiva decorre da possibilidade potencial e plausível, à luz dos fatos trazidos à investigação, do Réu ter agido ou se beneficiado da conduta ilícita alegada.

18. O Representado Walter Souza Braga Netto integrava a chapa encabeçada pelo Primeiro Investigado na condição de candidato a vice-presidente. Integrara importantes cargos de Ministro-Chefe da Casa Civil e Ministro da Defesa. Como integrante da chapa, poderia se beneficiar de eventual abuso do poder. Parece então clara a sua legitimidade para figurar como Investigado nesta AIJE.

18.1. A ação de investigação judicial eleitoral foi apresentada em 19.8.2022, ainda no curso do processo eleitoral, quando era tecnicamente possível a cassação do registro da chapa, ou, a depender do resultado eleitoral, a cassação dos diplomas dos eleitos.

18.2. Nessas situações, quando possível a cassação de toda a chapa, a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral há muito está consolidada no sentido de que “há litisconsórcio passivo necessário entre titular e vice da chapa majoritária nas ações eleitorais que possam implicar a cassação do registro ou do diploma” (AgR-REspe 1450-82, rel. Min. Gilmar Mendes, DJE de 5.3.2015).

19. A legitimidade ad causam não se confunde com a improcedência da demanda em relação ao Réu. Tanto assim é que a Defesa, embora alegue a necessidade de reconhecimento da ilegitimidade passiva da qual decorra a extinção sem julgamento do mérito, constrói – inclusive em alegações finais – todo o seu argumento apontando para a improcedência da AIJE em relação a este, por entender que não resultou provada a “completa ausência de participação pessoal em relação às imputações construídas na inicial”.

20. Assim sendo, rejeito a preliminar de ilegitimidade passiva, sem prejuízo de retomar o tema da ausência de prova de conduta punível do Segundo Investigado quando da análise do mérito da demanda.

II.2. Ainda em preliminar: dos alegados vícios na ampliação da demanda e na instrução processual.

21. Alega a Defesa ter havido uma “ampliação objetiva da causa petendi” que teria acarretado: a) produção de provas não albergáveis nos contornos da controvérsia inicial; e b) necessidade de reabertura de prazo para nova contestação. Alega, ainda: c) cerceamento de defesa consistente; c.1.) delegação indevida de poder instrutório; e c.2.) negativa de reiteração de malfadada oitiva de testemunha arrolada pela Defesa.

Passo a enfrentar cada uma das alegações.

II.2.a. A suposta “ampliação da causa de pedir”.

22. A primeira prejudicial ao mérito diz com um alargamento da causa de pedir pelo fato de a investigação ter se dedicado a sindicar a live havida em 29.7.2021 e a relação com a minuta de decreto encontrada em busca e apreensão ocorrida na casa de Anderson Torres.

23. Como já afirmei no início, a AIJE tem uma vertente investigativa. E para se ter uma cognição exauriente necessária a enquadrar os fatos na hipótese típica do art. 22, caput e sujeitando às sanções do seu inciso XIV é, muitas vezes, necessário abrir o campo de dilação para melhor aferir as circunstâncias fáticas da conduta, seus objetivos e impactos  desejados pelo agente.

E essa prerrogativa instrutória elástica não é criação meramente pretoriana. Decorre do próprio texto de lei. Leia-se o art. 23 da LC 64/90, estranhamente esquecido nos debates havidos na Tribuna:

Art. 23. O Tribunal formará sua convicção pela livre apreciação dos fatos públicos e notórios, dos indícios e presunções e prova produzida, atentando para circunstâncias ou fatos, ainda que não indicados ou alegados pelas partes, mas que preservem o interesse público de lisura eleitoral. (Grifos do original).

Este entendimento já é assente neste Tribunal há pelo menos trinta anos, como demonstra acórdão clássico do Ministro Torquato Jardim julgado em 4.5.19932.

No passado, o E. STF teve a oportunidade de apreciar a constitucionalidade do art. 23 da LC 64/90 por ocasião da ADI 1.082/DF. Naquele julgado, foi afastada a arguição de inconstitucionalidade baseado no voto do Ministro Marco Aurélio, que assentou:

‘Nesta ação direta, está envolvido processo eleitoral, a direcionar a direitos e interesses indisponíveis, de ordem pública. Por mais que se tenha buscado assentar a completa separação entre o direito de ação e o material pleiteado em juízo, revela-se inegável a influência exercida pelo objeto da causa no próprio transcorrer do processo. Em direitos de ordem pública, quando a possibilidade de transação, disponibilidade e decretação da revelia é eliminada ou reduzida, apenas para exemplificar, mostra-se evidente o maior interesse do Estado na reconstituição dos fatos.

Em síntese, o dever-poder conferido ao magistrado para apreciar os fatos públicos e notórios, os indícios e presunções por ocasião do julgamento da causa não contraria as demais disposições constitucionais apontadas como violadas. A possibilidade de o juiz formular presunções mediante raciocínios indutivos feitos a partir da prova indiciária, de fatos publicamente conhecidos ou das regras da experiência não afronta o devido processo legal, porquanto as premissas da decisão devem vir estampadas no pronunciamento, o qual está sujeito aos recursos inerentes à legislação processual.

Ante o quadro, voto pela improcedência do pedido formulado na ação direta. (Grifo nosso).3

2 Abuso de poder econômico mediante uso de recursos de procedência ilícita para propaganda eleitoral. Juízo discricionário em face de indícios e presunções, circunstâncias ou fatos mesmo que não alegados (Lei Complementar nº 64/90, art. 23): validade uma vez que o bem jurídico tutelado é a normalidade e a legitimidade das eleições (Constituição, art. 14, parágrafo 9º) e o interesse público de lisura eleitoral (Lei Complementar, art. 23, in fine), e não a vida, a liberdade individual ou a propriedade.Recurso não provido. (RO 9.354, rel. Min. Torquato Jardim, DJ de 12.11.1993).

3 Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.082, rel. Min. Marco Aurélio, julgado em. 22.5.2014.

Logo, pode o Tribunal levar em conta, como razão de decidir, inclusive circunstâncias ou fatos, ainda que não indicados ou alegados pelas partes, mas que preservem o interesse público de lisura eleitoral”, (grifo nosso).

Inexiste, portanto, diferentemente do que sustenta a defesa, alargamento dos contornos da lide nem da causa de pedir objetiva, muito menos produção de provas estranhas ao núcleo fático original.

24. Porém, não é necessário adentrar neste debate processual. Os fatos coligidos, i) nas lives pretéritas sobre o tema da confiabilidade das urnas; ii) nos fatos posteriormente desvelados tanto pela minuta do indigitado decreto que a testemunha Anderson Torres qualifica como “muito ruim” e “desprovido de base jurídica”; e iii) nos deploráveis eventos de 8 de janeiro, são, a meu ver, marginais para a análise dos fatos objeto desde sempre desta AIJE.

24.1. A posição do Primeiro Investigado sobre as urnas eletrônicas, seu discurso de desqualificar o sistema e suas assertivas de deslegitimar a higidez da justiça eleitoral, reiteradas e antigas, não são controversas, nem negadas pela Defesa. O contexto e o teor das lives ou entrevistas ao programa “Pingo nos Is” acrescenta pouco ou nada sobre o enquadramento jurídico do evento Reunião com Embaixadores.

24.2. Os graves desafios à Ordem Democrática, que tiveram lugar antes e depois do pleito presidencial de 2022, embora execráveis, não são fundamentais para se analisar a existência ou não de abuso de poder político e desvio de finalidade no evento engendrado pela Presidência da República e pilotado pelo Primeiro Investigado em 18.7.2022, objeto inaugural e permanente desta AIJE.

25. Em suma, a meu ver, a decisão sobre os fatos e sua qualificação jurídica trazidos com a Representação objeto desta AIJE não carecem do concurso das provas que são questionadas pela Defesa. São, ao meu sentir, graves e muito relevantes para as investigações em curso nos inquéritos criminais e nos processos que têm por objeto investigar crimes contra o Estado de Direito e delitos associados. Para a presente análise da Justiça Eleitoral, contudo, os tenho como periféricos, prescindíveis para fundamentar decisão.

26. Sendo assim, afasto a alegação de que teria havido ampliação da causa de pedir. Por uma, porque a colheita de provas periféricas, mas relacionadas direta ou remotamente com o núcleo fático e jurídico da lide delimitada originalmente não corresponde à ampliação da causa de pedir. Por outra, porque a prova, seja produzida e questionada, simplesmente não é necessária, muito menos essencial para solucionar a controvérsia.

 

II.2.b. Da alegação de cerceamento por não abertura de nova contestação.

 

27. Afastada a alegação de que teria havido ampliação da causa de pedir, resta prejudicada a alegação de cerceamento por não ter sido reaberta a oportunidade de contestação. Nos autos não faltou contraditório, ademais. Todas as provas foram produzidas sob o escrutínio das Partes. Não se fez, ao contrário do que sustenta a Defesa, ampliar, com fatos pretéritos ou futuros, os limites da Investigação.

28. O que houve, na ambiência mais elástica do poder de investigação do juiz eleitoral, mormente numa AIJE, foi coligir elementos fáticos que pudessem contribuir para a compreensão do potencial abusivo da conduta inicialmente delimitada. A causa de pedir segue a mesma: inelegibilidade por abuso e desvio na reunião de 18.7.2022. Não era preciso nova oportunidade para renovar ou inovar à bem lançada contestação apresentada pela Defesa. Nulidade alguma verifico.

 

II.2.c. Suposta delegação de poder instrutório.

 

29. A terceira alegação causa alguma surpresa, pois confunde requisição de documentos a um órgão da Administração Pública com i) delegação de poder instrutório e ii) convocação de adversário a influir na instrução. Tal indigitada tese, se acolhida, tolheria este Tribunal da possibilidade de requisitar documentos de órgãos públicos sempre que, na eleição, houvesse mudança de grupo político no poder.

30. O art. 22, VIII, da LC 64/90 expressamente determina que, “quando qualquer documento necessário à formação da prova se achar em poder de terceiro, inclusive estabelecimento de crédito, oficial ou privado, o Corregedor poderá, ainda, no mesmo prazo, ordenar o respectivo depósito ou requisitar cópias”.

31. Portanto, a solicitação de documentos e provas eventualmente existentes na Casa Civil, antes de caracterizar terceirização do poder instrutório ou convocação de adversário para atuar no processo, nada mais foi que o exercício de um poder-dever instrutório previsto expressamente em lei. Logo, despropositada a alegação e inexistente qualquer nulidade.

 

II.2.d. A ausência de oitiva de Eduardo Gomes da Silva.

 

32. Por fim, alega a Defesa haver cerceamento na negativa de redesignar data para a oitiva da testemunha Eduardo Gomes da Silva, dada que infrutífera em datas antes designada. Não logra, porém, a Defesa em demonstrar a imprescindibilidade desta audiência para o que entende ser o cerne fático e a causa de pedir objeto desta AIJE.

33. A suposta relevância da oitiva desta testemunha estaria no fato de ter sido ela fundamental na live ocorrida em 29.7.2021. Aqui, porém, com todo respeito, a Defesa tangencia agir em venire contra facto proprium. Sim, pois, se alega que tais fatos não têm conexão com a causa de pedir, igualmente não deveria se bater por produzir prova sobre fato estranho à lide. Como afirmado anteriormente, não entendo a live como ponto central para decisão da controvérsia. Logo, a prova se mostra ociosa. Nenhuma nulidade vejo, portanto, em ter sido encerrada a instrução sem se ter conseguido a oitiva do referido. Inclusive porque, reitera-se, a Justiça eleitoral é sabidamente marcada pela celeridade.

 

III. OS CONTORNOS DA CONTROVÉRSIA

 

34. Superadas preliminares e prejudiciais, podemos passar ao deslinde da Representação. Seus contornos foram definidos, desde a origem, como sendo os seguintes:

34.1. Como contorno fático, temos a reunião realizada no Palácio da Alvorada em 18.7.2022, protagonizado pelo então Presidente da República (Primeiro Investigado), no qual proferiu, perante representantes diplomáticos estrangeiros especialmente convidados, monólogo questionando a confiabilidade do sistema de urnas eletrônicas, colocando dúvidas sobre a imparcialidade de três Ministros Presidentes do TSE, antagonizando com o sistema judicial e com os adversários “da esquerda”, evento este transmitidos pela Empresa Brasileira de Comunicação e repercutido nas redes sociais oficiais.

34.2. O enquadramento jurídico divisado pela Representação sustenta que, com esse agir, teria ocorrido desvio e abuso de poder político, além de uso indevido dos meios de comunicação social em benefício do Primeiro Investigado, àquela altura já apresentado como candidato à reeleição.

35. É nestes exatos contornos que a AIJE deve ser decidida. São nestes quadrantes que decido.

III.1. Fatos Incontroversos.

36. Nos autos restaram incontroversos os seguintes fatos:

a) o Primeiro Investigado, na condição de Presidente da República, promoveu em 18.7.2022 uma reunião com altos representantes diplomáticos estrangeiros;

b) esse evento se realizou no Palácio da Alvorada, residência oficial da Presidência da República e foi organizado sem a participação efetiva da Casa Civil (conforme depoimento do ex-Ministro Ciro Nogueira Lima Filho4), da Secretaria de Assuntos Estratégicos (cf. depoimento ex-Ministro Flávio Augusto Viana Rocha5) e nem mesmo do Itamaraty (cf. depoimento Embaixador Carlos França6);

c) na ocasião, o Primeiro Investigado dissertou em monólogo, sem abertura para perguntas, sobre: a desconfiança com o sistema de votação eletrônica;  a vulnerabilidade dos controles do TSE; o risco do candidato que viesse a ter mais sufrágios não ser declarado vencedor por fraude; a alegada parcialidade dos Ministros que presidiram ou presidem esta Corte eleitoral; a suposta inutilidade das missões estrangeiras de observação eleitoral, sua condição de candidato indesejado pelos próceres do sistema judiciário; e eventual interesse dos Ministros do TSE em promover a candidatura de seu principal oponente;

d) o evento foi transmitido ao vivo pela EBC e repercutido nas redes sociais oficiais;

e) ao longo da instrução não surgiu nenhum elemento capaz de provar o envolvimento do Segundo Investigado na organização, realização ou difusão do evento em apreço, ainda que pudesse vir a ser beneficiário reflexo de eventual benefício eleitoral decorrente dos fatos.

4 ID 158766496.

5 ID 158766495.

6 ID 158766494.

Como dito, será estritamente nestes quadrantes fáticos que se verificará o enquadramento jurídico para, ao final, fundamentar a decisão nesta AIJE.

 

IV. ENQUADRAMENTO JURÍDICO DA CONTROVÉRSIA

 

37. O enquadramento jurídico da conduta no âmbito desta AIJE deve ser buscado especificamente no art. 22 e seus incisos da LC 64/90, sem prejuízo de outras normas da legislação eleitoral que possam ser úteis para o desfecho da controvérsia.

Este dispositivo determina que, provocada, a Justiça Eleitoral tem o poder-dever de investigar condutas que caracterizem desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social. Apurada essa conduta, a Justiça Eleitoral aplicará sanção de inelegibilidade para as eleições a se realizarem nos 8 (oito) anos subsequentes à eleição em que se verificou, além da cassação do registro ou diploma do candidato diretamente beneficiado.

Volto ao marco legal aplicável aos fatos, o art. 22 da LC 64/90:

Art. 22. Qualquer partido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleitoral poderá representar à Justiça Eleitoral, diretamente ao corregedor-geral ou regional, relatando fatos e indicando provas, indícios e circunstâncias e pedir abertura de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político, obedecido o seguinte rito:

[...]

XIV – julgada procedente a representação, ainda que após a proclamação dos eleitos, o Tribunal declarará a inelegibilidade do representado e de quantos hajam contribuído para a prática do ato, cominando-lhes sanção de inelegibilidade para as eleições a se realizarem nos 8 (oito) anos subsequentes à eleição em que se verificou, além da cassação do registro ou diploma do candidato diretamente beneficiado pela interferência do poder econômico ou pelo desvio ou abuso do poder de autoridade ou dos meios de comunicação, determinando a remessa dos autos ao Ministério Público Eleitoral, para instauração de processo disciplinar, se for o caso, e de ação penal, ordenando quaisquer outras providências que a espécie comportar;

XVI – para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam. (Grifo nosso).

É disso que se trata aqui. Será nos estritos limites dos fatos constantes na inicial que proferirei meu voto.

38. Cumprirá então analisar as circunstâncias em que se deu evento e o teor do discurso nele proferido, suas finalidades e consequências, com vistas a verificar se ele caracterizou (i) desvio ou abuso de autoridade; (ii) abuso de poder político e (iii) uso indevido dos meios de comunicação social; além de sopesar a gravidade das circunstâncias independente do resultado da eventual conduta ilícita. É apenas disso que este julgamento cuida. Todo o mais, todo o contexto que foi trazido aos autos, não constitui elemento essencial para o desfecho, podendo servir, no máximo, como fatos marginais e circunstanciais.

39. Para enfrentamento das hipóteses das condutas componentes do tipo sancionatório, a saber: desvio de poder e abuso de autoridade, peço licença a adentrar o campo do Direito Administrativo. Não só por ser área do conhecimento à qual dedico meus estudos há trinta anos e na qual ocupo a honrosa Cátedra na FDUSP há dez, mas porque seus conceitos são sobremodo servientes à demanda e ao direito eleitoral.

 

IV.1. O fundamento legal.

 

40. Saber se as condutas narradas merecem o enquadramento apto a fazer recair a grave sanção de inelegibilidade por oito anos demanda a subsunção dos fatos à norma punitiva. E, para tanto, o exercício hermenêutico envolve exclusivamente saber se o ato (discurso do PR em reunião com embaixadores no Alvorada) e sua veiculação pela EBC e redes sociais caracterizou abuso e desvio de poder. Simples assim.

 

IV.1.1. Abuso de poder.

 

41. A figura jurídica do abuso de poder é antiga conhecida dos administrativistas, acostumados a lidar com a contenção da autoridade e com a extravagância no exercício das competências públicas. Tão relevante a coibição desta patologia, que justificou a formatação normativa de um remédio para coibi-lo – o mandado de segurança –, elevado à condição de remédio constitucional (CF, art. 5º, LXIX). Não é, pois, especialmente difícil identificar o abuso.

42. O Mestre Marçal Justen Filho7 é preciso:

Dá-se o abuso de poder quando um sujeito se vale da competência de que é titular para além dos limites necessários, atuando de modo a lesar interesses alheios sem que tal corresponda a algum benefício para as necessidades coletivas.

Outro clássico do Direito Administrativo, Hely Lopes Meirelles8, na última edição de sua obra maior antes de falecer, portanto refletindo sua própria opinião, ensinava sobre o tema que sempre lhe foi claro:

O abuso de poder ocorre quando a autoridade, embora competente para praticar o ato, ultrapassa os limites das suas atribuições ou se desvia das finalidades administrativas.

O abuso de poder, como todo ilícito, reveste as formas mais diversas. Ora se apresenta ostensivo como a truculência, às vezes dissimulado como estelionato, e não raro encoberto na aparência ilusória dos atos legais.  Em qualquer destes aspectos – flagrante ou disfarçado – o abuso de poder é sempre uma ilegalidade invalidadora do ato que a contém. (Grifo nosso).

7 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo, 13ª edição, revista, atualizada e ampliada, São Paulo, Thomson Reuters Brasil - Revista dos Tribunais, 2018, pág. 365.

8 LOPES MEIRELLES, Hely. Direito Administrativo Brasileiro, 1990, p. 90.

Portanto temos que, para estar presente o abuso de poder, a autoridade: i) exerce competência que originalmente lhe era correspondente; ii) ultrapassa ou desvia a finalidade ensejadora dessa competência; iii) ao fazê-lo, lesa interesses alheios (públicos ou privados) sem qualquer efetivo benefício à coletividade; e iv) pode fazê-lo procurando travesti-lo de um ato regular, dissimulando seus reais objetivos. A dissimulação, antes de afastar o abuso, acentua sua gravidade consoante a lição dos mestres.        

43. A Jurisprudência dessa Corte já de há muito tem assentada compreensão consentânea do que caracteriza abuso de poder político. Em julgado paradigmático, ficou decidido:

ELEIÇÕES 2010. AGRAVOS REGIMENTAIS. RECURSO ORDINÁRIO. AIJE. ABUSO DE PODER. CONFIGURAÇÃO. DECLARAÇÃO DE INELEGIBILIDADE. AÇÃO CAUTELAR. PREJUÍZO. LIMINAR. ASSISTÊNCIA LITISCONSORCIAL.AUSÊNCIA. INTERESSE JURÍDICO.

1. Com base na compreensão da reserva legal proporcional, compete à Justiça Eleitoral verificar, baseada em provas robustas admitidas em direito, a ocorrência de abuso de poder, suficiente para ensejar asseveras sanções previstas na LC n° 64/1990. Essa compreensão jurídica, com a edição da LC n° 135/2010, merece maior atenção e reflexão por todos os órgãos da Justiça Eleitoral, pois o reconhecimento desse ilícito poderá afastar o político das disputas eleitorais pelo longo prazo de oito anos (art. 10, inciso 1, alíneas d, h e j, da LCn°64/1990).

2. Segundo a jurisprudência do TSE, "o abuso do poder político ocorre quando agentes públicos se valem da condição funcional para beneficiar candidaturas (desvio de finalidade), violando a normalidade e a legitimidade das eleições" (AgR-REspe n° 36.357/PA, rel. Min. Aldir Passarinho Junior, julgado em 27.4.2010).

3. Abuso de poder político. Configura grave abuso de poder político a realização de comício eleitoral por candidato ao qual grande número de estudantes compareceu, durante o horário letivo, em razão de terem sido informados de que, no evento, seriam tratados temas de interesse da classe estudantil, além de terem sido submetidos a constrangimentos e humilhações, ferindo-lhes a dignidade.

4. A normalidade e a legitimidade do pleito, previstas no art. 14, § 90, da Constituição Federal, decorrem da ideia de igualdade de chances entre os competidores, entendida como a necessária concorrência livre e equilibrada entre os partícipes da vida política, sem a qual se compromete a própria essência do processo democrático.

(AgR-RO 2887-87, rel. Min. Gilmar Mendes, DJE de 13.2.2017.)

A jurisprudência da Corte sobre o tema é manancial e dispensa colações exageradas.

44. Portanto, são nestes quadrantes, em que a doutrina e a jurisprudência do TSE andam em sintonia, que devemos emoldurar juridicamente os fatos trazidos com a inicial.

 

IV.1.2. Desvio de poder (ou de sua finalidade).

 

45. Igualmente o desvio de poder (ou de sua finalidade) é matéria esquadrinhada no Direito Administrativo e na Jurisprudência.

O desvio de poder se traduz no uso das prerrogativas públicas enfeixadas na competência para alcançar não as finalidades de interesse público, suas justificadoras, mas finalidade diversa, de interesse pessoal do agente. Novamente, o ilustre farturense Hely Lopes Meirelles9 nos socorre com sua clareza ao definir o desvio de finalidade (espécie maior do desvio de poder) da seguinte forma:

O desvio de finalidade ou de poder se verifica quando a autoridade, embora atuando nos limites de sua competência, pratica o ato por motivos ou com fins diversos dos objetivados pela lei ou exigidos pelo interesse público. O desvio de finalidade ou de poder é, assim, a violação ideológica da lei, ou por outras palavras, a violação moral da lei, colimando o administrador público fins não queridos pelo legislador, ou utilizando motivos e meios imorais para a prática de um ato administrativo aparentemente legal.

9 LOPES MEIRELLES, Hely. Direito Administrativo Brasileiro, 1990, p. 92.

A contundência da definição de Hely nos remete ao conceito de competência, entendida como um poder-dever atribuído ao agente público para manejar poderes e prerrogativas nos estritos limites do necessário ao atingimento da finalidade que a lei predisse para aquela competência. Aqui nos ilumina outro mestre, Celso Antônio Bandeira de Melo10, que leciona:

Então, posto que as competências lhes são outorgadas única e exclusivamente para atender à finalidade em vista da qual foram instituídas, ou seja, para cumprir o interesse público que preside sua instituição, resulta que se lhes propõe uma situação de dever: o de prover àquele interesse.

Igualmente sobre o tema do desvio de finalidade como ilícito eleitoral, a Jurisprudência desta Corte vai em sintonia com os ensinamentos da melhor doutrina:

RECURSOS ORDINÁRIOS. ELEIÇÕES 2018. GOVERNADOR E VICE-GOVERNADOR. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. MATÉRIA PRELIMINAR. IMPEDIMENTO. REJEIÇÃO. ABUSO DO PODER POLÍTICO. ASSINATURA DE ORDENS DE SERVIÇO. NÃO CARACTERIZAÇÃO. PROVIMENTO.

12. De acordo com a jurisprudência desta Corte Superior, “o abuso do poder político configurasse quando o agente público, valendo-se de sua condição funcional e em manifesto desvio de finalidade, compromete a legitimidade do pleito e a paridade de armas entre candidatos, o que se aplica igualmente às hipóteses de condutas aparentemente lícitas, mas com eventual desvirtuamento apto a impactar na disputa” (AgR-AI 518-53, Rel. Ministro Sergio Banhos, DJE de (6.3.2020).11

46. As condutas típicas de abuso de poder e de desvio de finalidade podem se aplicar tanto para o evento em si como pelo emprego dos meios de comunicação e das mídias sociais. Em sendo assim, cumpre analisar as características do ato e do discurso nele proferido, o qual constitui o cerne da reunião em apreço.

10 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, 32ª edição, revista e atualizada até a Emenda Constitucional 84, de 02.12.2014, São Paulo, Malheiros Editores, 2015, pág. 147.

11 RO-El 0600865-42, rel. Min. Sérgio Banhos, DJE de 23.2.2022.

IV.2. Análise do evento e do seu teor.

 

47. Como dito, não se controverte quanto à realização de uma reunião do Primeiro Investigado com Embaixadores estrangeiros, em 18.7.2022, na qual o PR dissertou durante pouco mais de meia hora, e que teve lugar no Palácio da Alvorada, próprio público da União.

 

IV.2.1. Especificidades da organização do evento.

 

48. Da longa instrução, resultou provado que a reunião com os embaixadores não se tratou de um evento inserido dentro da agenda das relações institucionais brasileiras: “É... não. Nós... nós não tivemos acesso a esse material, e nós não fomos acionados para revisar esse material. Não... não houve participação do Itamarati na substância desse evento12.

Igualmente ficou provado que tampouco a reunião se inseria na agenda dos atos de governo que são organizados pela Casa Civil da Presidência13. Indagado, o então Ministro respondeu:

JUIZ AUXILIAR: Também como Ministro Chefe da Casa Civil, no dia 18 de julho, quando houve essa reunião do ex-Presidente Jair Bolsonaro e os embaixadores estrangeiros, o Senhor foi incumbido de tratar algum tema dessa reunião sobre sistema de votação?

O SENHOR CIRO NOGUEIRA LIMA FILHO (testemunha): Não.14

Em um momento posterior do mesmo depoimento, o mesmo Ministro Ciro Nogueira afirmou: “Eu não disse que foi uma reunião normal, mas eu não vejo nisso nenhum tipo de agressão ao sistema eleitoral, não. Acho que foi uma reunião, do meu ponto de vista, que poderia ter sido evitada – eu concordo –, eu não era favorável a ela”.

12 Depoimento em juízo do Embaixador Carlos França (ID 158766494).

13 Depoimento em juízo do Ex-Ministro Ciro Nogueira Lima Filho (ID 158766496).

14 Depoimento em juízo do Ex-Ministro Ciro Nogueira Lima Filho (ID 158766496).

49. Ressalte-se que o caráter eleitoral do evento também resultou patente da prova colhida nos autos. Veja-se o depoimento do Ministro Carlos França:

JUIZ AUXILIAR: (...)Portanto, Hum-hum. Tá. Nessa... é... é... o Senhor já explicou, já foi claro, mas, durante o evento, nessa preparação, a chancelaria, coube a ela também uma preparação de slides sobre esse sistema eleitoral, ou foi feito por outra...

O SENHOR EMBAIXADOR CARLOS ALBERTO FRANÇA (Ministro das Relações Exteriores): Não, Excelência. Essa matéria eleitoral não é matéria de competência do Ministério das Relações Exteriores. [...] Eu ajudo na logística, por exemplo, colocando tradução simultânea – o equipamento e o próprio tradutor são... são... ah... contratados pelo Itamarati. o evento não pode ser reduzido à condição de um singelo ato de gestão do chefe de Governo, nem tampouco a realização de um ato de Chefe de Estado.15

50. Também emergiu da dilação probatória que a organização do evento foi feita em poucos dias, três ou quatro, de afogadilho, cabendo não às instâncias normalmente responsáveis por eventos regulares do Governo (Casa Civil, SAE, Itamaraty) mas a um núcleo restrito e anônimo de funcionários do Palácio do Planalto e do Gabinete do PR. O que, per se, já afastaria a tese da Defesa de um ato regular, comezinho e próprio à atividade governamental.16 Veja-se o teor do Ofício-Circular 83/2022/GPPR-CERIMONIAL/GPPR, (ID 158839080), emitido dias antes do evento. Nele vemos registrado que as unidades envolvidas foram comunicadas de que o Presidente da República receberia os Chefes de Missão Diplomática no Palácio da Alvorada. O documento foi expedido em 13.7.2022, uma quarta-feira, deixando apenas mais dois dias úteis para a preparação do evento, que ocorreria na segunda-feira seguinte.

15 Depoimento em juízo do Embaixador Carlos França (ID 158766494)

16 Sintomático a esse respeito o depoimento do Embaixador Carlos França:

O DOUTOR MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (Juiz Auxiliar da Presidência do TSE): Hum-hum. Tá. Nessa... é... é... o Senhor já explicou, já foi claro, mas, durante o evento, nessa preparação, a chancelaria, coube a ela também uma preparação de slides sobre esse sistema eleitoral, ou foi feito por outra...

O SENHOR EMBAIXADOR CARLOS ALBERTO FRANÇA (Ministro das Relações Exteriores): Não, Excelência. Essa matéria eleitoral não é matéria de competência do Ministério das Relações Exteriores. [...] Eu ajudo na logística, por exemplo, colocando tradução simultânea – o equipamento e o próprio tradutor são... são... ah... contratados pelo Itamarati. A apresentação, depois, de discursos do presidente ou de ministros, aí, para que nós possamos divulgar essas ações de... de governo no exterior quando são... é... nós entendemos que é de conveniência da política externa, não é?

O DOUTOR MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (Juiz Auxiliar da Presidência do TSE): É... com relação aos fatos, especificamente antes do dia 18 de julho de 2022, já tinha sido algum... realizado algum evento com os embaixadores de países estrangeiros para tratar especificamente do sistema de votação brasileiro com ou sem a presença do presidente da República? É... eu... eu digo assim, não uma questão pontual, com um embaixador ou outro, mas uma reunião coletiva, com vários embaixadores convidados?

O SENHOR EMBAIXADOR CARLOS ALBERTO FRANÇA (Ministro das Relações Exteriores): Não. Não que eu tenha conhecimento. [...]

O DOUTOR MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (Juiz Auxiliar da Presidência do TSE): É... é... perfeito. Ah... só complementando, na pergunta específica é se havia alguma orientação ao corpo diplomático para buscar essas informações sobre sistemas eleitorais dos países estrangeiros junto ao seu representante maior? No caso, o presidente, o primeiro-ministro, ou algo nesse sentido?

O SENHOR EMBAIXADOR CARLOS ALBERTO FRANÇA (Ministro das Relações Exteriores): Não. Com certeza, não.

O DOUTOR MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (Juiz Auxiliar da Presidência do TSE): Sempre é feito de forma protocolar, dentro da escala hierárquica do Ministério

O SENHOR EMBAIXADOR CARLOS ALBERTO FRANÇA (Ministro das Relações Exteriores): É verdade. Pode ser que haja... é... algum... algo.... alguma coisa no sentido de se buscar alguma coisa comparativa. Assim: – Olha, me... me informa como é que funciona o sistema eleitoral indiano, como funciona o sistema eleitoral boliviano. Mas isso é uma informação que... que ocorre num nível hierárquico muito mais baixo. Nunca... nunca juntam um presidente, primeiro-ministro ou chanceler mesmo, né?

Perquirir qual seria a razão de tamanha urgência tangencia a especulação. Mas eventos de representação diplomática não são organizados assim de inopino. O que afasta ainda mais a alegada “regularidade governamental” do evento. O tempo da diplomacia – dadas as cautelas com que as relações institucionais se desenvolvem – é bem mais lento e demanda maturação, ao contrário do dinamismo do tempo eleitoral, como bem sabe este Tribunal, e seus prazos contatos em horas.

51. Ainda restou provado que nem sequer houve envolvimento do Itamaraty na preparação do material que seria veiculado ou mesmo na revisão do vernáculo, o que deu azo a algum constrangimento com erros de grafia na língua inglesa. O Ministério das Relações Exteriores, reconheceu o Embaixador Carlos França, apenas se mobilizou, às carreiras, para providenciar tradução simultânea.

52. Registre-se, lateralmente, que o evento teve lugar em horário regular de expediente, no Palácio da Alvorada (residência oficial da Presidência) e não no Planalto (próprio adequado para a prática de atos oficiais de governo) ou no Palácio do Itamaraty (próprio adequado para as atividades de representação diplomática).

Ora, um evento oficial, mormente envolvendo as relações diplomáticas, desaconselha que tenha lugar no bem público cuja destinação primária é de servir de residência do Chefe do Executivo. Não que o PR não possa realizar reuniões de trabalho no Alvorada, isso por vezes ocorre. Igualmente é dado ao Presidente da República receber dignatários estrangeiros em recepções formais em sua residência.

Porém é incompatível com o argumento de que a reunião com representantes diplomáticos cuidou de mero ato regular no exercício da competência constante do art. 84, inciso VII, CF, ao fazê-la realizar, de improviso, na Residência Oficial do Chefe do Estado. Isso seria reduzir um encontro diplomático à condição de um improvisado churrasco de domingo.

 

IV.2.1.2. A deontologia de um candidato à reeleição.

 

53. Ainda quanto às circunstâncias em que se realizou o evento, cuja importância de destaca pela insistência da tese em reduzir o ocorrido a mero ato de governo, temos que ter em mente que o Primeiro Investigado era à época o incumbente candidato à sua reeleição.

54. O instituto da reeleição, desde a sua introdução pela EC 16/97, é objeto de críticas. Aqui descabe aprofundá-las. O que temos é que, possível a reeleição no modelo que se adotou aqui (sem o afastamento do incumbente candidato, única hipótese em que não se exige desincompatibilização para disputar certame eleitoral) a conduta do governante deve se revestir de cautelas extremas. E rigorosa deve ser, e tem sido, a fiscalização da Justiça Eleitoral. Sem isso a disputa restaria por demais desequilibrada – já que, em sede de reeleição, algum desequilíbrio sempre existirá.

A utilização de eventos, bens e atos públicos pelo candidato (ou pré-candidato, aqui irrelevante) para fins de emular sua candidatura constitui abuso em si. Se não se exige que o governante apresentado à reeleição cesse sua atividade governamental e de representação, seu agir enquanto governante-candidato deve se pautar por extrema apartação dos dois papeis, das duas personas.

É nessa linha a pacífica Jurisprudência desta corte:

A maior valia decorrente da administração exercida, da permanência no cargo, em que pese à potencial caminhada no sentido da reeleição, longe fica de respaldar atos que, em condenável desvio de conduta, impliquem o desequilíbrio de futura disputa [...].

(Rp 7-52, rel. Min. Marco Aurélio Mello, DJ de 17.3.2006.)

55. Tivesse o Primeiro Investigado se comportado de modo compatível com os cânones já assentados pela Justiça Eleitoral e deveria ter se abstido, desde sempre, de adentrar em debate sobre i) o processo eleitoral; ii) sua apresentação como candidato e iii) os resultados esperados do pleito usando para tanto ato oficial, convocado com os poderes de Chefe de Estado, com mobilização da estrutura de governo, com respaldo dos símbolos da República e em sede de bem público afetado ao uso privativo do Presidente da República (enquanto tal e não na condição de candidato).

56. Mais essa circunstância envolvida no evento objeto desta AIJE, por si e no mosaico de circunstâncias que a cercam, concorre para delinear o quadro serviente a caracterizar o abuso de poder político e o desvio de finalidade conforme acima desenhados.

 

IV.2.1.3. A quebra da liturgia presidencial.

 

57. A estas primeiras circunstâncias (organização de improviso e em local inadequado), provadas nos autos, se acrescenta uma segunda ordem de características relevantes para se aferir se houve ou não abuso e desvio.

58. A postura do Primeiro Investigado, percebe-se da simples análise do vídeo do evento, faz prenunciar que a performance ali se caracterizava menos como a de Chefe de Estado no exercício da competência de travar relações com nações estrangeiras e mais como um comportamento típico de campanha eleitoral. Não apenas pelo teor do discurso, que será analisado mais à frente, mas pela contundência e peremptoriedade com que dirigiu as críticas aos seus adversários (eleitorais ou pessoais) e desafetos. Note-se que não se está aqui a tecer considerações sobre a urbanidade ou a polidez no trato pelo Investigado, mas de mostrar a incompatibilidade de se pretender amoldar aquele evento num “mero exercício da competência presidencial de representação ente representantes diplomáticos”.

59. Agiu, pois, o Primeiro Investigado muito distante da liturgia do cargo de Presidente da República. O que poderia ser apenas objeto de censura deôntica. Mas que, associado ao conteúdo da apresentação e às consequências visadas, confere contornos indiciários bastante servientes à caracterização quando não só de abuso, certamente do desvio de finalidade. Sim, porque, se estivéssemos diante do regular exercício da competência prevista no art. 84, VII, da CF, jamais se estaria trazendo tema doméstico, com desdouro às instituições nacionais perante representantes estrangeiros e com tom confrontacional àqueles indicados como adversários (ou inimigos).

60. Temos então que o mero distanciamento da liturgia mínima atinente ao elevado cargo de Presidente da República oferece um outro elemento útil e relevante para o escrutínio do abuso de poder político e do desvio de finalidade.

 

IV.2.2. O teor do discurso.

 

61. Vistas as circunstâncias em que se organizou e realizou a tal reunião com os Embaixadores, cumpre agora analisar o teor do discurso proferido pelo Primeiro Investigado, uma vez que o evento se resumiu a um monólogo apoiado por uma apresentação em formato Power Point.

62. A análise do discurso se mostra relevante por dois motivos: i) para se perquirir se o teor da mensagem teve objetivos eleitorais e a finalidade de interferir nas condições de paridade da disputa; e ii) se ela caracterizou algum ilícito que, à luz da jurisprudência do E. TSE é suficiente para caracterizar abuso de poder político. Afora isso, a dissecção do teor da mensagem será também útil para se aferir a gravidade qualitativa do eventual abuso ou desvio.

63. Analisando linha a linha o discurso apresentado pelo Primeiro Investigado em 18.7.2022, convenci-me de que ele teve claro objetivo eleitoral, não no sentido apenas de questionar o processo eleitoral sem provas e evidências consistentes (o que já poderia caracterizar desvio de finalidade), mas de angariar proveitos eleitorais na disputa de outubro em desfavor de seus concorrentes, desequilibrando a disputa com o peso do poder político.

64. Depurando o discurso, constatamos nele quatro linhas de mensagem eleitoral com clara intenção de reforçar ou melhorar o posicionamento do Primeiro Investigado na disputa, usando da condição e meios à disposição do Presidente da República:

a) linha autopromocional, consistente em se posicionar como um candidato dotado de características positivas, eleitoralmente valoráveis, e resgatar motes da bem-sucedida campanha de 2018;

b) linha negativa aos adversários, consistente em associar seu principal concorrente a características desairosas;

c) linha de martirização pela deslegitimação dos juízes e tentativa de criação de empatia eleitoral com a figura de candidato antissistema;

d) a mais escamoteada e potencialmente mais grave: linha de desqualificação do sistema eleitoral em desincentivo à participação do eleitor para com isso granjear o fenômeno da apatia benéfica ao incumbente.

65. Ao fim da análise destes elementos, estaremos aptos a verificar a ocorrência de abuso do poder político e desvio de finalidade sem precisar recorrer a lives pretéritas ou futuras, à esdrúxula minuta de decreto golpista ou mesmo aos fatídicos eventos do 8 de janeiro (fatos graves, repito, merecedores de apreciação em sede própria, mas despiciendos para decisão da presente AIJE).

 

IV.2.2.a. Linha 1: o discurso de autopromoção como candidato.

 

66. Analisando o discurso, nota-se claramente que o Primeiro Investigado se utilizou do lugar de fala de quem exercia a Presidência da República para se autopromover como candidato. Em vários momentos, o Primeiro Investigado falou de si perante os Embaixadores como candidato e do seu governo como uma experiência bem-sucedida que deveria continuar.

66.1. Logo no início, o Primeiro Investigado discorre sua trajetória em tom e teor que em nada discrepariam de um trecho de abertura da propaganda eleitoral gratuita:

“Sou capitão do exército brasileiro, fiquei 15 anos no exército, fui vereador no Rio de Janeiro por dois anos e 28 anos dentro da Câmara dos Deputados. Conheço muito bem o  nosso sistema. Conheço muito bem a política brasileira. Fiz uma campanha sem recurso, mas que começou quatro anos antes do pleito, depois da reeleição da senhora Dilma Rousseff. E, andando pelo Brasil sozinho, três anos sozinho andando pelo Brasil, juntando multidões, fiz a minha campanha.”17

66.2. Ou quando reafirma um dos seus motes de campanha, centrado na difusa noção de liberdade, atrelada ao período posterior às eleições (logo, se e quando reeleito):

“O que eu mais quero para o meu Brasil é que a sua liberdade continue a valer também, obviamente, depois das eleições.”18

66.3. Ou em trecho que faz promoção dos alegados êxitos do seu governo:

“Repito: Temos negócio com o mundo todo, é um país fantástico. Teria muito a falar sobre o Brasil, como os senhores bem acompanham o que vem acontecendo aqui em nossa pátria.”19

66.4. Há, ainda, passagem emulando sua propalada característica de líder popular, em conteúdo absolutamente incondizente com evento que supostamente teria por finalidade interesses atinentes às relações externas brasileiras ou mesmo a “diálogos institucionais”, aproximando-se muito mais de um discurso de comício:

“Como os senhores viram no começo aqui, em vídeos passando meus, eu ando o Brasil todo. Sou muito bem recebido em qualquer lugar. Ando no meio do povo. O outro lado não. Sequer toma café ou almoça no restaurante do hotel. Come no seu quarto. Porque não tem aceitação”20

66.5. Por fim, mas não menos importante, o trecho em que faz uma verdadeira propaganda dos feitos de seu governo, sem qualquer relação com um evento com representantes estrangeiros e em típico discurso eleitoral transmitido ao vivo pela EBC:

“O Brasil está voando. Nos comportamos muito bem durante a pandemia. Nos comunicamos e fazemos negócio com o mundo todo. Nos mantivemos em posição de equilíbrio em situações complexas pelo mundo. Nós garantimos a segurança alimentar para mais de 20% da população mundial. Também a segurança energética. O Brasil desponta como um exemplo para o mundo” (Grifo nosso).21

67. Vê-se, portanto, que, para além de finalidades eleitorais mais subalternas e implícitas, o evento do dia 18.7.2022 teve caráter marcadamente eleitoral, consubstanciado na autopropaganda do Primeiro Investigado e de seu governo, colocados já como contendores numa disputa eleitoral que, durante todo o tempo do monólogo, figurou como pano de fundo do discurso.

 

IV.2.2.b. Linha 2: Desqualificação e demonização do principal adversário.

 

68. A segunda linha que se extrai do discurso demonstra um intuito de desqualificar e vilanizar seu principal oponente e as forças que o apoiavam.

68.1. Num primeiro momento, tentando construir uma interpretação de que seu oponente seria um criminoso posto em liberdade, por favor judicial, e não beneficiário da presunção de inocência:

“Numa interpretação de um dispositivo constitucional, o Lula estava preso, (...). Então, ele foi condenado em 1ª instância, 2ª instância, 3ª instância, todos os placares por unanimidade e estava cumprindo pena de prisão. Com a reinterpretação do Supremo Tribunal Federal, ele foi para rua. Mas como ele, Lula, estava em liberdade, mas as condenações estavam valendo, o próprio Ministro Fachin, relator de um processo, resolveu tornar o Lula elegível. Então, por 3 a 2, o Supremo Tribunal Federal não inocentou. Simplesmente, anulou os julgamentos, voltando para a 1ª instância o senhor Luiz Inácio Lula da Silva. “22

68.2. Ao ficar repisando a ideia do principal oponente como um “político condenado” (portando partícipe de conduta delituosa), beneficiário de favorecimento judicial, o Primeiro Investigado automaticamente se coloca na condição de contraponto, de antagonista ao estado das coisas conspurcado e a todas as forças contra as quais ele, candidato, se apresentava. Veja-se o trecho seguinte:

“(...) inacreditável. O que que o Fachin diz, o homem que tornou Lula elegível, sempre foi advogado do MST, um grupo terrorista que até pouco tempo era bastante ativo no Brasil”23

17  Gravação do evento, minutos 00:01:58 a 00:02:36 – Parte 1 ID 157957948.

18 Gravação do evento, minutos 00:02:47 a 00:02:55 - Parte 4  ID 157957951.

19 Gravação do evento, minutos 00:03:21 a 00:03:33 - Parte 4  ID 157957951.

20 Gravação do evento, minutos 00:04:06 a 00:04:25 - Parte 4  ID 157957951.

21 Gravação do evento, minutos 00:00:00 a 00:00:30 - Parte 6  ID 157957954.

22 Gravação do evento, minutos 00:05:38 a 00:06:36 - Parte 2  ID 157957949.

23 Gravação do evento, minutos 00:05:44 a 00:06:00 - Parte 4  ID 157957951.

68.3. Portanto, para além da crítica negativa, desairosa, o discurso teve também o nítido propósito de demarcar o antagonismo eleitoral entre o Primeiro Investigado, apresentado como portador das virtudes e responsável por uma obra governamental digna de sucesso, e seu principal antagonista, desenhado como um egresso do sistema prisional, associado a terroristas e beneficiário de “favores judiciais” de um sistema comprometido e ilegítimo.

69. Claro parece estar a incidência em comportamentos que a Jurisprudência desta Corte tem caracterizado como prenotadores do abuso de poder político.24

 

IV.2.2.c. Martirização por deslegitimação dos juízes e tentativa de criação de empatia eleitoral.

 

70. Além de o discurso conter propaganda eleitoral emulatória do candidado Primeiro Investigado, incumbente na OS e também propaganda negativa distorcida sobre seu principal oponente, o discurso também é construído no claro e astucioso objetivo de criar empatia com o eleitor a partir de sua colocação como um “candidato perseguido pelo sistema ao qual se opõe”. Percebe-se isso em várias passagens.

24 “[...] a transmissão ao vivo de conteúdo em rede social [...] contendo divulgação de notícia falsa e ofensiva por parlamentar federal, em prol de seu partido e de candidato, configura abuso de poder de autoridade e uso indevido de meio de comunicação", sendo grave a afronta à "legitimidade e normalidade do prélio eleitoral” (RO 0603975-98, rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJE de 10.12.2021).

70.1. Primeiro, ao resgatar sua campanha vitoriosa de 2018 para retomar a imagem de candidato que se ergue contra todas as forças do sistema político e da “esquerda”, martirizando-se em sacrifício. Veja-se:

 “Me elegi Presidente da República gastando menos de US$ 1 milhão. Repito, gastando menos que US$ 1 milhão e dentro de um leito de hospital, após sofrer um atentado de uma facada de um elemento de esquerda e cujo inquérito não foi concluído, apesar dos enormes indícios de interesses outros se  fazerem presentes25

70.2. Segue por inculcar a ideia de um incumbente impedido de governar pela ação das forças antagônicas, ou pelo “Sistema” contra o qual luta:

As ações contra o nosso governo são inúmeras. Eu recebo uma interferência por semana no meu governo. Você dá prazo para explicar por 48 horas por que que eu não fiz isso, por que não fiz aquilo. E é ajuizada por parlamentares de esquerda, da extrema-esquerda brasileira, tentando o tempo todo desestabilizar o governo.”26

70.3. E atinge o ápice discursivo ao construir um fio narrativo pelo qual o Primeiro Investigado, supostamente ombreado com as Forças Armadas, se confrontaria com os próceres do Sistema Judiciário, supostamente pareados com a “esquerda”. Uma passagem vale por todas:

“As Forças Armadas, a qual (sic) sou comandante, ninguém mais do que nós, como sempre, queremos estabilidade em nosso país.

E por que agem de maneira diferente? E nós vemos claramente, o Ministro Fachin foi quem tornou o Lula elegível e agora é presidente do TSE. O Ministro Barroso foi advogado do terrorista Battisti, que recebeu aqui o acolhimento do presidente Lula em dezembro de 2010. O Ministro Alexandre de Moraes advogou no passado a grupos que, se eu fosse advogado, não advogaria.”27

70.4. Ao assim dissertar, na frente de representantes diplomáticos, mas com transmissão ao vivo pela EBC e repercussão pelas redes sociais oficiais, o investigado usa dos meios que dispunha como Presidente da República para se posicionar na disputa eleitoral granjeando empatia com a população e construindo, novamente, a imagem de um “depurador das instituições corroídas por todos os tipos de mazelas”. Ora, isso tem um nome: emprego eleitoral, em benefício do incumbente, dos meios a que dispõe como Chefe do Executivo. Conduta juridicamente qualificada como abuso do poder político.

“O abuso do poder político qualifica–se quando a estrutura da administração pública é utilizada em benefício de determinada candidatura”28

25 Gravação do evento, minutos 00:01:15 a 00:01:43 - Parte 1  ID 157957948.

26 Gravação do evento, minutos 00:03:57 a 00:04:22 - Parte 5  ID 157957952.

27 Gravação do evento, minutos 00:01:23 a 00:02:01 - Parte 6  ID 157957954.

28 RO 2650-41, rel. Min. Gilmar Mendes, DJE de 8.5.2017.

IV.2.2.d. Desqualificação do processo eleitoral e desincentivo à participação do eleitor como estratégia eleitoral.

 

71. O cerne principal do discurso, porém, é colocar em dúvida a confiabilidade da justiça eleitoral e a isenção do TSE. Aqui são várias as oportunidades em que assaca aleivosias e graves acusações com um único objetivo: colocar em dúvida as eleições tal como vêm sendo conduzidas. Citemos apenas alguns trechos:

“que permite a alteração de dados de partidos e candidatos. Até mesmo a sua exclusão, no contexto do processo eleitoral’. Ou seja, esse grupo de invasores puderam até mesmo excluir nomes e, mais, trocar votos entre candidatos. E o que aconteceu depois de tudo isso” 29

“E a Polícia Federal concluiu pela total falta de colaboração do TSE para com a apuração, do que os hackers tinham feito ou não por ocasião das eleições de 2018. E repito, até hoje esse inquérito não foi concluído. Entendo que não poderíamos ter tido eleições em 2020 sem apuração total do que aconteceu lá dentro. Porque o sistema é completamente vulnerável, segundo o próprio TSE e obviamente a conclusão da Polícia Federal.30

[...]

“Vários outros países ou não usam ou começaram a usá-lo ou chegaram à conclusão de que não era um sistema confiável porque ele é inauditável. É impossível fazer uma auditoria em eleições aqui no Brasil.”

“Olha que o pessoal está acompanhando uma apuração. No Brasil, não tem como acompanhar a apuração. Eu não sei o que vêm fazer observadores de fora aqui. Vão fazer o quê? Vão observar o que? Se o sistema é falho, segundo o próprio TSE, é inauditável também, segundo uma auditoria externa pedido (sic) por um partido político, no caso, o PSDB, em 2014. E, com todo respeito, 8 meses passeando dentro dos computadores do TSE esse grupo de hackers, será que o TSE não sabia?” (Grifo nosso).

29 Transcrição no ID 158764809.

30 Gravação do evento, minutos 00:00:24 a 00:00:57 - Parte 2  ID 157957949.

71.1. E, colocando pá de cal na tentativa de pretender apresentar o evento do dia 18.7.2022 como um ato de representação diplomática, arremata o Primeiro Investigado:

“Agora, isso que está acontecendo é de interesse de todo o povo brasileiro. A desconfiança do sistema eleitoral tem se avolumado. Nós não podemos enfrentar umas eleições sob o manto da desconfiança. Nós queremos ter a certeza de quem, eleitor, para quem o eleitor votou, o voto vai exatamente para aquela pessoa” (Grifo nosso).

71.2. Pois bem. Desenha-se aqui um quarto objetivo, mais subalterno, mas nem por isso de importância e gravidade menor. Nem de impacto eleitoral secundário. Ao desqualificar o sistema eleitoral, o Primeiro Investigado – repise-se, incumbente candidato à reeleição – adentrou na estratégia já estudada pelos cientistas políticos dedicados aos fenômenos recentes de distorção das eleições em prol do incumbente.

À esquerda e à direita, temos assistido líderes interferirem na higidez das eleições mediante o próprio esvaziamento da legitimidade e da adesão aos pleitos. Seja na Venezuela ou na Nicarágua, seja na Polônia ou na Hungria, tem sido comum os incumbentes desincentivarem a participação eleitoral, fazendo crer que se trata de um jogo viciado e com isso extrair vantagem do fato de ser o detentor da máquina governamental.

71.3 Hafner-Burton, Hyde & Jablonski31 examinaram 1.322 eleições potencialmente competitivas em 122 países, incluindo 399 eleições nas quais o incumbente recorreu a algum tipo de violência pré-eleitoral ou a atos intimidatórios com vistas a favorecer sua vitória.

A hipótese do estudo é que tais práticas podem aumentar as chances de reeleição do incumbente ao levar a oposição a se ausentar da competição, boicotando-a, ou de modo a constranger a participação dos eleitores oposicionistas, promovendo sua conversão por medo de retaliação ou forçando sua maior abstenção em relação aos eleitores propriamente governistas.

Como fraudar urnas é algo custoso, manipular o comparecimento pode ser uma forma eficaz e menos onerosa de alcançar o resultado desejado.

De fato, os autores demonstram que o uso de violência pré-eleitoral aumenta em 50,9% as chances de vitória do incumbente. Parte desse incremento ocorre porque a oposição decide boicotar a eleição, mas outra parte ocorre por efeito dos atos intimidatórios sobre o eleitorado opositor que comparece e vota majoritariamente no incumbente, enquanto outra parte, de tendência oposicionista, tende a se abster.

Ainda que essa estratégia não assegure a vitória, argumentam os autores, é racional que líderes autoritários prefiram arcar com os custos futuros para ganhar eleições no presente, sobretudo em contextos de maior incerteza eleitoral nos quais estes líderes não sabem avaliar com precisão suas chances de continuar no poder.

31 Hafner-Burton, E., Hyde, S., & Jablonski, R. (2018). Surviving Elections: Election Violence, Incumbent Victory and Post-Election Repercussions. British Journal of Political Science,48(2), 459-488. doi:10.1017/S000712341600020X

72. Nesse contexto de acirrada disputa, emergiu a tese de que um eventual aumento da abstenção eleitoral poderia beneficiar o candidato incumbente e prejudicar o candidato da oposição.

De fato, como demonstra o estudo de Hafner-Burton, Hyde & Jablonski (2018), quando o incumbente patrocina medidas violentas ou intimidatórias que afetam o comparecimento eleitoral, suas chances de vitória aumentam significativamente.

73. No contexto brasileiro de 2022, entretanto, essa proposição foi levantada por pesquisadores de institutos de pesquisa no intuito de explicar as diferenças ocorridas entre a votação do primeiro turno e as últimas pesquisas de intenção de voto divulgadas às vésperas do pleito.

Especificamente, tratou-se de explicar porque o principal candidato de oposição obteve menos votos do que se esperava – perdendo assim a chance de vencer no primeiro turno – e o Primeiro Investigado obteve mais votos do que as pesquisas de véspera indicaram.

O argumento desenvolvido foi o de que os resultados das enquetes dos institutos são apresentados em função do eleitorado total e não do comparecimento efetivo que ainda não há como conhecer.

74. O debate sobre o impacto da abstenção nas Eleições de 2022 levou o instituto de pesquisa Quaest a adotar o modelo de likely voter para ponderar os resultados das enquetes eleitorais entre o primeiro e o segundo turno presidenciais.

Nesse modelo, a Quaest combinou dados sobre o interesse na eleição, o comportamento eleitoral no primeiro turno e a intenção de votar no segundo com estimativas de pós-estratificação usando estatísticas relativas aos estratos conhecidos do eleitorado.

A aplicação desses critérios identificou que eleitores do oponente desafiante seriam mais suscetíveis à abstenção quando comparados aos de Bolsonaro.

A primeira pesquisa feita com base nesse modelo e divulgada em 13 de outubro mostrava, por exemplo, que a diferença entre desafiante e incumbente caía de 8 para 6 pontos quando estimado o comparecimento eleitoral provável, ou seja, o aumento da abstenção afetaria mais fortemente o candidato petista em comparação a Bolsonaro.

Na pesquisa divulgada em 26 de outubro, a diferença entre Lula e Bolsonaro diminuiu para 6 pontos, mas passava a 4,2 quando considerado o comparecimento eleitoral provável.

Às vésperas da votação, em 29 de outubro, a última pesquisa Quaest indicava uma diferença de 4 pontos e, quando aplicado o modelo de likely voter, a abstenção provável favorecia Bolsonaro, que via sua diferença para Lula cair a 2,8 pontos.

75. É fato que esses estudos do Instituto Quaest refletem dados posteriores aos fatos investigados nesta AIJE. Mas tanto essas pesquisas quanto o estudo de Hafner-Burton, Hyde & Jablonski demonstram é que a desqualificação e deslegitimação do processo eleitoral, bem como a polarização incentivadora da violência eleitoral tendem a favorecer significativamente o incumbente, na medida em que geram maior abstenção.

76. Segue que, juntamente com as três linhas antes expostas, já per se caracterizadoras do abuso, esse quarto e recôndito objetivo teve o condão de produzir efeitos mais graves em proveito do Primeiro Investigado. Tivesse êxito e haveria uma maior disseminação de descrença no processo eleitoral e, por conseguinte, uma elevação da abstenção que estatisticamente tenderia a beneficiá-lo.

 

IV.2.2.3. Conclusão: o discurso se inseriu numa estratégia eleitoral.

 

77. Dissecado o inteiro teor do discurso proferido no evento, identifica-se claramente que, longe de ser uma comezinha manifestação de governo, tratou-se de evento de corte nitidamente eleitoral, realizado com utilização de elementos tangíveis (bens, servidores, recursos públicos) e intangíveis (a condição de Chefe de Estado, os símbolos da República, o poder de convocação de autoridades diplomáticas).

O evento, concluo, tinha objetivos de beneficiar a candidatura do Primeiro Investigado, seja reforçando sua pretendida imagem eleitoral, seja estigmatizando o principal oponente, seja ainda, e o mais grave, criando uma ambiência de descrença no sistema eleitoral e um incentivo ao descrédito do eleitor, situação que tende a favorecer o incumbente.

 

IV.2.3. Do elemento autônomo e bastante para caracterizar o abuso: farto recurso a acusações sabidamente mendazes ou improvadas (fake news).

 

78. Pois bem. O até aqui exposto já confere elementos suficientes para caracterizar o abuso de poder político e o desvio de finalidade. Mas há um elemento a mais, direto e por si suficiente para fazer incidir a sanção do inciso XIV do art. 22 da LC 64/90.

79. É que o teor maior do discurso se baseava em assertivas sobre a inconfiabilidade do sistema eletrônico de votação. Para assacar tal grave acusação, o Primeiro Investigado se apoiou em três supostos argumentos: i) que uma invasão de hacker, no ano de 2018, teria implicado adulteração de resultados mostrando a vulnerabilidade de sistema, o que teria sido “comprovado” [sic] em Inquérito da Polícia Federal; ii) que o sistema eleitoral “seria inauditável” [sic]; e que iii) haveria “prova robusta” de eleitores que, no pleito de 2018, ao digitar o número de um candidato, teriam assistido, impotentes, o registro do voto no candidato antagonista.

Sobre as acusações e afirmações relativas ao sistema eletrônico de votação caracterizarem desinformação, não é mais tema disputável. Analisando as próprias acusações assacadas no evento de 18.7.2022, caracterizam prática desinformativa ilícita. Tendo por base os mesmos fatos, este Tribunal já decidiu:

Qualquer cidadão pode defender e desejar modelo de votação diferente daquele vigorante no país. Qualquer que seja o formato! Pode sustentar o aprimoramento desse mesmo sistema. Pode propor modificações, sejam elas quais forem.

Tudo isso se insere, legitimamente, no espectro constitucional de proteção da liberdade de expressão, que é de gozar de posição preferencial em nosso ordenamento jurídico-constitucional, em especial no contexto político-eleitoral.

Tanto é assim que, há exatamente um ano, em agosto de 2021, foi votada e rejeitada a PEC 135/19, que previa alterações no formato da votação eletrônica utilizada no Brasil, com a introdução de elementos impressos de auditagem.

Proposta idêntica ou assemelhada pode vir a ser apresentada no futuro e todos e todas são livres para aderirem, apoiarem ou criticarem.

Revela-se diferente, contudo, a construção de narrativa fática falsa, para angariar apoio e adesão, mediante indução em erro, a esses questionamentos e a essas tentativas de mudanças. Aí, há uma falha no livre mercado de ideias, a impor atuação corretiva.

A deslegitimação do sistema, a partir da construção de fatos falsos, forjados para conferirem estímulos artificiais de endosso a opiniões pessoais, é comportamento que já não se insere no legítimo direito à opinião, dúvida, crítica e expressão, descambando para a manipulação desinformativa, via deturpação fática, em grave comprometimento da liberdade de “informação”, e com aptidão para corroer a própria legitimidade do pleito eleitoral.

[...]

Insisto na premissa: a todos e todas é lícito questionar, criticar, duvidar e repensar. Desejar modelos diferentes. Propor modelos diferentes.

A manipulação de fatos, no entanto, como forma artificial de angariar apoiamentos mediante indução em erro, comprometendo o direito de todos e todas a obterem informações minimamente íntegras, tudo isso com ataques que colocam o próprio “jogo democrático” em risco, é conteúdo que extrapola a liberdade discursiva, que ofende o art. 9º-A da Resolução 23.610/2019, e que, portanto, qualifica-se como comportamento proscrito, seja durante a campanha, seja durante a pré-campanha (art. 3º-A), configurando propaganda antecipada irregular.”

(Rp 0600741-16, rel. Min. Maria Claudia Bucchianeri, acórdão de 11.10.2022, grifo nosso.)

80. Assentado, portanto, já está por este Tribunal que as mesmas acusações improvadas assacadas contra o Sistema Eleitoral, no mesmo evento com os Embaixadores, caracteriza desinformação punível. Se assim é, parece inevitável o enquadramento dessa conduta como abusiva e punível com as penas do art. 22, XIV, da LC 64/90 como, em relação às mesmas fake news, igualmente o TSE decidiu no leading case RO 0603975-98 (Caso Dep. Francischini):

RECURSO ORDINÁRIO. ELEIÇÕES 2018. DEPUTADO ESTADUAL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL (AIJE). USO INDEVIDO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO SOCIAL. ABUSO DE PODER POLÍTICO E DE AUTORIDADE. ART. 22 DA LC 64/90. TRANSMISSÃO AO VIVO. REDE SOCIAL. DIA DO PLEITO. HORÁRIO DE VOTAÇÃO. FATOS NOTORIAMENTE INVERÍDICOS. SISTEMA ELETRÔNICO DE VOTAÇÃO. FRAUDES INEXISTENTES EM URNAS ELETRÔNICAS. AUDIÊNCIA DE MILHARES DE PESSOAS. MILHÕES DE COMPARTILHAMENTOS. PROMOÇÃO PESSOAL. IMUNIDADE PARLAMENTAR COMO ESCUDO PARA ATAQUES À DEMOCRACIA. IMPOSSIBILIDADE. GRAVIDADE. CASSAÇÃO DO DIPLOMA. INELEGIBILIDADE. PROVIMENTO.

[...]

6. O sistema eletrônico de votação representa modelo de inegável sucesso implementado nas Eleições 1996 e internacionalmente reconhecido. O propósito dessa verdadeira revolução residiu na segurança e no sigilo do voto, sendo inúmeros os fatores que poderiam comprometer os pleitos realizados com urnas de lona, desde simples erros humanos na etapa de contagem, manipulações em benefício de candidatos e a execrável mercancia do sufrágio. Visou-se, ainda, conferir maior rapidez na apuração, o que possui especial relevância em país de dimensões continentais. (...)

9. Hipótese inédita submetida a esta Corte Superior é se ataques ao sistema eletrônico de votação e à democracia, disseminando fatos inverídicos e gerando incertezas acerca da lisura do pleito, em benefício de candidato, podem configurar abuso de poder político ou de autoridade – quando utilizada essa prerrogativa para tal propósito – e/ou uso indevido dos meios de comunicação quando redes sociais são usadas para esse fim.

10. Os arts. 1º, II e parágrafo único, e 14, § 9º, da CF/88, além dos arts. 19 e 22 da LC 64/90 revelam como bens jurídicos tutelados a paridade de armas e a lisura, a normalidade e a legitimidade das eleições. Não há margem para dúvida de que constitui ato abusivo, a atrair as sanções cabíveis, a promoção de ataques infundados ao sistema eletrônico de votação e à própria democracia, incutindo-se nos eleitores a falsa ideia de fraude em contexto no qual candidato sobrevenha como beneficiário dessa prática.

11. O abuso de poder político configura-se quando a normalidade e a legitimidade do pleito são comprometidas por atos de agentes públicos que, valendo-se de sua condição funcional, beneficiam candidaturas em manifesto desvio de finalidade. Precedentes. (...)

23. Recurso ordinário provido para cassar o diploma do recorrido e declará-lo inelegível (art. 22, XIV, da LC 64/90), com imediata execução do aresto, independentemente de publicação, e recálculo dos quocientes eleitoral e partidário.

(RO-El 0603975-98, rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJE de 10.12.2021, grifo nosso.)

81. Acrescente-se, de modo a de um só tempo, afastar a alegação de que o discurso fora feito de boa-fé e dar a nota de gravidade (traduzida na insistência de prática delitiva em benefício próprio) que o Primeiro Investigado em 18.7.2022 já tinha todos os elementos para saber:

i) que as acusações não tinham lastro probatório suficiente para irem além da crendice ou da incredulidade;

ii) que a incidência na propagação de tais afirmações não seria tolerada pela Justiça Eleitoral; e que

iii) a insistência seria punível inclusive com a cassação de candidatura e a pena de inelegibilidade.

81.1. Todos os elementos já haviam sido fornecidos para espancar quaisquer dúvidas e suspeitas. A invasão de hackers como ameaça ao resultado eleitoral fora afastada com a demonstração de que o cômputo de votos não fora afetado e que as urnas operam offline; que os resultados são auditáveis conferindo-se os boletins de urna impressos; que a suposta inclusão de votos é afastada com a chamada zerésima, entre outras informações e esclarecimentos minudentemente fornecidos pela Justiça Eleitoral.

81.2. Em diversas oportunidades, o Primeiro Investigado fora advertido que tal agir era incompatível com a ordem democrática e com a legislação vigente e que não seria tolerável. O próprio faz menção a estas advertências no curso do discurso. Tal admoestação fora feita pelas autoridades judiciárias reiteradas vezes, uma delas, inclusive, na frente do mandatário por ocasião da posse do Ministro Alexandre de Moraes na Presidência do TSE com palavras claras, firmes e indubitáveis.

81.3. Por fim, ao tempo do evento com os Embaixadores, em julho de 2022, já era conhecida a decisão da Corte Eleitoral que punira o então deputado Fernando Francischini em AIJE com a cassação de diploma, perda do mandato e decretação de inelegibilidade por oito anos, julgamento ocorrido em 28.10.2021.

82. Diante destes fatos, cai por terra qualquer tentativa de caracterizar o evento como um esforço de contribuir ao debate. Ao contrário, o que patenteia é que o Primeiro Investigado optou por trilhar o caminho confrontacional, não dialógica, inconsequente, visando menos a aperfeiçoar o sistema eleitoral e mais a se posicionar como candidato desafiador, martelando tese que se convolou em sua ideia fixa. Como diria Brás Cubas, Deus nos livre de uma ideia fixa. O problema aqui ocorreu ao se passar da pessoal ideia fixa para emular ideia motora de sua campanha eleitoral.

83. A esse propósito, frise-se, o mantra dessa ideia fixa como mote eleitoral do Primeiro Investigado está afirmado nos autos, e foi reiterado nesta Tribuna, ao se lembrar que o Réu foi candidato sete vezes e em todas elas adotou o voto impresso como bandeira eleitoral, o que reforça a associação do discurso desinformativo com o objetivo de reafirmar uma persona eleitoral.

84. Também por isso, na esteira da Jurisprudência recente e reiterada deste E. TSE, o conteúdo de disseminação de fatos inverídicos e de incertezas acerca da lisura do pleito em benefício de candidato já são bastantes, nas palavras do Luis Felipe Salomão no caso Franceschini, a caracterizar abuso de poder político ou de autoridade.

 

IV.3. Conclusão: a caracterização do abuso de poder e do desvio de finalidade.

 

85. Analisados, nos estritos lindes dos fatos trazidos na inicial desta AIJE, o contexto em que se organizou e desenvolveu a reunião com os embaixadores e o teor do discurso na ocasião, proferido pelo Primeiro Investigado, tenho comigo que está caracterizada a prática de abuso de poder político e de desvio de finalidade, tanto na realização do evento como no uso dos meios de comunicação social (EBC e redes sociais oficiais) na sua divulgação.

85.1. O evento não se inseriu nas atividades diplomáticas e de representação do país perante autoridades estrangeiras, tanto que o envolvimento do Itamaraty foi marginal, não se envolvendo sequer na elaboração do discurso do primeiro mandatário do país a Embaixadores estrangeiros.

85.2. A organização da reunião não ficou a cargo dos órgãos que seriam competentes para este fazer que se trataria de um evento governamental típico (Casa Civil e SAE), o que restou corroborado pelos depoimentos dos então titulares das pastas, sendo certo que até o então Ministro Ciro Nogueira afirmou ter sido contra o evento; ao contrário, o evento fora organizado pelo staff pessoal do Presidente ou de sua equipe de campanha, inexistindo elementos para identificar quem efetivamente se envolveu nessa preparação.

85.3. O evento teve lugar não nos próprios mais adequados para um ato de governo (Planalto ou Itamaraty), mas no Palácio da Alvorada, residência oficial do PR.

85.4. O discurso proferido teve nítido caráter de estratégia eleitoral, seja por emular a imagem do candidato incumbente, seja por aviltar a imagem do seu maior opositor, seja, ainda, por tentar criar empatia com o eleitorado, apresentando-se como candidato perseguido e antissistema viciado.

85.5. O discurso teve caráter também de deslegitimar e colocar sob suspeita o sistema eleitoral, gerando potencialmente um desincentivo à participação com vistas a obter o benefício que estatisticamente favorece o candidato incumbente, como demonstram os estudos teóricos, as pesquisas e os achados dos institutos de pesquisa.

85.6. O discurso primou pela difusão de desinformação e acusações sabidamente falsas ou, no mínimo, improvadas, o que, por si só, já é suficiente para caracterizar a conduta abusiva punível.

85.7. Não está passível de dúvidas que, por qualquer linha que se analise o discurso, ele visava a trazer benefício ao candidato, seja criando imagem sua positiva, reforçando imagem negativa do oponente, criando empatia com o eleitor, disseminando descrença apta a gerar abstenção que lhe favoreceria; ainda reforçando o discurso inveraz com o qual outras vezes já se elegera. Benefício mais claro (e lembre-se, o benefício há de ser potencial, pouco importando o resultado) impossível.

86. Houve desvio de finalidade, na medida em que o Primeiro Investigado usou de suas competências de Chefe de Estado para criar uma aparente reunião diplomática cujo objetivo era “responder ao TSE” e construir uma persona de candidato, servindo-se dos meios de comunicação social para alcançar seu real destinatário: o eleitor já cativado (cuja mobilização se intensificaria) ou aquele por conquistar.

87. E houve abuso de poder político, pois o Investigado mobilizou todo o poder de Presidente da República para emular sua estratégia eleitoral em benefício próprio, agindo de forma anormal, imoral e sobremaneira grave pelas suas premissas e consequências, como adiante se verá.32

88. Diante disso, resulta também que houve abuso e desvio no emprego dos meios de comunicação social para transmitir ao vivo no primeiro momento e repercutir depois, estratégia que só não exponenciou a repercussão porque foi cessada cautelarmente pela Justiça Eleitoral.

 

V. ANÁLISE DOS ARGUMENTOS DA DEFESA

 

89. Antes de passar para a análise da gravidade da conduta, requisito para aplicação do inciso XVI do art. 22 da LC 64/90, cumpre passar pelos argumentos trazidos pela combativa defesa na tentativa de afastar as punições potencialmente decorrentes de uma AIJE. Faço isso não só pela deferência à Defesa e ao contraditório, mas por força do art. 489, § 1º, IV, do CPC.

 

V.1. A tese de ato de governo.

 

90. Alega a defesa que inexistiria abuso, pois o evento objeto da AIJE nada mais seria que uma atividade típica de governo. Mostrou-se que o argumento não se sustenta.

90.1. Primeiro, porque o teor da reunião em nada condiz com matéria atinente às relações internacionais ou com nações estrangeiras. O tempo todo se falou de assuntos domésticos, do funcionamento da Justiça Eleitoral, dos predicados e defeitos dos candidatos, do curso de inquéritos policiais. Nada relacionado às relações com nações estrangeiras.

32 “A influência do poder político para o direito eleitoral, portanto, pressupõe a prática abusiva derivada do exercício de cargos públicos, ou seja, o desvirtuamento das relações entre o Estado, os representados por seus agentes e os cidadãos. Em outras palavras, a anormalidade detectada nas relações entre os governantes e os governados” (RO 287-84, rel. Min. Henrique Neves, DJE de 7.3.2016).

90.2. Segundo, porque o exercício de competências pressupõe o atingimento de uma finalidade pública. O que de todo não ficou comprovado nem ao menos sugerido.

90.3. Terceiro porque, embora compita ao PR travar relações com nações estrangeiras, o funcionamento da Justiça Eleitoral não lhe compete. O sistema brasileiro, desde a Lei Saraiva em 1881 e mais fortemente desde 1916, compete ao Poder Judiciário. Portanto, a organização e promoção do processo eleitoral – tema exclusivo da reunião do dia 18.7.2022 – não é de competência do Presidente da República.

90.4. Quarto e por fim, porque, se tratasse de um ato no exercício da competência do art. 84, VII, CF e a sua realização, envolveria fortemente o Ministério das Relações Exteriores, como sói. E o que se viu da prova colhida nos autos foi o contrário, com o Itamaraty absolutamente caudatário da açodada e atabalhoada organização. As respostas do Embaixador Carlos França durante a instrução, objetivas e fidedignas, chegam a ser constrangedoras.33

33 O DOUTOR MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (Juiz Auxiliar da Presidência do TSE): [...] Dentre essas funções, de que foi incumbido como chanceler, estava a de tratar também sobre as eleições brasileiras com os embaixadores de países estrangeiros?

O SENHOR EMBAIXADOR CARLOS ALBERTO FRANÇA (Ministro das Relações Exteriores): Excelência, não é função do Itamarati, nem mesmo constitucional, de que nós nos ocupemos de temas eleitorais.

[...]

O DOUTOR MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (Juiz Auxiliar da Presidência do TSE): É... com relação aos fatos, especificamente antes do dia 18 de julho de 2022, já tinha sido algum... realizado algum evento com os embaixadores de países estrangeiros para tratar especificamente do sistema de votação brasileiro com ou sem a presença do presidente da República? É... eu... eu digo assim, não uma questão pontual, com um embaixador ou outro, mas uma reunião coletiva, com vários embaixadores convidados?

O SENHOR EMBAIXADOR CARLOS ALBERTO FRANÇA (Ministro das Relações Exteriores): Não. Não que eu tenha conhecimento.

[...]

O DOUTOR MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (Juiz Auxiliar da Presidência do TSE): É... é... perfeito. Ah... só complementando, na pergunta específica é se havia alguma orientação ao corpo diplomático para buscar essas informações sobre sistemas eleitorais dos países estrangeiros junto ao seu representante maior? No caso, o presidente, o primeiro-ministro, ou algo nesse sentido?

O SENHOR EMBAIXADOR CARLOS ALBERTO FRANÇA (Ministro das Relações Exteriores): Não. Com certeza, não.

O DOUTOR MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (Juiz Auxiliar da Presidência do TSE): Sempre é feito de forma protocolar, dentro da escala hierárquica do Ministério

O SENHOR EMBAIXADOR CARLOS ALBERTO FRANÇA (Ministro das Relações Exteriores): É verdade. Pode ser que haja... é... algum... algo.... alguma coisa no sentido de se buscar alguma coisa comparativa. Assim: – Olha, me... me informa como é que funciona o sistema eleitoral indiano, como funciona o sistema eleitoral boliviano. Mas isso é uma informação que... que ocorre num nível hierárquico muito mais baixo. Nunca... nunca juntam um presidente, primeiro-ministro ou chanceler mesmo, né?

91. De resto, como vimos anteriormente, o desvio de finalidade e o abuso de poder têm como premissa o exercício de uma competência originalmente própria ao agente, mas que é manejada visando à finalidade distinta daquela que justifica a sua atribuição, no caso, visando a benefício pessoal do agente público. Hipótese que restou patenteada nos autos.

 

V.2. O argumento de diálogo institucional.

 

92. Igualmente desprovida de nexo a alegação de que o evento se inseriria dentro do chamado “diálogo institucional”. Insubsistente alegação por duas razões básicas.

93. Para haver diálogo é preciso haver disposição dialógica. Um monólogo agressivo e que não considere as razões do interlocutor como passíveis de respeito e interlocução não é diálogo. Um discurso que se prima por agredir as instituições não é, por definição, institucional.

94. Outrossim, institucionalmente, a matéria voto impresso já havia sido superada pelas instituições constitucionalmente competentes para tratar do tema. Em 10.8.2021 o Congresso havia arquivado Proposta de Emenda Constitucional destinada a introduzir esta vetusta modalidade de sufrágio. E em 31.5.2022 o Tribunal Superior Eleitoral já definira que o sistema de votação eletrônica seria auditado e havia se posicionado sobre todas as dúvidas levantadas sobre tal sistema. Temas, portanto, superados do ponto de vista institucional.

95. O Presidente da República poderia, legitimamente, manter sua irresignação, suas crenças e incredulidades. Mas não lhe cabia, institucionalmente, em diálogo ou monólogo, assacar desconfianças sobre a confiabilidade do sistema eleitoral pelo qual fora eleito várias vezes. Nem em rede nacional e perante representantes de Nações estrangeiras.

96. Como justificado nos autos pelo Primeiro Investigado, menos que um diálogo institucional, o evento parece mais um repto fidagal em resposta ao pronunciamento do Presidente do TSE (este sim institucionalmente competente por conduzir as eleições), algo incompatível com a liturgia presidencial e, também neste sentido, caracterizador do desvio de finalidade, agora na modalidade de manejar a competência movido por sentimento pessoal de ojeriza ou aversão a outrem.

 

V.3. Argumento de que o público convidado não era eleitor.

 

97. O terceiro argumento se apresenta pueril. Diz a defesa que a reunião não teria caráter eleitoral pois os embaixadores nem sequer seriam eleitores no Brasil. Desafia a seriedade com que se há de ter em sede jurisdicional.

98. É certo que representantes estrangeiros não são eleitores domésticos. Porém o que se investigou e comprovou é que estes diplomatas foram levados à vexatória (menos a eles, e mais ao país) condição de coadjuvantes de um teatro eleitoral. Foram reduzidos à condição de observadores passivos de um ato de campanha, como se fossem aqueles clássicos figurantes de comício. Só que, ao invés de um lanche, lhes foi oferecido, nos dizeres da Defesa “água, café e pão de queijo”. Se o dano patrimonial foi de pequena monta, o dano de imagem do país e de desgaste diplomático foi exponencial.

 

V.4. A alegação do evento ter ocorrido em fase anterior ao registro da candidatura.

 

99. Alega-se, ainda, que as penas previstas no art. 22 da LC 64/90 não poderiam recair sobre o Primeiro Investigado, pois àquela altura ele não era oficialmente candidato. Igualmente o argumento não calha.

A norma não traça distinção temporal sobre em que momento pode ocorrer o abuso de poder punível. Até porque, dado que a legislação eleitoral vigente hoje define período curto entre o registro da candidatura e as eleições, a vingar a tese da Defesa, a coibição do abuso cairia no vácuo, pois as condutas ilícitas pontificariam meses antes para depois, na reta final, todos os agentes transmutarem-se de vestais.

100. De resto a Jurisprudência é pródiga em condenações por abuso de poder político ou econômico em período anterior ao registro de candidaturas, o que infirma a tese da defesa.34

 

V.5. A alegação de que o evento foi realizado na residência do PR.

 

101. Outra alegação da Defesa sacada para reduzir a gravidade ou fugir da tipificação da conduta como abusiva e desviada é a de dizer que o evento de tão comezinho e módico teve lugar no Palácio da Alvorada, residência oficial do PR. Ora, antes de reduzir a caracterização do ilícito, tal fato, a meu ver, reforça o desvio de finalidade.

102. Os bens públicos devem ser servientes às finalidades às quais são afetados. Sobre o tema, já tive oportunidade de asseverar em estudo voltado a enfrentar desvios de finalidade no uso de bens públicos em triste passado:

Se a afetação consagra o bem público ao cumprimento de um fim público, tem-se então que o desvio no uso desse bem tende a ensejar um prejuízo a esse fim público. O uso de bem público em desconformidade com sua afetação causa prejuízos à finalidade pública à qual ele está afetado, finalidade essa que visa a efetivar, direta ou indiretamente, interesse da coletividade. Disso decorre que a utilização do bem para finalidade diversa da qual ele está consagrado prejudicará ou até mesmo impedirá o alcance dos interesses públicos visados com uma determinada afetação, podendo ainda trazer outros prejuízos para a coletividade e potenciais danos ao erário.35

103. Portanto, a circunstância do evento ter sido realizado no Alvorada, menos que reduzir o potencial de ilicitude, a meu ver, caracteriza isso sim um desvio de finalidade em si, de forma patente e rematada.

 

V.6. A escusa baseada na liberdade de expressão.

 

104.  Alega-se que o discurso proferido na reunião com Embaixadores não caracterizaria abuso, pois estaria compreendido dentro da liberdade de expressão do PR. Ora, já é manancial a jurisprudência desta Corte36 no sentido de afirmar e reafirmar que a garantia de liberdade de expressão não é apta a acobertar a propagação de desinformação, de inverdades ou de acusações que se sabe improvadas e improváveis.

34 Conferir também: RO 1362, rel. Min. Gerardo Grossi, julgado 12.2.2009 e RO 9383-24, rel. Min. Nanci Andrighi, julgado em 31.05.2011.

35 MARQUES NETTO, Floriano de Azevedo; PEREZ, Marcos Augusto. Bens Afetados Às Forças Armadas E O Dever De Apuração Do Desvio De Uso, RDA – Revista de Direito Administrativo nº 267, Setembro a Dezembro de 2014, página 245.

36 Ver: RP 0601563-05, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, PSESS em 28.10.1022; RP 0601372-57, red. para o acórdão Min. Ricardo Lewandowski, PSESS em 13.10.2022.

105. Alguém pode acreditar que a Terra é plana, mesmo contra todas as evidências científicas. Este sujeito pode integrar um grupo de estudos terraplanista, ou uma “confraria da borda infinita” e dedicar seus dias a imaginar como um avião dá a volta no plano para chegar ao outro extremo. Porém, se este crédulo for um professor da rede pública, não lhe é permitido ficar a lecionar inverdades científicas aos seus alunos, pois isso seria desviar as finalidades educacionais que correspondem a sua competência de servidor docente.

106. Vimos dizer na Tribuna que o Primeiro Investigado talvez não tenha muita habilidade retórica. Humanos, temos nossas limitações. Concedamos o benefício à limitação de oratória. Ora, se o manejo da língua não é o forte, mais um motivo para não se arvorar a discursar sobre tema tão grave e com tão frágeis bases, diante de diplomatas estrangeiros, aviltando a pátria e constrangendo a República.

107. O agente público pode ter seus brios arranhados, pode ter suas crendices íntimas, pode professar suas opiniões mais exóticas. Só não lhe é concedido, quanto mais quando já sabidamente candidato à reeleição (o que predica o redobro de cautelas para evitar abuso de poder), usar do aparato da Presidência, manejar os símbolos da República e enlodar o cargo para exarar suas opiniões, crenças ou antipatias escarnecendo das bases de nossa Democracia e em benefício do seu projeto eleitoral.

 

V.7. A alegação de que a conduta seria punível exclusivamente por multa (bis in idem).

 

108. Alega a Defesa que a conduta do Primeiro Investigado caracterizaria, no máximo, propaganda eleitoral já punida com multa. Tenho comigo que a vedação ao bis in idem é parte essencial ao devido processo legal. Porém, aqui não se está diante de dupla punição pelo mesmo fato punível.

Pode haver propaganda irregular sem abuso de poder, como ocorre com a veiculação de mensagem eleitoral em meio vedado ou propaganda antecipada.

Igualmente, pode haver abuso de poder sem propaganda irregular, como na realização de evento de características eleitorais utilizando bens ou serviços públicos.

E pode ocorrer situações em que as duas infrações, puníveis cada qual por um tipo sancionatório, ocorrem num mesmo evento.

109. É o que ocorre com os fatos objeto desta AIJE. O Tribunal assentou que houve propaganda eleitoral antecipada. Ao invés de impedir a sanção objeto dessa AIJE, na verdade, a condenação anterior concorre para tornar indesviável a aplicação do inciso XIV do art. 22 da LC 64/90. Ora, se houve propaganda – antecipada – usando bens públicos, a infraestrutura da Administração pública e a propagação pelos meios de comunicação social da EBC e mídias oficiais, é mais uma razão para que se aplique a sanção de inelegibilidade.

 

V.8.  A suposta contradição com o caso Dilma-Temer37.

 

110. Alega a defesa que aplicar a pena de inelegibilidade aos Investigados seria ir contra o entendimento firmado por este Tribunal quando do julgamento da chapa vencedora do Pleito presidencial de 2014, formada pelos ex-Presidentes Dilma Rousseff e Michel Temer. Igualmente, a alegação não subsiste. Duas são as razões.

110.1. No caso citado como precedente, a moldura fática é distinta e a razão de decidir inaplicável aqui. Naquele caso, a inicial não fazia menção a recursos de Caixa Dois; apenas trazia esparsa menção a casos de corrupção, sem atribuir, mesmo que genericamente, tal fato ao abuso de poder econômico. Ao depois, teriam vindo os elementos colhidos no curso das investigações criminais. Portanto, lá se discutiu efetivamente alargamento da causa de pedir, e não amplitude do poder de investigação do Tribunal em sede de AIJE. Aqui a causa foi delimitada e os elementos necessários para o seu deslinde estão lá desde o início.

110.2. Para além disso, como demonstrado, o caso Dilma-Temer nada serve aqui, pois todos os elementos de causa de pedir e de elementos de prova necessários ao julgamento desta AIJE estão postos desde o início. Como demonstrei, tudo o mais que se trouxe aos autos (lives, entrevistas, minutas) serve apenas marginalmente para ilustrar condutas. Não é essencial para bem decidir o abuso e sua gravidade.

37 AIJE 1943-58/DF; AIME 761.2015/DF e Rp 846.2015/DF.

VI. A GRAVIDADE DA CONDUTA

 

111. Resta, portanto patente que, nos estritos contornos da AIJE tal como apresentada, ficou caracterizado o abuso de poder político, o desvio de finalidade e o emprego inadequado e abusivo dos meios de comunicação social oficiais. Cumpre então, consoante a jurisprudência da Corte Eleitoral, enfrentar a verificação da gravidade da conduta, na sua acepção quantitativa e qualitativa (elementos objetivos do próprio ato e capacidade de comprometer o processo eleitoral e ao interesse coletivo).

112. Lembremos que é desimportante aferir o resultado da conduta. Para caracterização do abuso punível, pouco conta o resultado efetivo, mas sim a gravidade potencial. Ter o abusador ganho a eleição é irrelevante para a tipificação da conduta. É o que lemos no texto legal:

Art. 22 [...].

XVI – para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam. (Incluído pela Lei Complementar nº 135, de 2010)

Portanto, ter o abusador ganhado ou perdido a eleição é irrelevante para a tipificação da conduta.

 

VI.1. Gravidade na dimensão quantitativa.

 

113. A gravidade na dimensão quantitativa da conduta resta patente. O evento foi transmitido ao vivo pela rede pública com emprego da EBC, meio de comunicação social de amplo alcance. A gravação ficaria disponível ao público. Além disso, cortes do discurso foram veiculados pelas mídias sociais oficiais. E, a partir daí, mormente quando mais perto das eleições, seriam reproduzidos em progressão geométrica entre os apoiadores da chapa composta pelos Investigados, com o rótulo da oficialidade com que se lhe pretendia conferir. Se o alcance, já grande, não foi maior, isso se deveu não ao arrependimento dos Investigados, mas ao fato de ter sido suspensa a veiculação por decisão cautelar deste Tribunal.

114. Portanto, em termos potenciais, a gravidade quantitativa se mostra elevada o suficiente para fazer emergir o sancionamento previsto no art. 22, XVI, da LC 64/90.

 

VI.2. Gravidade na dimensão qualitativa.

 

115. Resta enfrentar a gravidade na sua essência qualitativa. Ou seja, na avaliação da relevância dos bens jurídicos atingidos para que os Investigados alcançassem os benefícios pretendidos. Para além dos aspectos calibradores da gravidade, já constantes do voto do Ministro Relator, os quais incorporo, cumpre nuançar dois aspectos assombrosos do agir em julgamento.

 

VI.2.1. O aviltamento da República frente à comunidade internacional.

 

116. Para além de claro objetivo eleitoral (potencializar a polarização maniqueísta com o seu principal oponente, escolhido na conveniência da polarização emuladora da proposta eleitoral já em curso desde muito) e da autopromoção de sua gestão (“o Brasil ta voando” [sic]), suficientes para caracterizar o abuso e o desvio de finalidade, o discurso do Primeiro Investigado revelou-se grave por produzir um efeito antagônico com a função do Chefe de Estado.

117. No cumprimento da competência do art. 84, VII, da CF, a atuação do Chefe do Estado no relacionamento das nações estrangeiras deve se pautar pelos ditames da soberania e da defesa dos interesses nacionais face à comunidade internacional.

Porém o que assistimos no discurso de 18.7.2022 foi a desabrida utilização da condição de Presidente da República para, diante de representantes diplomáticos dos países com quem o BR mantém relações, mal falar de nosso sistema eleitoral, aviltar a Justiça Eleitoral e desqualificar nossa Democracia.

O exato oposto que um Chefe de Estado deve fazer. Mais, ao expor os Embaixadores ao constrangimento de ouvir assertivas ácidas direcionadas aos membros da mais alta Corte e ao sistema eleitoral, conspirou contra a imagem da República.

118. Ora, o que pode ser mais grave no agir de um Chefe de Estado do que, visando a objetivos eleitorais, mobilizar o aparato da República para passar internacionalmente a ideia de que as eleições brasileiras não são limpas?

O que mais grave pode existir do que acusar, buscando repercussão internacional, três Ministros da mais alta Corte de serem asseclas de terroristas e criminosos?

O que pode ser mais grave do que achincalhar o regime democrático dizendo que um dos seus pilares, as eleições livres, são forjadas e ardilosamente manipuladas?

O que de mais grave e abusivo pode existir no comportamento de um homem público do que colocar (expurguemos, pois estranho a esta AIJE, objetivos de solapar de vez a Democracia) seus interesses eleitorais acima do dever maior de Chefe de Estado, que respeitar a imagem e os símbolos da República?

O que haveria de mais abusivo do que amesquinhar a Nação, apresentando-a como republiqueta bananeira para tentar vender suas crendices eleitorais ludistas ou, pior, fazer vingar outros objetivos inconfessáveis?

 

VI.2.2. O atrevido desafio à Justiça como nota adicional de gravidade.

 

119. A gravidade da conduta se reforça pelo fato de que o teor principal do discurso – insistência da vulnerabilidade e desconfiança nas urnas eletrônicas –, ao tempo do evento, já havia sido esclarecido e negado pelas instâncias competentes, demonstrada a improcedência da tese de fraude e rejeitado o voto impresso pelo Congresso Nacional. Mais, já se sabia que a insistência naquele discurso caracterizaria abuso de poder político punível. Portanto, o Investigado assumiu as consequências da conduta e, sendo assim, conscientemente desejou desafiar frontal, consciente e cabalmente o Judiciário e as Instituições.

120. Se tais condutas abusivas e desviadas não se revestem de gravidade, este Tribunal teria que revisitar as inúmeras condenações em AIJE de autoridades municipais e estaduais que, por agir abusivo ou desvio de finalidade de impacto e gravidade muito menores, são punidos com a pena de inelegibilidade praticamente toda semana nesta Corte.

 

VII. NOTAS FINAIS

 

121. Antes de encerrar este voto, entendo necessário tecer três breves notas adjacentes, mas relevantes diante dos debates que envolvem este julgamento.

 

VII.1. A acusação de julgamento político.

 

122. Alega-se alhures que, ao julgar esta AIJE, está o Tribunal a fazer um julgamento político. Ora, um Tribunal Eleitoral invariavelmente, ao julgar as demandas que lhe são trazidas, acaba por emitir decisões que impactam o sistema político. É inevitável. É a sua essência. Não por outra, alcunha-se esta Corte de Tribunal da Democracia. A Justiça Eleitoral talvez seja o elo mais saliente de engate estrutural entre o sistema jurídico e o sistema político, pois cabe a ela dirimir conflitos surgidos essencialmente na arena eleitoral, na arena política. Isso não a faz perder sua identidade e coerência internas, mudar seus códigos de decisão. Mas interferências no meio ambiente político e interações com o sistema político sempre haverá.

123. Tolher que o TSE decida uma denúncia de abuso do poder político e de desvio de finalidade com fins eleitorais alegando que isso “interfere no jogo político” seria transformar a Justiça Eleitoral em corte registral. Seria convolar o árbitro em mero expectador de disputas eleitorais em que as regras do jogo se transformam em letra morta.

Ora, se um candidato à reeleição do mais alto cargo da República se conduz de forma abusiva e desviada, mobilizando os recursos materiais e simbólicos do cargo para desequilibrar a disputa, não tem o sistema jurídico outro comando a emitir que não censura do ilícito e a aplicação da consequência sancionatória esperada. Negar-se a punir seria, aí sim, aplicar um código político em detrimento da coerência do sistema jurídico.

 

VII.2. A acusação de tentativa de erradicar uma ideologia.

 

124. Já se disse também nos autos e na Tribuna que o julgamento da presente AIJE teria se transformado em julgamento de uma linha política, em “tentativa de erradicar uma ideologia”. Ideologias são inerentes ao jogo político eleitoral e, desde que não professem violações a direitos fundamentais, hão de ser respeitadas. Porém, o que se está a julgar não é uma ideologia, mas sim os comportamentos patológicos (abuso, desvio de finalidade) que podem ocorrer – e lamentavelmente ocorrem – em próceres das mais diversas ideologias. Uso abusivo do poder pelo incumbente para desequilibrar o jogo eleitoral são verificados em governos à esquerda e à direita, podem ocorrer na Venezuela ou na Hungria, na Nicarágua ou nos Estados Unidos.

125. Não é democrático querer metralhar, fulminar, varrer, extirpar qualquer ideologia se amoldada aos ditames constitucionais. Isso seria odiosa intolerância. Mas comportamentos abusivos devem ser coibidos e sancionados, tenham lugar em governos de qualquer matiz ideológica. Assim tem feito este Tribunal. E assim deverá seguir fazendo.

 

VII.3. Eleições e Estado de Direito: Respeito à soberania e respeito às regras do jogo.

 

126. Por fim, um breve comentário sobre a gravidade da sanção de inelegibilidade. Essa, por óbvio, retira um agente político da disputa eleitoral por tempo certo. Censura-se essa decisão, pois ela teria o condão de fazer um Tribunal retirar a soberania do voto popular. Este raciocínio apresenta duas fragilidades.

126.1. A soberania do voto popular é fundamental e imprescindível. Mas não é a regra de maioria, o granjear o voto majoritário, o único requisito do regime democrático.

Cumprir as leis e a Constituição tem igual importância. Eleger-se abusando de poder político ou econômico pode corresponder à manifestação de apoio do soberano titular do voto, mas não se coaduna com um regime democrático. Admitido esse comportamento, daí em diante, tudo se torna possível. E desastroso.

126.2. Em segundo lugar, porque quem prevê as condutas e as sanções, inclusive de inelegibilidade é a lei, editada por vontade dos detentores do voto popular soberano: o Congresso Nacional.

Juízes eleitorais apenas fazem o cotejo entre os fatos e a hipótese normativa, apenas qualificam juridicamente as condutas. Se outros sistemas não preveem sanção de inelegibilidade nem aos condenados criminalmente, é uma questão de opção legislativa. O sistema brasileiro prevê. E a lei deve ser aplicada quando o Judiciário for provocado. Independente do Investigado ter recebido dezenas de milhões de votos. Defender o contrário, seria condicionar a Justiça eleitoral a só coibir abusos de candidatos mal votados.

 

VIII. VOTO

 

127. Diante de todo o exposto, concluo ter o Primeiro Investigado agido com responsabilidade direta e pessoal, por ocasião do evento reunião com Embaixadores em 18.7.2022, em claro abuso de poder político, desvio de finalidade em suas competências e uso indevido dos meios de comunicação social oficiais em benefício de sua candidatura à reeleição para o cargo de Presidente da República.

128. De outro lado, de toda a instrução processual, concluo não ter restado indicado, muito menos provado, comportamento do Segundo Investigado Walter Souza Braga Netto na prática das condutas típicas acima divisadas, embora pudesse sofrer o influxo da sanção de cassação da candidatura ou do diploma caso tivesse logrado eleger-se. Assim, em relação ao Segundo Investigado, descabe aplicar qualquer penalidade.

129. Sendo assim, no mérito, julgo a presente AIJE nos seguintes termos:

a) julgo procedente para aplicar a sanção prevista no art. 22, XVI, da LC 64/90 e condenar o Primeiro Investigado, Jair Messias Bolsonaro, pela prática de abuso de poder político e de uso indevido de meios de comunicação nas Eleições 2022 e, por conseguinte, para declarar sua inelegibilidade por 8 (oito) anos seguintes ao pleito de 2022; e

b) julgo improcedente o pedido em relação ao Segundo Investigado Walter Souza Braga Netto.

130. Deixo, por óbvio, de aplicar a sanção de cassação do registro da candidatura dos investigados, por óbvia perda do objeto.

131. Acompanho também o voto do Ministro Relator no tocante às providências derivadas por ele determinadas, em especial, o oficiamento às autoridades condutoras dos Inquéritos Criminais instaurados para apurar os fatos objeto da presente AIJE e fatos correlatos.

É como voto, Senhor Presidente.

O SENHOR MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES (presidente): Agradeço ao Ministro Floriano de Azevedo Marques.

Ministro Raul.

O SENHOR MINISTRO RAUL ARAÚJO: Pois não. Senhor Presidente, agradeço a Vossa Excelência. Cumprimento o Ministro Floriano de Azevedo Marques pela excelência de seu voto.

Apenas um ponto, até porque Sua Excelência fez referência à minha pessoa quando traçou o comparativo – que me parece equivocado – entre Direito Penal e Direito Eleitoral. De fato, no Direito Penal, relativamente a um incêndio, mesmo a tentativa de um incêndio, já é punível. Só que no Direito Eleitoral, o incêndio só é punível, com a inelegibilidade, se adquiriu determinada gravidade, se há uma certa escalada. Daí me parece imprópria a comparação que foi feita.

Eu apenas nesse ponto faço essa observação, agradecendo, então, ao eminente Presidente e aos ilustres pares.

O SENHOR MINISTRO FLORIANO DE AZEVEDO MARQUES: Agradeço ao Ministro Raul e aproveito a oportunidade para reiterar a excelência do seu voto. 

O SENHOR MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES (presidente): Passo a palavra ao Ministro André Ramos Tavares para proferir o seu voto.

 

VOTO ORAL

 

O SENHOR MINISTRO ANDRÉ RAMOS TAVARES: Senhor Presidente, trata-se da já referida ação de investigação judicial eleitoral (AIJE) ajuizada pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) em face de Jair Messias Bolsonaro e Walter Souza Braga Netto, à época candidatos aos cargos de Presidente da República e de Vice-Presidente da República, respectivamente, por alegada prática de abuso de poder político e de uso indevido de meios de comunicação, por meio da difusão de conteúdo sabidamente falso acerca do sistema eletrônico de votação, com colheita de benefícios eleitorais próprios.

Na linha das decisões do ilustre Ministro Relator, Sua Exa. o Min. Benedito Gonçalves, e das decisões já referendadas por este Plenário, entendo superadas todas as questões preliminares ventiladas na presente demanda. Delas tratarei pontualmente no Voto que farei juntar. Passo, assim, diretamente ao mérito.

Mérito

Possibilidade de enquadramento da conduta no art. 22 da LC 64/90 e a desinformação eleitoral

Ao longo dos anos, os casos envolvendo abuso de poder político apurados via AIJE que aportaram a este Tribunal efetivamente consideraram como sendo configuradores de abuso atos desviantes das atribuições inerentes ao cargo em proveito de determinada candidatura, sendo esse, pois, o núcleo de necessária aferição para o deslinde de demandas deste jaez.

O banco de precedentes é farto em exemplos de condutas que se amoldam a essa categorização, valendo mencionar, a título exemplificativo, as situações de desvirtuamento de inaugurações de obras públicas para angariar favor a determinada candidatura (REspe nº 373-54RJ, Rel. Min. Sergio Silveira Banhos, DJe de 30.5.2023) e a instrumentalização da Administração Pública em benefício exclusivo do gestor a partir da sistemática veiculação de publicidades institucionais (AREspe nº 0600362-93/CE, Rel. Min. Sergio Silveira Banhos, DJe de 24.3.2023), dentre tantos outros casos que menciono em meu Voto.

Justamente em razão da miríade de hipóteses passíveis de serem amoldadas à conduta abusiva contemplada normativamente, revela-se impossível e juridicamente inaceitável estancar o conteúdo dessa hipótese normativa de forma hermética. A criatividade humana demanda, nesse sentido, a sempre prudente análise do órgão julgador a respeito dos contornos fáticos da conduta investigada em concreto, para fins de aplicação da normatividade vigente, sem que se possa, desse exercício, imputar qualquer tom de insegurança jurídica à atividade jurisdicional.

Foi assim que, seguindo nessa linha intelectiva, esta Corte considerou estar configurado o abuso do poder político no denominado “Caso Francischini“, com condutas da autoridade que atacavam o sistema eletrônico de votação e a Democracia, em contexto no qual o candidato sobrevém como beneficiário dos ataques infundados.

No contexto, a realização desses ataques infundados ao sistema eletrônico de votação e à Democracia colocaram em xeque a normalidade e a legitimidade do pleito, valendo-se seu autor de condição funcional e com intuito de angariar benefícios voltados à autopromoção e à campanha eleitoral.

Nesse sentido, a realização, por agentes públicos, de ataques infundados ao sistema eletrônico de votação, com propagação de informações sabidamente inverídicas, tendo como mote não a promoção de mero diálogo público, não a crítica fundamentada, ainda que intensa e em benefício coletivo, mas sim o esgarçamento do tecido social, em prol de candidaturas, é conduta plenamente passível de se amoldar à hipótese da Lei, já consolidada de longa data acerca da configuração do ato abusivo. Recordo que essa postura também constitui um ato desviante das atribuições inerentes ao cargo público.

Já pela ótica do uso indevido dos meios de comunicação, rememoro o paradigmático precedente cristalizado no julgamento do RO nº 0603975-98/PR (Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe de 10.12.2021), ocasião em que este Tribunal assentou que “a Justiça Eleitoral não pode ignorar a realidade” e, com isso, equiparou as redes digitais à mídia tradicional.

Neste aspecto, impõe-se, aqui, reconhecer o alcance e o significado atual das redes, que são também digitais. As redes e seu poder sempre estiveram presentes ao longo da História (cf. Niall Ferguson. A Praça e a Torre: redes, hierarquias e a luta pelo poder global. p. 171) e seu impacto social, quer dizer, o impacto social do que se faz veicular na rede digital, não pode ser menoscabado.

Aliás, neste ponto devemos reforçar o paradigma da Era Digital: sabidamente, as redes digitais são instrumentos capazes de disseminar desinformação de maneira massiva, brutal, instantânea e global. Na Era Digital, o caos informativo pode ser facilmente instaurado.

É grave quando um estado de caos informacional se instala na sociedade. É ainda mais grave se esse estado é planejado e advém de um discurso do Presidente da República. A confiança dos eleitores nas instituições democráticas deixa de existir e, com isso, a própria liberdade de voto fica viciada.

Por isso eu costumo me referir sempre à expressão de James Bridle (New Dark Age), quando afirma que a desinformação é uma espécie de poder atômico, com enorme capacidade de destruição. Nessa linha, relembro o conceito bem delineado pelo Presidente desta Corte, Min. Alexandre de Moraes: a “desinformação – entendida como uma ação comunicativa fraudulenta, baseada na propagação de afirmações falsas ou descontextualizadas com objetivos destrutivos – conflita com valores básicos da normativa eleitoral, na medida em que impõe sérios obstáculos à liberdade de escolha dos eleitores e, adicionalmente, à tomada de decisões conscientes. Compromete, portanto, a normalidade do processo político, dada a intenção deliberada de suprimir a verdade, gerando desconfiança, com consequente perda de credibilidade e fé nas instituições da democracia representativa" (trecho do voto do Min. Alexandre de Moraes no Referendo na Medida Cautelar na ADI n° 7.261/DF, Rel. Min. Edson Fachin, j. 26.10.2022, pp.39-40 – sem grifos no original).

Quero, com isso, também deixar certo que não há qualquer justificativa legítima para se cogitar em inovação jurisprudencial no ponto em que as redes sociais digitais passam a ser consideradas meios de comunicação na caracterização dos respectivos ilícitos previstos em Lei. O oposto é que seria inapropriado no momento atual.

O labor a ser exercido no presente caso, portanto, é tão somente o de averiguar se a conduta descrita amolda-se ao que a norma pretendeu punir, levando-se em conta o acervo probatório produzido quanto à conduta dos investigados e, necessariamente, a conjuntura dos fatores que orbitam os fatos.

Análise do discurso: conteúdo e condições comunicacionais de sua realização

Mostra-se necessário apurar, portanto, se o conteúdo das ocorrências mencionadas aqui caracteriza, em concreto, um ataque infundado ao sistema eleitoral, com comprometimento da normalidade e da legitimidade do pleito, em manifesto desvio de finalidade e com proveito eleitoral dos investigados.

A respeito do teor desse ato comunicacional do então Presidente da República, faço apontamentos preliminares em três dimensões importantes para fins de proceder, a seguir, no enquadramento jurídico do discurso.

O primeiro é o de que não se ignora, aqui, o âmbito de incidência próprio da liberdade de expressão. Muito pelo contrário. A liberdade de expressão é essencial à sociedade e à Democracia, e não permite que se reprima a mera exposição de ideias, por mais incisivas que sejam determinadas colocações, as críticas, as discordâncias e embates ideológicos. Também no benefício da liberdade de expressão, não se deve desestimular o diálogo sadio entre instituições ou bloquear sugestões técnicas ou mesmo jurídicas de aprimoramentos e melhorias em geral do sistema eleitoral e mesmo do modelo eletrônico de votação, dentro do livre e legítimo mercado de ideias. Como veremos, o foco do discurso e desta AIJE são os ataques comprovadamente infundados e absolutamente falsos, sistemáticos e notórios, contra a urna eletrônica, contra o processo e a Justiça eleitoral, com finalidade especificamente eleitoral, por meio de uma tática que restou evidenciada no Voto do Ministro Relator e à qual retornarei adiante.

A segunda dimensão que necessita ser explicitada sobre esse ato comunicacional investigado é o de que também não se estará, aqui, a analisar uma fala qualquer, mas sim um discurso institucional, promovido pelo Presidente da República em exercício, no Palácio da Alvorada, com uso de equipamentos públicos e compleição de evento oficial. Isso lança certas particularidades ao caso, que terão de ser devidamente enfrentadas a seu tempo.

Em terceiro, não se trata de avaliar uma comunicação para uma audiência de não-eleitoras e não-eleitores, alegadamente por ter sido realizada apenas na presença física de embaixadores estrangeiros, posto que consta da prova dos autos e é fato notório que sua divulgação foi amplíssima e irrestrita, constituindo essa difusão não um efeito secundário e comedido, mas sim um elemento consciente, relevante e devidamente planejado e amplificado para o discurso que seria proferido nessa ocasião (o que integrava a referida tática eleitoral, conforme logo veremos). E todos esses elementos encontram-se devidamente comprovados nos autos.

Quanto ao primeiro âmbito material referido, temos que o direito fundamental à livre expressão, consagrado explicitamente na Constituição de 1988, não alberga a propagação de mentiras. Não se trata, portanto, de flexibilizar um direito, mas sim de delimitar seus contornos e seu âmbito de regência.

Em contraponto à propagação de mentiras e ataques infundados que compõem, no caso concreto, como veremos, uma fala política inserida em uma estratégia eleitoral, vale recordar, ainda, o direito de todos à informação, que igualmente constitui um direito fundamental plasmado em nossa Constituição. O direito à informação encontra-se, assim como a liberdade de expressão, na essência da Democracia. No segmento eleitoral, a eleitora e o eleitor têm direito a que o debate público ocorra com base em informações e fatos verdadeiros, pois é apenas e tão somente dessa maneira que se garante efetivamente a liberdade de escolha; só dessa maneira se assegura o direito pleno ao voto.

Ainda sobre este primeiro âmbito, passarei a uma análise mais vertical, de maneira a poder identificar com precisão, como veremos, não apenas a mera falta de rigor em certas proclamações, mas a inequívoca falsidade perpetrada nesse ato comunicacional, com invenções, “distorções severas” da realidade, dos fatos e dos dados empíricos e técnicos, como bem pontuou o ilustre Relator, Min. Benedito Gonçalves, chegando, ainda, a caracterizar-se, ao final, uma “narrativa delirante” com efeitos nefastos na Democracia, no processo eleitoral, na crença popular em conspirações acerca do sistema de apuração dos votos, tudo praticado não como um ato isolado e aleatório, o que já seria bastante grave, mas em verdadeira concatenação estratégica ao longo do tempo, com finalidades eleitoreiras.

Neste ponto, é especialmente oportuno observar a dimensão performática que certos discursos assumem. Na linha do pensamento trazido por José Jairo Gomes, esses discursos constituem, eles próprios, a própria ação. Em suas palavras: “Discursos podem provocar consequências relevantes no mundo da vida; podem ensejar a criação de vínculos psicológicos e emocionais, reforçar crenças e conceitos morais, levar pessoas a acreditar em valores, assim como em fantasias, utopias, quimeras e tolices” (GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 18 ed. São Paulo: Gen/Atlas, 2022, p. 776).

Quanto à análise do teor do discurso levado a efeito na referida reunião, anoto que me debrucei sobre todas as falas proferidas e efetuei o contraponto com as checagens oficiais dos fatos, as peças de inquéritos acostadas aos autos e os depoimentos de testemunhas, o que me permitiu concluir, dentre outras conclusões, que o referido conteúdo é permeado por afirmações falsas e inequívocos ataques a partidos adversários e a Ministros do STF.

A título de exemplo – e colaciono todas as hipóteses em meu Voto – ressalto a afirmação de que um hacker teria tido acesso a todo o sistema do TSE, inclusive a milhares de códigos-fontes, o que não é verdade. Fato é que “especialistas foram unânimes em avaliar que se trata de dados administrativos antigos ou mesmo informações públicas, disponíveis no Portal da Transparência. Os bancos de dados acessados não teriam, portanto, nenhuma relação com as eleições1.

O TSE, também, “nunca emitiu2 informação de que os resultados das eleições de 2018 podem ter sido alterados, mas isso foi proclamado pelo então Presidente da República no ato comunicacional objeto de análise. Apresento, neste ponto, a exata fala do primeiro investigado na referida reunião com embaixadores: “Porque o sistema é completamente vulnerável, segundo o próprio TSE e obviamente a conclusão da Polícia Federal”. A Polícia Federal jamais chegou a essa conclusão. Pelo contrário, acabou por restar comprovado que o acesso indevido do hacker ocorreu sem qualquer motivação eleitoral e, mais ainda, que não era capaz de alterar qualquer resultado eleitoral.

A despeito de todos os elementos efetivamente presentes nos discursos e integralmente constantes dos autos, os investigados aduzem que houve a omissão maliciosa de alguns trechos, e com isso acabam reafirmando a narrativa em sua extensão.

Invocar breves partes do discurso com omissão de tantos outros trechos (que elenco em meu Voto), não pode representar, por certo, o discurso em sua totalidade e em cada uma de suas parcelas, como, aliás, foi muito bem colocado pelos próprios investigados. O argumento utilizado pela defesa, portanto, é forte, mas no sentido oposto ao pretendido, já que é preciso considerar todas as parcelas do discurso e em seu contexto, o que foi exaustivamente realizado pelo voto do Corregedor Geral da Justiça Eleitoral, Min. Benedito Gonçalves.

Nesse sentido, é absolutamente inviável, objetivamente falando, acolher a tese defensiva na linha de que não houve divulgação de informação falsa ou, ainda, de que a informação veiculada baseou-se em subsídios concretos capazes de sustentar um discurso que, como resultado geral final, teria sido positivo e verdadeiro. O total descolamento da realidade está plenamente operante também nessa pretensão defensiva.

Apesar da existência de algum elemento fático, como um inquérito ou mesmo um ataque hacker ao TSE, fabricou-se uma nova camada, integralmente falsa, exuberante em aspectos fantasiosos, i) seja acerca do significado dos fatos, ii) seja acerca de seus desdobramentos. Essas versões são fabricadas, ficcionais, capazes de fazer encobrir os próprios elementos reais que perpassam alguns raros momentos do discurso.

Assim, de maneira geral, captando as mensagens centrais das falas, em observação atenta acerca do seu conteúdo integral, é legítimo caracterizá-lo como falso e pernicioso. O investigado, em suma, a partir da ocorrência de algum fato verdadeiro, forja outros fatos que efetivamente jamais ocorreram para alcançar conclusões que não poderiam deixar de ser igualmente inventivas e não decorrências lógicas de alguns poucos fatos reais. Com isso, as conclusões são desviantes da realidade, compondo uma versão fabricada. Assim – e repito este ponto – os poucos elementos verdadeiros estão ali não para se explorar sua veracidade, mas como estratégia de convencimento alarmista do falso.

A segunda dimensão de análise do discurso diz respeito à dimensão subjetiva. Quem proferiu o discurso era o Presidente da República em exercício, como reiteradamente relembrado pelo próprio investigado.

Aliás, chama a atenção que as provas dos autos indiquem que o conteúdo do discurso teria partido também do próprio Presidente. As testemunhas ouvidas em juízo foram uníssonas ao apontarem que não tiveram qualquer relação com a produção do conteúdo do discurso. Carlos França, ao ser indagado se coube a ele a preparação dos slides utilizados no discurso para os embaixadores estrangeiros, afirmou que seu auxílio se deu apenas no aspecto logístico, envolvendo, por exemplo, preparativos voltados à tradução simultânea. Mais à frente em seu depoimento foi enfático, ao afirmar que “nós não tivemos acesso a esse material, e nós não fomos acionados para revisar esse material” (ID nº 158766494). Em mesmo sentido, Flávio Viana, questionado se teria prestado apoio direto para a preparação do discurso, apenas expôs que “não houve esse nível de assessoria em relação ao evento em questão” (ID nº 158766496). Ciro Nogueira, da mesma forma, também afirmou não ter sugerido conteúdo para o discurso ou preparado qualquer material a respeito (ID nº 158766495).

Esta dimensão atrairia, na concepção do investigado, a impossibilidade de controle judicial das falas que, por terem sido proferidas por Chefe de Estado, consubstanciariam ato típico de governo, justamente porque foram praticadas pelo Presidente da República, no exercício de suas funções presidenciais, na sede do Governo, em representação internacional.

Ignorando-se, em um primeiro momento, o desvio de finalidade pelo uso indevido das credenciais da Presidência, como Chefe de Estado e Comandante Supremo das Forças Armadas, para ficar-se apenas no campo das supostas prerrogativas máximas e insindicáveis do Chefe do Executivo, verifico que uma proposta com esse alcance evoca a vetusta teoria dos atos políticos (political questions), em entendimento superado de há muito mesmo em sua origem, nos Estados Unidos da América do Norte, quando da judicialização do caso atinente aos distritos eleitorais do Tennnesse (Baker v. Carr) de 1941 (sobre a progressiva mudança das condições de aplicação dessa teoria, cf. PEGORARO, Lucio, RINELLA, Angelo. Derecho Constitucional Comparado: sistemas constitucionales. Buenos Aires: Astrea, Giappichelli ed., 2018, V. 2, p. 365 e ss).

Porém, o assunto nem sequer chega a essa discussão de fundo, já que, ao contrário do que foi alegado, a exposição não teve caráter diplomático. Observa-se, isso sim, a mera roupagem diplomática, comprovada não apenas pela própria convocação e condições em que ocorreu a reunião, mas também pela juntada de comunicação oriunda da Casa Civil, a partir da requisição de informações consolidadas sobre a participação de órgãos do Governo Federal na preparação, realização e difusão do encontro realizado no Palácio do Planalto, em 18.7.2022 (ID nº 158839457 e seguintes). Pela documentação, visualiza-se a existência de convites a embaixadores e ministros de nações estrangeiras, convites a autoridades nacionais e documentações internas direcionadas à preparação do evento.

Não obstante essa situação, a pauta, a abordagem realizada com recurso amplo a fatos inverídicos e a reverberação de seu conteúdo via TV Brasil Distribuição e por redes sociais do primeiro investigado é que permitem a correta categorização do evento, inserto como uma estratégia eleitoral calcada em questionamentos e ataques despidos de base racional voltados ao sistema eleitoral, no interesse eleitoral dos investigados.

Houve, portanto, um desvio de finalidade, caracterizando o abuso de poder.

A circunstância, portanto, de ter sido um discurso proferido pelo Presidente da República em exercício acaba por fazer prova da gravidade dessa fala e de outras, igualmente trazidas aos autos, com caráter conspiratório a partir de mentiras e distorções, criadas pelo próprio Presidente, justamente porque foram protagonizadas pelo Chefe do Poder Executivo do país.

Como advertem Nancy Rosenblum (da Universidade de Havard) e Russell Muirhead (do Dartmouth College), quando se tem esse tipo situação, a gravidade emerge de maneira automática. Nas palavras desses estudiosos, a “conspiração presidencial é potente porque o Gabinete presidencial é, ele próprio, muito poderoso” (A Lot of people are saying. The national conspiracism and the assault on Democracy, Princeton: Princeton University Press, 2019, p. 59).

O uso do mais alto cargo dentro da Democracia representativa potencializa os resultados da ação do primeiro investigado.

A terceira e última dimensão que mencionei é a do receptor, ou seja, a quem se dirigiam as palavras proferidas. Aqui, resta inequívoco, ao contrário do que se pretende fazer crer, que o discurso foi dirigido para todo e qualquer interessado, em face de sua veiculação pela TV e ampla difusão perpetrada pelas redes sociais em plataformas digitais (Facebook e Instagram) do próprio primeiro investigado. Resta em total desacordo com as provas dos autos a afirmativa de que o discurso dirigiu-se apenas a embaixadores estrangeiros.

Enquadramento do conteúdo falso do discurso como ação coordenada no tempo (contexto) e a tática eleitoral contra a Democracia em benefício próprio

Verificada a existência de desinformação generalizada e desvio de finalidade na reunião ocorrida em 18.7.2022, deve-se apurar a gravidade dos fatos.

A verificação do ato abusivo demanda o comprometimento da normalidade e legitimidade do pleito a partir de atos de agentes públicos que, valendo-se dessa condição, beneficiam candidaturas a partir do desvio de finalidade, com gravidade a ser aferida em alto grau de reprovabilidade e na repercussão no equilíbrio da disputa eleitoral.

Diante da análise de todo o acervo probatório colacionado aos autos, verifica-se que os já mencionados ataques e as desinformações, apesar de terem sido inúmeros em uma mesma cerimônia, não constituíram um fato pontual ou isolado. Este aspecto apenas reforça constituírem uma estratégia maior, de caráter eleitoral, nos termos exatos em que delineio essa trama aqui.

Importante, portanto, observar o contexto no qual esteve inserida a referida reunião, sobretudo para fins de aferição da gravidade inerente à sistemática legalmente exigida.

Como bem observado pelo Relator na Decisão que determinou a suplementação instrutória, constata-se que as afirmações expostas na reunião de 2022 continham, para usar a expressão de Sua Excelência, um “fio condutor” (ID nº 158764809), uma fala que “possui marcadores cronológicos, que conectam passado, momento presente e projeções para o futuro” (ID nº 159049013).

Trata-se do contexto dos ataques, que não pode ser simplesmente ignorado ou desprezado, até porque fez-se notório, por força e empenho do próprio primeiro investigado.

A defesa do primeiro investigado, aliás, invoca o contexto ou “adequada contextualização” dos fatos, em mais de um momento, como imprescindível, ressaltando a importância de sua incorporação na análise jurídica. Assim ocorreu na fase de diligências, com o requerimento dos investigados para que jornalistas “responsáveis pela condução do programa ‘pingos nos is’” pudessem, em suas palavras, “contribuir com efetivos esclarecimentos sobre o contexto em que surgiu o interesse jornalístico”. Em suas alegações finais, de forma categórica, insistem, corretamente, que a análise deve ser “feita de forma contextualizada”, apesar de pretenderem, a partir dessa premissa válida, conclusões improváveis e insustentáveis no caso concreto.

Esse contexto maior, digamos assim, faz parte do próprio discurso proferido pelo então Presidente da República aos embaixadores em 18.7.2022. O contexto do discurso – aliás, insisto, referido como mensagem no próprio conteúdo do discurso – jamais poderia ser juridicamente descartado.

É inviável à Justiça ignorar fatos notórios e, mais ainda, devidamente comprovados nos autos, a fim de converter a realidade conhecida em uma versão forjada e fabricada dela própria. Não deixa de ser, em alguma medida, sintomático, que se pleiteie à Justiça Eleitoral a promoção desse isolamento artificial de certas frases ou afirmações, o que equivale a franquear a ampla manipulação, justamente um tipo de fala que, quando praticada por candidatos, há de constituir, por dever funcional, objeto da reprimenda e sanção eleitorais.

Nesse sentido, é possível constatar ataques infundados que se escoraram em boatos concernentes às eleições de 2014 e, nesse aspecto, ganha relevo a existência de uma cronologia acerca da tática adotada pelo investigado.

Como exposto nos autos pelo Relator e reafirmado pelo advogado do autor da AIJE em sua sustentação oral, “a fala possui marcadores cronológicos”. São elementos que, conforme o Relator, “conectam passado, momento presente, e projeções para o futuro: a) a alegada fraude ocorrida em 2018, passando pela advertência de que não poderia ter havido eleições em 2020 antes da ‘apuração total’ do ocorrido; b) a própria urgência de endereçar a mensagem aos embaixadores de países estrangeiros, na iminência do período eleitoral de 2022; e, por fim, c) a enfática reivindicação, somente compreensível nesse arco narrativo alarmista, de que as Eleições 2022 fossem ‘limpas, transparentes, onde o eleito realmente reflita a vontade da sua população’” (ID nº 158764809).

A existência de um arranjo no que concerne aos ataques infundados, a afastar a tese de se tratar de fato desconectado de um contexto maior, foi apontada pelo autor já em sua petição inicial, quando afirmou que de “acordo com os veículos de comunicação, o Senhor Jair Messias Bolsonaro questionou a integridade do sistema eleitoral brasileiro pelo menos 23 (vinte e três) vezes no ano de 2021” (ID nº 157940943).

O Relator, com base em seu legítimo poder instrutório, diligentemente, trouxe aos autos transcrições da degravação das lives de 29.07.2021 e 12.8.2021 e da entrevista concedida por Jair Messias Bolsonaro ao programa “Pingos nos is”, da Jovem Pan, em 4.8.2021, ocasiões nas quais o Inquérito Policial nº 1361/2018-4/DF foi abordado (ID nº 158764856, nº 158764865 e nº 158764866). Também fez juntar relatório técnico produzido pela STI/TSE a respeito do tema (ID nº 158764862), degravações e termos de depoimentos das pessoas envolvidas nas referidas lives e na referida entrevista (ID nº 158764861, nº 158764857 e nº 158764860, nº 158835190 e nº 158835192) e cópias extraídas da Petição 9.842/DF e do Inquérito 4.878/DF, ambos em trâmite no STF (ID nº 158764868 e nº 158764869).

Os investigados, por sua vez, também requereram cópia dos atos praticados no Inquérito 4.878/DF e que dizem respeito aos desdobramentos processuais da investigação das circunstâncias de divulgação do Inquérito Policial 1361/2018-4/DF (ID nº 158835933). O próprio Inquérito foi acostado aos autos (ID nº 158850900).

Com a roupagem de debate público, o investigado, na realidade, proferiu sérias acusações sem estar amparado minimamente por um acervo comprobatório que sustentasse tais conjecturas, incorporando em seu discurso “invenções”, “mentiras grosseiras”, “fatos forjados” e “distorções severas” de informações. Não é pouco. Mais do que mentiras, forma-se um pool de perturbações severas à Democracia e às instituições com intuito eleitoral, nos termos que adiante especifico.

O que se constata é a reverberação de fatos inverossímeis, descontextualizados e despidos de mínima seriedade, inclusive já amplamente refutados publicamente, seja por meio de dados empíricos, de contraposição com os fatos a partir das ocorrências devidamente checadas e reportadas oficialmente, seja por meio de relatos e conclusões técnicas, conforme metodologia científica.

Não houve, como quer fazer crer o investigado, um mero “diálogo institucional” (ID nº 157977291), construído a partir da importância atinente à vigilância do sistema democrático pela comunidade internacional.

O que houve foi, em síntese, uma ação coordenada no tempo, com contexto bem definido, a fim de reforçar o engajamento de um determinado público, pela manipulação de mentiras em benefício eleitoral próprio.

A repercussão de discursos desinformativos (dimensão quantitativa da gravidade do possível abuso) é essencial para a tática adotada. A partir dos estudos de Niall Ferguson, em sua obra The Square and the Tower (A Praça e a Torre), seria equivocado aceitar que “a difusão de uma ideia ou ideologia é uma função de seu conteúdo inerente [...]. Nós precisamos agora reconhecer [...] que algumas ideias se tornam virais devido a aspectos estruturais da rede por que se espalham” (A Praça e a Torre: redes, hierarquias e a luta pelo poder global. p. 69, original não grifado). É o que se poderia designar como “mente da colmeia” (cf. Kevin Kelly, apud Franklin Foer, O Mundo que não pensa. Trad. Por Debora Fleck. Rio de Janeiro: LeYa, 2018, p. 34).

O engajamento que se provoca e a tática utilizada reafirmam uma espécie de compartilhamento ideológico por bloco, capaz de engajar novos indivíduos, porque é capaz de superar até mesmo fatos, dados empíricos e Ciência.

O Min. Dias Toffoli chama a atenção para essa circunstância em reflexão de grande alcance neste ponto. Adverte o Ministro que as atitudes de adesão “são determinadas [...] por simpatias ou afiliações a determinadas correntes políticas. Nesses episódios [...] muitas pessoas acreditam ter direito aos próprios fatos” (Sociedade e Judiciário na Era das Fake News e dos Engenheiros do Caos. In: LEWANDOWSKI, Ricardo, TORRES, Henelo, BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Direito, Mídia e Liberdade de Expressão: custos da Democracia. São Paulo: Quartier Latin, 2023, p. 31).

Para bem compreender como mentiras e ataques infundados ao sistema eleitoral e ao voto podem gerar benefícios eleitorais, é preciso dissecar o estratagema envolto nessas falsas afirmações.

É que, apesar de o espectro ideológico em uma sociedade rica e plural – como ocorre com a brasileira – ser de difícil delimitação e rotulação, constatamos o crescimento do fenômeno da polarização social. A partir daí, vislumbra-se um nefasto movimento, com o qual se busca a adesão integral às pautas extremistas, em uma espécie de tudo ou nada que permeia o espaço público e gera grupos sociais cada vez mais divididos e irreconciliáveis, fenômeno que Mariano Torcal chama de megaidentidades partidistas (TORCAL, Mariano. De votantes a hooligans: La polarización política em España. 1ª Ed. Madrid: Catarata, 2023, p. 21). O uso de mentiras é utilizado, nesse contexto da polarização da sociedade, para ativar um sentimento no cidadão comum de que não aderir ao polo que realiza as (falsas e hiperbólicas) denúncias equivaleria a uma conduta de aceitação categórica do imoral, do ilícito, da fraude.

Quero com isso apontar que não se está aqui a julgar a existência de um mero grupo de falácias contadas, mas sim uma estratégia política que depende da disseminação de falsas informações, pautadas por uma identidade política, ou mesmo uma etiqueta ideológica, que não aceita, não tolera e relega como párea aquele que não toma para si a integralidade da agenda pautada, que é uma agenda de desinformação e alarmismos infundados, postura essa que, em última análise, é uma das causas da própria polarização social em si. Os demais discursos carreados aos autos apenas reafirmam essa tática, que está presente no discurso proferido perante os embaixadores e em sua operacionalização (desde as convocatórias até a difusão nas redes e meios de comunicação).

O ataque decorrente das afirmações falsas, portanto, não é aleatório nem fruto de pequenos equívocos. Trata-se de estratégia que tem a capacidade de desestruturar a Democracia. Ela mina a confiança do cidadão em dados e metodologias sérias e científicas, ou, como bem coloca Tom Nichols, acaba por colapsar a relação entre experts e cidadãos, o que, uma vez bem sucedida, torna a própria Democracia disfuncional (The Death of Expertise: the campaign against established knowledge and why it matters. New York: Oxford University Press, 2017, p. 216). Essa tática mira obter a incapacidade social em diferenciar entre fatos e ficção, gerando o que já se tem denominado, não sem grande perplexidade, como a “decadência da verdade” (cf. Kavanaugh, Jennifer, and Michael Rich, Truth Decay: An Initial Exploration of the Diminishing Role of Facts and Analysis in American Public Life, Santa Monica, Calif.: RAND Corporation, RR-2314-RC, 2018. April 19, 2019: https://www.rand.org/pubs/research_reports/RR2314.html, acessado em 25 de junho de 2023).

Por isso, não há como convencer a tese da defesa no sentido de que o discurso ocorreu no contexto de melhoramento do sistema eleitoral, diante da recomendação do TCU para rever e aprimorar os processos públicos de segurança e transparência eleitorais (TC nº 014.328/2021-6, Acórdão nº 1611/2022) e da Portaria TSE nº 578/2021, que criou a Comissão de Transparência Eleitoral que, ao final dos trabalhos, acolheu 72% das sugestões.

É que o aprimoramento do sistema eleitoral, em um ambiente sério, passa por análises criteriosas acerca das reais dificuldades enfrentadas e das melhorias efetivamente necessárias, com base em um conjunto de dados seguros, com informações advindas de fontes oficiais e com preparo científico na metodologia de análise e crítica. Esse cenário, como exposto pelos investigados, de fato existe e é salutar, mas em muito se diferencia de ataques infundados, baseados em boatos, notícias já de longa data desmentidas reiteradamente e acusações desacompanhadas de fundamentação idônea, sobretudo advindas daquele que ocupa o mais alto cargo do Poder Executivo, adotadas com intuito eleitoral de benefício próprio.

Aliás, a necessidade de o TSE, na sequência do evento, expedir nota pública por intermédio da qual foram rebatidos os tópicos apresentados não transmuda o evento em um mero diálogo institucional. Que tipo de diálogo seria esse no qual existem, de um dos lados, ataques infundados e mentiras como estratégia discursiva prolongada no tempo? O resultado foi o de um cenário permanente de tensão e instabilidade, desde a primeira ocorrência, a obrigar um incrível dispêndio de esforços, com uso intenso de recursos humanos e materiais, para tentar bem esclarecer a população acerca das mentiras, distorções e falácias divulgadas amplamente e amplificadas pelo cargo ocupado por seu difusor.

A nota pública referida não só é incapaz de neutralizar a gravidade do ocorrido, em termos jurídicos, mas faz prova contrária. Essa medida, na realidade, reforça a gravidade da situação, tendo sido tomada justamente para conter a propagação de informações absolutamente inverídicas, que se inseria em uma estratégia específica, em contexto capaz não só de macular o juízo do eleitorado, mas também tencionar e abalar as estruturas da Democracia.

Bem por isso não é suficiente para afastar a gravidade a circunstância de os eleitores terem comparecido no dia da eleição para exercerem seu direito-dever de votar.

O reforço da gravidade dos atos

Todo o quadro acima descrito, de uma tática firme e precisa de empreender um ambiente de definhamento da verdade, atesta a gravidade ímpar dos fatos no contexto em que foram praticados.

Elemento igualmente importante nessa análise, mas que apenas robustece ainda mais o aspecto da gravidade, que é requerida pelo art. 22 da LC 64/90, ou seja, documento que não é imprescindível às presentes conclusões, é a minuta do decreto de Estado de Defesa apreendida a partir de diligência deferida pelo Ministro Alexandre de Moraes no âmbito do Inquérito 4.879/DF em tramitação no STF.

São diversos elementos que apontam para uma tática específica, que se revela pela existência, como exposto, de marcadores cronológicos aferíveis nas narrativas alarmistas.

Assim é que, como exposto no parecer da PGE, após “o ajuizamento da ação de investigação judicial eleitoral e depois das eleições, percebeu-se uma inédita mobilização de parcelas da população que rejeitavam aberta e publicamente o resultado do pleito, por não serem legítimas. É fato notório que surgiram acampamentos e manifestações de rua animados por pessoas convictas de que as eleições haviam sido fraudadas” (ID nº 158931404).

Benefício eleitoral mediante conduta altamente reprovável

O enquadramento da conduta na previsão do art. 22 da LC 64/90 exige, ainda, o beneficiamento a candidatura, por isso a necessidade da averiguação do cunho eleitoral do conteúdo.

De todo o exposto, resta indelével que a candidatura foi beneficiada por uma tática que perpassou todo o conteúdo do discurso proferido no âmbito da cerimônia aqui analisada, de maneira a agitar as bases eleitorais no sentido de canalizar votos para impedir que qualquer outro candidato, mas especialmente um deles, obtivesse vitória nas eleições de 2022, manipulando-se a polarização da sociedade em benefício eleitoral do investigado.  

A respeito do caráter eleitoral, importante notar que a classificação de determinado ato como típico de campanha não demanda necessariamente pedido de voto, comparação de governos ou exposição de projetos. O cunho eleitoral do evento é verificado a partir da veiculação de pautas típicas de campanha e, mais do que isso, de uma tática muito própria do investigado.

Uma vez observada a conjuntura de fatos relativos ao ato imputado, outra conclusão não se alcança senão a de que a realização de ataques infundados às instituições eleitorais, incutindo-se a falsa ideia de fraude sistêmica, estava inserida em uma estratégia eleitoral já conhecida, que promove um maior engajamento de sua base de eleitores a partir da construção de uma narrativa alarmista, preocupante e, sobretudo, com um tom ameaçador, tudo em um cenário no qual se encontrava melhor posicionado o adversário político nas pesquisas eleitorais.

Em última análise, o discurso robusteceu o envolvimento de parcela da sociedade que passou a se ocupar acerca de uma falsa causa atinente a problemas eleitorais e supostos conluios para alcançar o poder, resultando em elevados e reprováveis dividendos políticos para o investigado.

Para se chegar a essa conclusão, importante reforçar que a análise do conteúdo do discurso proferido é de extrema relevância. Foi possível compreender que o discurso do investigado não promoveu um debate legítimo de aprimoramento institucional, mas sim o impulsionamento de sua própria candidatura, manipulando a realidade e entregando o produto desse ato para sua base eleitoral, alarmando-a, com o propósito de ampliar o alcance da mensagem – construída a partir da instigação da ideia segundo a qual haveria um único curso natural de ação e um único resultado legítimo a ser aferido nas urnas, se se estiver dentro das quatro linhas da Constituição –, o que denota, como já fiz constar, também aqui de maneira inequívoca, a existência de uma estratégia eleitoral, embora não ortodoxa, como se extrai de diversas passagens do referido discurso.

Assim é que, abandonando a análise da fala de 18.7.2022 por fragmentos, e adotando a análise do discurso na íntegra, capaz de capturar a mensagem nele presente, da forma como por diversas vezes insistiu a própria defesa, resulta inequívoco o caráter eleitoral, ancorado em uma condicionante, como bem observou o Ministro Relator, Min. Benedito Gonçalves: “Jair Messias Bolsonaro se anunciava disposto a aceitar o resultado das eleições, se as eleições fossem limpas. Afirmava isso à exaustão, impregnando o debate público com a mensagem implícita de que, inversamente, não estaria obrigado a aceitar resultados em caso de fraude eleitoral. Conforme se acostumou a dizer, preferia jogar ‘dentro das quatro linhas’, mas não recusava que pudesse ser levado a usar as armas ‘do outro lado’, sempre em uma suposta defesa da democracia”.

A tese defensiva construída ao argumento de que o público-alvo nem sequer detinha cidadania e capacidade ativa de sufrágio e que o tema foi a transparência no processo eleitoral, como adiantei, não se sustenta diante da ampla divulgação do evento em âmbito nacional. Divulgação devidamente preparada e executada pelo investigado. Não houve, nesse sentido, uma reunião a portas fechadas, mas sim um evento aberto, com discurso amplamente difundido, como os números de acesso atestam.

Também não convence a argumentação na linha de que a documentação apresentada pela Casa Civil comprovou a trivialidade da organização de “evento simples, verdadeiramente ‘franciscano’” (ID nº 158914533), que teve um custo total correspondente a R$ 12.214,12 (doze mil duzentos e quatorze reais e doze centavos).

É que a fundamentação jurídica da demanda, como exposto, é o abuso na sua vertente política, e não econômica. Nesse sentido, a documentação advinda da Casa Civil demonstra claramente a movimentação da estrutura pública para fins de realização do evento, que, reitere-se, foi amplamente difundido tanto em redes sociais quanto pela TV Brasil Distribuição, por intermédio da EBC, empresa pública nos termos da Lei 11.652/2008. A gravidade encontra-se estampada nesse figurino utilizado para prolatar um discurso anti-institucional que buscava o benefício eleitoral.

Uso indevido dos meios de comunicação

A caracterização dos ilícitos de uso indevido dos meios de comunicação e de abuso do poder político tem elementos comuns entre si, não sendo o caso de retomar toda a análise já realizada a esse respeito.

As veiculações, que, na visão dos investigados, refletiriam mera transparência de um evento oficial e um possível diálogo institucional, consubstanciam verdadeiro uso indevido dos meios de comunicação social, constatação alcançável após a devida análise, anteriormente realizada, do conteúdo do discurso, do contexto e das estratégias reverberadas pelo tema tratado na reunião.

Especificamente sobre este ilícito, cumpre registrar que, conforme entendimento deste Tribunal, "o uso indevido dos meios de comunicação social caracteriza-se pela exposição desproporcional de um candidato em detrimento dos demais, devendo ser demonstrada gravidade nas condutas investigadas a tal ponto de implicar desequilíbrio na disputa eleitoral" (AgR-RO nº 0601586-22/CE, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJe de 13.9.2021). Além disso, "apenas os casos que extrapolem o uso normal das ferramentas virtuais é que podem configurar o uso indevido dos meios de comunicação social" (AIJE nº 0601862-21/DF, Rel. Min. Og Fernandes, Rel. designado Min. Jorge Mussi, DJe de 26.11.2019).

Os entendimentos já apresentados e detalhados por esta Corte sobre o assunto amoldam-se perfeitamente ao caso concreto, uma vez que ocorreu exposição desproporcional de um candidato, tanto por intermédio de suas redes sociais como a partir do uso de empresa pública federal, veículo não disponível aos demais concorrentes ao pleito, com evidente situação em que se extrapolou o uso normal das ferramentas virtuais, empregadas no caso para propagar ataques absolutamente infundados ao sistema eleitoral.

Sobre o uso indevido dos meios de comunicação, como muito bem observou o eminente Min. Relator em seu Voto, Min. Benedito Gonçalves: “Os dividendos eleitorais eram facilmente estimáveis ante a popularidade desse tipo de conteúdo na internet e o conhecido êxito das lives de 2021 para gerar e manter mobilização política de caráter altamente passional e impermeável a contestações factuais oriundas de fora da bolha”.

Uma estratégia abusiva de promoção eleitoral à custa da estabilidade democrática e da higidez do sistema eleitoral.

Responsabilidade do candidato a Vice-Presidente

A respeito do segundo investigado, candidato a Vice-Presidente da República, observo que foi suscitada sua ilegitimidade, o que restou afastada na análise das preliminares. Ocorre, contudo, que em incursão no mérito, importante averiguar aspectos acerca de sua participação nos fatos narrados, sobretudo diante da natureza personalíssima da penalidade de inelegibilidade prevista no inciso XIV do art. 22 da LC 64/90.

Constata-se ainda que, no caso, os investigados não obtiveram sucesso nas urnas, o que importa reconhecer a perda de objeto em relação à penalidade de cassação de diploma. Contudo, “a decretação da inelegibilidade é autônoma em relação à cassação do diploma” (AgR-RO nº 246-88/AP, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe de 4.10.2022), remanescendo a necessidade de averiguação do grau de relevância do segundo investigado para fins de aplicação ou não, em relação a ele, da gravosa sanção de inelegibilidade.

Após análise detida das provas, não constatei a existência de elementos suficientes a indicar a prática de atos abusivos ou a anuência quanto a sua ocorrência, pelo segundo investigado. Importante observar que, na petição inicial, seu nome é indicado apenas no polo passivo e no relatório. Mesmo após densa instrução probatória, em alegações finais, o autor novamente só menciona o segundo investigado uma única vez no escorço processual, sem a atribuição de qualquer papel em relação a ele.

Com efeito, inexistentes elementos robustos no sentido de que o segundo investigado efetivamente praticou ou anuiu com a prática da conduta aqui reputada como abusiva, não se mostra cabível aplicar-lhe a gravosa sanção da inelegibilidade, que, apesar de autônoma em relação à cassação do diploma, detém natureza personalíssima e, por isso, demanda juízo seguro sobre a contribuição do investigado na prática do ato abusivo.

Conclusão

A partir da premissa voltada à possibilidade abstrata de enquadramento da conduta nas disposições do art. 22 da LC 64/90 e após minudente análise individualizada das afirmações constantes do discurso levado a efeito em 18.7.2022, resta inequívoco que seu conteúdo é permeado por ataques infundados ao sistema eletrônico de votação, com a disseminação de fatos inverídicos de maneira a criar uma narrativa alarmista, tudo com proveitos para a candidatura do investigado, considerado o acervo probatório apto a indicar a existência de um contexto cronologicamente situado de atuação, que robustece a constatação da gravidade da conduta por denotar a presença de uma estratégia abusiva de promoção eleitoral às custas da estabilidade democrática e da higidez do sistema eleitoral, levando-se ainda em conta, nesse cenário, a massiva divulgação dessas mentiras pelas redes sociais e por aparato estatal, entendo caracterizado o uso indevido dos meios de comunicação e abuso do poder de autoridade consistente no desvio de finalidade na realização de reunião com roupagem diplomática, mas com natureza eleitoral espúria.

Ante o exposto, acompanho o relator e julgo parcialmente procedentes os pedidos formulados na inicial, declarando a inelegibilidade de Jair Messias Bolsonaro para as eleições a se realizarem nos 8 (oito) anos subsequentes à eleição de 2022, nos termos do art. 22, XIV, da LC 64/90.

É como voto.

O SENHOR MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES (presidente): Obrigado. Agradeço ao Ministro André Ramos Tavares.

 1 Disponível em: < https://www.justicaeleitoral.jus.br/fato-ou-boato/checagens/tentativa-de-ataque-hacker-ao-sistema-do-tse-nao-viola-seguranca-das-urnas/# >. Acessado em: 16.6.2023.

 2 Disponível em:  https://www.justicaeleitoral.jus.br/fato-ou-boato/checagens/tse-reune-conteudos-que-explicam-alegacoes-do-presidente-jair-bolsonaro/# >. Acessado em 16.6.2023.

 

VOTO

 

O SENHOR MINISTRO ANDRÉ RAMOS TAVARES: Senhor Presidente, trata-se de ação de investigação judicial eleitoral (AIJE) ajuizada pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) em face de Jair Messias Bolsonaro e Walter Souza Braga Netto, à época candidatos aos cargos de Presidente da República e de Vice-Presidente da República, respectivamente.

 

Delimitação do objeto e da causa de pedir

 

O substrato fático principal apontado na inicial diz respeito à reunião ocorrida em 18.7.2022, na qual o primeiro investigado, na condição de Presidente da República, realizou encontro oficial com embaixadores de países estrangeiros residentes no país, com suposto desvio de finalidade e em alinhamento à própria estratégia de campanha eleitoral. Assim, a demanda foi proposta para “apurar e reprimir abusos consubstanciados na difusão deliberada de desordens desinformacionais que atentam contra a integridade do processo eleitoral, inclusive os processos de votação, apuração e totalização de votos” (ID nº 157940943).

Aponto que a fundamentação legal diz respeito à suposta prática de abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação. Na peça inaugural, são também tecidas considerações acerca dos fatos pela ótica da ocorrência da conduta vedada disposta no art. 73, I, da Lei 9.504/97, contudo, a anotação, tal como circunscrita pelo autor, deve ser vista de “forma sistêmica, incluída na miscelânea dos atos narrados nesta petição inicial” (ID nº 157940943).

Por essa razão, em decisão saneadora, o Relator bem expôs que a questão de direito deduzida pelo autor encontrava-se bem delimitada, uma vez que se imputa aos investigados a “prática de abuso de poder político, ante o alegado desvio de finalidade no exercício de suas funções de Presidente da República e no uso de bens públicos, e de uso indevido de meios de comunicação, que teria sido perpetrado pela utilização de redes sociais, inclusive de empresa pública, para difundir conteúdo sabidamente falso acerca do sistema eletrônico de votação” (158487960).

Nesse sentido, as alegadas violações ao art. 73, I, da Lei 9.504/97, bem como aos arts. 37, § 1º, da Constituição do Brasil, e 9º-A da Res.-TSE 23.610/2019, descrevem condutas que devem ser entendidas como passíveis de se amoldarem às práticas abusivas dispostas no art. 22 da LC 64/90.

Bem delimitados o objeto e a causa de pedir, verifico que foram suscitadas algumas questões preliminares ao longo da demanda, em especial em contestação e no âmbito das alegações finais acostadas pelos investigados.

 

Considerações acerca das preliminares

 

Após detida leitura do caderno processual, também noto que diversos dos tópicos prévios ao julgamento do mérito já foram enfrentados e afastados pelo Relator, inclusive com referendo dos pronunciamentos monocráticos pelo Plenário desta Corte.

É certo que o art. 48 da Res.-TSE nº 23.608/2019, que dispõe sobre representações, reclamações e pedidos de direito de resposta previstos na Lei 9.504/1997, estabelece que as decisões interlocutórias proferidas no curso das representações não são recorríveis de imediato, não precluem e deverão ser novamente analisadas por ocasião do julgamento final, caso assim o requeiram as partes ou o Ministério Público Eleitoral em suas alegações finais.

Para além da especialidade da referida previsão, encartada em Resolução própria, entendo que a preclusão operada internamente no processo e – especificamente – nesta instância não conflita com a regra atinente à irrecorribilidade imediata dos pronunciamentos interlocutórios ou sem caráter definitivo proferidos em ações eleitorais.

É que a sistemática de estabelecimento de recurso único a partir do pronunciamento final possibilita, a um só tempo, o exercício da ampla defesa, uma vez que é passível de ser abarcado na insurgência todo o cunho decisório da instância na qual tramitou o feito, bem como o exercício da celeridade processual, pois o trâmite da demanda não fica sujeita a diversos recursos intercorrentes ao seu curso.

Com efeito, entende este Tribunal que a “irrecorribilidade das decisões interlocutórias não implica prejuízo aos princípios do contraditório e da ampla defesa, porquanto, em caso de inconformismo, podem ser impugnadas mediante o recurso respectivo da decisão definitiva de mérito” (AgR-REspe nº 0600608-57/RN, Rel. Min. Edson Fachin, DJe de 3.2.2022).

Em igual sentido, menciono o art. 19 da Res.-TSE nº 23.478/2016, que diz respeito sobre a aplicabilidade do Código de Processo Civil no âmbito da Justiça Eleitoral, o qual estabelece que as “decisões interlocutórias ou sem caráter definitivo proferidas nos feitos eleitorais são irrecorríveis de imediato por não estarem sujeitas à preclusão, ficando os eventuais inconformismos para posterior manifestação em recurso contra a decisão definitiva de mérito”.

Como se depreende desse contexto jurídico, o afastamento da preclusão em relação a determinado questionamento resolvido de forma intercorrente no processo e já referendada pelo Plenário teria como único objetivo permitir a inclusão do referido conteúdo em eventual recurso dirigido contra a decisão final, uma vez que a sistemática eleitoral é ditada pela irrecorribilidade imediata das decisões interlocutórias.

Não obstante isso, uma vez franqueada, na interposição recursal final, a inclusão de tópicos decididos incidentalmente no processo, respeitadas estarão as regras afetas ao contraditório e à ampla defesa. Isso não significa que o julgador precise revisitar toda a argumentação lançada pelas partes e já decidida anteriormente no processo quando do pronunciamento final, sobretudo nas hipóteses em que a decisão vem a ser referendada pelo Plenário da Corte, situação na qual o pronunciamento monocrático obtém elevada carga de estabilidade e segurança jurídica.

É que o processo é compreendido como uma marcha para frente, é dizer, uma sucessão de atos jurídicos encadeados e destinados a alcançar uma finalidade, que é a conclusão da prestação jurisdicional e, nesse sentido, mostra-se contraproducente e, de certa forma, conflitante com os ideários de celeridade e de racionalidade processuais efetuar novos julgamentos de questões já debatidas e referendadas pela composição plenária da Corte, sem que haja alteração do quadro jurídico já enfrentado, seja com a presença de elementos probatórios novos ou mesmo com um novo contexto processual.

Nessa linha de raciocínio, verifico que o Relator – ao enfrentar petição dos investigados em que, além de solicitar a produção de provas, insurgiram-se em relação à admissão da juntada de documento novo colacionado pelo autor – assentou que aquele pedido “abarca, em parte, pontos já fulminados pela preclusão temporal, lógica e consumativa”, uma vez que a irresignação se voltou a “pontos decididos anteriormente e referendados em Plenário” (ID nº 158811502).

Ainda assim, considerada “a metodologia de máximo prestígio ao contraditório e ao dever de fundamentação” (ID nº 158811502) empregada pelo Relator na condução do presente feito, bem como em homenagem aos argumentos bem lançados pela defesa, analisei as questões processuais suscitadas e reafirmadas em alegações finais e, de pronto, anoto que não as acolho.

 

Preliminar de incompetência da Justiça Eleitoral

 

A preliminar de incompetência da Justiça Eleitoral foi suscitada tanto em contestação quanto em alegações finais. A respeito do tema, entendem os investigados que não é da alçada da Justiça Especializada a análise de atos praticados pelo Chefe do Executivo nessa condição.

Com isso, advogam que, em nenhum momento do evento com os embaixadores, houve tratativas acerca das eleições em sentido estrito, uma vez inexistente pedido de voto, ataque a oponentes ou apresentação de candidatura.

Ocorre, contudo, que a tese autoral é justamente no sentido de “que o Senhor Jair Messias Bolsonaro aproveitou-se do evento para difundir a gravação do discurso com finalidade eleitoral, indissociável ao pleito de 2022. Isso porque o ataque à Justiça Eleitoral e ao sistema eletrônico de votação faz parte da sua estratégia de campanha eleitoral, de modo que há nítida veiculação de atos abusivos em desfavor da integridade do sistema eleitoral, através de fake news, o que se consubstancia em um fato de extrema gravidade, apto a ser apurado na ambiência desta Ação de Investigação Judicial Eleitoral” (ID nº 157940943).

Nesse sentido, em que pese a alegação defensiva construída na linha de que o evento não deteve conotação eleitoral, a fundamentação exposta na petição inicial é em via contrária, ou seja, pela existência de um desvio no exercício do poder consistente em ato que, a partir da abordagem de pautas ligadas à campanha eleitoral, acabou por promover e “densificar as forças de suas candidaturas” (ID nº 157940943).

Dessa forma, a solução para o presente impasse é tema ligado ao mérito e deve, portanto, ser tratado no momento adequado. No que diz respeito à análise da preliminar em si, importante observar apenas que o abuso de poder descrito no art. 22 da LC 64/90 pode ser referente à autoridade ou à ordem econômica.

Este Tribunal construiu o entendimento de que o abuso de poder pelo viés econômico se caracteriza “pelo uso desmedido de aporte patrimonial que, por sua vultosidade e gravidade, é capaz de viciar a vontade do eleitor, desequilibrando a lisura do pleito” (AIJE nº 0601771-28/DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe de 18.8.2022), ao passo que o abuso do poder político se revela quando “o agente público, valendo-se de condição funcional e em manifesto desvio de finalidade, desequilibra disputa em benefício de sua candidatura ou de terceiros" (AgR-REspe nº 238-54/BA, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe de 4.6.2021).

Verifica-se, portanto, que a condição funcional alegada na defesa como elemento que, em sua ótica, seria suficiente para afastar a competência da Justiça Eleitoral para a análise do caso é justamente o pressuposto para que se apure a ocorrência, em sede de AIJE, do abuso de poder de autoridade, na dicção legal, ou abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta, para se empregar o vocábulo constitucional.

Uma vez, portanto, constatada a presença de agente público, passa-se à verificação acerca do seu abuso ou desvio que, por sua vez, deve possuir liame com a finalidade eleitoral.

É essa a estrutura da modalidade de abuso em referência, sendo, também, essas as observações levadas a efeito quando o Plenário do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) se debruçou sobre o referendo da decisão saneadora do presente feito.

Naquela oportunidade, o Relator assentou que “é premissa primeira do abuso de poder político, apto a atrair a competência da Justiça Eleitoral, o ato praticado na condição de agente público. A este requisito se acresce a necessidade de que a petição inicial descreva o elemento desviante, ou seja, o fator que denota que a conduta se afastou do regular exercício das atribuições do cargo. E, por fim, esse elemento desviante deve possuir contornos eleitorais, uma vez que o objeto da AIJE não se confunde com o da ação de improbidade ou de outros procedimentos que possam ser ajuizados para punir irregularidades administrativas desprovidas de conotação eleitoral” (ID nº 1585506540).

Com efeito, uma vez estabelecido que a tese autoral é a de ocorrência de desvio no exercício das atribuições do cargo com o intuito de angariar capital político voltado à candidatura, entendo ser da competência desta Justiça Eleitoral a análise do caso e, por isso, rejeito a presente preliminar.

 

Preliminar de indevida ampliação da causa de pedir

 

Como brevemente relatado, a fundamentação jurídica da presente demanda tem como elemento fático o possível desvio de finalidade levado a efeito na reunião ocorrida em 18.7.2022.

Em que pese ser esse o mote principal da demanda, uma leitura atenta da petição inicial denota a existência de um quadro mais amplo a ser analisado por esta Corte, como se pode depreender da própria delimitação efetuada pelo autor, ao pontuar que “esta Ação de Investigação Judicial Eleitoral tem por escopo a apurar e reprimir abusos consubstanciados na difusão deliberada de desordens desinformacionais que atentam contra a integridade do processo eleitoral, inclusive os processos de votação, apuração e totalização de votos”, mas que também destacou “que o Senhor Jair Messias Bolsonaro é contumaz em perpetrar condutas desta natureza mesmo antes do início do período eleitoral”, uma vez que, de “acordo com os veículos de comunicação, o Senhor Jair Messias Bolsonaro questionou a integridade do sistema eleitoral brasileiro pelo menos 23 (vinte e três) vezes no ano de 2021” (ID nº 157940943).

Nesse norte, entende o autor que “o ataque à Justiça Eleitoral e ao sistema eletrônico de votação faz parte da sua estratégia de campanha eleitoral” (ID nº 157940943) e, justamente para corroborar sua pretensão, sobreveio, nos autos, pedido de juntada de uma minuta de decreto de Estado de Defesa apreendida no âmbito do Inquérito 4.879/DF, em trâmite no Supremo Tribunal Federal (STF), no intuito de “densificar os argumentos que evidenciam a ocorrência de abuso de poder político tendente a promover descrédito a esta Justiça Eleitoral e ao processo eleitoral, com vistas a alterar o resultado do pleito” (ID nº 158553894), como salientado na petição de juntada protocolada pelo autor.

Não obstante tal cenário, os investigados suscitam preliminar atinente à indevida ampliação do objeto da demanda, face à admissão de fato novo estranho à causa de pedir originária, o que, conforme sua interpretação, tem reflexos na segurança jurídica, pois foram expandidos, indevidamente, os fatos trazidos na petição inicial.

É certo que o entendimento jurisprudencial deste Tribunal acerca do tema é o de que a “juntada de novos documentos e o aporte de fatos diversos daqueles que constam da petição inicial após a estabilização da demanda constitui ampliação indevida da causa de pedir” (AgR-AgR-RO nº 5376-10/MG, Rel. Min. Edson Fachin, DJe de 13.3.2020).

Como visto, contudo, o documento acostado guarda absoluta pertinência com a causa em julgamento, pois, como assentado na decisão que permitiu sua juntada, os elementos “ora trazidos a juízo pela parte autora possuem aderência aos pontos controvertidos, em especial no que diz respeito à correlação do discurso com a eleição e ao aspecto quantitativo da gravidade”, uma vez que “a tese da parte autora, desde o início, é a de que o discurso realizado em 18/07/2022 não mirava apenas os embaixadores, pois estaria inserido na estratégia de campanha do primeiro investigado de ‘mobilizar suas bases’ por meio de fatos sabidamente falsos sobre o sistema de votação” (ID nº 158554507).

Trata-se, ademais, de documento rigorosamente “novo”, na acepção processual civil, pois o parágrafo único do art. 435 do CPC permite a juntada de documentos após a petição inicial que se tornaram acessíveis ou disponíveis após o protocolo da demanda, justamente o caso dos autos, uma vez que o documento foi apreendido apenas em janeiro de 2023.

Importante sublinhar, ainda, que o Plenário deste Tribunal referendou o pronunciamento do Relator que admitiu a juntada do documento na sessão de 14.2.2023. Naquela oportunidade, foi exposto que “não se pode interpretar a estabilização da demanda como um recorte completo e irreversível na realidade fenomênica. Essa ideia acarreta um descolamento tal dos fatos em relação a seu contexto que chega a impedir o órgão judicante de levar em conta circunstâncias que gradativamente se tornem conhecidas ou potenciais desdobramentos das condutas em investigação” (ID nº 158704139).

Em arremate, apontou-se que, “no caso dos autos, o que a autora pretende discutir são eventos que se conectam a partir do eixo central da narrativa, segundo a qual o discurso na reunião com embaixadores mirava efeitos eleitorais ilícitos. O próprio teor do discurso do Presidente, que livremente escolheu os tópicos que desejava abordar, oferece uma clara visão sobre o fluxo de eventos – passados e futuros – que podem, em tese, corroborar a imputação da petição inicial” (ID nº 158704139).

Não bastasse isso, na própria decisão saneadora houve o destaque no sentido de que “a segurança jurídica propugnada pelo art. 329, II, do CPC não impede a discussão de fatos que tenham relação direta com a causa de pedir já estabilizada. A vedação apenas incide no caso de ser deduzida causa de pedir inteiramente autônoma” (ID nº 158487960).

Verifica-se, desse retrospecto de atos judiciais prolatados nos autos, que houve a admissão da referida documentação sem que isso importasse em ampliação fática dissociada do contexto narrado na inicial. A análise do desencadeamento de atos processuais, ademais, demonstra que houve o respeito à previsibilidade, à boa-fé e ao dever de fundamentação dos atos decisórios, na medida em que o próprio ato saneador expôs que a delimitação fática lá efetuada não era e nem poderia ser imutável, ao passo que, com o requerimento de juntada da documentação nova, foram externalizadas as razões atinentes ao seu deferimento.

Dessa forma, compreendo que não ocorreu, no caso concreto, admissão de fato novo, mas apenas de documento novo, a corroborar a tese suscitada na peça de ingresso, o que não viola a estabilização da demanda nem ofende as regras afetas à ampla defesa e ao contraditório, razão pela qual rejeito a preliminar suscitada.

 

Preliminar de indevida ampliação da instrução probatória

 

Uma vez aportada aos autos a minuta de decreto de Estado de Defesa e após a colheita de prova oral requerida na peça defensiva, o Relator prolatou decisão em que examinou a necessidade de eventuais diligências complementares.

Feita a análise do vídeo do evento ocorrido em 18.7.2022, constatou-se que “as críticas dirigidas contra o sistema eletrônico de votação tiveram como fio condutor a reiterada referência a Inquérito no qual a Polícia Federal teria concluído que hackers tiveram acesso a ‘diversos códigos-fonte’ e teriam sido capazes de ‘alterar nomes de candidatos, tirar voto de um, transferir para outro’” (ID nº 158764809).

Extraiu-se do referido vídeo, portanto, a nitidez da “evocação do episódio como suposta comprovação de que votos teriam sido adulterados nas Eleições 2018, e que poderiam voltar a sê-lo em 2022” (ID nº 158764809).

Com os holofotes sobre o Inquérito da Polícia Federal no qual supostamente se basearia a alegação de fraude nas Eleições 2018 (IP 1361/2018-4/DF), o Relator determinou a adoção de algumas diligências probatórias para melhor instrução do feito.

Como esses fatos foram objeto de lives ocorridas em 29.7.2021 e em 12.8.2021, na qual participaram Anderson Gustavo Torres, então Ministro da Justiça e Segurança Pública, e Eduardo Gomes da Silva, à época assessor da Presidência da República, além de Ivo de Carvalho Peixinho e Mateus de Castro Polastro, peritos da Polícia Federal que foram convocados antes das lives para tratar com o Presidente da República sobre o teor do Inquérito em curso, o Relator determinou a oitiva de todos, a juntada de documentos extraídos do Inquérito Administrativo nº 0600371-71, que trata do tema e tramita sob a relatoria de Sua Excelência, e a expedição de ofício ao Ministro-Chefe da Casa Civil, Rui Costa, para prestar informações acerca da reunião de 18.7.2022.

Os investigados, por sua vez, sustentam que os poderes atribuídos ao Corregedor Eleitoral afetos à instrução do feito têm natureza complementar, ou seja, não podem suplantar o ônus do autor relativo ao aparelhamento da petição inicial.

Da leitura do art. 22, VI a VIII, da LC 64/90, verifica-se que o Corregedor tem poderes para proceder todas as diligências requeridas pelas partes ou determinadas de ofício. Cuida-se de disposição já de longa data sufragada por esta Corte, que já externou posicionamento na linha de que o “rito preconizado pelo art. 22 da Lei Complementar nº 64, de 1990, autoriza o Corregedor a promover todas as diligências que determinar, inclusive de ofício, podendo ouvir terceiros, referidos pelas partes, com vistas a subsidiar o seu convencimento e a decisão no feito (incisos VI e VII)” (AgR-AIJE nº 1943-58/DF, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJe de 30.9.2015). Trata-se, em suma, de uma faculdade do Corregedor que, “a seu critério, afere a necessidade ou não da produção dessa prova” (REspe nº 25215/RN, Rel. Min. Caputo Bastos, DJ de 4.8.2005).

No caso específico dos autos, é de se notar que a decisão que determinou a adoção de medidas probatórias complementares foi devidamente fundamentada. Destaco novamente que, após análise de trecho do discurso da reunião ocorrida em 18.7.2022, o Relator salientou que “a fala possui marcadores cronológicos, que conectam passado, momento presente, e projeções para o futuro: a) a alegada fraude ocorrida em 2018, passando pela advertência de que não poderia ter havido eleições em 2020 antes da ‘apuração total’ do ocorrido; b) a própria urgência de endereçar a mensagem aos embaixadores de países estrangeiros, na iminência do período eleitoral de 2022; e, por fim, c) a enfática reivindicação, somente compreensível nesse arco narrativo alarmista, de que as Eleições 2022 fossem ‘limpas, transparentes, onde o eleito realmente reflita a vontade da sua população’” (ID nº 158764809).

A meu ver, as diligências determinadas possuem total pertinência com a causa posta em julgamento. O Inquérito da Polícia Federal no qual supostamente se basearia a alegação de fraude nas eleições de 2018 foi mencionado para os embaixadores e consta no conteúdo do vídeo ao qual a petição inicial faz referência, de modo que os fatos elencados pelo Relator guardam, efetivamente, correlação com a demanda.

Além disso, aponto que, após o Relator deferir a juntada da minuta do decreto de Estado de Defesa, a decisão foi a referendo em Plenário. Naquela oportunidade, como medida de racionalidade processual e segurança jurídica, houve a fixação de entendimento a fim de estabelecer se fatos supervenientes poderiam ou não ser considerados para o julgamento, inclusive com a fixação de orientação a ser aplicada em situações semelhantes relativas às AIJES das eleições presidenciais de 2022. Reproduzo, por oportuno, trecho da ementa daquele pronunciamento:

15. Tendo em vista o prestígio à celeridade, à economia processual e à boa-fé objetiva, entendo prudente que, especificamente no que diz respeito às AIJEs relativas às eleições presidenciais de 2022, seja fixado um parâmetro seguro e objetivo que dispense, a cada fato ou documento específico, uma nova decisão interlocutória que revolva todos os fundamentos ora expostos.

16. Orientação a ser aplicada em situações semelhantes, no sentido de que a estabilização da demanda e a consumação da decadência não impedem que sejam admitidos no processo e considerados no julgamento elementos que se destinem a demonstrar desdobramentos dos fatos originariamente narrados, a gravidade (qualitativa e quantitativa) da conduta que compõe a causa de pedir ou a responsabilidade dos investigados e de pessoas do seu entorno, tais como: a) fatos supervenientes à propositura das ações ou à diplomação dos eleitos, ocorrida em 12/12/2022; b) circunstâncias relevantes ao contexto dos fatos, reveladas em outros procedimentos policiais, investigativos ou jurisdicionais ou, ainda, que sejam de conhecimento público e notório; e c) documentos juntados com base no art. 435 do CPC. (ID nº 158704139)

Nesse contexto, além da autorização legal referente aos poderes instrutórios, detinha o Relator chancela do Plenário para determinar as diligências objeto de insurgência dos investigados.

Não verifico, de igual forma, ofensa às balizas fixadas na ADI nº 1.082/DF a respeito da instrução suplementar permitida ao Corregedor, como invocado pela defesa. Naquela oportunidade, o STF debruçou-se sobre a constitucionalidade dos art. 7º, parágrafo único, e 23 da LC nº 64/90, que autorizam o Tribunal a formar sua convicção pela livre apreciação da prova, atendendo aos fatos e às circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes. Transcrevo a ementa daquele julgamento:

PROCESSO – ELEITORAL – ARTIGO 23 DA LEI COMPLEMENTAR Nº 64/90 – JUIZ – ATUAÇÃO. Surgem constitucionais as previsões, contidas nos artigos 7º, parágrafo único, e 23 da Lei Complementar nº 64/90, sobre a atuação do juiz no que é autorizado a formar convicção atendendo a fatos e circunstâncias constantes do processo, ainda que não arguidos pelas partes, e a considerar fatos públicos e notórios, indícios e presunções, mesmo que não indicados ou alegados pelos envolvidos no conflito de interesses. (STF, ADI nº 1.082/DF, Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe de 30.10.2014)

Extrai-se do voto do Relator daquela ação, ademais, que considerada “a existência de relação direta entre o exercício da atividade probatória e a qualidade da tutela jurisdicional, a finalidade de produção de provas de ofício pelo magistrado é possibilitar a elucidação de fatos imprescindíveis para a formação da convicção necessária ao julgamento do mérito”. Foi externado, ainda que a “atenuação do princípio dispositivo no direito processual moderno não serve a tornar o magistrado o protagonista da instrução processual”.

É certo, nesse contexto, que não compete ao magistrado a tarefa de desincumbir-se do ônus probatório, como se parte fosse, tampouco de produzir provas a título de assistente de um litigante em detrimento do outro. Ocorre, contudo, que, no caso em análise, a produção probatória, além de ser concernente aos elementos já juntados com a inicial, foi circunscrita à necessidade de mera complementação dos elementos juntados para melhor conhecimento dos fatos que pudessem influir na decisão do feito, como determina a norma legal.

Ainda a título de preliminar, os investigados abordaram outros desdobramentos atinentes à juntada das provas suplementares, dentre eles a “suavização da exigência efetiva ao contraditório, a partir da abertura de prazo de 3 (três) dias para manifestação” (ID nº 158914533). Entendem, a esse respeito, que seria o caso de estipulação de prazo de 5 (cinco) dias, em harmonização lógica e estratégica ao prazo de contestação e rememoram o prazo processual civil do art. 329.

Acerca do tema, observo que o art. 22, I, “a”, da LC 64/90, prevê o prazo de 5 (cinco) dias para a oferta de “ampla defesa”, com juntada de documentos e rol de testemunhas, se cabível. Trata-se da primeira manifestação dos investigados que, ao lado das alegações finais, compõe as duas peças defensivas mais importantes do feito.

Verifica-se, portanto, que não existe ofensa a ser reconhecida na estipulação de prazo de 3 (três) dias para manifestação acerca de provas meramente complementares juntadas aos autos, sobretudo se considerado o prazo legal inferior de 2 (dois) dias para a oferta das alegações finais, documento com conteúdo substancialmente mais denso.

Além disso, observo que o Relator também anotou em decisão prolatada nos autos que os 3 (três) dias assinalados “são superiores ao prazo de dois dias previsto no art. 44, § 4º da Res.-TSE nº 23.608/2019 para manifestação sobre documentos juntados no curso da instrução nas representações especiais” (ID nº 158811502).

Em análise das peças defensivas e dos pedidos de diligência formulados nos autos, também constato que, na prática, houve impugnação de forma detalhada do conteúdo dos documentos, tecendo-se as considerações jurídicas e de fato que se entenderam cabíveis, a denotar ausência de prejuízo, nos termos do entendimento deste Tribunal a respeito do tema (AIJE nº 0601968-80/DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe de 22.8.2022).

Dentre as diligências complementares determinadas, houve, como exposto, expedição de ofício ao Ministro-Chefe da Casa Civil, Rui Costa, requisitando-se informações consolidadas sobre a participação de órgãos do Governo Federal na preparação, realização e difusão do encontro realizado no Palácio do Planalto, em 18.7.2022, solicitando-lhe, para tanto, que, além da consulta a seus registros, estendesse a comunicação ao Ministério das Relações Exteriores, à Assessoria Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência, à Assessoria de Cerimonial e demais órgãos acaso envolvidos na organização do evento.

Os investigados, no tópico, entendem ter ocorrido uma indevida e imprópria delegação de poder instrutório. Apontam que a medida transferiria poderes investigativos a fundador e filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT), permitindo toda sorte de subjetivismos e a natural tendência de contribuir para uma narrativa que prestasse à condenação de adversários políticos.

Ocorre, contudo, que os próprios investigados aduziram, em alegações finais, que os documentos acostados aos autos a partir do cumprimento do ofício encaminhado à Casa Civil consistiram em meros convites, respostas e confirmações de presença e ofícios e circulares internas direcionadas à preparação do evento, de modo a contrastar com o teor da preliminar suscitada. Não houve, como se vê, adoção de medidas investigativas ou construção de narrativas políticas no caso.

A decisão que determinou a produção da referida prova, ademais, destacou que, ao final do discurso levado a efeito em 18.7.2022, Jair Messias Bolsonaro expressamente afirmou que Carlos Alberto França, então Ministro das Relações Exteriores, encaminharia um “extrato” da reunião às Embaixadas, com a disponibilização, para quem se interessasse, da íntegra do Inquérito da Polícia Federal. Ocorre, contudo, que Carlos Alberto França, ouvido em juízo, afirmou desconhecer a remessa de qualquer documento a respeito do tema.

Com isso, o Relator concluiu que “documentos acaso existentes nos órgãos acima referidos [Casa Civil, Ministério das Relações Exteriores e Assessoria Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência] podem vir a elucidar se contribuíram, ou não, para preparar ou repercutir evento, e, em caso positivo, de que forma atuaram” (ID nº 158764809), sendo essa a motivação afeta à determinação da referida prova suplementar.

Ressalto também que o Relator, em decisão proferida nos autos, enfrentou a presente insurgência quanto ao tema ao apontar que “descabe interpretar uma ordem judicial corriqueira, de compilação documental, como aval para o cometimento de ilegalidades com a gravidade descrita”. Com isso, esclareceu que, em “momento adequado, os réus terão oportunidade de se manifestar a respeito do resultado da diligência e, se assim entenderem, a vista do que concretamente for remetido a este juízo, e não a partir de ilações, poderão apontar deficiência, incompletude ou mesmo irregularidades graves no cumprimento da medida” (ID nº 158811502).

Nesse sentido, tendo em vista a existência de decisão fundamentada em que se apontou a necessidade da complementação da prova, que, uma vez aportada aos autos, não denota qualquer contexto de subjetivismos ou disputas político-partidárias, como receado pelos investigados, não verifico irregularidade na determinação da expedição do referido ofício à Casa Civil.

Em suma, por compreender que as diligências determinadas possuem pertinência com  a causa posta em julgamento, tendo sido determinadas com suporte em autorização legal referente aos poderes instrutórios do Corregedor, bem como com a chancela do Plenário no sentido da possibilidade de determinação de tais medidas, sem que se possa atestar, no caso, ofensa às balizas fixadas na ADI nº 1.082/DF ou mesmo à ampla defesa em relação ao prazo para manifestações complementares, rejeito a presente preliminar.

 

Preliminar de cerceamento probatório

 

Após o Relator observar que um dos trechos do discurso levado a efeito em 18.7.2022 foi a crítica ao sistema eletrônico de votação em razão de a Polícia Federal ter alegadamente concluído, via Inquérito Policial (IP 1361/2018-4/DF), que hackers tiveram acesso aos sistemas da Justiça Eleitoral, com adulteração de resultados nas eleições de 2018, constatou-se que o referido documento policial foi tema de uma live feita pelo primeiro investigado em 29.7.2021 e, na ocasião, estavam presentes, e participaram com falas, Anderson Gustavo Torres, então Ministro da Justiça e Segurança Pública, e Eduardo Gomes da Silva, à época assessor da Presidência da República.

Constatou-se também que Ivo de Carvalho Peixinho e Mateus de Castro Polastro, peritos da Polícia Federal, foram convocados antes da live para tratar com o Presidente da República sobre o teor do inquérito em curso e, com base nesses elementos, o Relator determinou a oitiva dos envolvidos, todas colhidas nos autos, exceto a referente a Eduardo Gomes da Silva, que não foi localizado e, posteriormente, foi dispensado como testemunha do juízo, pois a relevância de seu depoimento “ficou prejudicada em razão das declarações de Anderson Gustavo Torres, Ivo Peixinho e Mateus Polastro, suficientes ao esclarecimento da reunião prévia à live de 29/07/2021” (ID nº 158886314).

Os investigados, contudo, insistem na oitiva dispensada ao argumento de que os depoimentos de Anderson Gustavo Torres, Ivo Peixinho e Mateus Polastro corroboram essa necessidade.

Nesse contexto, verifico que a oitiva determinada pelo Corregedor tinha como objetivo esclarecer as circunstâncias atinentes à live de 29.7.2021, desiderato atingido a partir dos depoimentos dos demais envolvidos no ato. Como restou exposto, os investigados também desistiram de algumas testemunhas arroladas, sem maiores percalços processuais quanto ao tema.

Observo também que houve insurgência, a título de preliminar, quanto aos poderes instrutórios exercidos pelo juízo e, agora, a irresignação volta-se ao não exercício dos poderes instrutórios, em aparente contradição argumentativa.

De toda forma, por também compreender que a produção da referida prova seria meramente redundante, entendo por sua desnecessidade.

Ainda no campo do cerceamento probatório, verifico que, por intermédio da petição de ID nº 158881918, os investigados afirmaram, na oitiva do Deputado Filipe Barros, que houve indagações a respeito de fato amplamente noticiado às vésperas da audiência, veiculado pelo portal de notícias CNN, consistente em matéria cujo título é: “Ministério Público eleitoral denuncia quatro pessoas por hackear sistema do TSE: Ataques ao sistema foram no dia das eleições municipais de 15 de novembro de 2020 e prejudicaram acesso ao E-Título” (ID nº 158881919).

Com isso, os investigados entendem que seria necessário aportar aos autos a íntegra do inquérito por intermédio do qual o caso é investigado, pois os documentos “podem efetivamente auxiliar na avaliação quanto à legitimidade da discussão do tema no encontro dos embaixadores” (ID nº 158881918).

Ocorre que, a meu ver e no mesmo sentido da decisão que indeferiu a produção da referida prova, o teor da notícia não foi contraditado e houve sua juntada nos autos, de modo que “o pretendido acesso a autos da referida investigação é manifestamente desproporcional ao contexto em que a notícia da CNN foi mencionada, como simples elemento ilustrativo da pergunta formulada em audiência” (ID nº 158886314).

Nesse sentido, por não verificar qualquer ofensa na não produção de ambas as provas, rejeito a preliminar suscitada.

 

Preliminar de ilegitimidade passiva ad causam

 

Por fim, os investigados entendem que não houve a atribuição da prática de ato abusivo ao segundo investigado, Walter Souza Braga Netto, candidato a Vice-Presidente da República, razão pela qual seria forçoso o reconhecimento de sua ilegitimidade passiva ad causam, com a consequente extinção parcial do feito.

Acerca do tema, aponto que o entendimento deste Tribunal é no sentido de que, havendo “vínculo mínimo de pertinência subjetiva entre todos os demandados e os supostos ilícitos, não há falar em ilegitimidade passiva, tampouco em exigência de prova robusta, senão para formar juízo de condenação, após cognição exauriente mediada pelo contraditório” (AIJE nº 0601862-21/DF, Rel. Min. Og Fernandes, Rel. designado Min. Jorge Mussi, DJe de 26.11.2019).

Com efeito, em que pese a perda de objeto no que diz respeito à eventual cassação de diploma na espécie, remanesce a possibilidade de aplicação da pena de inelegibilidade, que, para sua incidência, demanda averiguar, em sede de mérito, a participação efetiva daqueles apontados como envolvidos no caso.

Diante das afirmações feitas pelo autor na peça de ingresso, em juízo abstrato inferido dos argumentos lá deduzidos, entendeu-se pela manutenção do candidato a Vice-Presidente da República na instrução do feito, agora já levada a efeito, o que permite o ingresso no mérito para o exercício da exauriente cognição, a possibilitar, caso ausente elementos robustos que indiquem sua participação, direta ou indireta, nos fatos alegadamente ilícitos, eventual juízo de improcedência, mas não o de extinção parcial sem resolução do mérito.

É essa, ademais, a compreensão acerca do tema no âmbito do Superior Tribunal de Justiça (STJ), segundo o qual “as condições da ação, aí incluída a legitimidade para a causa, devem ser aferidas com base na teoria da asserção, isto é, à luz das afirmações deduzidas na petição inicial” (AgR-AREsp nº 452737/RJ, Rel. Min. Raul Araújo, Quarta Turma, DJe de 16.9.2015), de modo que “o exame aprofundado das circunstâncias da causa, a fim de verificar a ilegitimidade da parte, constitui julgamento de mérito" (AgInt-AREsp nº 2094650PR, Rel. Min. Raul Araújo, Quarta Turma, DJe de 24.2.2023).

Com essas considerações, rejeito a preliminar suscitada.

 

Mérito

 

Superadas todas as questões preliminares ventiladas na presente demanda, incursiono em seu mérito e, ao fazê-lo, aponto, conforme foi relatado, que se trata de AIJE proposta com base na alegada prática de abuso de poder político, ante o desvio de finalidade, quanto ao exercício das funções de Presidente da República, na condução da reunião ocorrida em 18.7.2022 com embaixadores estrangeiros, e de uso indevido de meios de comunicação, que teria sido perpetrado pela utilização de redes sociais, inclusive de empresa pública federal, para difundir conteúdo sabidamente falso acerca do sistema eletrônico de votação e efetuar ataques ao sistema eleitoral.

Como se verifica, a base legal da demanda repousa no art. 22 da LC 64/90, o qual prevê a via da investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político. A norma, de composição normativa superlativa, encontra assento no art. 14, § 9º da Constituição Brasileira.

Acerca do tema, é consolidado o entendimento deste Tribunal no sentido de que o "abuso de poder político configura-se quando a normalidade e a legitimidade do pleito são comprometidas por atos de agentes públicos que, valendo-se de sua condição funcional, beneficiam candidaturas em manifesto desvio de finalidade" (RO nº 0603975-98/PR, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 10/12/2021).

Importante repisar, conforme exposto, que para a incidência da inelegibilidade especificamente por abuso de poder político faz-se necessário que o candidato tenha praticado o ato imputado na condição de detentor de cargo na Administração Pública, sendo tal constatação, portanto, premissa para a configuração dessa categoria de abuso.

Apurada, dessa forma, a ocorrência do desvio quanto ao uso do poder político, seu enquadramento como ato abusivo apto a ensejar a aplicação das penalidades dispostas na legislação eleitoral demandam “a comprovação, de forma segura, da gravidade dos fatos imputados, demonstrada a partir da verificação do alto grau de reprovabilidade da conduta (aspecto qualitativo) e de sua significativa repercussão a fim de influenciar o equilíbrio da disputa eleitoral (aspecto quantitativo)" (AIJE nº 0601779-05/DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe de 11.3.2021).

Quanto à repercussão de discursos desinformativos (dimensão quantitativa da gravidade do possível abuso), a partir dos estudos de Niall Ferguson, em sua obra The Square and the Tower (A Praça e a Torre), colhe-se a seguinte advertência de que muitos ainda partem “do princípio de que a difusão de uma ideia ou ideologia é uma função de seu conteúdo inerente, em relação a algum contexto especificado de maneira vaga. Nós precisamos agora reconhecer, porém, que algumas ideias se tornam virais devido a aspectos estruturais da rede por que se espalham” (A Praça e a Torre: redes, hierarquias e a luta pelo poder global. p. 69, original não grifado).

Essa possibilidade pode ser constatada a partir da chamada “mente da colmeia” (cf. Kevin Kelly, apud Franklin Foer, O Mundo que não pensa. Trad. Por Debora Fleck. Rio de Janeiro: LeYa, 2018, p. 34).

A respeito do tema, realço que, na avaliação da gravidade, não se considera a potencialidade de o ato efetivamente alterar o resultado do pleito, mas tão somente sua influência no equilíbrio da disputa. Nesse sentido, este TSE tem o entendimento de que, nos termos do art. 22, XVI, da LC 64/90, "para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam" (AgR-REspe nº 0601530-53/MG, Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJe de 14.12.2022).

Traçado esse breve panorama jurisprudencial concernente aos elementos envoltos na AIJE, mostra-se necessário abordar, como pressuposto para a análise do cerne da demanda, a previsibilidade normativa segura de configuração do ato abusivo a partir de conteúdos que se revelem como ataques ao sistema eletrônico de votação e às instituições eleitorais, com disseminação de fatos inverídicos e geração de incertezas acerca da lisura do pleito.

 

Possibilidade de enquadramento da conduta no art. 22 da LC 64/90 e a desinformação eleitoral

 

Ao longo dos anos, os casos envolvendo abuso de poder político apurados via AIJE que aportaram a este Tribunal efetivamente consideraram como sendo configuradores de abuso atos desviantes das atribuições inerentes ao cargo em proveito de determinada candidatura, sendo esse, pois, o núcleo de necessária aferição para o deslinde de demandas deste jaez.

O banco de precedentes é farto em exemplos de condutas que se amoldam a essa categorização, valendo mencionar, a título exemplificativo, as situações de criação de programa assistencial sem a observância legal (AREspe nº 0601065-60/MG, Rel. Min. Raul Araújo Filho, DJe de 5.6.2023), de desvirtuamento de inaugurações de obras públicas para angariar favor a determinada candidatura (REspe nº 373-54RJ, Rel. Min. Sergio Silveira Banhos, DJe de 30.5.2023), de instrumentalização da Administração Pública em benefício exclusivo do gestor a partir da sistemática veiculação de publicidades institucionais (AREspe nº 0600362-93/CE, Rel. Min. Sergio Silveira Banhos, DJe de 24.3.2023), do emprego desproporcional de recursos públicos, oriundos de contrato firmado pela prefeitura com farmácia local, para conceder cotas para a aquisição de medicamentos a parlamentares da base aliada visando à cooptação de apoio político-eleitoral (AgR-REspe nº 220-27/RN, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJe de 14.10.2021), dentre tantos outros.

Justamente em razão da miríade de hipóteses passíveis de serem amoldadas à conduta abusiva contemplada normativamente, revela-se impossível e juridicamente inaceitável estancar o conteúdo dessa hipótese normativa de forma hermética. A criatividade humana demanda, nesse sentido, a sempre prudente análise do órgão julgador a respeito dos contornos fáticos da conduta investigada em concreto, para fins de aplicação da normatividade vigente, sem que se possa, desse exercício, imputar qualquer tom de insegurança jurídica à atividade jurisdicional.

Foi assim que, seguindo nessa linha intelectiva, esta Corte considerou estar configurado o abuso do poder político no denominado “Caso Francischini“, com condutas da autoridade que atacavam o sistema eletrônico de votação e a Democracia, em contexto no qual o candidato sobrevém como beneficiário dos ataques infundados. Pela importância do precedente, transcrevo sua ementa:

RECURSO ORDINÁRIO. ELEIÇÕES 2018. DEPUTADO ESTADUAL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL (AIJE). USO INDEVIDO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO SOCIAL. ABUSO DE PODER POLÍTICO E DE AUTORIDADE. ART. 22 DA LC 64/90. TRANSMISSÃO AO VIVO. REDE SOCIAL. DIA DO PLEITO. HORÁRIO DE VOTAÇÃO. FATOS NOTORIAMENTE INVERÍDICOS. SISTEMA ELETRÔNICO DE VOTAÇÃO. FRAUDES INEXISTENTES EM URNAS ELETRÔNICAS. AUDIÊNCIA DE MILHARES DE PESSOAS. MILHÕES DE COMPARTILHAMENTOS. PROMOÇÃO PESSOAL. IMUNIDADE PARLAMENTAR COMO ESCUDO PARA ATAQUES À DEMOCRACIA. IMPOSSIBILIDADE. GRAVIDADE. CASSAÇÃO DO DIPLOMA. INELEGIBILIDADE. PROVIMENTO.

1. Recurso ordinário interposto pelo Ministério Público contra acórdão prolatado pelo TRE/PR, que, por maioria de votos, julgou improcedente os pedidos em Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) proposta em desfavor de Deputado Estadual eleito pelo Paraná em 2018, afastando o abuso de poder político e o uso indevido dos meios de comunicação social (art. 22 da LC 64/90).

2. Rejeitada a preliminar de inovação recursal aduzida em contrarrazões. Os argumentos contidos no apelo apenas contrapõem a tese da Corte de origem de que a internet e as redes sociais não se enquadram como meios de comunicação.

3. A hipótese cuida de live transmitida ao vivo em rede social, quando em curso a votação no primeiro turno, para mais de 70 mil internautas, e que até 12/11/2018 teve mais de 105 mil comentários, 400 mil compartilhamentos e seis milhões de visualizações. O recorrido – que exercia o cargo de Deputado Federal – noticiou a existência de fraudes em urnas eletrônicas e outros supostos fatos acerca do sistema eletrônico de votação.

4. Sintetizam–se as principais declarações na transmissão: (a) "já identificamos duas urnas que eu digo ou são fraudadas ou adulteradas. [...], eu tô com toda a documentação aqui da própria Justiça Eleitoral"; (b) "nós estamos estourando isso aqui em primeira mão pro Brasil inteiro [...], urnas ou são adulteradas ou fraudadas"; (c) "nosso advogado acabou de confirmar [...], identificou duas urnas que eu digo adulteradas"; (d) "apreensão feita, duas urnas eletrônicas"; (e) "não vamos aceitar que uma empresa da Venezuela, que a tecnologia que a gente não tem acesso, defina a democracia no Brasil"; (f) "só aqui e na Venezuela tem a porcaria da urna eletrônica"; (g) "daqui a pouco nós vamos acompanhar [a apuração dos resultados], sem paradinha técnica, como aconteceu com a Dilma"; (h) "eu uso aqui a minha imunidade parlamentar, que ainda vai até janeiro, independente dessa eleição, pra trazer essa denúncia".

5. O teor do vídeo é inequívoco, residindo a controvérsia em questões de direito: legitimidade do pleito, possibilidade de enquadrar a conduta no art. 22 da LC 64/90 e gravidade dos fatos.

6. O sistema eletrônico de votação representa modelo de inegável sucesso implementado nas Eleições 1996 e internacionalmente reconhecido. O propósito dessa verdadeira revolução residiu na segurança e no sigilo do voto, sendo inúmeros os fatores que poderiam comprometer os pleitos realizados com urnas de lona, desde simples erros humanos na etapa de contagem, manipulações em benefício de candidatos e a execrável mercancia do sufrágio. Visou–se, ainda, conferir maior rapidez na apuração, o que possui especial relevância em país de dimensões continentais.

7. Esta Justiça Especializada não atua de forma sigilosa ou numa espécie de redoma na organização do pleito. Ao contrário, busca sempre soluções construtivas com os atores do processo eleitoral tendo como fim maior aperfeiçoar continuamente as eleições e consolidar o regime democrático.

8. A parceria entre órgãos institucionais de ponta na área de tecnologia, a constante busca por inovação e o contínuo diálogo com a sociedade propiciaram a plena segurança do sistema eletrônico de votação no decorrer dos últimos 25 anos, sem nenhuma prova de fraude de qualquer espécie, conforme inúmeras auditorias internas e externas e testes públicos de segurança diuturnamente noticiados pela Justiça Eleitoral.

9. Hipótese inédita submetida a esta Corte Superior é se ataques ao sistema eletrônico de votação e à democracia, disseminando fatos inverídicos e gerando incertezas acerca da lisura do pleito, em benefício de candidato, podem configurar abuso de poder político ou de autoridade – quando utilizada essa prerrogativa para tal propósito – e/ou uso indevido dos meios de comunicação quando redes sociais são usadas para esse fim.

10. Os arts. 1º, II e parágrafo único, e 14, § 9º, da CF/88, além dos arts. 19 e 22 da LC 64/90 revelam como bens jurídicos tutelados a paridade de armas e a lisura, a normalidade e a legitimidade das eleições. Não há margem para dúvida de que constitui ato abusivo, a atrair as sanções cabíveis, a promoção de ataques infundados ao sistema eletrônico de votação e à própria democracia, incutindo–se nos eleitores a falsa ideia de fraude em contexto no qual candidato sobrevenha como beneficiário dessa prática.

11. O abuso de poder político configura–se quando a normalidade e a legitimidade do pleito são comprometidas por atos de agentes públicos que, valendo–se de sua condição funcional, beneficiam candidaturas em manifesto desvio de finalidade. Precedentes.

12. Inviável afastar o abuso invocando–se a imunidade parlamentar como escudo. No caso de manifestações exteriores à Casa Legislativa a que pertence o parlamentar, "há necessidade de verificar se as declarações foram dadas no exercício, ou em razão do exercício, do mandato parlamentar; ou seja, se o denunciado expressou suas opiniões, sobre questões relacionadas a políticas governamentais; e se essas opiniões se ativeram aos parâmetros constitucionalmente aceitos, ou se teriam extrapolado eventuais parâmetros das imunidades materiais" (voto do Min. Alexandre de Moraes no Inquérito 4.694/DF, DJE de 1º/8/2019).

13. A internet e as redes sociais enquadram–se no conceito de "veículos ou meios de comunicação social" a que alude o art. 22 da LC 64/90. Além de o dispositivo conter tipo aberto, a Justiça Eleitoral não pode ignorar a realidade: é notório que as Eleições 2018 representaram novo marco na forma de realizar campanhas, com claras vantagens no uso da internet pelos atores do processo eleitoral, que podem se comunicar e angariar votos de forma mais econômica, com amplo alcance e de modo personalizado mediante interação direta com os eleitores.

14. No caso, constata–se sem nenhuma dificuldade que todas as declarações do recorrido durante sua live, envolvendo o sistema eletrônico de votação, são absolutamente inverídicas.

15. Quanto às urnas eletrônicas de seções eleitorais do Paraná, o recorrido atribuiu–lhes a pecha de "fraudadas", "adulteradas" e "apreendidas" e apontou que "eu tô com toda a documentação aqui da própria Justiça Eleitoral". Todavia, (a) inexistiu apreensão, mas mera substituição por problemas pontuais; (b) além da já enfatizada segurança das urnas eletrônicas, a Corte de origem realizou auditoria antes do segundo turno – na presença de técnicos da legenda do candidato – e nada constatou; (c) é falsa a narrativa de que a suposta fraude estaria comprovada na "documentação aqui da própria Justiça Eleitoral", não havendo nenhuma menção a esse respeito nas atas das respectivas seções.

16. No tocante à declaração de que "nós não vamos aceitar que uma empresa da Venezuela, que a tecnologia que a gente não tem acesso, defina a democracia no Brasil", trata–se de inverdades refutadas inúmeras vezes: (a) sendo a Justiça Eleitoral criadora e desenvolvedora da urna eletrônica, seria no mínimo contraditório dizer que não há acesso à tecnologia de sistemas; (b) a empresa que produz as urnas não é venezuelana – o que, aliás, por si só, não representaria qualquer problema se fosse verdade.

17. É falsa a afirmativa de que apenas Brasil e Venezuela empregam urnas eletrônicas. Segundo o Instituto Internacional para a Democracia e a Assistência Social, 23 países as utilizam em eleições gerais e outros 18 em pleitos regionais, incluídos Canadá, França e algumas localidades nos Estados Unidos, o que também já foi esclarecido pela Justiça Eleitoral.

18. Inexistiu fraude nas Eleições 2014. Para além das inúmeras ocasiões em que a Justiça Eleitoral cumpriu com transparência seu dever de informação, houve auditoria externa conduzida pela grei derrotada naquele pleito, nada se identificando como irregular.

19. Os dividendos angariados pelo recorrido são incontroversos. A live ocorreu quando a votação ainda estava aberta no Paraná, ao passo que o acesso à internet ocorre de qualquer lugar por dispositivos móveis, reiterando–se que a transmissão foi assistida por mais de 70 mil pessoas, afora os compartilhamentos do vídeo.

20. O recorrido valeu–se das falsas denúncias para se promover como uma espécie de paladino da justiça, de modo a representar eleitores inadvertidamente ludibriados que nele encontraram uma voz para ecoar incertezas sobre algo que, em verdade, jamais aconteceu. Também houve autopromoção ao mencionar que era Deputado Federal e que a imunidade parlamentar lhe permitiria expor os hipotéticos fatos.

21. Gravidade configurada pela somatória de aspectos qualitativos e quantitativos (art. 22, XVI, da LC 64/90). O ataque ao sistema eletrônico de votação, noticiando–se fraudes que nunca ocorreram, tem repercussão nefasta na legitimidade do pleito, na estabilidade do Estado Democrático de Direito e na confiança dos eleitores nas urnas eletrônicas, utilizadas há 25 anos sem nenhuma prova de adulterações. Além disso, reitere–se a audiência de mais de 70 mil pessoas e, até 12/11/2018, mais de 400 mil compartilhamentos, 105 mil comentários e seis milhões de visualizações.

22. Na linha do parecer ministerial, "a transmissão ao vivo de conteúdo em rede social, no dia da eleição, contendo divulgação de notícia falsa e ofensiva por parlamentar federal, em prol de seu partido e de candidato, configura abuso de poder de autoridade e uso indevido de meio de comunicação", sendo grave a afronta à "legitimidade e normalidade do prélio eleitoral".

23. Recurso ordinário provido para cassar o diploma do recorrido e declará-lo inelegível (art. 22, XIV, da LC 64/90), com imediata execução do aresto, independentemente de publicação, e recálculo dos quocientes eleitoral e partidário. (RO nº 0603975-98/PR, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe de 10.12.2021).

Como se verifica da leitura desse julgamento, este Tribunal entendeu que a transmissão de live ao vivo em rede social, quando em curso o primeiro turno de votação, para mais de 70.000 (setenta mil) internautas, com mais de 105.000 (cento e cinco mil) comentários, 400.000 (quatrocentos mil) compartilhamentos e 6.000.000 (seis milhões) de visualizações, por parte de detentor de cargo de Deputado Federal, veiculando notícias falsas acerca da existência de fraudes em urnas eletrônicas e outros supostos fatos voltados ao sistema eletrônico de votação, consubstanciou ato abusivo.

No contexto, a realização desses ataques infundados ao sistema eletrônico de votação e à Democracia colocaram em xeque a normalidade e a legitimidade do pleito, valendo-se seu autor de condição funcional e com intuito de angariar benefícios voltados à autopromoção e à campanha eleitoral.

A desinformação em âmbito eleitoral é tema de grande impacto na sociedade e, por isso, recebeu redobrada atenção deste Tribunal Superior. Ainda em 14 de Dezembro de 2021, vedou-se, pela Res.-TSE nº 23.671/2021, a divulgação ou compartilhamento de fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que atinjam a integridade do processo eleitoral, inclusive os processos de votação, apuração e totalização de votos. Com essa Resolução reforçou-se a responsabilidade daquele que propaga conteúdo, ao se estipular que a utilização, na propaganda eleitoral, de qualquer modalidade de conteúdo, inclusive veiculado por terceiros, pressupõe que a candidata, o candidato, o partido, a federação ou a coligação tenha verificado a presença de elementos que permitam concluir, com razoável segurança, pela fidedignidade da informação.

O tema foi posteriormente disciplinado de forma ainda mais específica pela Res.-TSE nº 23.714/2022, a qual dispôs sobre o enfrentamento à desinformação que atinja a integridade do processo eleitoral, tudo a demonstrar os esforços desta Justiça Especializada no enfrentamento da matéria.

Nesse sentido, a realização, por agentes públicos, de ataques infundados ao sistema eletrônico de votação, com propagação de informações sabidamente inverídicas, tendo como mote não a promoção de mero diálogo público, não a crítica fundamentada, ainda que intensa e em benefício coletivo, mas sim o esgarçamento do tecido social, em prol de candidaturas, é conduta plenamente passível de se amoldar à hipótese da Lei, já consolidada de longa data acerca da configuração do ato abusivo. Recordo que essa postura também constitui um ato desviante das atribuições inerentes ao cargo público.

Já pela ótica do uso indevido dos meios de comunicação, rememoro o paradigmático precedente cristalizado no julgamento do RO nº 0603975-98/PR (Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe de 10.12.2021), ocasião em que este Tribunal assentou que a “internet e as redes sociais enquadram–se no conceito de ‘veículos ou meios de comunicação social’ a que alude o art. 22 da LC 64/90”, isso porque, além “de o dispositivo conter tipo aberto, a Justiça Eleitoral não pode ignorar a realidade”, sendo notória a utilização da internet pelos atores do processo eleitoral com o intento de angariar votos, ampliando seu alcance perante o eleitorado. Transcrevo a ementa do referido julgamento:

RECURSO ORDINÁRIO. ELEIÇÕES 2018. DEPUTADO ESTADUAL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL (AIJE). USO INDEVIDO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO SOCIAL. ABUSO DE PODER POLÍTICO E DE AUTORIDADE. ART. 22 DA LC 64/90. TRANSMISSÃO AO VIVO. REDE SOCIAL. DIA DO PLEITO. HORÁRIO DE VOTAÇÃO. FATOS NOTORIAMENTE INVERÍDICOS. SISTEMA ELETRÔNICO DE VOTAÇÃO. FRAUDES INEXISTENTES EM URNAS ELETRÔNICAS. AUDIÊNCIA DE MILHARES DE PESSOAS. MILHÕES DE COMPARTILHAMENTOS. PROMOÇÃO PESSOAL. IMUNIDADE PARLAMENTAR COMO ESCUDO PARA ATAQUES À DEMOCRACIA. IMPOSSIBILIDADE. GRAVIDADE. CASSAÇÃO DO DIPLOMA. INELEGIBILIDADE. PROVIMENTO.

1. Recurso ordinário interposto pelo Ministério Público contra acórdão prolatado pelo TRE/PR, que, por maioria de votos, julgou improcedente os pedidos em Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) proposta em desfavor de Deputado Estadual eleito pelo Paraná em 2018, afastando o abuso de poder político e o uso indevido dos meios de comunicação social (art. 22 da LC 64/90).

2. Rejeitada a preliminar de inovação recursal aduzida em contrarrazões. Os argumentos contidos no apelo apenas contrapõem a tese da Corte de origem de que a internet e as redes sociais não se enquadram como meios de comunicação.

3. A hipótese cuida de live transmitida ao vivo em rede social, quando em curso a votação no primeiro turno, para mais de 70 mil internautas, e que até 12/11/2018 teve mais de 105 mil comentários, 400 mil compartilhamentos e seis milhões de visualizações. O recorrido – que exercia o cargo de Deputado Federal – noticiou a existência de fraudes em urnas eletrônicas e outros supostos fatos acerca do sistema eletrônico de votação.

4. Sintetizam–se as principais declarações na transmissão: (a) "já identificamos duas urnas que eu digo ou são fraudadas ou adulteradas. [...], eu tô com toda a documentação aqui da própria Justiça Eleitoral"; (b) "nós estamos estourando isso aqui em primeira mão pro Brasil inteiro [...], urnas ou são adulteradas ou fraudadas"; (c) "nosso advogado acabou de confirmar [...], identificou duas urnas que eu digo adulteradas"; (d) "apreensão feita, duas urnas eletrônicas"; (e) "não vamos aceitar que uma empresa da Venezuela, que a tecnologia que a gente não tem acesso, defina a democracia no Brasil"; (f) "só aqui e na Venezuela tem a porcaria da urna eletrônica"; (g) "daqui a pouco nós vamos acompanhar [a apuração dos resultados], sem paradinha técnica, como aconteceu com a Dilma"; (h) "eu uso aqui a minha imunidade parlamentar, que ainda vai até janeiro, independente dessa eleição, pra trazer essa denúncia".

5. O teor do vídeo é inequívoco, residindo a controvérsia em questões de direito: legitimidade do pleito, possibilidade de enquadrar a conduta no art. 22 da LC 64/90 e gravidade dos fatos.

6. O sistema eletrônico de votação representa modelo de inegável sucesso implementado nas Eleições 1996 e internacionalmente reconhecido. O propósito dessa verdadeira revolução residiu na segurança e no sigilo do voto, sendo inúmeros os fatores que poderiam comprometer os pleitos realizados com urnas de lona, desde simples erros humanos na etapa de contagem, manipulações em benefício de candidatos e a execrável mercancia do sufrágio. Visou–se, ainda, conferir maior rapidez na apuração, o que possui especial relevância em país de dimensões continentais.

7. Esta Justiça Especializada não atua de forma sigilosa ou numa espécie de redoma na organização do pleito. Ao contrário, busca sempre soluções construtivas com os atores do processo eleitoral tendo como fim maior aperfeiçoar continuamente as eleições e consolidar o regime democrático.

8. A parceria entre órgãos institucionais de ponta na área de tecnologia, a constante busca por inovação e o contínuo diálogo com a sociedade propiciaram a plena segurança do sistema eletrônico de votação no decorrer dos últimos 25 anos, sem nenhuma prova de fraude de qualquer espécie, conforme inúmeras auditorias internas e externas e testes públicos de segurança diuturnamente noticiados pela Justiça Eleitoral.

9. Hipótese inédita submetida a esta Corte Superior é se ataques ao sistema eletrônico de votação e à democracia, disseminando fatos inverídicos e gerando incertezas acerca da lisura do pleito, em benefício de candidato, podem configurar abuso de poder político ou de autoridade – quando utilizada essa prerrogativa para tal propósito – e/ou uso indevido dos meios de comunicação quando redes sociais são usadas para esse fim.

10. Os arts. 1º, II e parágrafo único, e 14, § 9º, da CF/88, além dos arts. 19 e 22 da LC 64/90 revelam como bens jurídicos tutelados a paridade de armas e a lisura, a normalidade e a legitimidade das eleições. Não há margem para dúvida de que constitui ato abusivo, a atrair as sanções cabíveis, a promoção de ataques infundados ao sistema eletrônico de votação e à própria democracia, incutindo–se nos eleitores a falsa ideia de fraude em contexto no qual candidato sobrevenha como beneficiário dessa prática.

11. O abuso de poder político configura–se quando a normalidade e a legitimidade do pleito são comprometidas por atos de agentes públicos que, valendo–se de sua condição funcional, beneficiam candidaturas em manifesto desvio de finalidade. Precedentes.

12. Inviável afastar o abuso invocando–se a imunidade parlamentar como escudo. No caso de manifestações exteriores à Casa Legislativa a que pertence o parlamentar, "há necessidade de verificar se as declarações foram dadas no exercício, ou em razão do exercício, do mandato parlamentar; ou seja, se o denunciado expressou suas opiniões, sobre questões relacionadas a políticas governamentais; e se essas opiniões se ativeram aos parâmetros constitucionalmente aceitos, ou se teriam extrapolado eventuais parâmetros das imunidades materiais" (voto do Min. Alexandre de Moraes no Inquérito 4.694/DF, DJE de 1º/8/2019).

13. A internet e as redes sociais enquadram–se no conceito de "veículos ou meios de comunicação social" a que alude o art. 22 da LC 64/90. Além de o dispositivo conter tipo aberto, a Justiça Eleitoral não pode ignorar a realidade: é notório que as Eleições 2018 representaram novo marco na forma de realizar campanhas, com claras vantagens no uso da internet pelos atores do processo eleitoral, que podem se comunicar e angariar votos de forma mais econômica, com amplo alcance e de modo personalizado mediante interação direta com os eleitores.

14. No caso, constata–se sem nenhuma dificuldade que todas as declarações do recorrido durante sua live, envolvendo o sistema eletrônico de votação, são absolutamente inverídicas.

15. Quanto às urnas eletrônicas de seções eleitorais do Paraná, o recorrido atribuiu–lhes a pecha de "fraudadas", "adulteradas" e "apreendidas" e apontou que "eu tô com toda a documentação aqui da própria Justiça Eleitoral". Todavia, (a) inexistiu apreensão, mas mera substituição por problemas pontuais; (b) além da já enfatizada segurança das urnas eletrônicas, a Corte de origem realizou auditoria antes do segundo turno – na presença de técnicos da legenda do candidato – e nada constatou; (c) é falsa a narrativa de que a suposta fraude estaria comprovada na "documentação aqui da própria Justiça Eleitoral", não havendo nenhuma menção a esse respeito nas atas das respectivas seções.

16. No tocante à declaração de que "nós não vamos aceitar que uma empresa da Venezuela, que a tecnologia que a gente não tem acesso, defina a democracia no Brasil", trata–se de inverdades refutadas inúmeras vezes: (a) sendo a Justiça Eleitoral criadora e desenvolvedora da urna eletrônica, seria no mínimo contraditório dizer que não há acesso à tecnologia de sistemas; (b) a empresa que produz as urnas não é venezuelana – o que, aliás, por si só, não representaria qualquer problema se fosse verdade.

17. É falsa a afirmativa de que apenas Brasil e Venezuela empregam urnas eletrônicas. Segundo o Instituto Internacional para a Democracia e a Assistência Social, 23 países as utilizam em eleições gerais e outros 18 em pleitos regionais, incluídos Canadá, França e algumas localidades nos Estados Unidos, o que também já foi esclarecido pela Justiça Eleitoral.

18. Inexistiu fraude nas Eleições 2014. Para além das inúmeras ocasiões em que a Justiça Eleitoral cumpriu com transparência seu dever de informação, houve auditoria externa conduzida pela grei derrotada naquele pleito, nada se identificando como irregular.

19. Os dividendos angariados pelo recorrido são incontroversos. A live ocorreu quando a votação ainda estava aberta no Paraná, ao passo que o acesso à internet ocorre de qualquer lugar por dispositivos móveis, reiterando–se que a transmissão foi assistida por mais de 70 mil pessoas, afora os compartilhamentos do vídeo.

20. O recorrido valeu–se das falsas denúncias para se promover como uma espécie de paladino da justiça, de modo a representar eleitores inadvertidamente ludibriados que nele encontraram uma voz para ecoar incertezas sobre algo que, em verdade, jamais aconteceu. Também houve autopromoção ao mencionar que era Deputado Federal e que a imunidade parlamentar lhe permitiria expor os hipotéticos fatos.

21. Gravidade configurada pela somatória de aspectos qualitativos e quantitativos (art. 22, XVI, da LC 64/90). O ataque ao sistema eletrônico de votação, noticiando–se fraudes que nunca ocorreram, tem repercussão nefasta na legitimidade do pleito, na estabilidade do Estado Democrático de Direito e na confiança dos eleitores nas urnas eletrônicas, utilizadas há 25 anos sem nenhuma prova de adulterações. Além disso, reitere–se a audiência de mais de 70 mil pessoas e, até 12/11/2018, mais de 400 mil compartilhamentos, 105 mil comentários e seis milhões de visualizações.

22. Na linha do parecer ministerial, "a transmissão ao vivo de conteúdo em rede social, no dia da eleição, contendo divulgação de notícia falsa e ofensiva por parlamentar federal, em prol de seu partido e de candidato, configura abuso de poder de autoridade e uso indevido de meio de comunicação", sendo grave a afronta à "legitimidade e normalidade do prélio eleitoral".

23. Recurso ordinário provido para cassar o diploma do recorrido e declará–lo inelegível (art. 22, XIV, da LC 64/90), com imediata execução do aresto, independentemente de publicação, e recálculo dos quocientes eleitoral e partidário.

(RO nº 0603975-98/PR, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe de 10.12.2021)

Trata-se de decisão paradigmática sobre o significado das redes digitais na atualidade, comparativamente a um período no qual não existiam essas conexões digitais, a denotar o regime jurídico em vigor a elas aplicável na atualidade.

Neste aspecto, impõe-se, aqui, reconhecer seu alcance e o significado atual das redes, que são também digitais. As redes (e o poder que advém de seu uso) sempre estiveram presentes ao longo da História (cf. Niall Ferguson. A Praça e a Torre: redes, hierarquias e a luta pelo poder global. p. 171), não sendo propriamente uma novidade a análise do poder alcançado por meio das redes. O que constitui um diferencial da atualidade é o incremento desse poder, que deriva da amplitude e da captura instantânea do cidadão pelas atuais redes em modelo digital de funcionamento. Exatamente por isso é que seu impacto social, quer dizer, o impacto social das redes sociais e do que nelas se faz veicular, não pode ser menoscabado.

Aliás, neste ponto devemos reforçar o paradigma da Era Digital: sabidamente, as redes digitais são instrumentos capazes de disseminar desinformação de maneira massiva, brutal, instantânea e global. Na Era Digital, o caos informativo pode ser facilmente instaurado com a instrumentalização das redes digitais.

É grave quando um estado de caos informacional se instala na sociedade. É ainda mais grave se esse estado é planejado e advém de um discurso do Presidente da República. A confiança dos eleitores nas instituições democráticas deixa de existir e, com isso, a própria liberdade de voto fica viciada.

Por isso eu costumo me referir sempre à expressão de James Bridle (New Dark Age), quando afirma que a desinformação é uma espécie de poder atômico, com enorme capacidade de destruição. Nessa linha, relembro o conceito bem delineado pelo Presidente desta Corte, Min. Alexandre de Moraes: a “desinformação – entendida como uma ação comunicativa fraudulenta, baseada na propagação de afirmações falsas ou descontextualizadas com objetivos destrutivos – conflita com valores básicos da normativa eleitoral, na medida em que impõe sérios obstáculos à liberdade de escolha dos eleitores e, adicionalmente, à tomada de decisões conscientes. Compromete, portanto, a normalidade do processo político, dada a intenção deliberada de suprimir a verdade, gerando desconfiança, com consequente perda de credibilidade e fé nas instituições da democracia representativa" (trecho do voto do Min. Alexandre de Moraes no Referendo na Medida Cautelar na ADI n° 7.261/DF, Rel. Min. Edson Fachin, j. 26.10.2022, pp.39-40 – sem grifos no original).

Quero, com isso, também deixar certo que não há qualquer justificativa legítima para se cogitar em inovação jurisprudencial no ponto em que as redes sociais digitais passam a ser consideradas meios de comunicação na caracterização dos respectivos ilícitos previstos em Lei. O oposto é que seria inapropriado no momento atual.

O labor a ser exercido no presente caso, portanto, é tão somente o de averiguar se a conduta descrita amolda-se ao que a norma pretendeu punir, levando-se em conta o acervo probatório produzido quanto à conduta dos investigados e, necessariamente, a conjuntura dos fatores que orbitam os fatos.

Dessa forma, verifico que a conduta referida na peça inicial desafia, prima facie, os comandos do art. 22 da LC 64/90, tanto em razão de o ato amoldar-se ao conceito central do abuso de poder, como pela existência de precedente próprio deste Tribunal que enfrentou o tema (RO nº 0603975-98/PR, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe de 10.12.2021).

 

Análise do discurso: conteúdo e condições comunicacionais de sua realização

 

Uma vez firmado que o caso, em suma, não importa em qualquer inovação jurisprudencial, significando somente a aplicação do Direito à espécie à luz das disposições do art. 22 da LC 64/90 e com a necessária compreensão de aspectos evolutivos, tanto das ferramentas tecnológicas bem como da própria sociedade em si, mostra-se necessário apurar, portanto, se o conteúdo das ocorrências mencionadas aqui caracteriza, em concreto, um ataque infundado ao sistema eleitoral, com comprometimento da normalidade e da legitimidade do pleito, em manifesto desvio de finalidade e com proveito eleitoral dos investigados.

Na petição inicial, o discurso realizado pelo primeiro investigado em 18.7.2022 foi sistematizado em 15 (quinze) tópicos principais, a partir da seguinte estrutura:

Na ocasião, o Presidente da República acentuou, em resumo, o seguinte: i) que as urnas completaram automaticamente o voto no PT nas eleições 2018; ii) que as urnas brasileiras não possuem sistemas que permitem auditoria; iii) que não é possível acompanhar a apuração dos votos; iv) que o inquérito que investiga uma invasão ao sistema do TSE, em 2018, não estava sob sigilo; v) que a apuração dos votos é realizada por uma empresa terceirizada; vi) que o TSE não aceitou sugestões das Forças Armadas para melhorar a segurança do processo eleitoral; vii) que o TSE divulgou que os resultados de 2018 podem ter sido alterados; viii) que as urnas eletrônicas sem impressão do voto são usadas apenas em dois países além do Brasil; ix) que os observadores internacionais não têm o que fazer no Brasil porque a contagem de votos não é pública; x) que um hacker teve acesso a tudo dentro do TSE, inclusive a milhares de códigos-fontes e a uma senha de um ministro do TSE; e xi) que a Polícia Federal pediu os registros cronológicos de acesso ao sistema computacional do TSE, mas sete meses depois a Corte asseverou que eles foram apagados.

[...]

xii) que o Ministro Edson Fachin teria sido o responsável pela elegibilidade do ex-presidente Lula

[...]

xiii) que o atentado sofrido em 2018 teria sido levado a cabo por um “elemento de esquerda”

[...]

xiv) que as eleições de 2014 haveriam sido fraudadas e que a Polícia Federal haveria recomendado o voto impresso

[...]

xv) que haveria excesso nas ações dos Ministros do TSE. (ID nº 157940943)

Registro, ainda, existir a transcrição direta de parte desse discurso, que consta na peça inicial (ID nº 157940943) e que foi extraída da mídia correspondente, também acostada aos autos (ID nº 157957944), para fins de exatidão dos termos, do conteúdo e do alcance desse ato comunicacional, que foi, aqui, considerado em sua integralidade:

Eu teria dezenas e dezenas de vídeos para passar pros senhores, por ocasião das eleições de 2018, onde o eleitor ia votar e simplesmente não conseguia votar. Ou quando ele apertava o número 1, e depois ia apartar o número 7, aparecia o 3 e o voto ia pra o outro candidato. O contrário ninguém reclamou. Temos quase 100 vídeos de pessoas reclamando que foram votar em mim e, na verdade, o voto foi pra outra pessoa, nenhum vídeo falando de outro candidato e porventura apareceu meu nome.

[...]

Agora, isso que está acontecendo, é de interesse de todo o povo brasileiro. A desconfiança no sistema eleitoral tem se avolumado. Nós não podemos enfrentar umas eleições sob o manto da desconfiança. Nós queremos ter a certeza de quem o eleitor votou, pra quem o eleitor votou... o voto vai, diretamente, para aquela pessoa. O próprio TSE diz que em 2018 números podem ter sido alterados.

[...]

Só 2 países do mundo usam esse sistema eleitoral nosso. Vários outros países ou não usam ou começaram a usá-lo ou chegaram à conclusão de que não era o sistema confiável porque ele é inauditável. É impossível fazer uma auditoria em eleições aqui no Brasil (...) Olha, o pessoal está acompanhando a apuração. No Brasil, não tem como acompanhar a apuração.

[...]

Teria muita coisa a falar aqui, mas quero me basear exclusivamente em um inquérito da Polícia Federal e foi aberto após o 2º turno das eleições 2018, onde um hacker falou que tinha havido fraude por ocasião das eleições e falou que ele tinha invadido... o grupo dele, o TSE. E, obviamente, quando se fala em manipulação de números após as eleições, quem manipula é que ganhou, então você tem aí, o manipulador e a Polícia Federal começou, então, a apurar se houve, ou não, manipulação e de quem seria a responsabilidade. Eu tive acesso a esse inquérito no ano passado, divulguei, é um inquérito que não tem qualquer classificação sigilosa.

[...]

E como disse, como o próprio depoimento do Delegado encarregado do mesmo, da Corregedoria da PF e da Procuradoria da Câmara, dizendo que o inquérito não tinha qualquer classificação sigilosa.

[...]

Bem, não é o Tribunal Superior Eleitoral quem conta os votos; é uma empresa terceirizada.

[...]

O próprio Ministro Barroso chama o chefe da tecnologia da informação e ele responde: os votos são contados por uma empresa terceirizada. Que empresa é essa? Temos o nome? Sim, temos um nome, mas ‘cadê’ a confiança?

[...]

E em setembro de 2021 o Ministro Barroso, por portaria, resolve convidar algumas instituições, entre elas, as Forças Armadas, a participarem, de uma Comissão de Transparência Eleitoral. As Forças Armadas não se meteram nesse processo, foram convidadas. Ao serem convidadas, nós temos um comando de defesa cibernética, como acredito que todos os países tenham também e, como foram convidados, começaram a trabalhar para apresentar soluções, sugestões para que o ocorrido nas eleições de 2018 não viesse a ocorrer novamente.

Depois de convidar as Forças Armadas, (...) o Ministro Fachin diz que as sugestões das Forças Armadas serão avaliadas depois de 22. Todas as sugestões apresentadas pelas Forças Armadas podem ser cumpridas até 2 de outubro e, se tiver qualquer despesa extra, o Poder Executivo arranja recurso para tal.

[...]

Depois das Forças Armadas serem convidadas para participar da Comissão de Transparência Eleitoral, o Fachin, quem tornou o Lula elegível, diz que quem trata das eleições no Brasil são forças desarmadas. Por que nos convidar? Achavam que iam dominar as Forças Armadas? Será que se esqueceram que eu sou o Chefe Supremo das Forças Armadas?

[...]

Por que é que convidam as Forças Armadas e depois não querem mais as nossas sugestões?

[...]

Nós queremos paz, tranquilidade. Agora, por que é que um grupo de três pessoas, apenas, querem trazer instabilidade para o nosso país? Não aceitam nada das sugestões das Forças Armadas, que foram convidadas. São perfeitas. Chega à perfeição absoluta? Talvez não. Que nenhum sistema informatizado pode dar garantia de 100% de segurança.

[...]

Então, prosseguindo, o invasor teve acesso a toda a no TSE toda a base de dados por 8 meses. É uma coisa que, com todo o respeito, eu sou o presidente da República do Brasil, eu fico envergonhado de falar isso aí. O que é comum, né, acontecer em alguns países do mundo, é o chefe do Executivo conspirar para conseguir uma reeleição. Estamos fazendo exatamente o contrário, porque temos pela frente 3 meses de eleições. Mais na frente, tudo que eu falo aqui é conclusão da PF ou diretamente informações prestadas pelo TSE.

[...]

O senhor secretário atesta, categoricamente, que o invasor obteve domínio sobre usuários e senhas, que permite a alteração de dados de partidos e candidatos. Até mesmo a sua exclusão, no contexto do processo eleitoral. Ou seja, esse grupo de invasores puderam até mesmo excluir nomes e, mais, trocar votos entre candidatos.

[...]

Estamos há três meses das eleições. As propostas sugeridas pelas Forças Armadas, praticamente, estancam a possibilidade de manipulação de números, como sugere o próprio TSE, por ocasião das eleições de 2018.

[...]

Nós temos um sistema eleitoral que apenas dois países do mundo usam. No passado, alguns países tentaram usar esse sistema, mas rapidamente foi abandonado

[...]

Só dois países no mundo usam esse sistema eleitoral nosso. Vários outros países, ou não usam, ou começaram a usá-lo, ou chegaram à conclusão de que não era um sistema confiável, porque ele é inauditável, é impossível fazer uma auditoria em eleições aqui no Brasil.

[...]

E nós, se o povo resolver ao que era antes, paciência. Agora, num sistema eleitoral como esse, que apenas dois países o adotam, outros estudaram e abandonaram, outros fizeram uma ou outra eleição e desistiram... nós não queremos isso para o Brasil.

[...]

Eu não sei o que vem fazer os observadores de fora aqui. Vão fazer o quê? Vão observar o que? Se o sistema é falho, segundo o próprio TSE, é inauditável também, segundo uma auditoria externa pedido por um partido político, no caso, o PSDB, em 2014. E, com todo respeito, 8 meses passeando dentro dos computadores do TSE, esse grupo de hackers, será que o TSE não sabia?. Os observadores que, porventura, vierem para cá, eu queria saber o que eles vão observar aqui.

[...]

Aqui, o que eu já falei: Fachin assina acordo do TSE com entidade estrangeira para observação das eleições. Eu peço aos senhores: o que essas pessoas vêm fazer no Brasil, vão observar o quê? Que o voto é totalmente informatizado. Vêm dar ares de legalidade? Dizer que tudo ocorreu numa normalidade?

[...]

E, continua então, o Senhor Barroso, me atacando. Deixe bem claro, porquê é que o Senhor Barroso foi escolhido pelo Governo do PT para ser Ministro do Supremo Tribunal Federal? Porque ele trabalhou pra que o terrorista Cesare Battisti ficasse no Brasil. E no último dia do Presidente Lula, em 2010, o Battisti teve uma condição de refugiado no Brasil, graças ao trabalho dele, Barroso, que era advogado naquela época e o terrorista Cesare Battisti permaneceu no Brasil. Graças a isso, certamente, ele ganhou confiança do Partido dos Trabalhadores e foi indicado para o Supremo Tribunal Federal. O Senhor Barroso, também com o Senhor Fachin, começaram a andar pelo mundo me criticando, como se eu tivesse preparando um golpe por ocasião das eleições. É exatamente o contrário o que está acontecendo. O Barroso, nos Estados Unidos, faz uma palestra “como se livrar de um Presidente” e ele era, é, do Tribunal Superior Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal.

[...]

Agora, pessoas que devem favores a ele (referindo-se ao ex-presidente Lula), não querem um sistema eleitoral transparente. Pregam, o tempo todo, que imediatamente após anunciar o resultado das eleições, os respectivos chefes de Estado dos senhores devem reconhecer, imediatamente, o resultado das eleições.

[...]

Então tudo começa, dessa denúncia, que foi de conhecimento do Tribunal Superior Eleitoral, onde o hacker diz, claramente, que ele teve acesso a tudo dentro do TSE. Disse mais: obteve acesso aos milhares de código-fonte, que teve acesso à senha de um Ministro do TSE, bem como de outras autoridades. Várias senhas ele conseguiu. E, obviamente, a senhora Ministra do TSE, na época, que também é do Supremo Tribunal Federal, Rosa Weber, fez com que o inquérito fosse instaurado. Então, temos aqui a instauração do inquérito. Segundo o TSE, os hackers ficaram por 8 meses dentro dos computadores do TSE. Com códigos-fontes, com senhas e muito à vontade dentro do Tribunal Superior Eleitoral. E, diz ao longo do inquérito que eles poderiam alterar nomes de candidatos, tirar voto de um, transferir para outro. Ou seja, o sistema, segundo documento do próprio Tribunal Superior Eleitoral e conclusão da Polícia Federal, é um processo aberto a muitas maneiras de se alterar o processo de votação.

[...]

Então, de imediato, a Polícia Federal pediu o tal dos logs, né, que é a impressão digital do que acontece dentro do sistema informatizado (...). A Polícia Federal pediu os logs que podiam ser entregues no mesmo dia ou no dia seguinte, mas, sete meses depois, segundo documentos comigo, o TSE informou que os logs haviam sido apagados. Os hackers tiveram acesso a uma dezena de senhas por 8 meses. Eles não perceberam? Sete meses depois, que a Polícia Federal pede os logs, que são as impressões digitais da cena, do fato... sete meses depois os logs foram apagados. Poderiam ter sido entregues os logs no mesmo dia, por iniciativa do próprio TSE, nem precisava ser provocado pela Polícia Federal e sete meses depois foram apagados.

[...]

Aqui entra outra personalidade. Deixo claro que quando se fala em Ministro Fachin, ele foi o responsável por tornar Lula elegível, numa interpretação de um dispositivo constitucional. O Lula estava preso e o Supremo entendeu que a prisão só poderia acontecer em última instância, na quarta instância. Então ele foi condenado em primeira instância, em segunda instância, em terceira instância: todos os placares por unanimidade e estava cumprindo pena de prisão. Com a reinterpretação do Supremo Tribunal Federal, ele foi pra rua. Mas como ele, Lula, estava em liberdade, mas as condenações tavam valendo, o próprio Ministro Fachin, relator de um processo, resolveu tornar o Lula elegível.

[...]

Me elegi Presidente da República gastando menos de 1 milhão de dólares. Repito: gastando menos de 1 milhão de dólares e dentro de um leito de hospital, após sofrer um atentado e uma facada de um elemento de esquerda, cujo inquérito não foi concluído, apesar dos enormes indícios de interesses outros se fazendo presente. [...] Gostaria de ver esse inquérito concluído, para chegar nos mandantes da tentativa de homicídio.

[...]

Em 2014 a conclusão foi de que... e houve uma dúvida naquela época: quem ganhou as eleições? Daria um capítulo, mas eu não vou entrar nesse capítulo aqui e que é também bastante curioso o que aconteceu em 2014. A Polícia Federal, nesses momentos, recomendou o voto impresso. Manteria o sistema eleitoral nosso, mas teria uma impressora do lado da urna, onde não haveria contato manual por parte do eleitor e após a confirmação do voto, esse papel cairia dentro de uma urna e essa urna seria, então, utilizada mais na frente para contagem física, caso houvessem dúvidas sobre quem ganhou as eleições… então, documentação do próprio TSE, também, conclui aqui que não há como fazer uma correspondência entre um eleitor específico e o seu voto. Aqui, mais uma vez, outro parecer da Polícia Federal, em 2018, recomendando que fossem envidados todos os esforços para que possa existir o voto impresso para fins de autoria, também ignorados.

[...]

Quer fazer valer esse processo eleitoral onde o próprio TSE diz que ele é vulnerável, onde a própria Polícia Federal disse, com documentação do próprio TSE, que aquilo é mais que um queijo suíço: é uma peneira.

[...]

O Ministro Alexandre de Moraes manda prender quem disseminar fake news nas eleições de 2022. O que é que é fake news? É o que eles acham que é fake news. Como já aconteceu comigo, botaram uma página minha, no Facebook, uma matéria, de uma revista, falando sobre AIDS e vírus covid e ele achou que aquilo era fake news e tá aí me processando. Eu não sei aonde ele acha que ele pode parar. Nós queremos a paz, tranquilidade, o respeito que não tem da outra parte para conosco e eu não sei o que faz uma pessoa agir dessa maneira. Quem escolhe as pessoas para dizer o que esse, ou aquele, candidato possa ter em sua página, se é fake news ou não, é o próprio TSE: que desmonetiza página, que derruba outras, que sugere prisões, que cassa parlamentar por coisas que não têm tipificação na lei – como cassaram o deputado por fake news –, que cria jurisprudência de interesse deles mesmos para prejudicar o nosso lado. Atentar contra as eleições e a democracia: quem faz isso é o próprio TSE ao esconder, ao tentar esconder o inquérito de 2018. (ID nº 157940943)

A respeito do teor desse ato comunicacional do então Presidente da República, faço apontamentos preliminares em três dimensões importantes para fins de proceder, a seguir, no enquadramento jurídico do discurso.

O primeiro é o de que não se ignora, aqui, o âmbito de incidência próprio da liberdade de expressão. Muito pelo contrário. A liberdade de expressão é essencial à sociedade e à Democracia, e não permite que se reprima a mera exposição de ideias, por mais incisivas que sejam determinadas colocações, as críticas, as discordâncias e embates ideológicos. Também no benefício da liberdade de expressão, não se deve desestimular o diálogo sadio entre instituições ou bloquear sugestões técnicas ou mesmo jurídicas de aprimoramentos e melhorias em geral do sistema eleitoral e mesmo do modelo eletrônico de votação, dentro do livre e legítimo mercado de ideias. Como veremos, o foco do discurso e desta AIJE são os ataques comprovadamente infundados e absolutamente falsos, sistemáticos e notórios, contra a urna eletrônica, contra o processo e a Justiça eleitoral, com finalidade especificamente eleitoral, por meio de uma tática que restou evidenciada no Voto do Ministro Relator e à qual retornarei adiante.

A segunda dimensão que necessita ser explicitada sobre esse ato comunicacional investigado é o de que também não se estará, aqui, a analisar uma fala qualquer, mas sim um discurso institucional, promovido pelo Presidente da República em exercício, no Palácio da Alvorada, com uso de equipamentos públicos e compleição de evento oficial. Isso lança certas particularidades ao caso, que terão de ser devidamente enfrentadas a seu tempo.

Em terceiro, não se trata de avaliar uma comunicação para uma audiência de não-eleitoras e não-eleitores, alegadamente por ter sido realizada apenas na presença física de embaixadores estrangeiros, posto que consta da prova dos autos e é fato notório que sua divulgação foi amplíssima e irrestrita, constituindo essa difusão não um efeito secundário e comedido, mas sim um elemento consciente, relevante e devidamente planejado e amplificado para o discurso que seria proferido nessa ocasião (o que integrava a referida tática eleitoral, conforme logo veremos). E todos esses elementos encontram-se devidamente comprovados nos autos.

Quanto ao primeiro âmbito material referido acima, temos que o próprio TSE, via comunicação oficial em seu sítio eletrônico, por diversas vezes desmentiu as afirmações acima elencadas. Tal constatação, ademais, foi expressamente apontada na inicial, com a juntada de endereço eletrônico oficial desta Corte a título de comprovação da falsidade de diversas afirmações. Realmente, após a referida reunião, como se observa, a Secretaria de Comunicação e Multimídia do TSE reuniu conteúdos com esclarecimentos e checagens sobre o processo eleitoral[1].

O direito fundamental à livre expressão, consagrado explicitamente na Constituição de 1988, não alberga a propagação de mentiras. Não se trata, portanto, de flexibilizar um direito, mas sim de delimitar seus contornos e seu âmbito de regência.

Em contraponto à propagação de mentiras e ataques infundados que compõem, no caso concreto, como veremos, uma fala política inserida em uma estratégia eleitoral, vale recordar, ainda, o direito de todos à informação, que igualmente constitui um direito fundamental plasmado em nossa Constituição. O direito à informação encontra-se, assim como a liberdade de expressão, na essência da Democracia. No segmento eleitoral, a eleitora e o eleitor têm direito a que o debate público ocorra com base em informações e fatos verdadeiros, pois é apenas e tão somente dessa maneira que se garante efetivamente a liberdade de escolha; só dessa maneira se assegura o direito pleno ao voto.

Ainda sobre este primeiro âmbito, passarei a uma análise mais vertical, de maneira a poder identificar com precisão, como veremos, não apenas a mera falta de rigor em certas proclamações, mas a inequívoca falsidade perpetrada nesse ato comunicacional, com invenções, “distorções severas” da realidade, dos fatos e dos dados empíricos e técnicos, como bem pontuou o ilustre Relator, Min. Benedito Gonçalves, chegando, ainda, a caracterizar-se, ao final, uma “narrativa delirante” com efeitos nefastos na Democracia, no processo eleitoral, na crença popular em conspirações acerca do sistema de apuração dos votos, tudo praticado não como um ato isolado e aleatório, o que já seria bastante grave, mas em verdadeira concatenação estratégica ao longo do tempo, com finalidades eleitoreiras.

Neste ponto, é especialmente oportuno observar a dimensão performática que certos discursos assumem. Na linha do pensamento trazido por José Jairo Gomes, esses discursos constituem, eles próprios, a própria ação. Em suas palavras: “Discursos podem provocar consequências relevantes no mundo da vida; podem ensejar a criação de vínculos psicológicos e emocionais, reforçar crenças e conceitos morais, levar pessoas a acreditar em valores, assim como em fantasias, utopias, quimeras e tolices” (GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 18 ed. São Paulo: Gen/Atlas, 2022, p. 776).

Quanto à análise do teor do discurso levado a efeito na referida reunião, anoto que me debrucei sobre todas as falas proferidas e efetuei o contraponto com as checagens oficiais dos fatos, as peças de inquéritos acostadas aos autos e os depoimentos de testemunhas, o que me permitiu concluir, dentre outras conclusões, que o referido conteúdo é permeado por afirmações falsas e inequívocos ataques a partidos adversários e a Ministros do STF.

Inicialmente, registro que não corresponde à realidade a afirmação de que as urnas completaram automaticamente o voto no PT nas eleições 2018. Ao contrário do que foi categoricamente afirmado, isso também não foi comprovado ou afirmado por absolutamente nenhum relatório ou investigação oficial. Conforme exposto por este Tribunal, “não existe a possibilidade de a urna autocompletar o voto do eleitor, e isso pode ser comprovado pela auditoria de votação paralela”. Mais ainda, o tópico surgiu a partir da circulação de um vídeo na internet que, após avaliação de peritos em edição, comprovou-se ser fruto de montagem na mídia. Além disso, uma mera análise criteriosa do vídeo já permite verificar que “no momento em que o primeiro número é apertado, o teclado da urna não aparece por completo, o que sugere que outra pessoa teria digitado o restante do voto[2].

De igual forma, a afirmação no sentido de que as urnas brasileiras não possuem sistemas que permitem auditoria não é verdadeira. Esse tópico remete a um vídeo gravado por deputado federal com o resultado de uma auditoria realizada pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) após as eleições de 2014. Ao “contrário do que sugere a peça desinformativa, a auditoria feita pelo PSDB não constatou nenhuma irregularidade no processo eleitoral”. Nesse sentido, o partido solicitou permissão para auditar os sistemas de votação, apuração e totalização de votos, o que “foi prontamente aceito pelo Tribunal, que disponibilizou a estrutura e forneceu as informações necessárias para que a sigla fizesse a inspeção[3].

Igualmente não encontra qualquer conforto na realidade a afirmação do primeiro investigado de que não é possível acompanhar a apuração dos votos.  Para fins de acompanhamento da apuração dos votos em tempo real, este TSE, além de expor a totalização dos votos ao vivo, com ampla cobertura de vários veículos de imprensa, disponibiliza os boletins de urna em seu sítio eletrônico no mesmo dia da votação.

Outra afirmação realizada foi a de que a apuração dos votos é realizada por uma empresa terceirizada. Novamente estamos diante de uma inverdade, uma vez que a “totalização dos votos é feita em computadores localizados na sala-cofre do Tribunal, em Brasília[4]. Houve, no ponto, confusão consciente sobre a existência de empresas de tecnologia que atuam em outras áreas tecnológicas do Tribunal.

A alegação de que o TSE não aceitou sugestões das Forças Armadas para melhorar a segurança do processo eleitoral conflita com o fato verdadeiro de que o TSE acolheu, de forma completa ou parcial, 32 (trinta e duas) propostas feitas pelos integrantes da Comissão de Transparência Eleitoral (CTE) ainda para as eleições de 2022. E nas atividades registradas pela Comissão consta a visita de “uma comitiva de militares da área de cibersegurança das Forças Armadas, a pedido do integrante da CTE[5] à Secretaria de Tecnologia da Informação do TSE (STI), com efetivo acolhimento de sugestão feita pelas Forças Armadas junto à CTE[6].

Além de ter aceito parcela considerável das sugestões realizadas, o TSE nem sequer rejeitou as demais. Ofício enviado em 17.6.2022 pelo TSE ao então Ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, anteriormente à reunião com embaixadores, anota que “embora algumas sugestões não tenham sido acolhidas para esse ciclo eleitoral, serão consideradas para uma nova análise objetivando os próximos pleitos” (Ofício GAB-SPR/GAB-PRES nº 2847/2022).

Em realidade, como bem asseverou o eminente Relator, Ministro Benedito Gonçalves, em seu voto, “Jair Messias Bolsonaro seguiu se recusando admitir o papel do TSE como autoridade constitucionalmente investida da governança eleitoral” e “afirmou que era imperativo aceitar o que é que tivesse sido proposto pelas Forças Armadas na Comissão de Transparência, como derradeira tentativa de salvar as Eleições 2022 da suposta fraude”. Resta ratificada a conexão entre esse conteúdo e a estratégia eleitoral.

A afirmação de que um hacker teria tido acesso a todo o sistema do TSE, inclusive a milhares de códigos-fontes, não é verdade. Fato é que, apesar de o então “presidente do próprio Tribunal, ministro Luís Roberto Barroso, ter admitido que houve uma tentativa de invasão, o ataque foi neutralizado e não afetou o sistema de totalização dos votos e, muito menos, o sistema das urnas eletrônicas, que não funcionam em rede”. Ademais, “especialistas foram unânimes em avaliar que se trata de dados administrativos antigos ou mesmo informações públicas, disponíveis no Portal da Transparência. Os bancos de dados acessados não teriam, portanto, nenhuma relação com as eleições[7].

O TSE, também, “nunca emitiu[8] informação de que os resultados das eleições de 2018 podem ter sido alterados, mas isso foi proclamado pelo então Presidente da República no ato comunicacional objeto de análise. Apresento, neste ponto, a exata fala do primeiro investigado na referida reunião com embaixadores: “Porque o sistema é completamente vulnerável, segundo o próprio TSE e obviamente a conclusão da Polícia Federal”. E mais: “As propostas sugeridas pelas Forças Armadas praticamente estancam a possibilidade de manipulação de números, como sugere o próprio TSE, por ocasião das eleições de 2018. Eu não quero falar do que eu acho que aconteceu. Eu estou simplesmente em cima dos fatos. Estou me comportando aqui como o outro magistrado deveria se comportar”. Ademais, cumpre registrar, ainda, que polícia federal jamais chegou a essa conclusão. Pelo contrário, acabou por restar comprovado que o acesso indevido do hacker ocorreu sem qualquer motivação eleitoral e, mais ainda, que não era capaz de alterar qualquer resultado eleitoral.

A alegação de que as urnas eletrônicas sem impressão do voto são usadas apenas em 2 (dois) países além do Brasil também é inverídica, tendo em vista que “as máquinas de votar sem registro físico do voto não são exclusividade dessas três nações [Brasil, Bangladesh e Butão]”[9], pois os “equipamentos utilizados pelo eleitorado de parte da França e dos Estados Unidos para realizar a escolha de representantes também não imprimem comprovante físico da votação[10]. Além disso, “pelo menos 46 países utilizam votação eletrônica em algum tipo de eleição. Esse dado é do Instituto para Democracia e Assistência Eleitoral Internacional. [...]. Outro dado do Instituto é o de que 16 países, contando com o Brasil, utilizam máquinas de votação eletrônica de gravação direta, ou seja, não usam boletins de papel e registram o voto eletronicamente, sem que a eleitora ou o eleitor interajam com qualquer cédula física[11].

Outro tópico abordado na reunião consistiu na alegação de que observadores internacionais não teriam o que fazer no Brasil porque a contagem de votos não é nem pública nem auditável. Como exposto pelo TSE logo na sequência de tais afirmações, “organismos internacionais especializados em observação, como OEA e IFES, já iniciaram análise técnica sobre a urna eletrônica. Contarão com peritos em informática, com acesso ao código-fonte e todos os elementos necessários para avaliarem a transparência e integridade do sistema eletrônico de votação[12], o que permite caracterizar como falsa a referida fala do investigado no ponto.

Afirmou, ainda, o investigado que a Polícia Federal pediu os registros cronológicos de acesso ao sistema computacional do TSE, mas 7 (sete) meses depois a Corte asseverou que eles foram apagados. Contudo, o “próprio TSE encaminhou à Polícia Federal as informações necessárias à apuração dos fatos e prestou as informações disponíveis[13], o que novamente contradiz o enredo criado pelo investigado.

Outros pontos do discurso proferido pessoalmente pelo primeiro investigado consubstanciaram inequívocos ataques a partidos adversários e a Ministros do STF, como se denota a partir de trechos em que o então Presidente da República afirmou que o Min. Edson Fachin teria sido o responsável pela elegibilidade do ex-presidente Lula ou mesmo que o atentado sofrido em 2018 teria sido levado a cabo por um “elemento de esquerda”.

Especificamente quanto ao sistema eleitoral, foi afirmado ainda que as eleições de 2014 haviam sido fraudadas e que a Polícia Federal havia recomendado o voto impresso. A esse propósito, cumpre esclarecer que tivemos a aprovação da Lei nº 12.034, sancionada em 29 de setembro de 2009, que previa, a partir das Eleições Gerais de 2014, a impressão do voto registrado na urna. Ocorre que, no julgamento da ADI nº 4.543/DF (Rel. Min. Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, julgado em 6.11.2013, DJe de 13.10.2014), “os ministros do STF concluíram que a impressão dos votos era inconstitucional devido à possibilidade de comprometer o sigilo e inviolabilidade do voto[14].

Ainda quanto à suposta liberdade de expressão, o ponto de destaque adicional que faço é o de que este Tribunal, na sessão de 30.9.2022, efetuou o julgamento conjunto das Representações nº 0600550-68/DF, nº 0600549-83/DF, nº 0600556-75/DF e nº 0600741-16/DF (Rel. Min. Maria Claudia Bucchianeri, PSESS de 30.9.2022). Em referida sessão, a Corte analisou exatamente os mesmos fatos trazidos a julgamento nesta AIJE, sob o ângulo jurídico, contudo, de representações especiais.

Houve a análise do inteiro teor do discurso proferido e foi exposto que a “deslegitimação do sistema, a partir da construção de fatos falsos, forjados para conferirem estímulos artificiais de endosso a opiniões pessoais, é comportamento que já não se insere no legítimo direito à opinião, dúvida, crítica e expressão, descambando para a manipulação desinformativa, via deturpação fática, em grave comprometimento da liberdade de ‘informação’, e com aptidão para corroer a própria legitimidade da disputa em si”. Com base nisso, reconheceu-se a ocorrência de propaganda antecipada irregular, aplicando-se a multa ao então representado e, aqui, investigado. Colaciono, por oportuna, a ementa do julgamento:

REPRESENTAÇÕES. ELEIÇÕES 2022. QUESTÃO DE ORDEM. PEDIDO DE INGRESSO. AMICUS CURIAE. INCOMPATIBILIDADE SISTÊMICA. PRINCIPIO DA CELERIDADE. PRELIMINARES. ILEGITIMIDADE ATIVA DE PARTIDO FEDERADO PARA ATUAR ISOLADAMENTE EM PROCESSO JUDICIAL ELEITORAL. SUCESSÃO PROCESSUAL. FEDERAÇÃO. VIABILIDADE. ILEGITIMIDADE PASSIVA. PROVEDORES DE APLICAÇÃO. INTERNET. IN INITIO LITIS. MÉRITO. PROPAGANDA ANTECIPADA IRREGULAR. ALEGADA DIFUSÃO DE FATOS SABIDAMENTE INVERÍDICOS E GRAVEMENTE DESCONTEXTUALIZADOS SOBRE OS PROCESSOS DE VOTAÇÃO E APURAÇÃO DE VOTOS PARA EMBAIXADORES CREDENCIADOS NO BRASIL. ART. 9º–A DA RESOLUÇÃO 23.610/2019. ADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. PRÁTICA, NA FASE DA PRÉ–CAMPANHA, DE COMPORTAMENTOS PROSCRITOS DURANTE A CAMPANHA (ART. 3º–A DA RESOLUÇÃO 23.610). REPRESENTAÇÃO JULGADA PROCEDENTE, COM A IMPOSIÇÃO DE MULTA E ORDEM DE REMOÇÃO DE CONTEÚDOS.

Questão de ordem:

1. O pedido de ingresso como amicus curiae não se mostra compatível com a celeridade que é inerente aos feitos de índole eleitoral, nos termos do art. 5º da Res. TSE nº 23.478/2016. Precedentes.

Preliminares:

2. Não se admite a atuação isolada em ação judicial eleitoral de partido político que se acha formalmente reunido em federação partidária. A partir do deferimento do seu respectivo registro pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a federação partidária passa a atuar de forma unificada em nome de todas as agremiações que a compõem, como se novo partido fosse.

3. O art. 338 do CPC é materialmente incompatível com o rito marcadamente célere previsto no art. 96 da Lei nº 9.504/1997 e na Res.–TSE no 23.608/2019, que não preveem a possibilidade de deferimento de prazo para eventual emenda à inicial. Hipótese em que o comparecimento espontâneo da parte legítima, anteriormente à triangularização da demanda, permite a sucessão processual, porquanto observados os princípios da celeridade e da primazia da decisão de mérito.

4. À luz do § 4º do art. 40 da Res.–TSE nº 23.610/2019, é prematura a integração dos provedores de aplicação da internet ao polo passivo da representação, in initio litis, por força do que dispõe o art. 39 da mesma Resolução, sendo cabível a indicação somente na hipótese de descumprimento de determinações judiciais. Precedentes.

Mérito:

5. A legitimidade e normalidade do pleito (art. 14, § 9º da CRB), em seu viés antecedente de aceitabilidade das regras do jogo e a confiança nos resultados proclamados, qualifica–se como bem jurídico constitucional autônomo a ser tutelado pela Justiça Eleitoral, independentemente da situação particular dos candidatos em disputa (RO 0603975–98, Rel. Min. Luis Felipe Salomão).

6. O art. 9–A da Resolução 23.610/2019 deslocou também para o microssistema de tutela da propaganda eleitoral a proteção autônoma da normalidade e legitimidade da disputa, em seu viés antecedente de aceitabilidade das regras do jogo e a confiança nos resultados proclamados, como valor a ser defendido, de forma independente e descolada de outros bens jurídicos protegidos em tema de propaganda.

7. Comportamentos que tenham alguma conotação eleitoral e que sejam proibidos durante o período oficial de campanha são igualmente proibidos na fase antecedente da pré–campanha, ainda que não envolvam pedido explícito de voto ou não voto, podendo configurar propaganda eleitoral antecipada irregular, nos termos do art. 3º– A da Resolução 23.610/2019. Precedentes.

8. As representações por propaganda eleitoral antecipada irregular, independentemente da causa de pedir, podem ser movidas pelos legitimados ativos indicados no art. 96 da Lei nº 9.504/97 (e não apenas pelo Ministério Público) e, se procedentes, geram a imposição de multa, para além da remoção do conteúdo respectivo, observados os parâmetros estabelecidos pelo § 3º do art. 36 da Lei nº 9.504/97.

9. O eventual questionamento do episódio em sede de representação por propaganda irregular não interfere a apuração do mesmo fato em outras vias processuais autônomas.

10. Numa democracia, não há de ter limites o direito fundamental à dúvida, à curiosidade e à desconfiança. Cada cidadão é livre para crer ou descrer no que bem entender, para duvidar. E essa ampla liberdade de pensamentos não pressupõe ou demanda elementos racionais que os justifiquem ou legitimem e não precisa fundar–se em discursos intersubjetivamente válidos.

11. A deslegitimação do sistema, a partir da construção de fatos falsos, forjados para conferirem estímulos artificiais de endosso a opiniões pessoais, é comportamento que já não se insere no legítimo direito à opinião, dúvida, crítica e expressão, descambando para a manipulação desinformativa, via deturpação fática, em grave comprometimento da liberdade de "informação", e com aptidão para corroer a própria legitimidade da disputa em si.

12. Representação julgada procedente. (Rp nº 0600549-83/DF, Rel. Min. Maria Claudia Bucchianeri, PSESS em 30.9.2022 – Julgamento conjunto: Representações nº 0600550–68, nº 0600549–83, nº 0600556–75 e nº 0600741–16)

A despeito de todos os elementos efetivamente presentes nos discursos e integralmente constantes dos autos, os investigados aduzem que houve a omissão maliciosa de alguns trechos, e com isso acabam reafirmando a narrativa em sua extensão.

Da estratégia de colacionar algumas passagens amparadas em liberdade de expressão ou elementos técnicos, como as passagens nas quais há o pedido por transparência nas eleições e o desejo para que sejam limpas, ou mesmo a referência a certas investigações oficiais, não decorre, logicamente, a possibilidade de validação de todo o discurso.

Invocar breves partes do discurso com omissão de tantos outros trechos (que elenco em meu Voto), não pode representar, por certo, o discurso em sua totalidade e em cada uma de suas parcelas, como, aliás, foi muito bem colocado pelos próprios investigados. O argumento utilizado pela defesa, portanto, é forte, mas no sentido oposto ao pretendido, já que é preciso considerar todas as parcelas do discurso e em seu contexto, o que foi exaustivamente realizado pelo voto do Corregedor Geral da Justiça Eleitoral, Min. Benedito Gonçalves.

Ademais, para fins de análise adequada e imparcial do discurso, também não é possível acolher a tese de que existiria um sistema de compensação entre falas de promoção do sistema eleitoral e ataques a seu funcionamento. O que se constata, da íntegra desse conteúdo, é que ocorreu, de fato, uma sistemática ofensiva infundada à votação eletrônica e à Justiça Eleitoral, o que não se apaga diante de poucas passagens nas quais o investigado aduz, literalmente, desejar eleições limpas e transparentes.

Nesse sentido, é absolutamente inviável, objetivamente falando, acolher a tese defensiva na linha de que não houve divulgação de informação falsa ou, ainda, de que a informação veiculada baseou-se em subsídios concretos capazes de sustentar um discurso que, como resultado geral final, teria sido positivo e verdadeiro. O total descolamento da realidade está plenamente operante também nessa pretensão defensiva.

Apesar da existência de algum elemento fático, como um inquérito ou mesmo um ataque hacker ao TSE, fabricou-se uma nova camada, integralmente falsa, exuberante em aspectos fantasiosos, i) seja acerca do significado dos fatos, ii) seja acerca de seus desdobramentos. Essas versões são fabricadas, ficcionais, capazes de fazer encobrir os próprios elementos reais que perpassam alguns raros momentos do discurso.

Assim, de maneira geral, captando as mensagens centrais das falas, em observação atenta acerca do seu conteúdo integral, é legítimo caracterizá-lo como falso e pernicioso. O investigado, em suma, a partir da ocorrência de algum fato verdadeiro, forja outros fatos que efetivamente jamais ocorreram para alcançar conclusões que não poderiam deixar de ser igualmente inventivas e não decorrências lógicas de alguns poucos fatos reais. Com isso, as conclusões são desviantes da realidade, compondo uma versão fabricada. Assim – e repito este ponto – os poucos elementos verdadeiros estão ali não para se explorar sua veracidade, mas como estratégia de convencimento alarmista do falso.

A título de exemplo, como mencionado, a existência do Inquérito Policial nº 1361/2018-4/DF é incontroversa, mas em momento algum o TSE e a Polícia Federal afirmaram que houve alteração de nome de candidatos, transferência de votos ou manobras do gênero. Muito pelo contrário, todas as informações oficiais apontam para o fato de que a tentativa de invasão foi neutralizada, não afetou o sistema de totalização de votos e, muito menos, o sistema das urnas eletrônicas, que não funcionam em rede. Nesse contexto, visualiza-se a graduação das afirmações falsas, que passam inicialmente pela existência de um fato para, posteriormente, embasarem uma sequência de eventos paulatinamente fantasiosos e que, de tanto se distanciarem do ponto inicial, acabam por deixá-lo em plano irrelevante do discurso.

Em conclusão deste ponto, constato, após a detida análise individualizada das exatas afirmações constantes do discurso levado a efeito em 18.7.2022, que seu conteúdo é, comprovadamente, falso nos inúmeros pontos ressaltados e detalhadamente analisados pelo Ministro Relator. Não são apenas mentiras. São mentiras vocacionado ao ataque infundado ao sistema eletrônico de votação, incutindo-se a falsa ideia de fraude com a disseminação de fatos inverídicos, aptos a gerar incertezas acerca da lisura não só de um determinado pleito, mas da integralidade do sistema eleitoral, tudo realizado com proveitos próprios, como se observa a partir do escrutínio pontual das afirmações, confrontadas com provas e informações, veiculadas ou colhidas pelo próprio TSE e com base na normatividade anteriormente mencionada e nos precedentes que trataram da matéria em sede de representação por propaganda irregular (Representações nº 0600550-68/DF, nº 0600549-83/DF, nº 0600556-75/DF e nº 0600741-16/DF, Rel. Min. Maria Claudia Bucchianeri, PSESS de 30.9.2022).

A segunda dimensão de análise do discurso diz respeito à dimensão subjetiva. Quem proferiu o discurso era o Presidente da República em exercício, como reiteradamente relembrado pelo próprio investigado.

Aliás, chama a atenção que as provas dos autos indiquem que o conteúdo do discurso teria partido também do próprio Presidente. As testemunhas ouvidas em juízo foram uníssonas ao apontarem que não tiveram qualquer relação com a produção do conteúdo do discurso. Carlos França, ao ser indagado se coube a ele a preparação dos slides utilizados no discurso para os embaixadores estrangeiros, afirmou que seu auxílio se deu apenas no aspecto logístico, envolvendo, por exemplo, preparativos voltados à tradução simultânea. Mais à frente em seu depoimento foi enfático, ao afirmar que “nós não tivemos acesso a esse material, e nós não fomos acionados para revisar esse material” (ID nº 158766494). Em mesmo sentido, Flávio Viana, questionado se teria prestado apoio direto para a preparação do discurso, apenas expôs que “não houve esse nível de assessoria em relação ao evento em questão” (ID nº 158766496). Ciro Nogueira, da mesma forma, também afirmou não ter sugerido conteúdo para o discurso ou preparado qualquer material a respeito (ID nº 158766495).

Esta dimensão atrairia, na concepção do investigado, a impossibilidade de controle judicial das falas que, por terem sido proferidas por Chefe de Estado, consubstanciariam ato típico de governo, justamente porque foram praticadas pelo Presidente da República, no exercício de suas funções presidenciais, na sede do Governo, em representação internacional.

Ignorando-se, em um primeiro momento, o desvio de finalidade pelo uso indevido das credenciais da Presidência, como Chefe de Estado e Comandante Supremo das Forças Armadas, para ficar-se apenas no campo das supostas prerrogativas máximas e insindicáveis do Chefe do Executivo, verifico que uma proposta com esse alcance evoca a vetusta teoria dos atos políticos (political questions), em entendimento superado de há muito mesmo em sua origem, nos Estados Unidos da América do Norte, quando da judicialização do caso atinente aos distritos eleitorais do Tennnesse (Baker v. Carr) de 1941 (sobre a progressiva mudança das condições de aplicação dessa teoria, cf. PEGORARO, Lucio, RINELLA, Angelo. Derecho Constitucional Comparado: sistemas constitucionales. Buenos Aires: Astrea, Giappichelli ed., 2018, V. 2, p. 365 e ss).

Pela precisão para compreender esse tópico, transcrevo os ensinamentos, sempre muito atentos às questões democráticas, da Ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha: “No Estado Democrático de Direito a juridicidade entranha o sistema normativo constituído e praticado. Não há comportamento, menos ainda do Estado, invulnerável ao toque controlador da segurança da relação de juridicidade. O arbítrio não coincide, não compatibiliza, não se concilia com a juridicidade que domina todas as relações do Estado Democrático de Direito.” (Princípios Constitucionais da Administração Publica. Belo Horizonte, Del Rey, 1994, p. 118).

Porém, o assunto nem sequer chega a essa discussão de fundo, já que, ao contrário do que foi alegado, a exposição do investigado não teve caráter diplomático. Observa-se, isso sim, a mera roupagem diplomática, comprovada não apenas pela própria convocação e condições em que ocorreu a reunião, mas também pela juntada de comunicação oriunda da Casa Civil, a partir da requisição de informações consolidadas sobre a participação de órgãos do Governo Federal na preparação, realização e difusão do encontro realizado no Palácio do Planalto, em 18.7.2022 (ID nº 158839457 e seguintes). Pela documentação, visualiza-se a existência de convites a embaixadores e ministros de nações estrangeiras, convites a autoridades nacionais e documentações internas direcionadas à preparação do evento.

Não obstante essa situação, a pauta, a abordagem realizada com recurso amplo a fatos inverídicos e a reverberação de seu conteúdo via TV Brasil Distribuição e por redes sociais do primeiro investigado é que permitem a correta categorização do evento, inserto como uma estratégia eleitoral calcada em questionamentos e ataques despidos de base racional voltados ao sistema eleitoral, no interesse eleitoral dos investigados.

Houve, portanto, um desvio de finalidade, caracterizando o abuso de poder.

Não é capaz de mudar tal constatação o fato de, para o evento, terem sido convidados os Presidentes do TSE, STF, STJ, Tribunal Superior do Trabalho (TST) e do Tribunal de Contas da União (TCU). Como dito, a roupagem de ato típico de governo e de reunião com caráter diplomático não são suficientes para afastar as constatações extraídas da análise do conteúdo da reunião, cronológica e devidamente situada.

Adicionalmente, como bem exposto pela Procuradoria-Geral Eleitoral (PGE), o Congresso Nacional, em 2021, optou por rejeitar a PEC nº 135/2019, que pretendia retificar o sistema de votação e de apuração em vigor. Com isso, a “reunião com representantes diplomáticos às vésperas do período eleitoral não poderia mais ser vista como esforço para debater o melhor sistema a ser adotado pelo Brasil – e isso, mesmo que o pronunciamento não contivesse graves insinuações à imparcialidade da Justiça e dados desprovidos de base fática autêntica e fidedigna. A decisão sobre o sistema digital já havia sido tomada e muito recentemente. A escusa do propósito republicano de contribuir para a melhoria das instituições, portanto, é descabida e não se sustenta em fundamento que impressione” (ID nº 158931404).

A circunstância, portanto, de ter sido um discurso proferido pelo Presidente da República em exercício acaba por fazer prova da gravidade dessa fala e de outras, igualmente trazidas aos autos, com caráter conspiratório a partir de mentiras e distorções, criadas pelo próprio Presidente, justamente porque foram protagonizadas pelo Chefe do Poder Executivo do país.

Como advertem Nancy Rosenblum (da Universidade de Havard) e Russell Muirhead (do Dartmouth College), quando se tem esse tipo situação, a gravidade emerge de maneira automática. Nas palavras desses estudiosos, a “conspiração presidencial é potente porque o Gabinete presidencial é, ele próprio, muito poderoso” (A Lot of people are saying. The national conspiracism and the assault on Democracy, Princeton: Princeton University Press, 2019, p. 59).

O uso do mais alto cargo dentro da Democracia representativa potencializa os resultados da ação do primeiro investigado.

A terceira e última dimensão que mencionei é a do receptor, ou seja, a quem se dirigiam as palavras proferidas. Aqui, resta inequívoco, ao contrário do que se pretende fazer crer, que o discurso foi dirigido para todo e qualquer interessado, em face de sua veiculação pela TV e ampla difusão perpetrada pelas redes sociais em plataformas digitais (Facebook e Instagram) do próprio primeiro investigado. Resta em total desacordo com as provas dos autos a afirmativa de que o discurso dirigiu-se apenas a embaixadores estrangeiros.

Enquadramento do conteúdo falso do discurso como ação coordenada no tempo (contexto) e a tática eleitoral contra a Democracia em benefício próprio

Verificada a existência de desinformação generalizada e desvio de finalidade na reunião ocorrida em 18.7.2022, com severos ataques ao sistema eleitoral, deve-se apurar, seu enquadramento na conduta prevista no art. 22 da LC 64/90, o que demanda também a verificação acerca da gravidade dos fatos, rememorando-se que a reunião foi transmitida na rede social do primeiro investigado e pela TV Brasil Distribuição, por intermédio da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), empresa pública.

É que apesar de os mesmos fatos terem sido objeto das representações mencionadas, nem toda punição via representação por propaganda representa uma automática constatação de abuso para fins de condenação em AIJE, uma vez que, como exposto, a verificação do ato abusivo demanda o comprometimento da normalidade e legitimidade do pleito a partir de atos de agentes públicos que, valendo-se dessa condição, beneficiam candidaturas a partir do desvio de finalidade, com gravidade a ser aferida em alto grau de reprovabilidade e na repercussão no equilíbrio da disputa eleitoral.

Diante da análise de todo o acervo probatório colacionado aos autos, verifica-se que os já mencionados ataques e as desinformações, apesar de terem sido inúmeros em uma mesma cerimônia, não constituíram um fato pontual ou isolado. Este aspecto apenas reforça constituírem uma estratégia maior, de caráter eleitoral, nos termos exatos em que delineio essa trama aqui.

Importante, portanto, observar o contexto no qual esteve inserida a referida reunião, sobretudo para fins de aferição da gravidade inerente à sistemática legalmente exigida.

Como bem observado pelo Relator na Decisão que determinou a suplementação instrutória, constata-se que as afirmações expostas na reunião de 2022 continham, para usar a expressão de Sua Excelência, um “fio condutor” (ID nº 158764809), uma fala que “possui marcadores cronológicos, que conectam passado, momento presente e projeções para o futuro” (ID nº 159049013).

Trata-se do contexto dos ataques, que não pode ser simplesmente ignorado ou desprezado, até porque fez-se notório, por força e empenho do próprio primeiro investigado.

A defesa do primeiro investigado, aliás, invoca o contexto ou “adequada contextualização” dos fatos, em mais de um momento, como imprescindível, ressaltando a importância de sua incorporação na análise jurídica. Assim ocorreu na fase de diligências, com o requerimento dos investigados para que jornalistas “responsáveis pela condução do programa ‘pingos nos is’” pudessem, em suas palavras, “contribuir com efetivos esclarecimentos sobre o contexto em que surgiu o interesse jornalístico”. Em suas alegações finais, de forma categórica, insistem, corretamente, que a análise deve ser “feita de forma contextualizada”, apesar de pretenderem, a partir dessa premissa válida, conclusões improváveis e insustentáveis no caso concreto.

Esse contexto maior, digamos assim, faz parte do próprio discurso proferido pelo então Presidente da República aos embaixadores em 18.7.2022. O contexto do discurso – aliás, insisto, referido como mensagem no próprio conteúdo do discurso – jamais poderia ser juridicamente descartado.

Também a esse respeito anoto que as afirmações falsas proferidas pelo primeiro investigado em momentos pretéritos, como ocorrido nas mencionadas lives, não são capazes de atenuar ou abrandar a natureza abusiva do conteúdo propalado na reunião de 2022, como se algo comezinho fosse. Pelo contrário, entendo que a reiteração da conduta reforça, em verdade, o objetivo sistêmico da tática empregada.

É inviável à Justiça ignorar fatos notórios e, mais ainda, devidamente comprovados nos autos, a fim de converter a realidade conhecida em uma versão forjada e fabricada dela própria. Não deixa de ser, em alguma medida, sintomático, que se pleiteie à Justiça Eleitoral a promoção desse isolamento artificial de certas frases ou afirmações, o que equivale a franquear a ampla manipulação, justamente um tipo de fala que, quando praticada por candidatos, há de constituir, por dever funcional, objeto da reprimenda e sanção eleitorais.

Nesse sentido, é possível constatar ataques infundados que se escoraram em boatos concernentes às eleições de 2014 e, nesse aspecto, ganha relevo a existência de uma cronologia acerca da tática adotada pelo investigado.

Como exposto nos autos pelo Relator e reafirmado pelo advogado do autor da AIJE em sua sustentação oral, “a fala possui marcadores cronológicos”. São elementos que, conforme o Relator, “conectam passado, momento presente, e projeções para o futuro: a) a alegada fraude ocorrida em 2018, passando pela advertência de que não poderia ter havido eleições em 2020 antes da ‘apuração total’ do ocorrido; b) a própria urgência de endereçar a mensagem aos embaixadores de países estrangeiros, na iminência do período eleitoral de 2022; e, por fim, c) a enfática reivindicação, somente compreensível nesse arco narrativo alarmista, de que as Eleições 2022 fossem ‘limpas, transparentes, onde o eleito realmente reflita a vontade da sua população’” (ID nº 158764809).

Destaco, a esse respeito e com a mesma compreensão acima exposta, o entendimento da PGE, para quem a “reunião com os diplomatas de 18.7.2022 deve ser compreendida, para efeitos da sua qualificação no âmbito do Direito Eleitoral, num contexto que supera o evento isoladamente considerado” (ID nº 158931404).

A existência de um arranjo no que concerne aos ataques infundados, a afastar a tese de se tratar de fato desconectado de um contexto maior, foi apontada pelo autor já em sua petição inicial, quando afirmou que de “acordo com os veículos de comunicação, o Senhor Jair Messias Bolsonaro questionou a integridade do sistema eleitoral brasileiro pelo menos 23 (vinte e três) vezes no ano de 2021” (ID nº 157940943).

O Relator, com base em seu legítimo poder instrutório, diligentemente, trouxe aos autos transcrições da degravação das lives de 29.07.2021 e 12.8.2021 e da entrevista concedida por Jair Messias Bolsonaro ao programa “Pingos nos is”, da Jovem Pan, em 4.8.2021, ocasiões nas quais o Inquérito Policial nº 1361/2018-4/DF foi abordado (ID nº 158764856, nº 158764865 e nº 158764866). Também fez juntar relatório técnico produzido pela STI/TSE a respeito do tema (ID nº 158764862), degravações e termos de depoimentos das pessoas envolvidas nas referidas lives e na referida entrevista (ID nº 158764861, nº 158764857 e nº 158764860, nº 158835190 e nº 158835192) e cópias extraídas da Petição 9.842/DF e do Inquérito 4.878/DF, ambos em trâmite no STF (ID nº 158764868 e nº 158764869).

Os investigados, por sua vez, também requereram cópia dos atos praticados no Inquérito 4.878/DF e que dizem respeito aos desdobramentos processuais da investigação das circunstâncias de divulgação do Inquérito Policial 1361/2018-4/DF (ID nº 158835933). O próprio Inquérito foi acostado aos autos (ID nº 158850900).

Visualiza-se, em suma, a partir de todo o acervo probatório, a ocorrência de um contexto de ataques, todos infundados, acerca dos acontecimentos de 2018. Nos termos em que se encontra amplamente exposta no Voto do Ministro Relator, não há qualquer elemento minimamente consistente que seja apto a fundamentar o alarmismo levado a efeito acerca dos acontecimentos de 2018.

Com a roupagem de debate público, o investigado, na realidade, proferiu sérias acusações sem estar amparado minimamente por um acervo comprobatório que sustentasse tais conjecturas, incorporando em seu discurso “invenções”, “mentiras grosseiras”, “fatos forjados” e “distorções severas” de informações. Não é pouco. Mais do que mentiras, forma-se um pool de perturbações severas à Democracia e às instituições com intuito eleitoral, nos termos que adiante especifico.

O que se constata é a reverberação de fatos inverossímeis, descontextualizados e despidos de mínima seriedade, inclusive já amplamente refutados publicamente, seja por meio de dados empíricos, de contraposição com os fatos a partir das ocorrências devidamente checadas e reportadas oficialmente, seja por meio de relatos e conclusões técnicas, conforme metodologia científica.

Não houve, como quer fazer crer o investigado, um mero “diálogo institucional” (ID nº 157977291), construído a partir da importância atinente à vigilância do sistema democrático pela comunidade internacional.

O que houve foi, em síntese, uma ação coordenada no tempo, com contexto bem definido, a fim de reforçar o engajamento de um determinado público, pela manipulação de mentiras em benefício eleitoral próprio.

A repercussão de discursos desinformativos (dimensão quantitativa da gravidade do possível abuso) é essencial para a tática adotada. A partir dos estudos de Niall Ferguson, em sua obra The Square and the Tower (A Praça e a Torre), seria equivocado aceitar que “a difusão de uma ideia ou ideologia é uma função de seu conteúdo inerente [...]. Nós precisamos agora reconhecer [...] que algumas ideias se tornam virais devido a aspectos estruturais da rede por que se espalham” (A Praça e a Torre: redes, hierarquias e a luta pelo poder global. p. 69, original não grifado). É o que se poderia designar como “mente da colmeia” (cf. Kevin Kelly, apud Franklin Foer, O Mundo que não pensa. Trad. Por Debora Fleck. Rio de Janeiro: LeYa, 2018, p. 34).

O engajamento que se provoca e a tática utilizada reafirmam que estamos diante de uma espécie de compartilhamento ideológico por bloco, apta de engajar novos indivíduos, porque é capaz de superar até mesmo fatos, dados empíricos e Ciência. Neste ponto, é crucial entender um pouco mais do funcionamento dessa nova realidade digital. Como bem observou Patrícia Campos Mello, uma das genialidades das redes (de sua estrutura e de seu uso) está exatamente na sua descentralização (A Máquina do Ódio: notas de uma repórter sobre fake news e violência digital. São Paulo: Companhia das letras, 2020, p. 41). A partir, digamos, de um gatilho, que pode ser uma postagem sobre certos conteúdos falsos e alarmantes, de pessoa com forte influência digital ou credibilidade oficial, apoiadores e entusiastas seguem e amplificam a mensagem, reforçando o estratagema eleitoral de forte perturbação do ambiente eleitoral e da conversão, que explicito adiante.

Com isso, fica também evidenciado que é insuficiente, para fins de compreender o que efetivamente ocorreu, averiguar o índice médio de audiência da TV Brasil no âmbito nacional, já que o uso desse canal oficial é apenas um dos gatilhos para viabilizar o estratagema maior que a Era digital propicia.

O Min. Dias Toffoli chama a atenção para essa circunstância em reflexão de grande alcance neste ponto. Adverte o Ministro que as atitudes de adesão “são determinadas [...] por simpatias ou afiliações a determinadas correntes políticas. Nesses episódios [...] muitas pessoas acreditam ter direito aos próprios fatos” (Sociedade e Judiciário na Era das Fake News e dos Engenheiros do Caos. In: LEWANDOWSKI, Ricardo, TORRES, Henelo, BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Direito, Mídia e Liberdade de Expressão: custos da Democracia. São Paulo: Quartier Latin, 2023, p. 31).

Para bem compreender como mentiras e ataques infundados ao sistema eleitoral e ao voto podem gerar benefícios eleitorais, é preciso dissecar o estratagema envolto nessas falsas afirmações.

É que, apesar de o espectro ideológico em uma sociedade rica e plural – como ocorre com a brasileira – ser de difícil delimitação e rotulação, constatamos o crescimento do fenômeno da polarização social. A partir daí, vislumbra-se um nefasto movimento, com o qual se busca a adesão integral às pautas extremistas, em uma espécie de tudo ou nada que permeia o espaço público e gera grupos sociais cada vez mais divididos e irreconciliáveis, fenômeno que Mariano Torcal chama de megaidentidades partidistas (TORCAL, Mariano. De votantes a hooligans: La polarización política em España. 1ª Ed. Madrid: Catarata, 2023, p. 21).

O uso de mentiras é utilizado, nesse contexto da polarização da sociedade, para conquistar novos seguidores, ao ativar um sentimento no cidadão comum de que não aderir ao polo que realiza as (falsas e hiperbólicas) denúncias equivaleria a uma conduta de aceitação categórica do imoral, do ilícito, da fraude.

Quero com isso apontar que não se está aqui a julgar a existência de um mero grupo de mentiras, simples verbalização (com tom oficial) de falácias, com profanação das instituições e do espaço público, mas sim uma estratégia político-partidária, de inequívoca disputa pelo voto (ainda que congregue, a um só tempo, mas enlaçadas entre si, outras “guerras”, como o ataque a Ministros, ao TSE e ao STF). Reforço, neste ponto, que a marca eleitoral encontra-se explicitamente estampada em inúmeras passagens do discurso, como se colhe do seguinte trecho:

“Me elegi Presidente da República gastando menos de 1 milhão de dólares. Repito: gastando menos de 1 milhão de dólares e dentro de um leito de hospital, após sofrer um atentado e uma facada de um elemento de esquerda, cujo inquérito não foi concluído, apesar dos enormes indícios de interesses outros se fazendo presente. [...] Gostaria de ver esse inquérito concluído, para chegar nos mandantes da tentativa de homicídio.”

A estratégia à qual me refiro é inequivocamente eleitoral e depende da disseminação de falsas informações, pautadas por uma identidade política, ou mesmo uma etiqueta ideológica, que não aceita, não tolera e relega como párea aquele que não toma para si a integralidade da agenda pautada, que é exatamente a agenda de desinformação e alarmismos infundados, postura essa que, em última análise, é uma das causas da própria polarização social em si. Os demais discursos carreados aos autos apenas reafirmam essa tática, que está presente no discurso proferido perante os embaixadores e em sua operacionalização (desde as convocatórias até a difusão nas redes e meios de comunicação).

O ataque decorrente das afirmações falsas, portanto, não é aleatório nem fruto de pequenos equívocos. Trata-se de estratégia que tem a capacidade de desestruturar a Democracia. Ela mina a confiança do cidadão em dados e metodologias sérias e científicas, ou, como bem coloca Tom Nichols, acaba por colapsar a relação entre experts e cidadãos, o que, uma vez bem sucedida, torna a própria Democracia disfuncional (The Death of Expertise: the campaign against established knowledge and why it matters. New York: Oxford University Press, 2017, p. 216). Essa tática mira obter a incapacidade social em diferenciar entre fatos e ficção, gerando o que já se tem denominado, não sem grande perplexidade, como a “decadência da verdade” (cf. Kavanaugh, Jennifer, and Michael Rich, Truth Decay: An Initial Exploration of the Diminishing Role of Facts and Analysis in American Public Life, Santa Monica, Calif.: RAND Corporation, RR-2314-RC, 2018. April 19, 2019: https://www.rand.org/pubs/research_reports/RR2314.html, acessado em 25 de junho de 2023).

Por isso, não há como convencer a tese da defesa no sentido de que o discurso ocorreu no contexto de melhoramento do sistema eleitoral, diante da recomendação do TCU para rever e aprimorar os processos públicos de segurança e transparência eleitorais (TC nº 014.328/2021-6, Acórdão nº 1611/2022) e da Portaria TSE nº 578/2021, que criou a Comissão de Transparência Eleitoral que, ao final dos trabalhos, acolheu 72% das sugestões.

É que o aprimoramento do sistema eleitoral, em um ambiente sério, passa por análises criteriosas acerca das reais dificuldades enfrentadas e das melhorias efetivamente necessárias, com base em um conjunto de dados seguros, com informações advindas de fontes oficiais e com preparo científico na metodologia de análise e crítica. Esse cenário, como exposto pelos investigados, de fato existe e é salutar, mas em muito se diferencia de ataques infundados, baseados em boatos, notícias já de longa data desmentidas reiteradamente e acusações desacompanhadas de fundamentação idônea, sobretudo advindas daquele que ocupa o mais alto cargo do Poder Executivo, adotadas com intuito eleitoral de benefício próprio.

Aliás, a necessidade de o TSE, na sequência do evento, expedir nota pública por intermédio da qual foram rebatidos os tópicos apresentados não transmuda o evento em um mero diálogo institucional. Que tipo de diálogo seria esse no qual existem, de um dos lados, ataques infundados e mentiras como estratégia discursiva prolongada no tempo? O resultado foi o de um cenário permanente de tensão e instabilidade, desde a primeira ocorrência, a obrigar um incrível dispêndio de esforços, com uso intenso de recursos humanos e materiais, para tentar bem esclarecer a população acerca das mentiras, distorções e falácias divulgadas amplamente e amplificadas pelo cargo ocupado por seu difusor.

A nota pública referida não só é incapaz de neutralizar a gravidade do ocorrido, em termos jurídicos, mas faz prova contrária. Essa medida, na realidade, reforça a gravidade da situação, tendo sido tomada justamente para conter a propagação de informações absolutamente inverídicas, que se inseria em uma estratégia específica, em contexto capaz não só de macular o juízo do eleitorado, mas também tencionar e abalar as estruturas da Democracia.

Bem por isso não é suficiente para afastar a gravidade a circunstância de os eleitores terem comparecido no dia da eleição para exercerem seu direito-dever de votar.

Some-se a isso a importante observação feita pela PGE, na linha de que as “críticas do Presidente da República, que assumiu a estatura de Chefe de Estado para proferi-las publicamente, somente têm como ser vistas como alerta para os brasileiros e para o mundo de que os resultados das eleições não podiam ser recebidos como confiáveis e legítimos, tudo isso, além do mais, num contexto em que pesquisas eleitorais situavam o adversário do investigado como melhor posicionado na preferência dos cidadãos” (ID nº 158931404).

O reforço da gravidade dos atos

Todo o quadro acima descrito, de uma tática firme e precisa de empreender um ambiente de definhamento da verdade, atesta a gravidade ímpar dos fatos no contexto em que foram praticados.

Elemento igualmente importante nessa análise, mas que apenas robustece ainda mais o aspecto da gravidade (que é requerida pelo art. 22 da LC 64/90), ou seja, documento que não é imprescindível às presentes conclusões, é a minuta do decreto de Estado de Defesa apreendida a partir de diligência deferida pelo Ministro Alexandre de Moraes no âmbito do Inquérito 4.879/DF em tramitação no STF.

Após a juntada do documento pela parte autora, os investigados requereram informações relativas à minuta diretamente do STF, o que foi deferido pelo Relator. Constata-se, com isso, a presença nos autos de Ofício da Suprema Corte com a documentação pertinente ao tópico (ID nº 158839056).

São diversos elementos que apontam para uma tática específica, que se revela pela existência, como exposto, de marcadores cronológicos aferíveis nas narrativas alarmistas.

Assim é que, como exposto no parecer da PGE, após “o ajuizamento da ação de investigação judicial eleitoral e depois das eleições, percebeu-se uma inédita mobilização de parcelas da população que rejeitavam aberta e publicamente o resultado do pleito, por não serem legítimas. É fato notório que surgiram acampamentos e manifestações de rua animados por pessoas convictas de que as eleições haviam sido fraudadas” (ID nº 158931404).

É absolutamente certo que um documento que só se tornou conhecido do público após o marco cronológico das eleições não pode ter influenciado ou perturbado o ambiente eleitoral do país. Ninguém está a sustentar essa tese, que seria absurda. O que ocorre é, como disse, um reforço do significado profundo das falas proferidas pelo então Presidente da República, primeiro investigado nesta ação.

A referida minuta de decreto de Estado de Defesa reforça o caos informacional instalado, a partir das falas aqui analisadas e com sua reprodução constante. O alcance do ato discursivo da falsidades e alarmismos infundados foi vasto e profundo na sociedade, em estratagema eleitoral inovador, só viável no marco de uma Era digital. A minuta reafirma esse aspecto. E isso se confirma, ainda, pela constatação firme de que esse ato discursivo se perpetuou no tempo, mesmo após o marco das eleições.

 

Benefício eleitoral mediante conduta altamente reprovável

 

O enquadramento da conduta na previsão do art. 22 da LC 64/90 exige, ainda, o beneficiamento a candidatura, por isso a necessidade da averiguação do cunho eleitoral do conteúdo.

De todo o exposto, resta indelével que a candidatura foi beneficiada por uma tática que perpassou todo o conteúdo do discurso proferido no âmbito da cerimônia aqui analisada, de maneira a agitar as bases eleitorais no sentido de canalizar votos para impedir que qualquer outro candidato, mas especialmente um deles, obtivesse vitória nas eleições de 2022, manipulando-se a polarização da sociedade em benefício eleitoral do investigado.  

A respeito do caráter eleitoral, importante notar que a classificação de determinado ato como típico de campanha não demanda necessariamente pedido de voto, comparação de governos ou exposição de projetos. O cunho eleitoral do evento é verificado a partir da veiculação de pautas típicas de campanha e, mais do que isso, de uma tática muito própria do investigado.

Uma vez observada a conjuntura de fatos relativos ao ato imputado, outra conclusão não se alcança senão a de que a realização de ataques infundados às instituições eleitorais, incutindo-se a falsa ideia de fraude sistêmica, estava inserida em uma estratégia eleitoral já conhecida, que promove um maior engajamento de sua base de eleitores a partir da construção de uma narrativa alarmista, preocupante e, sobretudo, com um tom ameaçador, tudo em um cenário no qual se encontrava melhor posicionado o adversário político nas pesquisas eleitorais.

Em última análise, o discurso robusteceu o envolvimento de parcela da sociedade que passou a se ocupar acerca de uma falsa causa atinente a problemas eleitorais e supostos conluios para alcançar o poder, resultando em elevados e reprováveis dividendos políticos para o investigado.

Para se chegar a essa conclusão, importante reforçar que a análise do conteúdo do discurso proferido é de extrema relevância. Foi possível compreender que o discurso do investigado não promoveu um debate legítimo de aprimoramento institucional, mas sim o impulsionamento de sua própria candidatura, manipulando a realidade e entregando o produto desse ato para sua base eleitoral, alarmando-a, com o propósito de ampliar o alcance da mensagem – construída a partir da instigação da ideia segundo a qual haveria um único curso natural de ação e um único resultado legítimo a ser aferido nas urnas, se se estiver dentro das quatro linhas da Constituição –, o que denota, como já fiz constar, também aqui de maneira inequívoca, a existência de uma estratégia eleitoral, embora não ortodoxa, como se extrai de diversas passagens do referido discurso:

Em 2014, a conclusão foi de que houve uma dúvida grave. Quem ganhou as eleições? Daria um capítulo, mas eu não vou entrar nesse capítulo aqui. Já está bastante curioso o que aconteceu em 2014.

[...]

O que nós entendemos aqui no Brasil é que, quando se fala em eleições, elas têm que ser totalmente transparentes, coisa que não aconteceu em 2018.

[...]

E repito, até hoje esse inquérito não foi concluído. Entendo que não poderíamos ter tido eleições em 2020 sem apuração total do que aconteceu lá dentro. Porque o sistema é completamente vulnerável, segundo o próprio TSE, e obviamente a conclusão da Polícia Federal.

[...]

Sempre ouvimos, em especial da esquerda, que ‘democracia não tem preço’. Por que uma declaração como essa? Será que já está antevendo que o candidato dele, que ele tornou elegível, vai ganhar as eleições? E o lado de cá teria reação? Que o resultado das eleições se cumpre. Nós estamos tentando antecipar um problema que interessa para todo mundo.

[...]

Como vocês viram no começo aqui, eu ando pelo Brasil todo. Sou muito bem recebido em qualquer lugar. Ando no meio do povo. O outro lado não. Sequer toma café ou almoça no restaurante do hotel. Come no seu quarto. Porque não tem aceitação. Agora, pessoas que devem favores a ele, não querem um sistema eleitoral transparente. Pregam o tempo todo que imediatamente após anunciar o resultado das eleições, os respectivos chefes de estado dos senhores devem reconhecer imediatamente o resultado das eleições.

[...]

A desconfiança do sistema eleitoral não tem lado. Nós não podemos enfrentar eleições a mando da desconfiança. Nós queremos ter a certeza de que quem eleitor votou, o voto vai exatamente para aquela pessoa. O próprio TSE diz que em 2018 os números podem ter sido alterados. (ID nº 157957944)

Assim é que, abandonando a análise da fala de 18.7.2022 por fragmentos, e adotando a análise do discurso na íntegra, capaz de capturar a mensagem nele presente, da forma como por diversas vezes insistiu a própria defesa, resulta inequívoco o caráter eleitoral, ancorado em uma condicionante, como bem observou o Ministro Relator, Min. Benedito Gonçalves: “Jair Messias Bolsonaro se anunciava disposto a aceitar o resultado das eleições, se as eleições fossem limpas. Afirmava isso à exaustão, impregnando o debate público com a mensagem implícita de que, inversamente, não estaria obrigado a aceitar resultados em caso de fraude eleitoral. Conforme se acostumou a dizer, preferia jogar ‘dentro das quatro linhas’, mas não recusava que pudesse ser levado a usar as armas ‘do outro lado’, sempre em uma suposta defesa da democracia”. Trata-se não de buscar, como elemento central, o desincentivo à participação eleitoral, embora este também seja um dos resultados desejáveis, especificamente em relação ao segmento populacional que não deseja o referido único resultado das “eleições limpas”. O objetivo central é a conquista de votos pelo estratagema digital nos termos em que explicitei acima.

O inequívoco propósito eleitoral da conduta aqui analisada é uma circunstância deveras importante, a exercer dupla função neste caso, pois tanto permite concluir pela ocorrência do abuso, na medida em que é um dos requisitos exigidos pelo texto do art. 22 da LC 64/90, como enaltece, ao lado de outras circunstâncias, a presença da gravidade, necessária à caracterização do ilícito e aplicação das sanções pertinentes.

A respeito da presença de uma dimensão eleitoral, noto que este Tribunal já entendeu pela aplicação da personalíssima sanção de inelegibilidade quanto a condutas consistentes em publicidades institucionais realizadas nas redes sociais da prefeitura municipal (AgR-REspe nº 0600362-93/CE, Rel. Min. Sergio Silveira Banhos, DJe de 24.3.2023), em desvirtuamento de projeto social mantido por ONG (AgR-AREsp nº 0600619-50/CE, Rel. Min. Carlos Horbach, DJe de 1.5.2023), em perfuração de poços artesianos em comunidades rurais em período vedado (AgR-REspe nº 0600172-10/CE, Rel. Min. Carlos Horbach, DJe de 3.11.2021), em concessão de cotas para a aquisição em farmácia local de medicamentos por parlamentares de base aliada (AgR-REspe nº 220-27/RN, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJe de 16.9.2021), dentre outras.

Como se verifica dos precedentes colacionados, em que pese haver a necessidade de prova robusta para fins de configuração da conduta abusiva, que só se verifica quando os atos forem graves o suficiente para afrontar a legitimidade do pleito, é o TSE extremamente rigoroso na análise dos casos afetos à matéria, justamente por buscar, com isso, proteger a higidez eleitoral. É por isso que a análise há de ser profunda, detalhista e não deve temer as consequências de uma investigação cabal.

Ainda a propósito da gravidade do caso em apreço – elemento inerente à caracterização do ilícito eleitoral, sem o qual não se permite sequer falar-se em conduta ilícita, ao contrário do que ocorre com grande parte dos ilícitos jurídicos – não há qualquer inovação jurisprudencial em seu reconhecimento, dadas as circunstâncias e provas apresentadas e devidamente ponderadas. Portanto, o que pretendem os investigados, no ponto, é uma completa revisão da jurisprudência da Corte, com perigosa inversão de sentido do que tem sido caracterizado como “grave”. Uma pretensão que se pode traduzir também como uma tentativa que, caso vitoriosa, reduzirá substancialmente o âmbito de atuação e o alcance da Justiça eleitoral na tutela da Democracia.

A gravidade da conduta, aliás, ganha ainda mais em robustez a partir da constatação de que houve veiculação da íntegra do vídeo do evento ocorrido em 18.7.2022 nas redes sociais de Jair Messias Bolsonaro (Instagram e Facebook). Conforme a inicial, “no Facebook, até o momento da elaboração desta petição inicial, a mídia alcançou cerca de 72.000 (setenta e duas mil) curtidas, 55.000 (cinquenta e cinco mil) comentários 589.000 (quinhentos e oitenta e nove mil) visualizações. Já no Instagram, a postagem atingiu cerca de 587.000 (quinhentas e oitenta e sete mil) visualizações e 11.000 (onze mil) comentários” (ID nº 157940943).

O evento valeu-se, ainda, da utilização do aparato estatal na medida em que a reunião foi realizada nas instalações do Palácio da Alvorada, em Brasília, bem como teve seu conteúdo veiculado por intermédio da TV Brasil Distribuição.

Uma das teses defensivas, construída ao argumento de que o público-alvo nem sequer detinha cidadania e capacidade ativa de sufrágio e que o tema foi a transparência no processo eleitoral, como mencionei acima, não se sustenta diante da ampla divulgação do evento em âmbito nacional. Divulgação devidamente preparada e executada pelo próprio investigado. Não houve, nesse sentido, uma reunião a portas fechadas, mas sim um evento aberto, com discurso amplamente difundido, como os números de acesso atestam.

Também não convence a argumentação na linha de que a documentação apresentada pela Casa Civil comprovou a trivialidade da organização de “evento simples, verdadeiramente ‘franciscano’” (ID nº 158914533), que teve um custo total correspondente a R$ 12.214,12 (doze mil duzentos e quatorze reais e doze centavos).

É que a fundamentação jurídica da demanda, como exposto, é o abuso na sua vertente política, e não econômica. Nesse sentido, a documentação advinda da Casa Civil demonstra claramente a movimentação da estrutura pública para fins de realização do evento, que, reitere-se, foi amplamente difundido tanto em redes sociais quanto pela TV Brasil Distribuição, por intermédio da EBC, empresa pública nos termos da Lei 11.652/2008. A gravidade encontra-se estampada nesse figurino utilizado para prolatar um discurso anti-institucional que buscava o benefício eleitoral.

 

Uso indevido dos meios de comunicação

 

A caracterização dos ilícitos de uso indevido dos meios de comunicação e de abuso do poder político tem elementos comuns entre si, não sendo o caso de retomar toda a análise já realizada a esse respeito.

As veiculações, que, na visão dos investigados, refletiriam mera transparência de um evento oficial e um possível diálogo institucional, consubstanciam verdadeiro uso indevido dos meios de comunicação social, constatação alcançável após a devida análise, anteriormente realizada, do conteúdo do discurso, do contexto e das estratégias reverberadas pelo tema tratado na reunião.

Especificamente sobre este ilícito, cumpre registrar que, conforme entendimento deste Tribunal, "o uso indevido dos meios de comunicação social caracteriza-se pela exposição desproporcional de um candidato em detrimento dos demais, devendo ser demonstrada gravidade nas condutas investigadas a tal ponto de implicar desequilíbrio na disputa eleitoral" (AgR-RO nº 0601586-22/CE, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJe de 13.9.2021). Além disso, "apenas os casos que extrapolem o uso normal das ferramentas virtuais é que podem configurar o uso indevido dos meios de comunicação social" (AIJE nº 0601862-21/DF, Rel. Min. Og Fernandes, Rel. designado Min. Jorge Mussi, DJe de 26.11.2019).

Os entendimentos já apresentados e detalhados por esta Corte sobre o assunto amoldam-se perfeitamente ao caso concreto, uma vez que ocorreu exposição desproporcional de um candidato, tanto por intermédio de suas redes sociais como a partir do uso de empresa pública federal, veículo não disponível aos demais concorrentes ao pleito, com evidente situação em que se extrapolou o uso normal das ferramentas virtuais, empregadas no caso para propagar ataques absolutamente infundados ao sistema eleitoral.

Sobre o uso indevido dos meios de comunicação, como muito bem observou o eminente Min. Relator em seu Voto, Min. Benedito Gonçalves: “Os dividendos eleitorais eram facilmente estimáveis ante a popularidade desse tipo de conteúdo na internet e o conhecido êxito das lives de 2021 para gerar e manter mobilização política de caráter altamente passional e impermeável a contestações factuais oriundas de fora da bolha”.

Com efeito, tem-se reunião na qual foram difundidas acusações sem fundamento mínimo racional, com ataques voltados ao sistema eleitoral que apenas beneficiaram a candidatura dos investigados, sem qualquer contribuição efetiva para o aprimoramento da Justiça Eleitoral e do sistema eletrônico de votação, tudo verificado em um contexto cronologicamente situado, com nítida abordagem de elementos pretéritos, voltados aos anos de 2014 e mais robustamente de 2018, do dia do evento, ocorrido às vésperas das eleições de 2022, e das consequências nefastas verificáveis na sequência a denotar uma estratégia abusiva de promoção eleitoral à custa da estabilidade democrática e da higidez do sistema eleitoral.

 

Responsabilidade do candidato a Vice-Presidente

 

A respeito do segundo investigado, candidato a Vice-Presidente da República, observo que foi suscitada sua ilegitimidade, o que restou afastada na análise das preliminares. Ocorre, contudo, que em incursão no mérito, importante averiguar aspectos acerca de sua participação nos fatos narrados, sobretudo diante da natureza personalíssima da penalidade de inelegibilidade prevista no inciso XIV do art. 22 da LC 64/90.

É essa, ademais, a compreensão deste Tribunal acerca do tema, no sentido de que “a sanção de inelegibilidade tem natureza personalíssima, por esse motivo incide apenas em face de quem efetivamente praticou ou anuiu com a prática da conduta” (REspe nº 0602010-31/PI, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe de 8.3.2021). Constata-se ainda que, no caso, os investigados não obtiveram sucesso nas urnas, o que importa reconhecer a perda de objeto em relação à penalidade de cassação de diploma. Contudo, “a decretação da inelegibilidade é autônoma em relação à cassação do diploma” (AgR-RO nº 246-88/AP, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe de 4.10.2022), remanescendo a necessidade de averiguação do grau de relevância do segundo investigado para fins de aplicação ou não, em relação a ele, da gravosa sanção de inelegibilidade.

Após análise detida das provas, não constatei a existência de elementos suficientes a indicar a prática de atos abusivos ou a anuência quanto a sua ocorrência, pelo segundo investigado. Importante observar que, na petição inicial, seu nome é indicado apenas no polo passivo e no relatório. Mesmo após densa instrução probatória, em alegações finais, o autor novamente só menciona o segundo investigado uma única vez no escorço processual, sem a atribuição de qualquer papel em relação a ele.

Com efeito, inexistentes elementos robustos no sentido de que o segundo investigado efetivamente praticou ou anuiu com a prática da conduta aqui reputada como abusiva, não se mostra cabível aplicar-lhe a gravosa sanção da inelegibilidade, que, apesar de autônoma em relação à cassação do diploma, detém natureza personalíssima e, por isso, demanda juízo seguro sobre a contribuição do investigado na prática do ato abusivo.

 

Conclusão

 

Firmada a competência da Justiça Eleitoral para a análise do caso concreto, considerada a inexistência de ampliação indevida da causa de pedir, compreendidas como legítimas as diligências suplementares determinadas pelo Corregedor – tomadas com suporte em autorização legal e em acórdão do Plenário deste Tribunal –, bem como inexistente qualquer ofensa ao direito à produção probatória e estando o polo passivo devidamente constituído, afasto todas as preliminares suscitadas nos autos.

Consequentemente, a partir da premissa voltada à possibilidade abstrata de enquadramento da conduta nas disposições do art. 22 da LC 64/90 e após minudente análise individualizada das afirmações constantes do discurso levado a efeito em 18.7.2022, resta inequívoco que seu conteúdo é permeado por ataques infundados ao sistema eletrônico de votação, com a disseminação de fatos inverídicos de maneira a criar uma narrativa alarmista, tudo com proveitos para a candidatura do investigado, considerado o acervo probatório apto a indicar a existência de um contexto cronologicamente situado de atuação, que robustece a constatação da gravidade da conduta por denotar a presença de uma estratégia abusiva de promoção eleitoral às custas da estabilidade democrática e da higidez do sistema eleitoral, levando-se ainda em conta, nesse cenário, a massiva divulgação dessas mentiras pelas redes sociais e por aparato estatal, entendo caracterizado o uso indevido dos meios de comunicação e abuso do poder de autoridade consistente no desvio de finalidade na realização de reunião com roupagem diplomática, mas com natureza eleitoral espúria.

Ante o exposto, acompanho o relator e julgo parcialmente procedentes os pedidos formulados na inicial, declarando a inelegibilidade de Jair Messias Bolsonaro para as eleições a se realizarem nos 8 (oito) anos subsequentes à eleição de 2022, nos termos do art. 22, XIV, da LC 64/90.

É como voto.

 

[1] Disponível em: < https://www.justicaeleitoral.jus.br/fato-ou-boato/checagens/tse-reune-conteudos-que-explicam-alegacoes-do-presidente-jair-bolsonaro/# >. Acessado em 16.6.2023.

[2] Disponível em: < https://www.tse.jus.br/hotsites/esclarecimentos-informacoes-falsas-eleicoes-2018/urna-autocompleta-voto.html >. Acessado em 16.6.2023.

[3] Disponível em: < https://www.justicaeleitoral.jus.br/fato-ou-boato/checagens/auditoria-do-psdb-nao-encontrou-fraude-nas-eleicoes-de-2014/# >. Acessado em 16.6.2023.

[4] Disponível em: < https://www.justicaeleitoral.jus.br/fato-ou-boato/checagens/supercomputador-do-tse-nao-e-servico-de-nuvem-estrangeiro-que-abre-brecha-para-fraude/# >. Acessado em 16.6.2023.

[5] Disponível em: < https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2022/Junho/mais-de-70-das-propostas-da-cte-foram-acolhidas-para-as-eleicoes-2022 >. Acessado em 16.6.2023.

[6] Disponível em: < https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2022/Julho/veja-os-aprimoramentos-do-processo-eleitoral-a-partir-das-sugestoes-da-cte >. Acessado em 16.6.2023.

[7] Disponível em: < https://www.justicaeleitoral.jus.br/fato-ou-boato/checagens/tentativa-de-ataque-hacker-ao-sistema-do-tse-nao-viola-seguranca-das-urnas/# >. Acessado em: 16.6.2023.

[8] Disponível em: < https://www.justicaeleitoral.jus.br/fato-ou-boato/checagens/tse-reune-conteudos-que-explicam-alegacoes-do-presidente-jair-bolsonaro/# >. Acessado em 16.6.2023.

[9] Disponível em: < https://www.justicaeleitoral.jus.br/fato-ou-boato/checagens/outros-paises-alem-de-brasil-butao-e-bangladesh-usam-urnas-sem-voto-impresso/# >. Acessado em: 16.6.2023.

[10] Idem.

[11] Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=tkxvL281gZI >. Acessado em: 16.6.2023.

[12] Disponível em: < https://www.justicaeleitoral.jus.br/fato-ou-boato/checagens/tse-reune-conteudos-que-explicam-alegacoes-do-presidente-jair-bolsonaro/# >. Acessado em: 16.6.2023.

[13] Disponível em: < https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2021/Agosto/nota-a-imprensa >. Acessado em: 16.6.2023.

[14] Disponível em: < https://www.justicaeleitoral.jus.br/fato-ou-boato/checagens/nao-e-verdade-que-o-tse-se-nega-a-cumprir-lei-que-determinava-impressao-do-voto/# >. Acessado em: 16.3.2023.

 

SUSPENSÃO DO JULGAMENTO

 

O SENHOR MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES (presidente): Eu suspendo o julgamento. Vamos encerrar a sessão.

Continuaremos amanhã na sessão, a partir das 12h.

 

PROCLAMAÇÃO DO RESULTADO (provisório)

 

O SENHOR MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES (presidente): E proclamo o resultado parcial: retomado o julgamento, o Ministro Raul Araújo divergiu do relator para acolher a preliminar de indevida ampliação objetiva da demanda e, no mérito, julgar improcedente a ação.

Acompanharam, integralmente, o relator, o eminente Ministro Benedito Gonçalves, os Ministros Floriano de Azevedo Marques e André Ramos Tavares no sentido de não conhecer da preliminar de incompetência da Justiça Eleitoral e da prejudicial de redelimitação da demanda. Rejeitada a preliminar de ilegitimidade passiva ad causam do segundo investigado e a alegação de nulidade processual. Indeferido o requerimento de reabertura de instrução.

E, no mérito, julgar parcialmente procedente o pedido para condenar o primeiro investigado, Jair Messias Bolsonaro, pela prática de abuso de poder político e pelo uso indevido de meios de comunicação nas Eleições de 2022 e declarar sua inelegibilidade por 8 (oito) anos seguintes ao pleito de 2022, deixando de aplicar a cassação de registro de candidatura dos investigados, exclusivamente, em virtude de a chapa beneficiária das condutas abusivas não ter sido eleita e deixando de declarar a inelegibilidade do segundo investigado, Walter Souza Braga Netto, em razão de não ter sido demonstrada a sua responsabilidade para a consecução das práticas ilícitas comprovadas nos autos.

Por fim, também acompanharam o eminente relator, determinando a comunicação imediata da decisão à Secretaria da Corregedoria-Geral Eleitoral para que, independentemente de publicação do acórdão, promova a devida anotação no histórico de Jair Messias Bolsonaro, no cadastro eleitoral, da hipótese de restrição à sua capacidade eleitoral passiva; à Procuradoria-Geral da República, para análise de eventuais providências na esfera penal; e ao Tribunal de Contas da União, considerando-se o comprovado emprego de bens e recursos públicos na preparação do evento em que se consumou desvio de finalidade eleitoreira, além de envio de cópias ao Ministro Luiz Fux e a mim, em virtude de inquéritos no Supremo Tribunal Federal.

Em seguida, o julgamento do processo foi suspenso.

 

EXTRATO DA ATA

 

AIJE nº 0600814-85.2022.6.00.0000/DF. Relator: Ministro Benedito Gonçalves. Representante: Partido Democrático Trabalhista (PDT) – Nacional (Advogados: Walber de Moura Agra – OAB: 757-B/PE e outros). Representados: Jair Messias Bolsonaro e outro (Advogados: Tarcisio Vieira de Carvalho Neto – OAB: 11498/DF e outros).

Decisão: Na sessão de 27.6.2023, o relator votou no sentido de  (i) não conhecer da preliminar de incompetência da Justiça Eleitoral e da prejudicial de "redelimitação" da demanda, (ii) rejeitar a preliminar de ilegitimidade passiva ad causam do segundo investigado e a alegação de nulidade processual; (iii) indeferir o requerimento de reabertura da instrução; e, no mérito, julgar parcialmente procedente o pedido, para condenar o primeiro investigado, Jair Messias Bolsonaro, pela prática de abuso de poder político e pelo uso indevido de meios de comunicação nas Eleições 2022 e declarar sua inelegibilidade por 8 (oito) anos seguintes ao pleito de 2022, deixando de aplicar a cassação do registro de candidatura dos investigados, exclusivamente em virtude de a chapa beneficiária das condutas abusivas não ter sido eleita, e deixando de declarar a inelegibilidade do segundo investigado, Walter Souza Braga Netto, em razão de não ter sido demonstrada sua responsabilidade para a consecução das práticas ilícitas comprovadas nos autos; por fim, determinou a comunicação imediata da decisão (a) à Secretaria da Corregedoria-Geral Eleitoral para que, independentemente da publicação do acórdão, promova a devida anotação no histórico de Jair Messias Bolsonaro no Cadastro Eleitoral da hipótese de restrição a sua capacidade eleitoral passiva; (b) à Procuradoria-Geral da República, para análise de eventuais providências na esfera penal; (c) ao Tribunal de Contas da União, considerando-se o comprovado emprego de bens e recursos públicos na preparação de evento em que se consumou o desvio de finalidade eleitoreira; e (d) ao Ministro Alexandre de Moraes, na condição de relator, no STF, dos Inquéritos n° 4878/DF e 4879/DF, e ao Ministro Luiz Fux, na condição de relator da Petição nº 10.477/DF, para ciência e providências que entenderem cabíveis.

Retomado o julgamento na sessão de hoje, o Ministro Raul Araújo divergiu do relator, para acolher a preliminar de indevida ampliação objetiva da demanda, rejeitando as demais preliminares e, no mérito, julgou improcedente a ação.

Acompanharam integralmente o relator, os Ministros Floriano de Azevedo Marques e André Ramos Tavares. Na sequência, o julgamento do processo foi novamente suspenso.

Aguardam os votos da Ministra Cármen Lúcia, e dos Ministros Nunes Marques e Alexandre de Moraes (presidente).

Registradas as presenças, no Plenário, do Dr. Walber de Moura Agra e da Dra. Ezikelly Silva Barros, advogados do representante, Partido Democrático Trabalhista (PDT) – Nacional; e do Dr. Tarcisio Vieira de Carvalho Neto, advogado dos representados, Jair Messias Bolsonaro e Walter Souza Braga Netto. 

Composição: Ministros Alexandre de Moraes (presidente), Cármen Lúcia, Nunes Marques, Benedito Gonçalves, Raul Araújo, Floriano de Azevedo Marques e André Ramos Tavares.

Vice-Procurador-Geral Eleitoral em exercício: Carlos Frederico Santos.

 

SESSÃO ORDINÁRIA REALIZADA EM REGIME HÍBRIDO EM 29.6.2023.

VOTO ORAL

A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA: Senhor Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Ministro Alexandre de Moraes,Senhores Ministros, que cumprimento na pessoa do Ministro Corregedor e Relator deste caso, Ministro Benedito, Senhor Subprocurador-Geral Eleitoral, senhores advogados, senhores servidores, profissionais da imprensa, todos que nos acompanham.

Senhor Presidente, este caso que, nesta quarta sessão, vem se desdobrando no julgamento, foi objeto de relatório extremamente minucioso, aprofundado, do eminente Ministro Relator, portanto, acho que não é o caso de voltar na parte do relatório, e, também até pelas condições desta ação, Presidente, tenho um voto muito alongado, que nem é muito do meu feitio e que, evidentemente, não farei a leitura pela singela circunstância de que isso se deve às provas, análise de tudo que se contém nos autos. E eu farei a juntada, porque são mais de cem páginas.

Farei apenas uma síntese do que se tem no meu voto escrito, para que se tenha conhecimento, mas, de pronto, com todas as vênias do eminente Ministro Raul Araújo, estou anunciando a Vossa Excelência e aos Senhores Ministros que estou acompanhando o Ministro Relator na conclusão pela parcial procedência, com a aplicação da sanção de inelegibilidade ao primeiro investigado, Jair Messias Bolsonaro, e declarando improcedente o pedido em relação ao segundo investigado, Walter Souza Braga Netto.

Trago voto, Presidente, a partir do objeto que foi traçado, desde a exposição feita pelo Ministro Relator.

Esta é uma Ação de Investigação Judicial Eleitoral, prevista com as especificidades deste caso, deste tipo de ação, que já foi objeto de muitos cuidados aqui. Ela tem uma parte, uma natureza de investigação, e, por isso, tantos desdobramentos, relativos ao motivo, às provas, porque ela tem a peculiaridade de ser exatamente uma representação, um ajuizamento feito diretamente ao Corregedor-Geral, para investigação, se for o caso, o processamento – e foi o que se deu.

O objeto aqui é uma representação, formulada pelo PDT, partido brasileiro, contra a ocorrência de uma reunião ocorrida, e não há controvérsia sobre isso, no dia 18 de julho de 2022, no Palácio da Alvorada, com chefes de missões diplomáticas, convocada a reunião e convidados esses chefes pelo então Presidente da República, que é o primeiro investigado. Este é o objeto. Eu fiz a minha análise, o estudo do caso e o meu voto exatamente com a delimitação deste objeto. E é isto que aqui se contém.

Não lidei com fatos anteriores, embora, claro, a vida seja um processo mesmo; há uma série de atos encadeados que se somam e se explicam até se ter uma conclusão, uma ocorrência, mas o que está em exame aqui não é o filme. O que está aqui em apreciação é uma cena, é aquilo que aconteceu e sobre o qual não se controverte nos autos. Ocorreu, portanto, essa reunião, e nessa reunião, em monólogo, o primeiro investigado, que então, como disse, era Presidente da República e já se reconhecia a menos de três meses das eleições do ano passado, como candidato à reeleição para o cargo, como ele mesmo põe, em várias passagens daquela peroração, que se cuidava ali de uma exposição basicamente sobre alguns temas. Todos eles relativos à eleição que se aproximava. Este é o objeto, é isso que foi cuidado; as provas foram produzidas. Por quê? O autor da ação questiona a licitude daquela reunião, considerando que a Constituição da República, no § 9º do art. 14, estabelece que haverá de o legislador complementar, que, no caso, é a Lei Complementar n. 64/1990, com as alterações que sobrevieram, estabelece que há que se proteger o sistema constitucional contra qualquer ato que tisne a probidade, a moralidade administrativa, o abuso do poder econômico e a normalidade e a legitimidade das eleições, em caso de abuso no exercício de cargo, emprego ou função pública.

Nos termos, portanto, deste dispositivo constitucional, é que se tem, então, a lei complementar, e este é o fundamento jurídico, o enquadramento jurídico dado e no art. 22 se estabelece exatamente a possibilidade de partido político, ou outros agentes, poder representar diretamente ao Corregedor-Geral relatos de fatos que podem ser considerados ilícitos.

Foi trazido neste caso argumentação de que haveria ilicitude naquele comportamento, naquele enquadramento dado, naquela ocorrência havida no Palácio da Alvorada, na data, no local e com o teor, o discurso especificado. E haveria um ilícito, porque teria havido o abuso do exercício daquele cargo e o uso indevido de meios de comunicação, porque foi transmitido pela EBC e, mais que isso, nas mídias sociais. E poderia reverberar, portanto, em detrimento da normalidade, da lisura e da legitimidade das eleições.

Este o quadro, e, por isso mesmo, até mesmo quanto às preliminares estou acompanhando, Ministro Relator, mas faço  apenas três observações no meu voto. Transcrevo todas, mas faço observações.

Primeiro, sobre o que se alegou não sendo pertinente que a Justiça Eleitoral tratasse deste assunto, ou fosse competente para essa impugnação, esse questionamento. Quanto a este dado, teço considerações mais específicas, no meu voto, acompanhando as ilações de Vossa Excelência e a conclusão. A Justiça Eleitoral é competente, por determinação constitucional, por definição legal, porque estamos aqui a tratar de uma ocorrência comprovada, não contestada, que teria, de alguma forma, tisnado, ou poderia tisnar a normalidade do pleito eleitoral, o equilíbrio e a lisura da disputa eleitoral. E é isso que se averiguou, que se investigou e que se julgou, até aqui é o que está em julgamento, a normalidade e a legitimidade do pleito eleitoral, e, eventualmente, o que  poderia ser considerado contrário aos princípios constitucionais. E estes são expressos e de aplicação desde 5 de outubro de 1988, como está no art. 37 da Constituição da República. Portanto, a Justiça Eleitoral é competente, e em meu voto, Senhor Presidente, Senhores Ministros, eu até faço um rebuscamento um pouco maior. Há muito questionamento, até porque nós julgamos, com alguma frequência, esse tipo de ação, basicamente em relação a casos que se dão nos municípios e até mesmo estaduais. E claro que é sério, é grave, como todo julgamento, porque o eleitor precisa de saber por que ele poderia ter votado, ou por que ele votou, e, neste caso, não foram poucos os votos, quase cinquenta milhões de votos não são poucos. É preciso saber por que estamos julgando e como estamos julgando. Estamos julgando para cumprir um dever constitucional, que é a jurisdição. Não se escolhe, não se quer e não é boa nem fácil a função de julgar; ela é necessária. E é nesse sentido que a competência da Justiça Eleitoral é fixada, e estamos desempenhando um dever.

Também vi alguns questionamentos, não da parte da defesa aguerrida e, devo dizer, muito eficiente defesa do Doutor Tarcisio, como é também a do autor, Doutor Walber, que a Justiça Eleitoral não deveria estar a cuidar desse tema, considerando que já houve as eleições e que os eleitores já se manifestaram. Na sessão de terça-feira, o Ministro Relator já tinha feito referência a que, num Estado Democrático de Direito, é preciso ter aceitação e é preciso ter, e mesmo aquela que é manifestada nas urnas; mas é preciso ter cumprimento do direito, se não não se teria o Estado de Direito. E o papel do Poder Judiciário é basicamente esse, segundo o modelo estabelecido em lei. Não é escolha, não é decisão do Judiciário. O Judiciário aplica a lei.

Nós já tivemos modelo, Presidente, até 2010, em que a pessoa poderia até mesmo numa prisão ser eleita. Era essa a lei e era aplicada. E só para fazer a lembrança deste estado de  normatividade que nós tínhamos, em 2004, um suposto, ou que tinha sido denunciado como mandante de três crimes de homicídio de fiscais do Ministério do Trabalho e um motorista, foram assassinados, o suposto mandante, ou denunciado, foi preso, as eleições aconteceram. Ele recebeu 72% dos votos, esse caso, que ficou conhecido tragicamente como “Chacina de Unaí”, fez com que o Ministro Sepúlveda Pertence, Ministro desta Casa, duas vezes Presidente, e um dos maiores brasileiros que nós temos, dizia: “será diplomado e será empossado, porque esta é a lei e não compete à Justiça Eleitoral questionar a escolha legislativa”, embora também tenha havido muito questionamento como é que se deixava alguém preso ser eleito, porque a legislação previa e era este o limite da Justiça Eleitoral. Por causa de situações como essa é que mais de 1,5 milhão de eleitores brasileiros, cidadãos eleitores, porque têm que mostrar o seu título de eleitor, formularam e propuseram um projeto de lei que foi encaminhado e votado pelo Congresso Nacional, a quarta lei de iniciativa popular, a Lei Complementar n. 135/2010, a chamada Lei de Ficha Limpa, que alterou esse quadro porque não era considerado aceitável pelos eleitores brasileiros que alguém condenado e cumprindo pena de prisão pudesse ser eleito e exercer as funções de cargo a partir de uma cela. E hoje, exatamente por conta dessa mudança, uma das exigências é que se atenda, agora na forma da lei complementar, nos termos previstos, para que o legislador atuasse, e foi elaborado pelo povo brasileiro, como eu disse, uma Lei da Ficha Limpa, estabelecendo exatamente o deque nós estamos aqui cuidando e cujo como fundamento jurídico da decisão agora tomada, ou do julgamento formulado, que é a aplicação do art. 22, basicamente nos incs. XIV e XVI, da Lei Complementar 64/1990, com as alterações que foram formuladas.

Portanto, é competente a Justiça Eleitoral, e competência no caso do espaço estatal não é um querer, não é um poder no sentido de que pode ou não; é um dever, e assim nós estamos cumprindo. Apenas para ficar devidamente explicado.

Um outro dado que eu também chamo a atenção, Ministro Benedito, diz respeito à definição do objeto. Vossa Excelência se debruçou,  os Ministros que votaram antes de mim também, sobre o argumento de que teria havido aqui um alargamento do objeto. Não me convenci disso, a despeito de ter feito uma análise muito minudente do que foi apresentado pela nobre defesa, mas não me convence exatamente porque aqui se tinha, desde o início, uma investigação posta sobre um quadro, uma ocorrência, e foi isso o que foi feito, e a legislação estabelece que essa investigação será feita para considerar as circunstâncias, as condições, os indícios e as provas. Isso é literal na lei. E foi isso que a Corregedoria fez e que apresentou com todo o rigor para a sequência do julgamento.

E também um último dado, daquelas preliminares que já foram devidamente cuidadas pelos juízes que me antecederam, que uma das testemunhas não teria sido ouvida.

Em primeiro lugar não se comprovou a imprescindibilidade dessa testemunha, e em segundo lugar nós temos uma legislação e uma jurisprudência amplamente e fortemente consolidada no sentido de que o juiz haverá de verificar a pertinência das provas que são requeridas, até porque senão alguns julgamentos não acabariam nunca mais se fosse ficar à vontade, ao nuto de uma das partes. Enfim, estou acompanhando nas preliminares, Senhor Presidente, o Ministro Relator. Faço isso pormenorizadamente, com detalhamento no voto.

E no mérito, apenas para firmar, eu me baseei no enquadramento jurídico no § 9º do art. 14 da Constituição da República , que trata, como acabei de dizer, exatamente da possibilidade ou da necessidade de se garantir a normalidade e a legitimidade das eleições contra abuso no exercício de cargo, função ou emprego público. E essa lei é a Lei Complementar n. 64/1990, em cujo art. 22 se estabelece a possibilidade de ajuizamento de uma Ação de Investigação Judicial Eleitoral, como estamos fazendo.

Os fatos são incontroversos, a reunião aconteceu, foi convocada pelo então Presidente da República, que aqui é o primeiro investigado, o teor está disponibilizado, está nos autos, foi examinado por todos, foi transcrito, não houve negativa de que aquilo tenha acontecido e nos autos se contêm:

Primeiro como se deu a organização dessa reunião. Essa reunião, se afirmou muito e a defesa dizia que não continha conteúdo eleitoral – e não vou fazer a leitura porque já foi feita em várias ocasiões, Presidente –, mas o então Presidente, no monólogo, e se tratava efetivamente de um monólogo e apenas isso, porque ele foi o que falou, não houve perguntas, não houve inscrição para perguntas. Foi apenas uma exposição. Nessa exposição havida se tem exatamente que teria havido a convocação no dia 13 de julho, quarta-feira, para segunda-feira, quando se deu a reunião. Não se contou, e se fala muito neste caso que houve no discurso muitos ataques ao Poder Judiciário, basicamente na figura de alguns dos seus integrantes, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral, mas até mesmo a leitura e o estudo dos autos mostram que nem sequer o Poder Executivo, os órgãos do Poder Executivo foram respeitados. Por decreto, por norma expressa, a organização desses eventos se dá, quando se trata de ato de governo, exatamente ao Itamaraty. E perguntado, e já foi lida aqui mais de uma vez, o então Ministro das Relações Exteriores Carlos França disse que não sabia, não participou, que apenas foi instado para oferecera tradução.

Enfim, essa organização se deu por um grupo que seria pequeno, ligado ao então Presidente da República, com objetivo muito específico, como fica comprovado, no sentido de apresentar ele o seu monólogo, porque lhe parecia apropriado promover os ataques,  no monólogo no qual se teve a autopromoção, que é comprovada pelas transcrições que foram feitas e aqui lidas no voto do Ministro Relator, também ontem no voto do Ministro Floriano, também no meu voto estão transcritos, quando se diz “o Brasil está voando etc.”, já estávamos a praticamente três meses das eleições, como o primeiro investigado repete. Há referências, que também aqui já foram repetidas, de desqualificação de Luiz Inácio Lula da Silva, que seria o adversário, nas urnas, do primeiro investigado. Houve agravos contundentes contra o Poder Judiciário, a desqualificação do Poder Judiciário, um ataque deliberado, com a exposição de fatos que já tinham sido também objetiva, formal e profundamente refutados por este Tribunal Superior Eleitoral.

Os ataques ao Poder Judiciário se deram com nomeação de alguns dos Ministros, como os ex-Presidentes desta Casa, Ministro Roberto Barroso e Ministro Luiz Edson Fachin, e também a Vossa Excelência, Presidente, de uma forma extremamente gravosa e contundente. É preciso que se saiba que a crítica feita ao Poder Judiciário e a crítica feita a nós juízes ou a todo servidor público acontece em relação às instituições e a todos os seus integrantes e não apenas ao que é mencionado. E aí eu posso falar de cátedra, porque nos últimos tempos nós temos sido fustigados com toda acidez, com todas as críticas. E a crítica faz parte. O que não é aceitável é um servidor público, no espaço público, no equipamento público, com a divulgação pela EBC e pelas redes sociais oficiais fazer ataques desarrazoados contra Ministros do Supremo Tribunal Federal, como se não estivesse atingindo a própria Instituição, e não há democracia sem Poder Judiciário independente. Portanto, o que se tem é um ataque direto e sem causa lícita a um dos Poderes da República e à própria Constituição, base da democracia do Estado de Direito.

A alegação que é feita, sem que houvesse provas, contra o processo eleitoral, contra a Justiça Eleitoral, contra os ministros desta Casa, não tinha razão de ser, a não ser efetivamente desqualificar a própria Justiça Eleitoral e o Poder Judiciário e com isso atacar-se a democracia.

Devo dizer, Presidente, não precisaria, mas como, além de colega no Supremo Tribunal Federal, como colega de cátedra, de  Direito Constitucional tanto do Ministro Roberto Barroso, quanto do Ministro Fachin, quanto de Vossa Excelência, que todos os três são pessoas cuja notabilidade do saber são óbvias. Ninguém perguntou quando um desses três foi nomeados: “Quem era Barroso?” “Quem era Fachin?”, todo mundo sabia quem era cada um deles. A notabilidade estava posta, a notabilidade do saber. Então é preciso que haja comprometimento, respeito para que se tenha confiabilidade, sem o quê não existe democracia.

A base de uma cultura democrática se dá assim e nós servidores públicos temos muito mais o dever de respeito, porque sem isso se tem, Presidente, eu vou usar aqui uma expressão, que é do Carnelutti, mas que se aplica ao abuso de poder no processo civil e serve também  aqui, que é o que o Carnelutti chama de consciência de perverter. Diz Carnelutti: “A consciência de saber que não tem razão e ainda assim expor como se tivesse sabendo que não a tem e com isso se perverte a confiabilidade”. Refere-se ele ao processo, mas vale também para o processo democrático, como para o processo judicial. Aliás, o dever de não falsear é do processo democrático, como processo político, que é dever de todos nós cidadãos, muito mais dever que nós servidores públicos temos.

Isso aconteceu, está comprovado, estou transcrevendo no meu voto todas as passagens que tanto demonstram. A nobre defesa afirma que teria havido um diálogo institucional. Não me convencem as razões porque quando se afirma, por exemplo, que quem atenta contra as eleições e a democracia. “Quem faz isso? O próprio TSE (...)” – disse naquela ocasião o primeiro investigado –  “(...) ao esconder, ao tentar esconder o inquérito tal”. Tudo isso tinha sido comprovado como afirmações mentirosas e sobre tal alegação tinha sido antes devidamente esclarecido.

Depois, ao tentar desqualificar as próprias missões de observadores que se tem no mundo todo. Participamos como convidados e sempre convidamos a virem aqui. E naquela ocasião, entre as muitas passagens que eu poderia citar para comprovar o abuso, o primeiro investigado afirma: “No Brasil não tem como acompanhar a apuração. Eu não sei o que vêm fazer os observadores de fora aqui. Vão fazer o quê? Vão observar o quê? Se o sistema é falho, segundo o próprio TSE. É inauditável, também segundo a auditoria externa pedida por um partido político”.

Isto tudo para desqualificar, com essa consciência de perverter que faz com que, não apenas o ilícito tenha acontecido colocando em risco a normalidade, a legitimidade do processo eleitoral e, portanto, da própria democracia, mas isso foi divulgado, ou seja, com o uso indevido dos meios de comunicação para solapar a confiabilidade de um processo sem o qual nós não teríamos sequer o Estado de Direito, porque a Constituição da República não se sustentaria.

A legislação impõe que a Justiça Eleitoral verifique a gravidade quantitativa e qualitativa, o que também foi feito e exposto com muita maestria no voto do Ministro Benedito. A gravidade quantitativa comprova-se pela exposição que foi feita com o uso indevido dos meios de comunicação oficiais. E a qualitativa porque exatamente se alcançou não apenas eleitores, como diz a defesa e é verdade, os chefes de missões diplomáticas não são eleitores, mas são pessoas que reverberam.

Devo dizer, Presidente, que se tem notícia que no dia 28, anteontem, até numa leitura feita no Conselho de Direitos Humanos da ONU, o senhor Clément Voule teria lido, como Relator da ONU para esses casos, ele passou no Brasil no ano passado, e teria lido exatamente dando notícia de que houve a tentativa de desqualificação das urnas eletrônicas e da Justiça Eleitoral, o que significa que a gravidade disso vai para além daquele momento, mas eu estou examinando neste momento o que poderia e qual é a força dessa desqualificação que poderia ter gerado consequências muito maiores. E como se afirmou o legislador brasileiro no inc. XVI do art. 22 da Lei Complementar n. 64/1990, não se verifica qual foi o efeito gerado naquele momento, mas a potencialidade deste efeito.

A gravidade também ficou devidamente comprovada, como mostrou o Senhor Corregedor-Geral, Relator deste caso. E por todos os motivos, Senhor Presidente, como disse a Vossa Excelência, inicialmente afirmei, estou votando pela procedência do pedido, nos termos do voto Ministro Relator, para aplicar a sanção prevista no inc. XVI do art. 22.

Devo dizer que a lei não modula nem dá possibilidade de ser um pouco mais ou um pouco menos, ela fixa exatamente o que se tem a adotar como sequência jurídica pelo que foi comprovado. Portanto, aqui não poderia ter sido outra decisão, não poderia ter sido uma multa, nós já julgamos este caso, precedente que também foi muito citado, sobre propaganda eleitoral, a significar que a reunião tratou e teve caráter eleitoreiro, por isso mesmo foi considerada propaganda eleitoral, mas o mesmo fato pode gerar e gera consequências no plano eleitoral e até em outros níveis, em todos os ramos do Direito, no Eleitoral não é diferente.

Por isso estou acompanhando exatamente para dar aplicação ao inc. XVI do art. 22 da Lei Complementar n. 64/1990, condenando, portanto, o primeiro investigado pela prática de abuso de poder político no exercício de cargo da administração pública, de governo, de uso indevido dos meios de comunicação nas eleições de 2022 e, por conseguinte, declarar a inelegibilidade nos oitos anos seguintes ao pleito daquele ano, 2022, e julgando improcedente o pedido em relação ao segundo investigado, uma vez que nada se comprovou em relação a alguma participação ou prática dele no evento, na reunião, que é o objeto precípuo aqui investigado e objeto deste julgamento.

Também estou acompanhando o Relator, Senhor Presidente, nas providências por ele adotadas, determinadas exatamente no encaminhamento a Vossa Excelência, ao Ministro Fux, ao Tribunal de Contas, ao Ministério Público ´para as providências cabíveis.

É como voto, Senhor Presidente, e farei a juntada, portanto, do voto na íntegra, depois que fizer as últimas correções.

O SENHOR MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES (presidente): Agradeço a nossa Vice-Presidente, Ministra Cármen Lúcia, que acompanhou integralmente o eminente Ministro Relator.

Passo a palavra ao Ministro Kássio Nunes Marques para o seu voto.

 

 

VOTO

 

Relatório

 

A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA: Senhor Presidente,

1. Ação de Investigação Judicial Eleitoral ajuizada em 19.8.2022 pelo Diretório Nacional do Partido Democrático Trabalhista (PDT) contra Jair Messias Bolsonaro, candidato à reeleição para Presidente da República em 2022, e Walter Souza Braga Netto, candidato à Vice-Presidente na chapa do primeiro investigado. Alega-se ser causa do pedido a prática de abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação.

 

O caso

 

2. Em 18.7.2022, Jair Messias Bolsonaro, então no cargo de Presidente da República e candidato à reeleição, reuniu-se no Palácio da Alvorada com Chefes de Missões Diplomáticas de Países estrangeiros acreditados no Brasil, para, segundo narra o Representante, “falar sobre as eleições deste ano, sobre o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral. A tônica do encontro foi a de soerguer protótipos profanadores da integridade do processo eleitoral e das instituições da República, especificamente o TSE e seus Ministros. Durante o evento, o Senhor Jair Messias Bolsonaro criou uma ambiência propícia para a propagação de toda sorte de desordem informacional ao asseverar, por diversas vezes, que o sistema eletrônico de votação é receptivo a fraudes e invasões que, sob a ótica do delírio presidencial, podem comprometer a fidedignidade do resultado dos pleitos” (ID 157940943, p. 5).

O Representante informa que, “na ocasião, o Presidente da República acentuou, em resumo, o seguinte: i) que as urnas completaram automaticamente o voto no PT nas eleições 2018; ii) que as urnas brasileiras não possuem sistemas que permitem auditoria; iii) que não é possível acompanhar a apuração dos votos; iv) que o inquérito que investiga uma invasão ao sistema do TSE, em 2018, não estava sob sigilo; v) que a apuração dos votos é realizada por uma empresa terceirizada; vi) que o TSE não aceitou sugestões das Forças Armadas para melhorar a segurança do processo eleitoral; vii) que o TSE divulgou que os resultados de 2018 podem ter sido alterados; viii) que as urnas eletrônicas sem impressão do voto são usadas apenas em dois países além do Brasil; ix) que os observadores internacionais não têm o que fazer no Brasil porque a contagem de votos não é pública; x) que um hacker teve acesso a tudo dentro do TSE, inclusive a milhares de códigos-fontes e a uma senha de um ministro do TSE; e xi) que a Polícia Federal pediu os registros cronológicos de acesso ao sistema computacional do TSE, mas sete meses depois a Corte asseverou que eles foram apagados” (ID 157940943, p. 5).

Alega que “a reunião foi transmitida pela TV Brasil Distribuição, através da Empresa Brasil de Comunicação, empresa pública, nos termos da Lei nº 11.652/2008, e o vídeo do encontro foi veiculado, na íntegra, através das redes sociais do Senhor Jair Messias Bolsonaro, especialmente no Instagram (@jairmessiasbolsonaro) e no Facebook. Importa realçar que, no Facebook, até o momento da elaboração desta petição inicial, a mídia alcançou cerca de 72.000 (setenta e duas mil) curtidas, 55.000 (cinquenta e cinco mil) comentários 589.000 (quinhentos e oitenta e nove mil) visualizações. 10 Já no Instagram, a postagem atingiu cerca de 587.000 (quinhentas e oitenta e sete mil) visualizações e 11.000 (onze mil) comentários” (ID 157940943, p. 13).

Aduz ter havido “a demonstração e posterior profusão de ideais vinculadas à candidatura à reeleição do Investigado, no contexto de uma reunião que deveria estar umbilicalmente interligada ao interesse público. Mais ainda, utilizou-se de todo aparato estatal para estruturar o ato, especificamente porque a reunião foi realizada nas instalações do Palácio da Alvorada, em Brasília, bem como também o seu conteúdo foi veiculado através da TV Brasil” (ID 157940943, p. 13).

Argumenta que “o Senhor Jair Messias Bolsonaro, ao promover ataques descabidos ao sistema eletrônico de votação e à democracia, utilizando-se de seu poder político, beneficiou-se sobremodo da conduta ilícita, pois auferiu dividendos através da realização e difusão do ato ora questionado, de modo a abalar a normalidade e a legitimidade do pleito” (ID 157940943, p. 25).

Requer “a concessão de medida liminar inaudita alter pars para determinar que os Investigados e a empresa provedora e controladora do Instagram e do Facebook, promovam a imediata retirada da postagem objeto desta AIJE” (ID 157940943, p. 33).

Pede “a confirmação da medida liminar, caso deferida, com a remoção definitiva dos vídeos dispostos nos itens a e a.1, a declaração da inelegibilidade dos Investigados, além da cassação do registro ou do diploma, pela prática de abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação (art. 22, inciso XIV, da LC nº 64/90)” (ID 157940943, p. 34).

3. Em 23.8.2022, o Ministro Mauro Campbell Marques, então Corregedor Geral da Justiça Eleitoral, Em 23.8.2022, o Ministro Mauro Campbell Marques deferiu o requerimento liminar (ID 157951424) para determinar a intimação das empresas Google Brasil e Facebook Brasil para promover a retirada dos links listados na petição inicial com a preservação do conteúdo até o final do presente processo e a Empresa Brasil de Comunicação para retirada de todo e qualquer conteúdo que reproduzisse o discurso objeto desta AIJE. Em 30.8.2022, o Plenário do Tribunal Superior Eleitoral, por unanimidade, referendou a medida (ID 157984156).

4. Os provedores Google Brasil e Facebook Brasil e a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) cumpriram integralmente aquela decisão (IDs 159761443, 157961477 e 157962283).

5. Os investigados apresentaram defesa conjuntamente, sustentando (ID 157977291):

Preliminarmente:

a) Não ter havido “a formação do litisconsórcio necessário (...), a despeito da posição já consolidada neste C. TSE sobre a natureza facultativa do litisconsórcio em ações como a retratada, não pode desconsiderar a incindibilidade da relação jurídica entre a União e os eventos descritos na petição inicial” e requer “seja reconhecida a ausência de formação do litisconsórcio passivo necessário, procedendo-se, na forma do art. 115, parágrafo único, do CPC/2015, com a lógica e consectária intimação da União para que se manifeste nos autos a tempo e a modo” (p. 4-5);

b) A incompetência da Justiça Eleitoral, pois os “atos realizados na condição de Chefe do Executivo encontram-se fora do escopo desta Especializada, salvo as hipóteses estritas do art. 73 da Lei das Eleições (condutas vedadas aos públicos em campanhas eleitorais)” e requer “seja o feito extinto sem resolução de mérito, sem prejuízo de eventual exame da matéria de fundo pela Justiça Comum em ação própria” (p. 6-7).

No mérito, asseveram que de uma leitura imparcial e serena são falas permeadas de conteúdos técnicos, que buscam debater um tema importante (transparência do processo eleitoral), dispostas ao longo de mais de 1h (uma hora) de apresentação. Essas peculiaridades, somadas aos convites formulados às indigitadas Autoridades, denotam que não houve qualquer intenção dos Investigados de interferência na vontade do eleitor. A atuação do Investigado Jair Messias Bolsonaro se deu na condição de Chefe de Estado, no afã de contrapor ideias e dissipar dúvidas sobre a transparência do processo eleitoral” (p. 10).

Argumentam que “a reunião objeto da presente ação encontra-se fora do escopo de controle judicial, notadamente eleitoral, dado o seu caráter eminentemente político, com discricionariedade afeta ao chefe do Executivo, como executor de atos de governo próprios a um Estado Soberano, o que rechaça sua censura prévia ou posterior” (p.10).

Alegam que “o Investigado possui dúvidas legítimas acerca da segurança do processo eleitoral, fundamentadas em documentação que lhe foi entregue, especialmente o relatório do C. TCU que expressamente mencionava a existência de “estratégia e iniciativas em curso para fortalecer a defesa cibernética na Justiça Eleitoral, mas a não formalização de programa e projetos para gerir as iniciativas de forma estruturada e integrada traz riscos ao alcance dos objetivos pretendidos com a Estratégia Nacional de Cibersegurança” (parágrafo 57, pg. 9, v. ac. TCU 1611/2022)” (p. 20).

Anotam também que “poucos dias antes, em 31/05/2022, o Presidente do C. TSE convocou reunião com a comunidade internacional a pretexto de fornecer ‘informações sérias e verdadeiras sobre a tecnologia eleitoral brasileira, não somente aqui no TSE, mas junto a especialistas nacionais e internacionais, de modo a contribuir para que a comunidade internacional esteja alerta contra-acusações levianas’, a despeito de, com o devido respeito, não estar legitimado constitucionalmente para tanto” (p. 21).

Aduzem que “o Investigado expôs, às claras, sem rodeios, em linguagem simples, fácil e acessível, em rede pública, quais seriam suas dúvidas e os pontos que – ao seu sentir – teriam potencial de comprometer a lisura do processo eleitoral, com convite enviado a todas as Autoridades Internacionais e Membros de Poder, de forma a possibilitar o diálogo aberto”

Sustentam que, “a despeito de não ter aceitado o convite formulado, não ter comparecido ao evento, o il. Presidente do C. TSE emitiu nota pública reativa de esclarecimento, por meio da qual rebateu, com ampla publicidade, um total de 20 (vinte) pontos apresentados pelo Investigado, o que foi amplamente divulgado pelos meios de comunicação, com alcance social igual ou maior, uma vez que a nota foi expedida imediatamente após o término do evento” (p. 21).

Requerem, “preliminarmente, seja reconhecida a legitimidade necessária da União para integrar o polo passivo da presente AIJE, na forma do art. 115, parágrafo único, do Código de Processo Civil de 2015” e “a incompetência (material) absoluta desta Justiça Especializada, extinguindo-se o feito extinto sem resolução de mérito, sem prejuízo de eventual exame da matéria de fundo pela Justiça Comum em ação própria” (p. 25).

Pedem que “a ação julgada improcedente diante da insuscetibilidade de controle judicial das falas do Chefe de Estado como ato de governo e da inexistência de abuso eleitoral no evento mencionado” (p. 25).

Pedem que não haja o “referendo e/ou revogação, pelas razões jurídicas acima esposadas, da liminar monocraticamente deferida e pela oportuna produção de todas as provas admitidas em direito, em especial pela oitiva das testemunhas” (p. 25).

6. O Ministro Relator determinou a intimação do representante para manifestar-se sobre as preliminares apontadas na contestação e dos representados para justificarem a necessidade das testemunhas arroladas com a indicação dos pontos fáticos controvertidos a serem esclarecidos nos depoimentos.

7. O Representante apresentou réplica (ID 158067068) e os representados as justificativas para a prova testemunhal (ID 158072627).

8. O Ministro Benedito Gonçalves, Relator, proferiu despacho saneador (ID158487960), no qual rejeitou as preliminares suscitadas, delimitou a controvérsia, apreciou os requerimentos de prova e designou audiência para oitiva das testemunhas arroladas pelos representados. A decisão monocrática foi referendada, por unanimidade, pelo Plenário, em 13.12.2022 (ID 158514088).

9. Em 19.12.2023, Carlos Alberto Franco França, então Ministro das Relações Exteriores prestou depoimento (IDs 158533126 e 158533127).

10. Em 13.1.2023, o Representante formulou requerimento para inclusão de documento novo, qual seja, minuta de decreto sobre Estado de Defesa (ID 158553894), o qual foi deferido pelo Ministro Relator (ID 158554507) e referendado pelo Plenário em 14.2.2023.

11. Em 9.3.2023, o Ministro Relator determinou (ID 158764809):

a) a realização de diligências complementares para oitiva de novas testemunhas;

b) juntada de documentos extraídos do Inquérito Administrativo n. 0600371-71 em tramitação no TSE, a saber:

b1) degravação das lives de 29/07/2021 e 12/08/2021 e da entrevista concedida por Jair Messias Bolsonaro ao programa “Pingos nos is”, da Jovem Pan, em 04/08/2021 (IDs 147980688, 156064688, 156064738 e 156885874);

b2) relatórios técnicos produzidos pela STI/TSE (Ids 154106088 e 154113838);

b3) os depoimentos de Eduardo Gomes da Silva e Anderson Gustavo Torres na Corregedoria-Geral Eleitoral, em 12/08/2012 (IDs 149194688, 150457388, 149194038 e 150457338);

b4) relatório elaborado pela Polícia Federal no Registro Especial nº 2021.0058802 (ID 149637788); e

b5) cópias retiradas da Petição 9.842/DF (ID 157315529) e do Inquérito 4.878/DF (IDs 157400756 e 157400757), ambos em trâmite no STF;

c) juntada da transcrição dos depoimentos colhidos durante a instrução; e

d) expedição de ofício “ao Ministro-Chefe da Casa Civil, Rui Costa, requisitando-se a Sua Excelência, no prazo de 3 (três) dias, informações consolidadas sobre a participação de órgãos do Governo Federal na preparação, realização e difusão do encontro realizado no Palácio do Planalto, em 18/07/2022, solicitando-lhe, para tanto, que além da consulta a seus registros, estenda a comunicação ao Ministério das Relações Exteriores, à Assessoria Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência, à Assessoria de Cerimonial e demais órgãos acaso envolvidos na organização do evento, em prazo hábil para a consolidação”.

12. Os investigados apresentaram alegações finais. Requereram, sucessivamente, a) o reconhecimento da incompetência da Justiça Eleitoral e consequente extinção do processo sem resolução de mérito; b) a extinção do feito quanto ao segundo investigado, que seria parte ilegítima; c) nova delimitação da demanda, para retirada “(d)os fatos e eventuais ‘provas’ oriundos da indevida extensão da causa de pedir, bem como aqueles derivados da inadequação da atuação probatória empreendida pelo Juízo, eis que se revelou excessiva”; d) a improcedência do pedido (ID 158914533).

13. O autor apresentou as alegações finais, nas quais reforçou os argumentos expostos na petição inicial e pediu a procedência da ação para declarar os investigados inelegíveis (ID 158917113).

14. A Procuradoria-Geral Eleitoral opinou pela procedência do pedido para declarar a inelegibilidade do primeiro investigado, com base no art. 22, inc. XIV, da Lei Complementar n. 64/1990, e pela absolvição de Walter Souza Braga Netto, segundo investigado (ID 158931404).

 

VOTO

 

A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA: Senhor Presidente,

1. Ação de Investigação Judicial Eleitoral ajuizada pelo Diretório Nacional do Partido Democrático Trabalhista (PDT) contra Jair Messias Bolsonaro, que foi candidato à reeleição para Presidente da República no pleito de 2022, e Walter Souza Braga Neto, candidato à Vice-Presidente naquela mesma chapa.

A ação foi proposta em 19.8.2022 e nela se alega prática de abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação ocorrida em reunião, convocada pelo primeiro representado e realizada em 18.7.2022 por ele com embaixadores de Países estrangeiros acreditados no Brasil.

 

Preliminares

 

Preliminar de incompetência da Justiça Eleitoral

 

2. Nas alegações finais, os investigados defendem a aplicação do art. 48 da Res-TSE n. 23.608/2019, retomando questão antes apreciadas e decididas nas decisões interlocutórias, a saber:

“Art. 48. As decisões interlocutórias proferidas no curso da representação de que trata este capítulo não são recorríveis de imediato, não precluem e deverão ser novamente analisadas pela juíza ou pelo juiz eleitoral ou pela juíza ou pelo juiz auxiliar por ocasião do julgamento, caso assim o requeiram as partes ou o Ministério Público Eleitoral em suas alegações finais.

Parágrafo único. Modificada a decisão interlocutória pela juíza ou pelo juiz eleitoral ou pela juíza ou pelo juiz auxiliar, será reaberta a fase instrutória, mas somente serão anulados os atos que não puderem ser aproveitados, determinando-se a subsequente realização ou renovação dos que forem necessários.”

Requerem o reconhecimento da incompetência da Justiça Eleitoral ao argumento de que os depoimentos prestados em audiência confirmariam que a reunião de 18.7.2022 não teria relação com as eleições de 2022, apenas uma livre manifestação do pensamento do primeiro representado sobre o sistema de votação brasileiro exposto perante um público de embaixadores que não eram, e nem poderiam ser, eleitores.

De se observar que, por diligência do Relator, o Plenário deste Tribunal Superior apreciou todas as preliminares suscitadas na inicial que poderiam acarretar a extinção do processo sem resolução do mérito e as matérias que pudessem impactar o regular curso da ação.Confirmou-se assim a competência da Justiça Eleitoral, nos seguintes termos:

"2. Preliminar de incompetência da Justiça Eleitoral (suscitada pelos réus)

Os investigados argumentam que a reunião com embaixadores consistiu em ato praticado na condição de Chefe de Estado, sem qualquer relação com o pleito, no regular desempenho da função privativa de manter relações com países estrangeiros, o que toma a Justiça Eleitoral incompetente para examinar a matéria.

A se acolher a tese proposta, restaria inviabilizado todo e qualquer controle de práticas abusivas perpetradas por meio de atos privativos do Chefe de Estado, erigindo ume espécie de salvo-conduto em relação a desvios eleitoreiros ocorridos no exercício, justamente do feixe de atribuições mais sensível do Presidente da República.

Não há dúvidas, porém, que o art. 22 da LC 64/90, ao estabelecer que cabe ao Corregedor-Geral Eleitoral instaurar investigação judicial eleitoral ‘para apurar uso indevido, desvio ou abuso de poder [...] de autoridade’, atribuiu à Justiça Eleitoral competência para sindicar, sob o prima da lisura do pleito todos os atos administrativos praticados por agentes públicos no exercício de seus cargos e dentro de suas esferas de competência inclusive os que tenham natureza político-institucional, desde que haja indícios do desvirtuamento do poder em prol de candidaturas.

Com efeito, os eleitos não titularizam o poder estatal para uso de acordo com interesses particulares, mas, sim, o ostentam para cumprir finalidades públicas. Mesmo na hipótese de atos discricionários, não se supõe que seja lícito ao mandatário empregar suas prerrogativas para produzir vantagens eleitorais, para si ou terceiros. O elemento nuclear do abuso de poder político ou de autoridade, conforme a jurisprudência deste Tribunal, é o ato do agente público que valendo-se de condição funcional e em manifesto desvio de finalidade, desequilibra a disputa em benefício de sua candidatura ou de terceiros (RO 1723-65/DF, Rel. Min. Admar Gonzaga, DJE de 27/2/2018 e REspE 468-22/RJ, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJE de 16/6/2014, dentre outros).

Em outras palavras, é premissa primeira do abuso de poder político, apto a atrair a competência da Justiça Eleitoral, o ato praticado na condição de agente público. A este requisito se acresce a necessidade de que a petição inicial descreva o elemento desviante, ou seja, o fato que denota que a conduta se afastou do regular exercício das atribuições do cargo. E, por fim esse elemento desviante deve possuir contornos eleitorais, uma vez que o objeto da AIJE não se confunde com o da ação de improbidade ou de outros procedimentos que possam ser ajuizados para punir irregularidades administrativas desprovidas de conotação eleitoral.

Na hipótese dos autos, os requisitos para a definição da competência do TSE foram devidamente delimitados pela parte autora, que narra que o Presidente da República, utilizando-se de seu cargo, convocou reunião com embaixadores de países estrangeiros, mas, agindo com desvio de finalidade, teria passado a atacar a integridade do sistema eleitoral, em estratégia amoldada à de sua campanha, beneficiando-se, ainda, da ampla repercussão da transmissão do evento pela TV Brasil.

Os investigados, ao arguir a incompetência da Justiça Eleitoral, não refutaram a aderência dessa causa de pedir à conduta típica do abuso de poder político. O que fazem é avançar sobre aspectos meritórios. Defendem que se está diante de ato de governo, cujo “fim político” não está sujeito a controle jurisdicional, e que se deu em cumprimento a agenda pública do Presidente. Enfatizam, ainda que não houve pedido de votos ou ataque a oponentes. Buscam, em síntese, que se reconheça a intangibilidade dos fatos, ao argumento de que o exercício de poder político ocorreu dentro dos limites constitucionais.

Ocorre que sendo a Justiça Eleitoral a única competente para se promover sobre a existência, ou não, de desvio de finalidade com conotação eleitoral e, sendo o caso, sobre sua gravidade no contexto de uma determinada eleição, tem-se inequivocadamente delineada a competência deste Tribunal para resolver a controvérsia.

Portanto, rejeito a preliminar de incompetência da Justiça Eleitoral.”

3. Não se há cogitar, portanto, de incidência do art. 48 da Res-TSE n. 23.608/2019. Decidida a questão pelo Plenário deste Tribunal Superior, esta não poderá ser analisada novamente pela incidência da preclusão prevista no art. 505, caput, do Código de Processo Civil (art. 505: Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas relativas à mesma lide).

4. Acompanho o Relator e não conheço da preliminar.

 

Preliminar de ilegitimidade passiva ad causam do segundo representado

 

5. Os representados inovaram em sede de alegações finais ao afirmarem a ilegitimidade passiva do segundo representado.

Defendem que, “diante da ausência de imputação pelo Autor da respectiva participação, direta ou indireta, nos atos questionados, inviabilizando-se, assim, a aplicação da (personalíssima) sanção de inelegibilidade na espécie (por fato de terceiro), única possível de aplicação frente ao insucesso da chapa no pleito eleitoral presidencial de 2022", o processo deveria ser extinto sem julgamento do mérito para Walter Souza Braga Neto.

6. Na data de ajuizamento da ação, em 19.8.2022, o segundo representado disputava as eleições presidenciais para o cargo de Vice-Presidente da República, não se prevendo conduta diversa da parte autora a não ser incluí-lo no polo passivo, como previsto na Súmula n. 38/TSE:

“Nas ações que visem à cassação de registro, diploma ou mandato, há litisconsórcio passivo necessário entre o titular e o respectivo vice da chapa majoritária.”

7. Ademais, como enfatizado pelo Relator, “após percorridas as. etapas processuais e apresentadas sucessivas petições em nome do segundo investigado, litisconsorte necessário na ação, sem que se cogitasse de sua ilegitimidade, não há amparo processual para extinguir parcialmente a ação Sem resolução do mérito. Caso acolhida a versão da defesa, haverá ensejo para julgar o pedido improcedente em relação ao candidato a Vice-Presidente, e, não, para excluí-lo do polo passivo”.

8. Acompanho o Relator e rejeito a preliminar.

Questão prejudicial de "redelimitação da demanda"

9. Os representados, nas alegações finais, reiteraram a discordância quanto ao deferimento de inclusão da minuta de “decreto de Estado de Defesa” apreendida na residência do ex-Ministro da Justiça e Segurança Pública, Anderson Torres, em 12.1.2023.

Alegam contrariados a estabilidade da demanda, o princípio da congruência, o contraditório e a segurança jurídica e ocorrida a consumação da decadência.

10. Essa preliminar foi apreciada pelo Plenário deste Tribunal Superior que, por unanimidade, referendou a decisão que indeferiu o pedido de reconsideração apresentado pelos representados, confirmou os limites da demanda e firmou entendimento para aplicação nas Ações de Investigação Judicial Eleitoral (AIJEs) das eleições presidenciais de 2022 no exame da admissibilidade de fatos supervenientes e de documentos novos, no julgamento assim ementado (ID 158704139):

“AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ELEIÇÕES 2022. PRESIDENTE. JUNTADA DE DOCUMENTO NOVO. FATOS SUPERVENIENTES.  ADMISSIBILIDADE. DESDOBRAMENTO DE FATOS QUE COMPÕEM A CAUSA DE PEDIR. PEDIDO DE RECONSIDERAÇÃO. DECADÊNCIA. VIOLAÇÃO À ESTABILIZAÇÃO DA DEMANDA. INOCORRÊNCIA. QUESTÕES PREJUDICIAIS REJEITADAS. DECISÃO REFERENDADA.

1. Trata-se de decisão em que, rejeitadas as prejudiciais de decadência e de violação à estabilização da demanda, indeferiu-se pedido de reconsideração formulado contra a admissibilidade de documento novo juntado aos autos durante a fase de instrução.

2. Nesta AIJE, apura-se abuso de poder político e uso indevido de meios de comunicação, ilícitos supostamente praticados em reunião de 18/07/2022 ocorrida no Palácio da Alvorada, quando o então Presidente da República, primeiro investigado, proferiu discurso lançando suspeitas de fraude nas urnas eletrônicas e acusações de parcialidade de Ministros do TSE. O evento contou com a presença de embaixadores de países estrangeiros e foi transmitido pela TV Brasil e nas redes sociais do candidato à reeleição.

3. A causa de pedir da AIJE é delimitada pelos contornos fáticos e jurídicos que permitam a compreensão da demanda, não se exigindo que a parte autora, ao postular em juízo, tenha pleno domínio de todos os fatos que podem influir no julgamento e os descreva em minúcias.

4. Na hipótese, a causa de pedir contempla a imputação de que o discurso proferido em 18/07/2022 se insere em uma estratégia de campanha do primeiro réu, de difundir fatos sabidamente falsos relativos ao sistema eletrônico de votação, para mobilizar seu eleitorado por força de grave “desordem informacional” atentatória à normalidade do pleito.

5. Em contrapartida, os investigados refutam qualquer relação entre o evento de 18/07/2022 e as eleições, enxergando no discurso uma legítima manifestação, em salutar “diálogo institucional” com o TSE, afirmando ainda que qualquer efeito do discurso teria sido prontamente neutralizado por nota pública do tribunal.

6. Diante disso, na decisão de organização e saneamento do processo, consignou-se que os fatos constitutivos (o evento, o discurso e seu conteúdo) são incontroversos e que as partes disputam a narrativa sobre o significado e o impacto eleitoral do episódio. Ressaltou-se que, em matéria de abuso de poder, o exame da gravidade da conduta, sob o ângulo qualitativo e quantitativo, reclama especial atenção para a análise de elementos contextuais.

7. O documento novo ora trazido aos autos consiste em minuta de decreto de Estado de Defesa apreendida pela Polícia Federal na residência do ex-Ministro da Justiça e da Segurança Pública, Anderson Torres, no dia 12/01/2023, durante diligência determinada pelo Ministro Alexandre de Moraes no âmbito do Inquérito nº 4879, que tramita no STF.

8. É inequívoco que o fato de o ex-Ministro da Justiça do governo do primeiro investigado ter em seu poder uma proposta de intervenção no TSE e de invalidação do resultado das eleições presidenciais possui aderência aos pontos controvertidos, em especial no que diz respeito à correlação entre o discurso e a campanha e ao aspecto quantitativo da gravidade.

9. A decadência obsta a dedução de ilícitos inteiramente novos, sendo fator de estabilidade política e jurídica. No entanto, apresentada a demanda de modo tempestivo, os fatos supervenientes que guardem relação com a causa de pedir, mesmo que não alegados pelas partes, devem ser obrigatoriamente considerados no julgamento (art. 493, CPC; art. 23, LC 64/90).

10.  Desse modo, não se pode interpretar a estabilização da demanda como um recorte completo e irreversível na realidade fenomênica. Essa ideia acarreta um descolamento tal dos fatos em relação a seu contexto que chega a impedir o órgão judicante de levar em conta circunstâncias que gradativamente se tornem conhecidas ou potenciais desdobramentos das condutas em investigação.

11. Ressalte-se que, no caso dos autos, o que a autora pretende discutir são eventos que se conectam a partir do eixo central da narrativa, segundo a qual o discurso na reunião com embaixadores mirava efeitos eleitorais ilícitos. O próprio teor do discurso do Presidente, que livremente escolheu os tópicos que desejava abordar, oferece uma clara visão sobre o fluxo de eventos – passados e futuros – que podem, em tese, corroborar a imputação da petição inicial.

12. Ao lado dessas considerações gerais, deve-se ter em conta que o resultado das eleições presidenciais de 2022, embora fruto legítimo e autêntico da vontade popular manifestada nas urnas, se tornou alvo de ameaças severas. Passado o pleito, a diplomação e até a posse do novo Presidente da República, atos desabridamente antidemocráticos e insidiosas conspirações tornaram-se episódios corriqueiros. São armas lamentáveis do golpismo dos que se recusam a aceitar a prevalência da soberania popular e que apostam na ruína das instituições para criar um mundo de caos onde esperam se impor pela força.

13. Os acontecimentos se sucedem de forma vertiginosa. Mas o devido processo legal tem, entre suas virtudes, a capacidade de decantar os fatos e possibilitar seu exame analítico. É isso que deve guiar a instrução das AIJEs, pois é central à consolidação dos resultados das Eleições 2022 averiguar se esse desolador cenário é, ou não, desdobramento de condutas em apuração nas diversas ações. Esse debate não pode ser silenciado ou inibido por uma artificial separação entre as causas de pedir e a realidade fenomênica em que se inserem.

14.  Os temas das ações propostas são de conhecimento público. Não há segredo de justiça. As decisões de admissibilidade, de concessão de tutela inibitória e de saneamento, bem como outras de caráter interlocutório, têm contemplado cuidadoso delineamento das matérias em discussão.

15. Tendo em vista o prestígio à celeridade, à economia processual e à boa-fé objetiva, entendo prudente que, especificamente no que diz respeito às AIJEs relativas às eleições presidenciais de 2022, seja fixado um parâmetro seguro e objetivo que dispense, a cada fato ou documento específico, uma nova decisão interlocutória que revolva todos os fundamentos ora expostos.

16. Orientação a ser aplicada em situações semelhantes, no sentido de que a estabilização da demanda e a consumação da decadência não impedem que sejam admitidos no processo e considerados no julgamento elementos que se destinem a demonstrar desdobramentos dos fatos originariamente narrados, a gravidade (qualitativa e quantitativa) da conduta que compõe a causa de pedir ou a responsabilidade dos investigados e de pessoas do seu entorno, tais como: a) fatos supervenientes à propositura das ações ou à diplomação dos eleitos, ocorrida em 12/12/2022; b) circunstâncias relevantes ao contexto dos fatos, reveladas em outros procedimentos policiais, investigativos ou jurisdicionais ou, ainda, que sejam de conhecimento público e notório; e c) documentos juntados com base no art. 435 do CPC.

17. Mantido o indeferimento do pedido de reconsideração.

18. Decisão interlocutória referendada.”

11. Com a preclusão pro judicato, não se comprovam as razões afirmadas para reexame da questão no ponto relativo aos limites da demanda.

12. Acompanho o Relator e rejeito a preliminar.

 

Preliminar de nulidade processual decorrente da determinação de diligências complementares

 

13. Os representados alegam nulidade do processo asseverando que o Relator teria proferido decisão “ilegal e anti-isonômica” ao determinar a realização de diligências complementares.

Asseveram ter havido: a) ausência de observação do que decidido na ADI n. 1082/STF para prática de atos instrutórios pelo Corregedor, não se justificando a complementação de provas para “suprir atuação deficiente do autor”; b) afronta ao direito ao contraditório, diante do estabelecimento de prazo de três dias para manifestação; c) incorreta “delegação de poder instrutório” a adversário político, devido ao pedido de documentos à Casa Civil; d) ofensa à segurança jurídica pela aplicação do art. 23 da LC n. 64/1990 para justificar o pedido de diligências pelo Relator não relacionados com a causa de pedir, como inicialmente formulada, o que acarretaria ampliação objetiva da demanda.

14. Na espécie, como antes anotado, o Plenário deste Tribunal Superior assentou as orientações a serem aplicadas nas AIJEs de 2022 para que “sejam admitidos no processo e considerados no julgamento elementos que se destinem a demonstrar desdobramentos dos fatos originariamente narrados, a gravidade (qualitativa e quantitativa) da conduta que compõe a causa de pedir ou a responsabilidade dos investigados e de pessoas do seu entorno” (ID 158704139).

15. Diferente do alegado, este entendimento firmado permitiu a correta utilização do art. 23 da LC n. 64/1990, combinado com o art. 22, inc. VI a IX, como diretriz para a instrução. O que autorizou o Relator a determinar produção de provas complementares, de ofício e a pedido dos representados, para esclarecer o ocorrido no dia 18.7.2022.

16. Não se há cogitar de afronta ao direito ao contraditório pela imposição de prazo de três dias para manifestação sobre os documentos apresentados pela parte contrária, quando o art. 44, § 4º da Res-TSE n. 23.608/2019 estabelece um prazo de apenas dois dias. No caso, os representados apresentaram tempestivamente seus argumentos, solicitaram a reconsideração do deferimento das provas, sem solicitar extensão do prazo, requerendo-a apenas em sede de alegações finais. 

17. No caso em exame, também não se comprova qualquer prejuízo para as partes a apresentação de documentos pela Casa Civil, pois, diferente do afirmado, os representados utilizaram-se do material entregue em sua defesa para enfatizar o custo irrisório da reunião o que demonstraria cuidar-se de evento “normal como os habitualmente realizados”.

18. Em consonância com o art. 219 do Código Eleitoral, não cabe declarar nulidade processual sem demonstração de prejuízo.

19. Acompanho o Relator e rejeito a preliminar.

 

Requerimento de reabertura da instrução

 

20. Os Representados requerem a reabertura da instrução, pela dispensa de oitiva da testemunha Eduardo Gomes da Silva e do indeferimento da requisição do inquérito noticiado pela CNN em 24.3.2023.

21. Observa-se ter sido deferida a inclusão da matéria da CNN ao processo. Nela se noticia que o "Ministério Público Eleitoral denuncia quatro pessoas por hackear sistema do TSE: ataques ao sistema foram no dia das eleições municipais e prejudicaram acesso ao E-Titulo" e que a conclusão seria que a "ação afetou a estabilidade do aplicativo e dados sigilosos de servidores públicos foram divulgados ilegalmente" e, ainda, que o "ataque, no entanto, não prejudicou o processo eleitoral nem a votação dos representantes dos municípios".

22. Importante destacar que a denúncia apresentada pelo Ministério Público refere-se a atos praticados em 2020, não tendo sido mencionadas na reunião objeto da presente ação. Ademais, a CNN esclarece não ter havido qualquer comprometimento ao processo eleitoral.

Inexiste, portanto, pertinência daquele Inquérito com a presente ação, cujo objeto também não é a lisura do processo eleitoral, senão os atos praticados pelo primeiro Representado para desqualificar e por em dúvida o processo eleitoral.

23. Quanto à dispensa da oitiva da testemunha Eduardo Gomes da Silva pelo juízo, melhor sorte não assiste aos representados. A testemunha seria necessária se o depoente Anderson Torres manifestasse o direito de permanecer calado durante o seu interrogatório. Entretanto, ele respondeu todas as perguntas formuladas.

24. Consta, ainda, do processo que os representados desistiram de três testemunhas que tinham arrolado, por concluírem que aquelas ouvidas eram suficientes. Soma-se a isso, o fato de Eduardo Gomes não ter sido localizado nos endereços fornecidos.

25. Considerando o princípio da duração razoável do processo e a comprovada ausência de prejuízo para os representados, acompanho o Relator e rejeito a preliminar.

 

Mérito

 

Título 1: O quadro fático

 

26. Como relatado, o primeiro investigado, Jair Messias Bolsonaro, na condição então de Presidente da República, em reunião convocada e, depois, realizada no Palácio da Alvorada, no dia 18.7.2022, proferiu discurso para os chefes de Missões Diplomáticas estrangeiras  acreditados no Brasil, com divulgação pela TV Brasil e nas redes sociais.

27. Na decisão de saneamento e de organização do processo, o Relator delimitou as questões de fato, nos seguintes termos (ID 158487960):

“Na hipótese dos autos, o substrato fático que motivou a propositura da AIJE é a realização de reunião do Presidente da República com embaixadores de países estrangeiros no Palácio da Alvorada, no dia 18/07/2022, bem como sua ampla divulgação, pela TV Brasil e pelas redes sociais do primeiro representado. Na ocasião, o primeiro investigado realizou exposição em que abordou o sistema eletrônico de votação brasileiro e fez referência a Ministros do STF.

Esses fatos quedaram incontroversos ao final da fase postulatória. A autora juntou mídia contendo vídeo da realização do discurso. Não houve objeção, por parte dos réus, à autenticidade ou integridade do material.

A controvérsia fática recai sobre as circunstâncias em que a reunião foi realizada e em que ocorreu sua divulgação nas redes.

O autor afirma que o primeiro réu, atuando com desvio de finalidade, utilizou-se do encontro com chefes de missões para atacar a integridade do processo eleitoral, especialmente disseminando “desordem informacional” relativa ao sistema eletrônico de votação e fazendo insinuações sobre a conduta de Ministros que presidiram o TSE. Além disso, argumenta que o discurso tem aderência à estratégia de campanha do candidato à reeleição para mobilizar suas bases por meio de fatos sabidamente falsos, devendo-se levar em conta que a transmissão pelas redes sociais fez com que a mensagem chegasse ao eleitorado.

De sua parte, os investigados refutam qualquer relação entre o evento e o pleito de 2022. Defendem que a reunião se ateve à sua finalidade pública, uma vez que, segundo sua narrativa, o Presidente da República, no exercício da liberdade de expressão, expôs seu ponto de vista sobre o sistema de votação para convidados que nem mesmo eram eleitores. Ressaltam que a fala fez parte de um diálogo institucional sobre tema de interesse público, devendo ser lida em cotejo com anterior evento do TSE (em que o Ministro Edson Fachin, então seu Presidente, se dirigiu a membros da comunidade internacional) e com nota em que o tribunal rebateu as afirmações feitas por Jair Bolsonaro na reunião do Palácio do Alvorada.” (grifos nossos) 

28. Na petição inicial o autor informa que o inteiro teor do discurso pode ser consultado através do link https://www.poder360.com.br/eleicoes/leia-a-integra-do-que-disse-bolsonaro-a-embaixadores/ e confirmado nos IDs 157957948, 157957949, 157957950, 157957951, 157957952, 157957954. Os réus não contestaram a integridade do material. É o inteiro teor da fala do primeiro investigado:

“O Brasil é um país fantástico. 8,5 milhões de quilômetros quadrados, riquíssimo em biodiversidade, minerais, terras agricultáveis, áreas para turismo, água potável, uma coisa enorme chamada Amazônia. Ou seja, o Brasil, pela sua extensão territorial, pelas suas riquezas, está integrado no mundo todo. O Brasil faz negócios com praticamente o mundo todo, tem adotado uma posição de equilíbrio em conflitos, buscamos a paz, trabalhamos por isso, preservamos a nossa democracia. Até o momento, uma só palavra minha houve fora do que eu chamo de 4 linhas da nossa Constituição. Nós respeitamos as leis.

“Me elegi Presidente da República gastando menos de 1 milhão de dólares. Repito, gastando menos de US$ 1 milhão de dólares e dentro de um leito de hospital, após sofrer um atentado de uma facada de um elemento de esquerda, cujo inquérito não foi concluído, apesar dos enormes indícios de interesses outros se fazerem presentes. Mas isso é uma questão interna nossa, gostaria de ver esse inquérito concluído para chegar nos mandantes da tentativa de homicídio.

“Sou capitão do Exército brasileiro, fiquei 15 anos no exército, fui vereador no Rio de Janeiro por 2 anos e 28 anos dentro da Câmara dos Deputados. Conheço muito bem o nosso sistema. Conheço muito bem a política brasileira. Fiz uma campanha sem recurso então, mas que começou 4 anos antes do pleito, depois da reeleição da senhora Dilma Rousseff. E, andando pelo Brasil sozinho, 3 anos sozinho andando pelo Brasil, juntando multidões, fiz a minha campanha.

Tudo que vou falar aqui, está documentado, nada da minha cabeça. O que eu mais quero para o meu Brasil é que a sua liberdade continue a valer também, obviamente, depois das eleições. O que eu mais quero, por ocasião das eleições, é a transparência. Porque nós queremos que o ganhador seja aquele que realmente seja votado.

“Nós temos um sistema eleitoral que apenas 2 países no mundo usam. No passado, alguns países tentaram usar, começaram até a usar esse sistema e rapidamente foi abandonado. Repito, o que nós queremos são eleições limpas, transparentes, onde o eleito realmente reflita a vontade da sua população.

“Teria muita coisa a falar aqui mas eu quero me basear exclusivamente em um inquérito da Polícia Federal que foi aberto após o 2º turno das eleições de 2018, onde um hacker falou que tinha havido fraude por ocasião das eleições. Falou que ele tinha invadido, o grupo dele, o TSE. O Tribunal Superior Eleitoral. Obviamente, quando se fala em manipulação de números após eleições, quem manipula é quem ganhou. Então seria eu o manipulador. E a Polícia Federal começou, então, a apurar se houve ou não manipulação e de quem seria a responsabilidade.

“Tudo que vou falar aqui, está documentado, nada da minha cabeça. O que eu mais quero para o meu Brasil é que a sua liberdade continue a valer também, obviamente, depois das eleições. O que eu mais quero, por ocasião das eleições, é a transparência. Porque nós queremos que o ganhador seja aquele que realmente seja votado. Nós temos um sistema eleitoral que apenas 2 países no mundo usam. No passado, alguns países tentaram usar, começaram até a usar esse sistema e rapidamente foi abandonado. Repito, o que nós queremos são eleições limpas, transparentes, onde o eleito realmente reflita a vontade da sua população.

“Teria muita coisa a falar aqui mas eu quero me basear exclusivamente em um inquérito da Polícia Federal que foi aberto após o 2º turno das eleições de 2018, onde um hacker falou que tinha havido fraude por ocasião das eleições. Falou que ele tinha invadido, o grupo dele, o TSE. O Tribunal Superior Eleitoral. Obviamente, quando se fala em manipulação de números após eleições, quem manipula é quem ganhou. Então seria eu o manipulador. E a Polícia Federal começou, então, a apurar se houve ou não manipulação e de quem seria a responsabilidade.

“Então, tudo começa nesta denúncia que foi de conhecimento do Tribunal Superior Eleitoral, onde o hacker diz, claramente, que ele teve acesso a tudo dentro do TSE. Disse mais: obteve acesso aos milhares de código-fontes, que teve acesso à senha de um Ministro do TSE, bem como de outras autoridades, várias senhas ele conseguiu. E obviamente, a senhora ministra do TSE, na época, e também é do Supremo Tribunal Federal, Rosa Weber, fez com que o inquérito fosse instalado.

“Então, temos aqui a instauração do inquérito. Segundo o TSE, a gente vai ver aqui na frente, os hackers ficaram por 8 meses dentro dos computadores do TSE. Com códigos-fonte, com senhas e muito à vontade dentro do Tribunal Superior Eleitoral. E, diz ao longo do inquérito que eles poderiam alterar nomes de candidatos, tirar voto de um, transferir para outro. Ou seja, o sistema, segundo documento do próprio Tribunal Superior Eleitoral e conclusão da Polícia Federal, um processo aberto a muitas maneiras de se alterar o processo de votação. Então, de imediato, a Polícia Federal pediu o tal de logs, né, que é a impressão digital do que acontece dentro do sistema informatizado. O que é natural também, é o órgão invadido fornecer os logs independente de pedidos. A Polícia Federal pediu os logs que podiam ser entregues no mesmo dia ou no dia seguinte, mas, sete meses depois, segundo documentos comigo, o TSE informou que os logs haviam sido apagados.

E, uma coisa muito importante, esse inquérito, aberto no mês seguinte do segundo turno das eleições de 2018, até hoje não foi concluído ainda. Diz aqui o próprio TSE e conclusões da própria Polícia Federal: ‘O atacante invasor conseguiu copiar toda a base de dados’. Repito, conseguiu a senha de um ministro do Tribunal Superior Eleitoral. Também a senha do coordenador de Infraestrutura, Cristiano Andrade, que é a pessoa de confiança do chefe de TI chamado Giuseppe Janino.

“Então, prosseguindo, o invasor teve acesso a toda a documentação no TSE, toda a base de dados, por 8 meses. É uma coisa que, com todo o respeito, eu sou o Presidente da República do Brasil, eu fico envergonhado de falar isso aí. O que é comum, né, acontecer em alguns países do mundo, é o chefe do Executivo conspirar para ele, conseguir uma reeleição. Estamos fazendo exatamente o contrário, porque temos pela frente 3 meses até as eleições. Mais na frente, tudo que eu falo aqui ou é conclusão da PF ou é diretamente informações prestadas pelo TSE.

Prossegue: ‘O senhor secretário atesta, categoricamente, que o invasor obteve domínio sobre usuários e senhas, que permite a alteração de dados de partidos e candidatos. Até mesmo a sua exclusão, no contexto do processo eleitoral’. Ou seja, esse grupo de invasores puderam até mesmo excluir nomes e, mais, trocar votos entre candidatos. E o que aconteceu depois de tudo isso? Eu tive acesso a esse inquérito no ano passado, divulguei, é um inquérito que não tem qualquer classificação sigilosa e, ao divulgar, o Ministro Alexandre de Moraes abre o inquérito para me investigar sobre vazamento. Em depoimento, o delegado encarregado do inquérito foi bem claro, o inquérito não tinha qualquer classificação sigilosa. Foi instada a Corregedoria da Polícia Federal, que disse a mesma coisa. E como envolvia um outro deputado, que teve acesso a esse documento, também, a Procuradoria da Câmara dos Deputados disse que o inquérito não tinha qualquer classificação sigilosa.

“O que nós entendemos aqui no Brasil é que, quando se fala em eleições, elas têm que ser totalmente transparentes, coisa que não aconteceu em 2018. Também, a Polícia Federal, depois que demorou 7 meses para o TSE informar que os logs já haviam sido apagados, repito, eles poderiam ser fornecidos de forma espontânea ou através do requerimento, no mesmo dia, ou no dia seguinte.

“Então, 7 meses depois, o TSE informou que os logs haviam sido apagados. E a Polícia Federal concluiu, pela total falta de colaboração do TSE para com a apuração, do que os hackers tinham feito ou não por ocasião das eleições de 2018. E repito, até hoje esse inquérito não foi concluído. Entendo que não poderíamos ter tido eleições em 2020 sem apuração total do que aconteceu lá dentro. Porque o sistema é completamente vulnerável, segundo o próprio TSE, e obviamente a conclusão da Polícia Federal.

“Só 2 países do mundo usam esse sistema eleitoral nosso. Vários outros países ou não usam ou começaram a usá-lo ou chegaram à conclusão de que não era um sistema confiável porque ele é inauditável. É impossível fazer uma auditoria em eleições aqui no Brasil. E, agora, a fotografia de alguns países, com toda certeza tem gente aqui da Inglaterra, França, Irlanda, Austrália, Alemanha, Hong Kong, Coreia do Sul, Japão. Olha, que o pessoal está acompanhando a apuração. No Brasil, não tem como acompanhar a apuração. Eu não sei o que vem fazer os observadores de fora aqui. Vão fazer o quê? Vão observar o que? Se o sistema é falho, segundo o próprio TSE, é inauditável também segundo uma auditoria externa pedido por um partido político, no caso, o PSDB, em 2014. E, com todo respeito, 8 meses passeando dentro dos computadores do TSE, esse grupo de hackers, será que o TSE não sabia? Vamos continuar? Mais outros países: Taiwan, Rússia, Suíça, Noruega, Itália, Israel. O pessoal tem o que observar. Aqui no Brasil os observadores que, por ventura, vierem para cá, eu queria saber o que eles vão observar aqui.

Em 2014, a conclusão foi de que houve uma dúvida grave. Quem ganhou as eleições? Daria um capítulo, mas eu não vou entrar nesse capítulo aqui. Já está bem bastante curioso o que aconteceu em 2014. A Polícia Federal, nesses momentos, recomendou o voto impresso. Manteriam o sistema eleitoral nosso, mas teria impressora do lado da urna. Onde não haveria contato manual por parte do eleitor e, após a confirmação do voto, esse papel cairia dentro de uma urna e essa urna seria então utilizada na mais na frente para uma contagem física caso houvesse dúvidas sobre quem ganhou as eleições. Então, a documentação do próprio TSE também conclui aqui que não há como fazer uma correspondência entre um eleitor específico e seu voto. Ninguém quer descobrir o voto daquela pessoa para quem ela escreveu ali ou pra quem ela queria votar, não é isso. Esse sistema aqui é impossível fazer qualquer relação ou correlação entre o eleitor e o seu voto. Aqui mais uma vez junto, outro parecer da Polícia Federal em 2018 recomendando que fossem envidados todos os esforços para que possa existir o voto impresso para fins de auditoria, também ignorados. Por 4 vezes o parlamento brasileiro, com a minha participação em todas elas, nós aprovamos o voto impresso ao lado da urna eletrônica sem contato manual do eleitor com o voto, e o Supremo Tribunal Federal disse que era inconstitucional. Inconstitucional no quê?  

“E dai entra, na frente aqui, mais uma personalidade. Deixo claro que quando se fala em ministro Fachin, ele foi o responsável por tornar Lula elegível. Numa interpretação de um dispositivo constitucional, o Lula estava preso, e o Supremo entendeu que a prisão só poderia acontecer em última instância, na 4ª instância. Então, ele foi condenado em 1ª instância, 2ª instância, 3ª instância, todos os placares por unanimidade e estava cumprindo pena de prisão. Com a reinterpretação do Supremo Tribunal Federal, ele foi pra rua. Mas como ele, Lula, estava em liberdade mas as condenações estavam valendo, o próprio ministro Fachin, relator de um processo, resolveu tornar o Lula elegível. Então, por 3 a 2, o Supremo Tribunal Federal não o inocentou.

“Simplesmente, anulou os julgamentos voltando para a 1ª instância o senhor Luiz Inácio Lula da Silva. Ao voltar para a 1ª instância, ele conseguiu, ele reconquistou a possibilidade de ser elegível. Daí, em setembro de 2021, o ministro Barroso, por portaria, resolve convidar algumas instituições, entre elas as Forças Armadas, a participarem de uma comissão de transparência eleitoral. As Forças Armadas não se meteram nesse processo. Foram convidadas. Ao serem convidadas, nós temos um Comando de Defesa Cibernética que, acredito, todos os Chefes, todos os outros países têm também e, como foram convidados, começaram a trabalhar para apresentar soluções, sugestões, para que o ocorrido nas eleições de 2018 não viesse a ocorrer novamente.

“Continua então o senhor Barroso me atacando. Deixo bem claro, por quê que o senhor Barroso foi escolhido pelo governo do PT para ser ministro do Supremo Tribunal Federal? Porque ele trabalhou para que o terrorista César Battisti ficasse no Brasil. E, no último dia do presidente Lula em 2010, Battisti ganhou a condição de refugiado no Brasil, graças ao trabalho dele, Barroso, que era advogado naquela época, e o terrorista César Battisti permaneceu no Brasil. Graças a isso, certamente, ele ganhou confiança no Partido dos Trabalhadores e foi indicado para o Supremo Tribunal Federal.

“Então, essa acusação que eu vazei dados do inquérito, que é ostensivo, não tem qualquer classificação sigilosa. É uma acusação simplesmente infundada. Carece de base, de amparo legal. É uma acusação mentirosa, nada existe no inquérito. O inquérito, como disse, como o próprio depoimento do delegado encarregado do mesmo, da Corregedoria da PF e da Procuradoria da Câmara dizendo que o inquérito não tinha qualquer classificação sigilosa. E, se tivesse, estava errado. Porque, quando se fala em eleições, se vem à nossa cabeça transparência. E o senhor Barroso também com o senhor Fachin, começaram a andar pelo mundo me criticando, como se eu estivesse preparando um golpe por ocasião das eleições. É exatamente o contrário o que está acontecendo. O Barroso, nos Estados Unidos, faz uma palestra como se livrar de um presidente. Ele era presidente do Tribunal Superior Eleitoral e é do Supremo Tribunal Federal. A gente não tem notícias de pessoas que ocupam essa Corte nos países que tem, e que fique falando, dando entrevista, dando palestras e colocando a sua opinião pessoal sobre esse ou aquele governo. Lamentável a ação do ministro Barroso pelo mundo. Isso atrapalha o Brasil. Repito, os senhores nunca ouviram uma só palavra minha de censurar a mídia, de derrubar página de alguém que me critique, de prender deputado, nunca mandei prender nenhum deputado. Quem prendeu foi outro colega deles, Alexandre de Moraes.

[início da transmissão de um vídeo, no qual o ministro Luís Roberto Barroso participa de entrevista coletiva no dia do primeiro turno das eleições de 2018] Pergunta de jornalista ao ministro Luís Roberto Barroso: “Boa noite, Ministro. Com as informações que a gente tem até agora, dá para saber se a gente vai ter resultado hoje ainda, ou só amanhã? E a outra coisa é: quem que faz a manutenção do supercomputador que o senhor mencionou, é a própria equipe do TSE ou uma empresa terceirizada? Obrigado”.

“Ministro Luís Roberto Barroso: Eu vou pedir ao nosso Secretário de Tecnologia da Informação, Giusepe, se você puder comparecer ali ao microfone e explicar. Houve um problema de infraestrutura, que é a hora que eu estava atendendo, mas eu não gostaria de dar uma explicação equivocada. Portanto, Giuseppe, por favor”. Giuseppe: “Boa noite. Esse computador ele é instalado por meio de um serviço, ele faz justamente esse papel da nuvem computacional. Ou seja, é um supercomputador. Ele é contratado por uma empresa, no caso essa empresa é a Oracle. Ela instala esse computador e mantém ele em funcionamento. É um serviço justamente, e não é uma aquisição. Portanto, a manutenção, a conservação, o suporte, o bom funcionamento do equipamento é de responsabilidade da empresa”. Ministro Luís Roberto Barroso: “Não é propriamente uma terceirização, é uma contratação de um serviço, como explicou o nosso secretário, ok?”

[retorno da fala do Presidente Jair Messias Bolsonaro] Bem, não é o Tribunal Superior Eleitoral quem conta os votos, é uma empresa terceirizada. Eu acho que nem precisava continuar essa explanação aqui. Nós queremos obviamente, estamos lutando para apresentar uma saída para isso tudo. Nós queremos confiança e transparência no sistema eleitoral brasileiro.

Aqui uma reunião com o Ministro Fachin, com alguns dos senhores ou representantes alertando-os contra acusações levianas. O que eu estou falando aqui não tem nada de leviano. Esse inquérito, tem uma cópia comigo e quem porventura quiser ter acesso a ele eu forneço a cópia. Que repito: não tem qualquer classificação sigilosa o que está dentro dele. E aqui eu já falei: ‘Fachin assina acordo do TSE com entidade estrangeira para observação das eleições’. Eu peço aos senhores, o que essas pessoas vêm fazer no Brasil? Vêm observar o quê? Que o voto é totalmente informatizado, vêm dar ares de legalidade? Vêm dizer que tudo ocorreu numa normalidade? Eu teria dezenas e dezenas de vídeos pra passar pros senhores por ocasião das eleições de 2018, onde o eleitor ia votar e simplesmente não conseguia votar. Ou quando ele apertava o número 1, e depois ia apertar o número 7, aparecia o 3 e o voto ia pra outro candidato. O contrário ninguém reclamou. Temos quase 100 vídeos de pessoas reclamando que foram votar em mim e, na verdade, o voto foi para outra pessoa, nenhum vídeo de alguém foi votar no outro candidato e porventura apareceu meu nome.

Nós queremos é corrigir falhas. Nós queremos transparência. Nós queremos democracia de verdade. Agora, eu estou sendo acusado o tempo todo pelo Barroso, Fachin, Alexandre de Moraes, como uma pessoa que quer dar o golpe. Eu estou questionando antes porque temos tempo ainda de resolver esse problema. Com a própria participação das Forças Armadas, que foram convidadas pelo Tribunal Superior Eleitoral. Os senhores devem estranhar: ‘O que as Forças Armadas estão fazendo no processo eleitoral?’. Nós fomos convidados. E eu sou o chefe supremo das Forças Armadas. Nós jamais, com esse convite, iríamos participar apenas para dar ares de legalidade. O Comando de Defesa Cibernética, que os senhores têm equivalente nos países de vocês, é algo extremamente sério. Pessoas extremamente, mais que habilitadas, confiáveis.

Depois de convidar as Forças Armadas, o trabalho das Forças Armadas junto com o Comando de Defesa Cibernética, que é algo louvável, confiável e verdadeiro, o ministro Fachin disse que as sugestões apresentadas pelas Forças Armadas serão avaliadas depois de 2022, todas sugestões apresentadas pelas Forças Armadas podem ser cumpridas até 2 de outubro e, se tiver qualquer despesa extra, o Poder Executivo arranja recurso para tal. Sempre ouvimos, em especial da esquerda, que ‘democracia não tem preço’. Por quê uma declaração como essa? Será que já está antevendo que o candidato dele, que ele tornou elegível, vai ganhar as eleições? E do lado de cá teria uma reação? Que o resultado das eleições se cumpre. Agora estamos tentando antecipar um problema que interessa para todo mundo. O mundo todo quer estabilidade democrática no Brasil. Os senhores todos querem continuar representando os seus países. Porque o Brasil é um país que interessa para todo mundo. Nós alimentamos mais de 1 bilhão de pessoas pelo mundo com o nosso o agronegócio. Repito: temos negócios com o mundo todo, é um país fantástico. Teria muito a falar sobre o Brasil. Os senhores bem acompanham o que vem acontecendo aqui em nossa pátria. E nós, se o povo resolver voltar o que era antes, paciência. Agora, num sistema eleitoral como esse, que apenas 2 países o adotam, outros estudaram e abandonaram, outros fizeram uma ou outra eleição e desistiram. Nós não queremos isso para o Brasil. Nós não queremos que, após as eleições um lado ou outro, questione os resultados das eleições. “Como os senhores viram no começo aqui, védeos passando, eu ando pelo Brasil todo. Sou muito bem recebido em qualquer lugar. Ando no meio do povo. O outro lado não. Sequer toma café ou almoça no restaurante do hotel. Come no seu quarto. Porque não tem aceitação. Agora, pessoas que devem favores a ele, não querem um sistema eleitoral transparente. Pregam o tempo todo que, imediatamente, após anunciar o resultado das eleições, os respectivos Chefes de Estado dos senhores devem reconhecer imediatamente o resultado das eleições. “Depois das Forças Armadas serem convidadas para participar da Comissão da Transparência Eleitoral, o Fachin, quem tornou o Lula elegível, disse que quem trata das eleições do Brasil são as ‘forças desarmadas’. Então, por que nos convidaram? Achavam que iam dominar as Forças Armadas? Será que se esqueceram que eu sou o chefe supremo das Forças Armadas? Será que esqueceram da responsabilidade das nossas Forças Armadas, que gozam de um conceito excepcional perante a opinião pública? Jamais as Forças Armadas participariam de uma farsa. Jamais seriam moldura de uma fotografia. E olha uma coisa inacreditável. O que que o Fachin disse, o homem que tornou Lula elegível, sempre foi advogado do MST, o grupo terrorista que há até pouco tempo atrás era bastante ativo no Brasil: ‘A auditoria não é instrumento para rejeitar resultado das eleições’. Para que serve a auditoria? Eu tenho vergonha de estar falando isso para vocês. Eu tenho vergonha. Agora eu sou obrigado a conversar com os senhores. Agradeço a presença empenhoradamente. E sei que os senhores todos querem a estabilidade democrática em nosso país. E ela só será conseguida por eleições transparentes. Confiáveis. “O ministro Alexandre de Moraes: ‘Manda quem prender quem disseminar as fake news nas eleições de 2022’. O que que é fake news? É o que eles acham que é fake news. Como já aconteceu comigo, botaram uma página minha no Facebook, uma matéria de uma revista falando sobre AIDS e vírus COVID e ele achou que aquilo é fake news e está me processando. Eu não sei onde ele acha que ele pode parar. Nós temos a paz, tranquilidade, o respeito que não tem da outra parte para conosco. Eu não sei o que faz uma pessoa agir dessa maneira. Quem escolhe as pessoas pra dizer o que esse ou aquele candidato bota em sua página, se é fake news ou não, é o próprio TSE. Que desmonetiza páginas, que derruba outras, que sugere prisões, que cassa parlamentar por coisas que não tem tipificação na lei. Como cassaram o deputado por fake news. Que cria jurisprudência de interesse deles mesmos para prejudicar o nosso lado.

[início da transmissão de um vídeo, no qual se manifesta o ministro Alexandre de Moraes] Ministro Alexandre de Moraes: “Há gabinete de ódio. Foi dito na tribuna por um dos advogados: `Em momento algum se falou em gabinete do ódio`. Há gabinete do ódio, sim. E essa alcunha não foi dada nos inquéritos, não foi dada por opositores políticos. Foi um ministro de Estado, um ministro de Estado que disse: aqui do lado é o gabinete do ódio e só ficam produzindo. Se houver repetição, se houver repetição do que foi feito em 2018, o registro será cassado e as pessoas que assim fizerem irão para a cadeia, por atentar contra as eleições e contra a democracia no Brasil. É o voto, Presidente.` [retorno da fala do Presidente Jair Messias Bolsonaro] “Atentar contra as eleições e a democracia. Quem faz isso? O próprio TSE, ao esconder, ao tentar esconder o inquérito de 2018. Não pode um magistrado ameaçar quem quer que seja. Quando ele diz que existe gabinete do ódio, que seria algo do meu governo, diz que tem um ministro que falou, mas não diz o nome do ministro, não apresenta uma só matéria que poderia ter sido produzida no tal do gabinete do ódio. O que ele quer com isso? Pra quê acirrar os ânimos entre o Poder Judiciário e o Poder Executivo? E não é o comportamento de um magistrado, a ameaça. Se diz que houve, existe gabinete do ódio, repito, apresente uma só matéria que poderia ser produzida por um gabinete vinculado a mim, na Presidência da República. É lamentável esse comportamento ameaçando, quer amedrontar quem? Quer fazer valer esse processo eleitoral onde o próprio TSE diz que ele é vulnerável. Onde a própria Polícia Federal disse com documentação do próprio TSE que aquilo é mais que um queijo suíço, é uma peneira. Por quê eles convidam as Forças Armadas e depois não querem mais as nossas sugestões? “O último slide: Jornal O Estado de São Paulo: ‘Ministros do Supremo Tribunal Federal formam célula política para combater o governo Bolsonaro’. Quem diz não sou eu. Tem a própria imprensa, que sempre esteve ao lado deles, acaba deixando transparecer uma verdade cristalina. As ações contra o nosso governo são inúmeras. Eu recebo uma interferência por semana no meu governo. Você dá prazo para explicar por 48 horas porque que eu não fiz isso, porque não fiz aquilo. E ajuizada por parlamentares de esquerda, da extrema esquerda brasileira, tentando o tempo todo desestabilizar o governo. Então, a presença dos senhores aqui, que eu agradeço mais uma vez, com qual intenção nossa? Nosso objetivo é transparência e confiança nas eleições. Quem ganhar, o outro lado tem que se conformar, estamos a 3 meses das eleições. “As propostas sugeridas pelas Forças Armadas praticamente estancam a possibilidade de manipulação de números, como sugere o próprio TSE, por ocasião das eleições de 2018. Eu não quero falar do que eu acho que aconteceu. Eu estou simplesmente em cima dos autos. Estou me comportando aqui como um outro magistrado deveria se comportar. Com esse inquérito, como eu convidei o Presidente do TSE a comparecer a esse evento, não veio. Convidei o presidente de todos os poderes, né? Presente aqui o Ministro do STM, Superior Tribunal Militar. Não compareceram, tudo bem. Agora, isso que está acontecendo é de interesse de todo o povo brasileiro. A desconfiança do sistema eleitoral tem se avolumado. Nós não podemos enfrentar eleições sob o manto da desconfiança. Nós queremos ter a certeza de que quem o eleitor votou, para quem o eleitor votou, o voto vai exatamente para aquela pessoa. O próprio TSE diz que, em 2018, números podem ter sido alterados. Os hackers tiveram acesso a uma dezena de senhas, por 8 meses. Eles não perceberam? Não perceberam? 8 meses. 7 meses depois que a Polícia Federal pede os logs, que são as impressões digitais da cena, do fato. 7 meses depois os logs foram apagados. Poderiam ser entregues os logs no mesmo dia, por iniciativa do próprio TSE, nem precisava ser provocado pela Polícia Federal. E 7 meses depois, foram apagados. O próprio ministro Barroso chama o chefe da Tecnologia da Informação e ele responde: os votos são contados por uma empresa terceirizada. Que empresa é essa? Temos um nome? Sim, temos um nome. Mas cadê a confiança? Eleições são questões de segurança nacional. Nós não queremos instabilidade no Brasil. O Brasil está voando. “Nos comportamos muito bem durante a pandemia. Nos comunicamos e fazemos negócios com o mundo todo. Nos mantivemos em função de equilíbrio em situações complexas pelo mundo. Nós garantimos a segurança alimentar para mais de 20% da população mundial. Também a segurança energética, o Brasil desponta como um exemplo para o mundo. “O que que nós queremos? Paz, tranquilidade. Agora, por que um grupo de 3 pessoas apenas, 3 pessoas, querem trazer instabilidade para o nosso país? Não aceitam nada, as sugestões das Forças Armadas que foram convidadas, são perfeitas. Chega a perfeição absoluta? Talvez não. Que nenhum sistema informatizado pode dar garantia de 100% de segurança. As Forças Armadas, da qual sou comandante, ninguém mais do que nós, como sempre, queremos estabilidade em nosso país. E por quê agem de maneira diferente? E nós vemos claramente, o ministro Fachin, que foi quem tornou o Lula elegível e agora é presidente do TSE. O ministro Barroso foi advogado do terrorista Battisti, que recebeu aqui o acolhimento do presidente Lula em dezembro de 2010. O ministro Alexandre de Moraes advogou no passado para grupos que, se eu fosse advogado, não advogaria. É um direito dele advogar para quem quer que seja, mas eu não faria esse trabalho. Tem posição que, de um comportamento que não se adequa ao sistema democrático, uma ameaça. ‘Vou caçar o registro, vou prender. Quem duvidar eu prendo’. Olha, quem está duvidando do que está acontecendo, não sou eu. É o próprio Tribunal Superior Eleitoral que ele agora não quer deixar que se aperfeiçoe, que ele realmente mostre no dia 2 de outubro do corrente ano, os números reais das eleições pelo Brasil. “Então, o que eu tinha a falar aos senhores era isso. Eu vou pedir ao ministro Carlos França que o extrato disso chegue na embaixada dos senhores aqui. Quem quiser o processo na íntegra, eu entrego também. Porque ele não tem qualquer grau de sigilo. Repito: me sinto até envergonhado desse momento, dado o que está acontecendo em nosso país. “Isso que vocês ouviram aqui acontece no Brasil todo, como eu já disse, o povo gosta da gente. Não pago um centavo para ninguém participar de absolutamente nada. É um povo que, cristão no Brasil, é um povo ordeiro, trabalhador, tem seus problemas, mas acima de tudo quer paz. Quer segurança. E tem encontrado em mim isso daí. Diferentemente, do que algumas notícias de jornais transmitem, o que é natural, infelizmente, no mundo todo. Temos boa imprensa no Brasil também, mas o que mais ressalta aos olhos são as acusações. “Então, a gente lamenta o que vem acontecendo, vou convidar integrantes da Câmara, do Senado, do Superior Tribunal de Justiça, do Tribunal de Contas da União, do Tribunal Superior do Trabalho, a participar de conversas comigo sobre esse inquérito que, curiosamente, não foi fechado até o presente momento, para que nós possamos ter paz e tranquilidade e confiança por ocasião das eleições no corrente ano. “Muito obrigado a todos os senhores.” (grifos nossos)

29. Sobre o discurso proferido, o autor da presente ação alega estar comprovado a natureza eleitoral exposto nas falas do investigado (ID 157940943):

a) “o Senhor Jair Messias Bolsonaro criou uma ambiência propícia para a propagação de toda sorte de desordem informacional ao asseverar, por diversas vezes, que o sistema eletrônico de votação é receptivo a fraudes e invasões que, sob a ótica do delírio presidencial, podem comprometer a fidedignidade do resultado dos pleitos” (p. 4);

b) “A reunião foi transmitida pela TV Brasil Distribuição, através da Empresa Brasil de Comunicação, empresa pública, nos termos da Lei nº 11.652/2008, e o vídeo do encontro foi veiculado, na íntegra, através das redes sociais do Senhor Jair Messias Bolsonaro, especialmente no Instagram (@jairmessiasbolsonaro) e no Facebook. Importa realçar que, no Facebook” (p. 13);

c) “até o momento da elaboração desta petição inicial, a mídia alcançou cerca de 72.000 (setenta e duas mil) curtidas, 55.000 (cinquenta e cinco mil) comentários 589.000 (quinhentos e oitenta e nove mil) visualizações. 10 Já no Instagram, a postagem atingiu cerca de 587.000 (quinhentas e oitenta e sete mil) visualizações e 11.000 (onze mil) comentários” (p. 13); e

d) “o ataque à Justiça Eleitoral e ao sistema eletrônico de votação faz parte da sua estratégia de campanha eleitoral, de modo que há nítida veiculação de atos abusivos em desfavor da integridade do sistema eleitoral, através de fake news, o que consubstancia-se em um fato de extrema gravidade” (p. 15).

30. Os investigados argumentam inexistência de relação entre o evento e as eleições de 2022. Defendem que (ID 157977291):

a) “não se cuidou de eleições! Não se pediu votos! Não houve ataque a oponentes! E não houve a apresentação comparativa de candidaturas! As manifestações impugnadas, ao contrário, na dicção da própria inicial, são representativas de debates públicos dialogados entre Poderes da República, na perspectiva de observação da Comunidade Internacional” (p. 5);

b) “a reunião objeto da presente ação encontra-se fora do escopo de controle judicial, notadamente eleitoral, dado o seu caráter eminentemente político, com discricionariedade afeta ao chefe do Executivo, como executor de atos de governo próprios a um Estado Soberano, o que rechaça sua censura prévia ou posterior” (p. 10);

c) “em termos constitucionais, a exposição de pontos de dúvidas à comunidade internacional, em evento público constante de agenda oficial de Chefe de Estado soberano, no afã de aprimorar o processo de fiscalização/transparência do processo eleitoral, diz também com liberdade de expressão” (p. 13);

d) “não há qualquer hostilidade antidemocrática ao sistema eleitoral o evento realizado no dia 18/07/2022. Ao contrário, dadas a publicidade e a sinceridade dos questionamentos, a fala do Investigado deu-se como salutar tentativa de exposição de aprimoramento do processo eleitoral” (p. 18); e

e) “o primeiro Investigado, de forma legítima, como Chefe de Estado, revelou seu ponto de vista à comunidade internacional e a Justiça Especializada, pronta e eficazmente, também de forma legítima, enquanto instituição republicana guardiã da lisura do processo eleitoral externou seu contraponto” (p. 21-22).

31. A testemunha Carlos Alberto França, então Ministro das Relações Exteriores, esclareceu que a iniciativa para a reunião com os embaixadores estrangeiros foi da Presidência da República e não do Ministério por ele chefiado e, ainda, teria ocorrido em resposta à Sessão Informativa para Embaixadores realizada no dia 31.5.2022, pelo Presidente do Tribunal Superior Eleitoral. Informou também que a convocação para discussão sobre o sistema de votação se deveria ao período pré-eleitoral e que o tema nunca havia sido tratado antes por nenhum outro Presidente. Enfatizou que (ID 158766494):   

"O SENHOR EMBAIXADOR CARLOS ALBERTO FRANÇA (Ministro das Relações Exteriores). Bom, essa... esse encontro ocorre... é... por iniciativa da... organizado pelo Cerimonial da Presidência da República...ah...num contato que aconteceu depois que houve aqui, houve uma espécie de briefing, ou uma reunião de coordenaçãoaqui, no Tribunal Superior Eleitoral, né, e julgou-se então que era papel da :Presidência da República também se manifestar diretamente aos chefes missão aqui acreditados, dentro da linha de que o presidente da República é o que.., enfim... conduz a política externa em relação com os Estados estrangeiros.

O DOUTOR WALBER DE MOURA AGRA (advogado): No nosso sistema, integridade, é um dos melhores sistemas do mundo. No ano de 2022, ou no período em que o Senhor está no Itamarati houve algum documento escrito de embaixada estrangeira — documento escrito de embaixada ou qualquer hierarquia das relações exteriores — que questionasse o sistema eleitoral brasileiro, Excelência?

O SENHOR EMBAIXADOR CARLOS ALBERTO FRANÇA (Ministro das Relações Exteriores): Não que eu tenha conhecimento, Doutor Walber, mas seria.., é... também... é... algo (...) de assunto interno aqui... é... que talvez não coubesse a uma embaixada nos inquirir, não é? Porque, normalmente, os requerimentos têm que tratar dê uma embaixada junto com a chancelaria brasileira sobre assuntos de política externa.

Mas... é... como eu falei, eu acho que é dentro desse espirito desse debate que há na sociedade brasileira, ou havia naquele momento pré-eleitoral, é que se convocou aquela reunião. Eu acho que era um debate que, como eu falei, já existia no Legislativo.., é..., era objeto no próprio Judiciário.

(...)

O DOUTOR MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (Juiz Auxiliar da Presidência do TSE): [...] Dentre essas funções, de que foi incumbido como chanceler, estava a de tratar também sobre as eleições brasileiras com os embaixadores de países estrangeiros?

O SENHOR EMBAIXADOR CARLOS ALBERTO FRANÇA (Ministro das Relações Exteriores): Excelência, não é função do Itamarati, nem mesmo constitucional, de que nós nos ocupemos de temas eleitorais.

(...)

O DOUTOR MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (Juiz Auxiliar da Presidência do TSE): É... com relação aos fatos, especificamente antes do dia 18 de julho de 2022, já tinha sido algum... realizado algum evento com os embaixadores de países estrangeiros para tratar especificamente do sistema de votação brasileiro com ou sem a presença do presidente da República? É... eu... eu digo assim, não uma questão pontual, com um embaixador ou outro, mas uma reunião coletiva, com vários embaixadores convidados?

O SENHOR EMBAIXADOR CARLOS ALBERTO FRANÇA (Ministro das Relações Exteriores): Não. Não que eu tenha conhecimento.”

32. No caso em análise, diferente do que alegam os investigados, extrai-se do acervo probatório produzido nos autos o caráter eleitoreiro da reunião realizada pelo investigado com embaixadores, havida no dia 18.7.2022.

 

Assim, com razão o Ministro Relator quando afirma que (p. 336):

“(...) a reunião teve nítida finalidade eleitoral, mirando influenciar o eleitorado e a opinião pública nacional e internacional. (...)

O discurso teve conotação eleitoral, inserindo-se no contexto das eleições presidenciais de 2022, ao menos sob as seguintes óticas:

a) o tema central foi alertar para a iminência de uma suposta fraude nas Eleições 2022, aos moldes do que se afirmou ter ocorrido em 2018 (...);

b) (...) o candidato à reeleição (...) buscou se apresentar como ‘favorito’ pelo eleitorado, per personificar valores do ‘povo’ (...);

c) foi apresentada uma narrativa inventada segundo a qual três sucessivos Presidentes do TSE viriam atuando para garantir a vitória de Lula em 2022 (...).

33. Merece destaque a manifestação da Procuradoria-Geral Eleitoral sobre a finalidade eleitoral do evento (ID 158487960):

“[A] Rep 0600741-16.2022.6.00.0000 [ajuizada pelo Ministério Público Geral Eleitoral] (...) também teve a mesma reunião como objeto de crítica da Procuradoria-Geral Eleitoral. A inicial da representação do parquet imputava propaganda extemporânea à mesma reunião. Diversos tópicos do pronunciamento do Presidente da República foram qualificados como desvirtuados tanto da verdade como da margem lídima de exercício da liberdade de expressão, dadas as circunstâncias eleitorais que circundavam a elocução do Chefe de Estado, ao tempo aguardado candidato a um segundo mandato. Outras três representações convergentes foram também ajuizadas por outros legitimados.

A deliberação unânime do Plenário pela procedência das representações propostas assume papel determinante para este caso. Ali se resolveu questão fática que se repete nestes autos. Foi, então, assentado que o pronunciamento do Presidente da República destoava da verdade e que servia a propósitos eleitoreiros. Elementos do abuso de poder, portanto, foram então reconhecidos.

O acórdão, resultante da sessão de extraordinária realizada por meio eletrônico de 29 a 30.9.2022, anotou:

(...)

‘A deslegitimação do sistema, a partir da construção de fatos falsos, forjados para conferirem estímulos artificiais de endosso a opiniões pessoais, é comportamento que já não se insere no legítimo direito à opinião, dúvida, crítica e expressão, descambando para a manipulação desinformativa, via deturpação fática, em grave comprometimento da liberdade de “informação”, e com aptidão para corroer a própria legitimidade do pleito eleitoral.’

(...)

A circunstância de o TSE já haver analisado os fatos sob a ótica da propaganda eleitoral antecipada não impede um novo exame sob a perspectiva do abuso de poder. O acórdão no julgamento das representações referidas o disse expressamente, ao salientar que “o eventual questionamento do episódio em sede de representação por propaganda irregular não interfere a apuração do mesmo fato em outras vias processuais autônomas”.

(...)

Não há (...) impedimento a que o mesmo fato seja punido por propaganda antecipada e também acarrete as sanções do abuso de poder, se os rasgos típicos desta última figura estiverem presentes. Os tipos em tela protegem bens jurídicos diversos, cada qual com peculiaridades próprias, ensejando diferentes tipos de ilícito.

(...)

De fato, o então Presidente da República deixou manifesta a sua posição em várias oportunidades e, em especial, ao tempo da votação de Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n. 135/2019, que pretendia retificar o sistema de votação e de apuração em vigor. Mesmo assim, o Congresso Nacional optou por rejeitar a PEC em 2021. (...)

A reunião com representantes diplomáticos às vésperas do período eleitoral não poderia mais ser vista como esforço para debater o melhor sistema a ser adotado pelo Brasil – e isso, mesmo que o pronunciamento não contivesse graves insinuações à imparcialidade da Justiça e dados desprovidos de base fática autêntica e fidedigna. A decisão sobre o sistema digital já havia sido tomada e muito recentemente. A escusa do propósito republicano de contribuir para a melhoria das instituições, portanto, é descabida e não se sustenta em fundamento que impressione.

(...)

Tinha-se, portanto, o Chefe de Estado dizendo, nessa qualidade, para brasileiros e autoridades de países com embaixadores no país, que não se podia acreditar na legitimidade do processo eleitoral. A proximidade das eleições e a repercussão que o evento não poderia deixar de ter impõe concluir que a elocução foi apta para abalançar o grau de confiança de eleitores na fidedignidade do resultado do pleito. Mesmo com as medidas cautelares adotadas neste processo alguns dias depois de realizado o encontro, o episódio ingressou no ambiente da disputa eleitoral e se difundiu. Bastaria, na realidade, a sua ocorrência e a notícia respectiva para que a gravidade qualitativa do evento se positivasse.

(...)

Os elementos acrescidos a estes autos também reforçam o juízo de que o discurso a respeito de uma prospectiva fraude antecipava uma temida vitória do principal adversário do Presidente da República, que seria desmerecida com a indução à crença de que as tramas no sistema eleitoral se ordenaram a favorecer a candidatura da oposição. Percebe-se que essa era a linha de denúncia que já vinha sendo formulada desde antes do encontro com os embaixadores, conforme documentos trazidos aos autos indicam.

(...)

Nota-se que a reiteração, na reunião com os embaixadores, de graves afirmações sobre a confiabilidade das urnas eletrônicas, suscetíveis de sérias consequências, enfrentaram desmentidos oficiais, que se mantêm hígidos. O discurso do investigado, aliado às advertências a um propósito da Justiça Eleitoral de favorecer o seu adversário mais notório, beneficiou a posição estratégica do investigado no contexto das eleições ali tão próximas. Era esperado que o comportamento viesse a infundir desconfiança sobre o sistema de votação, apuração e totalização de votos adotado. Esse potencial se confirmou com os fatos notórios, alguns. violentos, de inconformismo com os resultados das eleições presidenciais, em que se lhes atribuia a pecha de ilegítimos e fraudulentos.

(...)

O discurso a autoridades diplomáticas estrangeiras, que pretendia também alcançar autoridades brasileiras e que se voltava a impressionar, à toda evidência, a população em geral, culmina com avisos sobre a iminência de fraude, sempre associada ao voto digital, indicando que o sistema vigente estaria disposto para forjar resultado eleitoral favorável ao candidato do partido de esquerda, que desde sempre despontava como o seu principal oponente. À vista do inerente prestígio e da imponência do cargo de Presidente da República, da solenidade de que se revestiu o ato a que foram convidados todos os embaixadores no país, da proximidade cronológica das eleições e da argumentação adotada, o evento estava propenso a gerar impacto e a inquietar ânimos pessimistas com relação à legitimidade do pleito que já vinham sendo exasperados em outros pronunciamentos. Tudo isso se agravava com insinuações e afirmações inflamadas, que, entretanto, já haviam recebido explicações que as desmereciam. Esses pronunciamentos acharam espaço no discurso aos embaixadores, sem as referências aos seus contrapontos.

Objetivamente, o discurso atacou as instituições eleitorais, e ao tempo que dava motivo para indisposição do eleitorado com o candidato adversário, que seria o beneficiário dos esquemas espúrios imaginados, atraía adesão à sua posição de candidato acossado pelas engrenagens obscuras do tipo de política a que ele seria estranho.

Após o ajuizamento da ação de investigação judicial eleitoral e depois das eleições, percebeu-se uma inédita mobilização de parcelas da população que rejeitavam aberta e publicamente o resultado do pleito, por não serem legítimas. É fato notório que surgiram acampamentos e manifestações de rua animados por pessoas convictas de que as eleições haviam sido fraudadas. Estão ainda muito presentes e nítidas as imagens do dia 8 de janeiro último de destruição e de acintosa violência aos Poderes constituídos. A gravidade do discurso contra a confiabilidade do sistema de votação eletrônica não poderia ter mais expressiva exposição.

(...)

O discurso de desconfiança nas eleições, se não rendeu ao candidato a maioria dos votos nas eleições, mostrou-se evidentemente capaz de afetar a confiança de parcela da população na legitimidade dos resultados havidos. Atingiu-se, portanto, e de modo grave, bem jurídico central à ordem democrática.”

34. Como apontado pela Procuradoria-Geral Eleitoral e destacado pelo Relator, os mesmos fatos em análise nesta ação já foram objeto de deliberação deste Tribunal Superior, na Representação n. 0600741-16, Relatora a Ministra Maria Cláudia Bucchianeri, quando então foram examinados sob a ótica da propaganda eleitoral irregular.

Naquele julgamento, assentou-se a “conotação eleitoral” da reunião. O acórdão, proferido por unanimidade, foi assim ementado:

“REPRESENTAÇÕES. ELEIÇÕES 2022. (...)

5. A legitimidade e normalidade do pleito (art. 14, § 9º da CRB), em seu viés antecedente de aceitabilidade das regras do jogo e a confiança nos resultados proclamados, qualifica-se como bem jurídico constitucional autônomo a ser tutelado pela Justiça Eleitoral, independentemente da situação particular dos candidatos em disputa (RO 0603975-98, Rel. Min. Luis Felipe Salomão).

(...)

7. Comportamentos que tenham alguma conotação eleitoral e que sejam proibidos durante o período oficial de campanha são igualmente proibidos na fase antecedente da pré-campanha, ainda que não envolvam pedido explícito de voto ou não voto, podendo configurar propaganda eleitoral antecipada irregular, nos termos do art. 3º- A da Resolução 23.610/2019. Precedentes.

(...)

9. O eventual questionamento do episódio em sede de representação por propaganda irregular não interfere a apuração do mesmo fato em outras vias processuais autônomas.

10. Numa democracia, não há de ter limites o direito fundamental à dúvida, à curiosidade e à desconfiança. Cada cidadão é livre para crer ou descrer no que bem entender, para duvidar. E essa ampla liberdade de pensamentos não pressupõe ou demanda elementos racionais que os justifiquem ou legitimem e não precisa fundar-se em discursos intersubjetivamente válidos.

11. A deslegitimação do sistema, a partir da construção de fatos falsos, forjados para conferirem estímulos artificiais de endosso a opiniões pessoais, é comportamento que já não se insere no legítimo direito à opinião, dúvida, crítica e expressão, descambando para a manipulação desinformativa, via deturpação fática, em grave comprometimento da liberdade de “informação”, e com aptidão para corroer a própria legitimidade da disputa em si.

12. Representação julgada procedente.” (Rp 0600741-16, Relatoria Min. Maria Cláudia Bucchianeri, Julgamento na sessão ordinária por meio eletrônico de 29 a 30.9.2022)

35. Sobre o caráter eleitoral, negado pela defesa do primeiro investigado, bastaria o cotejo do que afirmado pelos advogados de defesa e a fala expressa por ele proferida na reunião em causa.

Afirma a defesa no ID 157977291):

a) não se cuidou de eleições! Não se pediu votos!” (p. 5)

Tem-se na fala antes transcrita do primeiro investigado:

“Nós temos um sistema eleitoral que apenas 2 países no mundo usam. No passado, alguns países tentaram usar, começaram até a usar esse sistema e rapidamente foi abandonado. Repito, o que nós queremos são eleições limpas, transparentes, onde o eleito realmente reflita a vontade da sua população.

“...O que eu mais quero para o meu Brasil é que a sua liberdade continue a valer também, obviamente, depois das eleições. O que eu mais quero, por ocasião das eleições, é a transparência. Porque nós queremos que o ganhador seja aquele que realmente seja votado.

...

Estamos fazendo exatamente o contrário, porque temos pela frente 3 meses até as eleições. Mais na frente, tudo que eu falo aqui ou é conclusão da PF ou é diretamente informações prestadas pelo TSE...

...

Então, a presença dos senhores aqui, que eu agradeço mais uma vez, com qual intenção nossa? Nosso objetivo é transparência e confiança nas eleições. Quem ganhar, o outro lado tem que se conformar, estamos a 3 meses das eleições.

...

Eu estou questionando antes porque temos tempo ainda de resolver esse problema...

Nosso objetivo é transparência e confiança nas eleições. Quem ganhar, o outro lado tem que se conformar, estamos a 3 meses das eleições.”

Bastaria o cotejo das alegações da defesa e da expressa manifestação do primeiro investigado para se desfazer no ar o que asseverado naquele documento. Só se cuidou de eleições! Foi apenas e exclusivamente sobre eleições! E quem o afirma, peremptória e expressamente, é o primeiro investigado!

b) Anota, ainda, a defesa que “Não houve ataque a oponentes! E não houve a apresentação comparativa de candidaturas!”

Também no ponto é suficiente e de comparação singela e definitiva a fala do primeiro investigado, sem tirar nem por uma vírgula sequer para tornar insubsistente a assertiva defensiva:

Deixo claro que quando se fala em ministro Fachin, ele foi o responsável por tornar Lula elegível. Numa interpretação de um dispositivo constitucional, o Lula estava preso, e o Supremo entendeu que a prisão só poderia acontecer em última instância, na 4ª instância. Então, ele foi condenado em 1ª instância, 2ª instância, 3ª instância, todos os placares por unanimidade e estava cumprindo pena de prisão. Com a reinterpretação do Supremo Tribunal Federal, ele foi pra rua. Mas como ele, Lula, estava em liberdade mas as condenações estavam valendo, o próprio ministro Fachin, relator de um processo, resolveu tornar o Lula elegível. Então, por 3 a 2, o Supremo Tribunal Federal não o inocentou.

...

Como os senhores viram no começo aqui, védeos passando, eu ando pelo Brasil todo. Sou muito bem recebido em qualquer lugar. Ando no meio do povo. O outro lado não. Sequer toma café ou almoça no restaurante do hotel. Come no seu quarto. Porque não tem aceitação. Agora, pessoas que devem favores a ele, não querem um sistema eleitoral transparente.

...

...como eu já disse, o povo gosta da gente. Não pago um centavo para ninguém participar de absolutamente nada...”.

c) “As manifestações impugnadas, ao contrário, na dicção da própria inicial, são representativas de debates públicos dialogados entre Poderes da República, na perspectiva de observação da Comunidade Internacional”

Também no ponto, não se sustenta a assertiva da defesa, como se tem, por exemplo, nas seguintes falas do primeiro investigado:

Só 2 países do mundo usam esse sistema eleitoral nosso. Vários outros países ou não usam ou começaram a usá-lo ou chegaram à conclusão de que não era um sistema confiável porque ele é inauditável. É impossível fazer uma auditoria em eleições aqui no Brasil.

...

“Atentar contra as eleições e a democracia. Quem faz isso? O próprio TSE, ao esconder, ao tentar esconder o inquérito de 2018. Não pode um magistrado ameaçar quem quer que seja.

...

Continua então o senhor Barroso me atacando. Deixo bem claro, por quê que o senhor Barroso foi escolhido pelo governo do PT para ser ministro do Supremo Tribunal Federal? Porque ele trabalhou para que o terrorista César Battisti ficasse no Brasil. E, no último dia do presidente Lula em 2010, Battisti ganhou a condição de refugiado no Brasil, graças ao trabalho dele, Barroso, que era advogado naquela época, e o terrorista César Battisti permaneceu no Brasil. Graças a isso, certamente, ele ganhou confiança no Partido dos Trabalhadores e foi indicado para o Supremo Tribunal Federal.

...

E nós vemos claramente, o ministro Fachin, que foi quem tornou o Lula elegível e agora é presidente do TSE. O ministro Barroso foi advogado do terrorista Battisti, que recebeu aqui o acolhimento do presidente Lula em dezembro de 2010. O ministro Alexandre de Moraes advogou no passado para grupos que, se eu fosse advogado, não advogaria. É um direito dele advogar para quem quer que seja, mas eu não faria esse trabalho. Tem posição que, de um comportamento que não se adequa ao sistema democrático, uma ameaça...

No Brasil, não tem como acompanhar a apuração. Eu não sei o que vem fazer os observadores de fora aqui. Vão fazer o quê? Vão observar o que? Se o sistema é falho, segundo o próprio TSE, é inauditável também segundo uma auditoria externa pedido por um partido político, no caso, o PSDB, em 2014”.

36. De se anotar que o Brasil dispõe de um sistema jurídico no qual a causa de inelegibilidade – como a de que aqui se cuida – é uma conformação jurídica constitucional e legal.

O Brasil dispôs, antes, de um sistema jurídico no qual, mesmo aquele que fosse condenado por crimes comuns ou de responsabilidade, poderia permanecer elegível.

Assim, por exemplo, é que, em 2004, mesmo preso, foi eleito prefeito de Unaí – MG, pessoa acusada de ser mandante pelos assassinatos de três fiscais e um motorista do Ministério do Trabalho, caso conhecido como a “chacina de Unaí”. Eleito com 72% dos votos válidos no pleito de 2004, o então Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Ministro Sepúlveda Pertence reconheceu a validade de sua diplomação e pronunciou-se, em tese, pela possibilidade de sua diplomação, mesmo estando em prisão. Beneficiado por um habeas corpus, o eleito foi empossado pela Câmara Municipal daquele Município.

Casos como esses, que se repetiam nas terras brasileiras, levaram, em 2010, mais de um milhão e meio de eleitores a apor suas assinaturas a Projeto de lei complementar apresentada pelos cidadãos ao Congresso Nacional para formular a quarta lei de iniciativa popular, transformada na Lei Complementar n. 135, de 2010, apelidada de “lei da ficha limpa”.

É o desatendimento a um dos dispositivos desta lei complementar que agora se afirma, na presente ação de investigação judicial eleitoral, com descrição de ato de um ex agente político, cabendo a este Tribunal Superior Eleitoral, no cumprimento de seu dever constitucional (art. 119 da Constituição da República) dar integral cumprimento a seu dever de apreciar e julgar o caso exposto.

37. E o que se expõe, na espécie, é que em 18.7.2022, o então Presidente da República reuniu-se com Chefes de Missões Diplomáticas acreditados no Brasil, no Palácio da Alvorada e ali proferiu a sua peroração sobre o Poder Judiciário, ramo específico da instância superior eleitoral, seus juízes e riscos mentirosos contra o sistema eleitoral e da democracia brasileira.

Afirma-se, na presente ação, cuidar-se de abuso de poder político e uso indevido de meios estatais de comunicação social.

38. O abuso de poder político é vedado em sede constitucional (§ 9º. do art. 14 da Constituição da República), legal (Código Eleitoral – Lei n. 4.737/1965 – art.237; Lei n. 9.504 – art. 73; Lei Complementar n. 135/2010 e art. 1º.,al. d da Lei Complementar n. 64/1990, dentre outros casos de inelegibilidade).

Tem-se o abuso de poder político em casos nos quais, conquanto aparentemente lícita uma prática, seja ela levada a efeito em desacordo com a finalidade do instituto. O exercício abusivo do direito pode dar-se em proveito próprio ou com a intenção de prejudicar, em qualquer caso se cuidando de excesso porque desviado da finalidade que legitima o gesto ou a prática.

No caso em apreço, tanto para prejudicar a confiabilidade do processo eleitoral e, subliminar-se, por-se a dúvida no lugar da boa fé no processo eleitoral e na lisura e eficiência das eleições e do uso das urnas eletrônicas, abrindo-se a via de possível ruptura institucional antidemocrática para se restabelecer a tranquilidade social e política; quanto para fortalecer-se uma via possível de fortalecimento antidemocrática do então chefe do Poder Executivo, a prática teve fins desviantes do direito legítimo.

A erosão democrática inicia-se pelo desvirtuamento da confiança do cidadão nas instituições. E ela é planejada, estimulada, efetivada. Democracia é construção, ditadura também.  

O caos físico, político, institucional (como se teve em janeiro de 2023) e o caos informacional, para fazer operar a desestruturação do que constitucionalmente construído desde 1988 fazem parte do projeto antidemocracia.

O abuso do poder político é a antessala do autoritarismo. Por isso, no Estado de Direito, segundo o sistema jurídico que cada povo estabelece para si, as Constituições e as leis definem os limites do atuar de cada agente, em especial aquele que detém a responsabilidade para agir e apresentar e representar o povo e o País.

Por isso o sistema constitucional e infraconstitucional encarecem a responsabilidade político institucional impedindo que, fora dos limites da atuação legítima, haja reprovação, embaraço ou embaçamento da atuação de um por outro órgão estatal.

Neste sentido, este Tribunal Superior Eleitoral, no julgamento do Deputado Federal Fernando Destito Francischini, firmou o entendimento que “o abuso de poder político configura-se quando a normalidade e a legitimidade do pleito são comprometidas por atos de agentes públicos que, valendo-se de sua condição funcional, beneficiam candidaturas em manifesto desvio de finalidade. Precedentes. Inviável afastar o abuso invocando-se a imunidade parlamentar como escudo” (AgR no RO-El 0603975-98, Relator o Ministro Benedito Gonçalves, DJe 24.2.2022).

 

Título 2: A palavra como instrumento de deliberada ofensa a Poder da República. A deslegitimação do processo eleitoral e a desconfiança das instituições democráticas.

 

39. Dispõe-se no art. 2º da Constituição da República serem “Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.

A independência e a harmonia configuram princípios constitucionais para o pleno e legítimo exercício da República.

A solidez e importância do princípio da separação de poderes revelam-se pela sua presença em todas as Constituições do Brasil, exceção à de 1937. Ao abordar o tema, o Professor Paulo Bonavides assenta a importância do princípio como garantia de preservação da Constituição:

Nenhum princípio de nosso constitucionalismo excede em ancianidade e solidez o princípio da separação dos poderes. Inaderrável de todas as Constituições e projetos de Constituição já formulados neste país desde 1823, data de elaboração do célebre Projeto de Antônio Carlos oferecido à Constituição Imperial, ele atravessou o Império e a República, rodeado sempre do respeito e do prestígio que gozam as garantias constitucionais da liberdade. A única exceção veio a ser a Carta de 1937, mas esta em rigor não foi uma Constituição e sim um ato de força de natureza institucional, tanto que afastou, por inteiro, o País de toda a sua tradição de liberalismo e representatividade do poder. Veja-se que depois do desastre de 1937, nem as Constituições outorgadas pela ditadura de 1964, sem embargo da violência de seu autoritarismo, ousaram tocar naquele princípio” (BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Malheiros, 2019, p. 567).

Em complementação, observa aquele eminente professor que a jurisprudência dos tribunais dos países democráticos “tem sabido por igual adotar o princípio como a melhor das garantias tutelares com que estabelecer as bases de um sistema de leis onde o exercício do poder se inspire na legitimidade dos valores que fazem a supremacia do regime representativo em todas as suas modalidades democráticas de concretização” (BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Malheiros, 2019, p. 568).

O Supremo Tribunal Federal decidiu, por exemplo, que “a ingerência de órgão externo nos processos decisórios relativos à organização e ao funcionamento do Poder Judiciário afronta sua autonomia financeira e administrativa” [ADI 1.578, de minha relatoria, j. 4-3-2009, P, DJE de 3-4-2009.]

Prevista, ao lado da independência, no art. 2º da Constituição da República, a harmonia “verifica-se primeiramente pelas normas de cortesia no trato recíproco e no respeito às prerrogativas e faculdades a que mutuamente todos têm direito”(SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2020, p.112).

O exercício das atividades inerentes aos poderes da República há de se realizar com mútuo respeito às prerrogativas e faculdades de cada um deles, não se admitindo condutas que caracterizem afronta, embaraçamento ou embaçamento ao desempenho livre e necessário dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. A Constituição não autoriza ataques aos Poderes da República, seu acanhamento pela ação de outro nem seu desprestígio que os deslegitimem.

Em relação, especificamente, ao Presidente da República, a Constituição da República é rigorosa quanto ao descumprimento do dever de respeito às prerrogativas dos outros poderes e trata como crime de responsabilidade do presidente da República os atos que atentem contra “o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes Constitucionais das unidades da Federação” e “o cumprimento da leis e decisões judiciais” (incs. II e VII do art. 85 da Constituição da República).

Extrai-se dos dispositivos em análise que o desempenho dos integrantes dos poderes, máxime aqueles que os representam, na condição de seus chefes, devem assegurar o pleno respeito à autonomia e independência de cada qual.

40. A ofensa ao Tribunal Superior Eleitoral – e às suas funções – um dos ramos superiores do Poder Judiciário brasileiro e, no período eleitoral, aquele que ostenta o título de “tribunal da democracia”, por representante de um dos poderes da República caracteriza comportamento inconstitucional, ilegal, imoral e injusto, não admitido pelo ordenamento jurídico brasileiro. Nos termos do inc. V do art. 92 da Constituição da República, os Tribunais e Juízes Eleitorais compõem o do Poder Judiciário. Quando se atacam seus integrantes, no caso, aos membros do Tribunal Superior eleitoral as ofensas consumados dirigem-se a um dos Poderes da República.

No ponto, ressalte-se que as funções de organização das eleições, constitucionalmente atribuídas ao Tribunal Superior Eleitoral, como, por exemplo, distribuição de urnas eletrônicas e apuração de votos, são funções administrativas.

 Em relação a estas funções, os demais Poderes da República devem cooperação para o funcionamento adequado e eficiente da Justiça Eleitoral, em observância ao princípio da eficiência administrativa previsto no art. 37 da Constituição da República. 

Foi o contrário desse dever constitucional garantidor de princípio fundamental do Estado Democrático de Direito, posto como princípio fundamental no art. 1º da Constituição do Brasil, que se teve no ato abusivo aqui apreciado pelo prisma jurídico.

A bravata golpista, subliminar mas nem tanto, exposta no discurso do primeiro investigado, em espaço privilegiado mas não particular, demonstra não o uso legítimo, mas o abuso indevido e antidemocrático do espaço e do cargo público em detrimento dos princípios republicanos.

41. O dano ao Poder Judiciário pode ocorrer como resultado de condutas praticadas por meio de palavras que distorcem a realidade, veiculam mentiras e geram desconfiança. Nesse caso, as palavras são utilizadas como armas para cometer atos ilícitos.

Não é estranho ao Direito o reconhecimento da possibilidade de utilização da palavra como instrumento de prática ilícita, cível ou penal. No inciso V do art. 5º da Constituição da República, assegura-se “o direito de resposta, proporcional ao agravo, além de indenização por dano material, moral ou à imagem”.

O art. 186 do Código Civil, prevê:

Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.

Em distintas situações, verifica-se a ocorrência de dano moral em razão do uso indevido de palavras ou da inadequada manifestação (ou expressão) do pensamento. O Supremo Tribunal Federal reconhece a possibilidade de indenização por dano moral verificado como causa de conduta praticada pelo exercício inadequado da liberdade de informação jornalística:

"RECLAMAÇÃO – ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL Nº 130/DF. O Supremo, no julgamento da arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 130, relator ministro Carlos Ayres Britto, acórdão publicado no Diário da Justiça eletrônico de 6 de novembro de 2009, assentou ser a plena liberdade de imprensa, patrimônio imaterial, o mais eloquente atestado de evolução político-cultural do povo. A intervenção do Judiciário volta-se ao controle do abuso, podendo desaguar em indenização por dano material, moral e à imagem." (Rcl 43220 ED-AgR, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Relator(a) p/ Acórdão: MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 21/06/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-155  DIVULG 03-08-2021  PUBLIC 04-08-2021)

"EMENTA EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO INTERPOSTO SOB A ÉGIDE DO CPC/1973. DIREITO CIVIL. DANOS MORAIS. INDENIZAÇÃO. MATÉRIA JORNALÍSTICA. RESPONSABILIZAÇÃO DE VEÍCULO DE COMUNICAÇÃO. POSSIBILIDADE. ADPF 130/DF. VERIFICAÇÃO IN CONCRETO. ANÁLISE DA OCORRÊNCIA DE EVENTUAL AFRONTA AOS PRECEITOS CONSTITUCIONAIS INVOCADOS NO APELO EXTREMO DEPENDENTE DA REELABORAÇÃO DA MOLDURA FÁTICA CONSTANTE NO ACÓRDÃO REGIONAL. SÚMULA Nº 279/STF. ÂMBITO INFRACONSTITUCIONAL DO DEBATE. EVENTUAL VIOLAÇÃO REFLEXA DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL NÃO VIABILIZA O MANEJO DE RECURSO EXTRAORDINÁRIO. OMISSÃO INOCORRENTE. CARÁTER INFRINGENTE. DECLARATÓRIOS OPOSTOS SOB A VIGÊNCIA DO CPC/1973. 1. Não se prestam os embargos de declaração, não obstante sua vocação democrática e sua finalidade precípua de aperfeiçoamento da prestação jurisdicional, para o reexame das questões de fato e de direito já apreciadas no acórdão embargado. 2. Ausente omissão justificadora da oposição de embargos declaratórios, nos termos do art. 535 do CPC/1973, a evidenciar o caráter meramente infringente da insurgência. 3. Embargos de declaração rejeitados." (AI 857313 AgR-ED, Relator(a): ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 05/11/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-254  DIVULG 20-11-2019  PUBLIC 21-11-2019)

No Código Penal, há capítulo específico dos crimes contra a honra. Penalmente tipificado no art. 138 do atual Código Penal desde 1940, o crime de calunia consiste em “caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime. (...) § 1º - Na mesma pena incorre quem, sabendo falsa a imputação, a propala ou divulga”.

Nelson Hungria explica que “o crime contra a honra é praticada mediante a linguagem falada (emitida diretamente ou reproduzida por meio mecânico), escrita (manuscrita, datilografada ou impressa) ou mímica, ou por meio simbólico ou figurativo”. E acrescenta, nos comentários ao § 1º do art. 138 do Código Penal: “propalar ou divulgar é contar o que se ouviu a outrem (no sentido do parágrafo ora comentado): propalar refere-se mais propriamente ao relato verbal, enquanto divulgar tem acepção extensiva, isto é, significa relatar por qualquer meio” (HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1945, p. 32 e 63).

A promulgação da Constituição de 1988 e o reconhecimento da previsão do direito fundamental à liberdade de se expressar não excluíram do Direito brasileiro a previsão de crimes praticados por palavra e manifestação do pensamento. Os meios de exercício do direito à livre manifestação do pensamento podem também ser utilizados para a execução de crimes e, quando o são, seus autores têm de responder nos termos do direito vigente. 

Sobre a liberdade de expressão, quando do voto que proferi na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 6.281/DF, no Supremo Tribunal Federal, realcei (p. 293 do acórdão): 

“A Constituição da República garante a liberdade de expressão, de informar e de ser informado, além da liberdade de imprensa, direitos fundamentais inerentes à dignidade humana e que, à sua vez, constituem fundamento do regime democrático de direito (inc. IV, IX e XIV do art. 5º e art. 220 da Constituição da República). 

A liberdade de expressão no direito eleitoral instrumentaliza o regime democrático, pois é no debate político que a cidadania é exercida com o vigor de sua essência, pelo que o cidadão tem direito de receber qualquer informação que possa vir a influenciar suas decisões políticas”. 

Naquele voto, também ressaltei a ocorrência de divulgação de informações falsas pelos novos meios de propaganda eleitoral, os quais, por vezes, alimentam-se da instabilidade das mentiras digitais, apelidadas de fake news (p. 294 e 297 do acórdão): 

“Assim, com a revolução tecnológica da internet e das mídias sociais, a propaganda eleitoral se dá por novos meios e por divulgação instantânea para milhares de pessoas, muitas vezes veiculando informações falsas (...). (...) 

As notícias são transmitidas, atualmente, principalmente por meio das redes sociais e aplicativos de mensagens e cada vez menos pela imprensa tradicional, o que contribui para o aumento da desinformação e das notícias falsas, as quais circulam livre e gratuitamente nas redes sociais e nos aplicativos de mensagens. 

A esse respeito, Francisco Balaguer Callejón lembra que enquanto os meios de comunicação tradicionais são abertos e transparentes, as redes sociais muitas vezes se alimentam da instabilidade das fake news

O sistema jurídico brasileiro não autoriza o exercício ilimitado de direitos, incluídos os fundamentais, como o direito à livre manifestação do pensamento. Pudesse alguém exercer de forma ilimitada o seu direito, seria essa pessoa a única a atuar com liberdade plena em detrimento de todos os outros, que teriam de ver a sua dignidade e os seus direitos limitados pela primeira atuação. Daí porque os sistemas jurídicos democráticos legitimam a possibilidade de se impor restrição ao exercício dos direitos fundamentais, em casos nos quais se demonstre o comprometimento do direito do outro. 

Liberdade de expressão não é garantia para o uso criminoso da palavra como forma de ofensa a poderes da República e a seus integrantes, em especial quando praticada por agente político em uso de espaço público privilegiado e com repercussão em escala exponencial de influência.  

A expressão como instrumento de qualquer natureza, até mesmo física pode ser instrumento de conduta delituosa (cível, eleitoral ou criminal) e impõe aos autores das práticas as sanções previstas na lei. A expressão como manifestação da liberdade é constitucionalmente assegurado; a expressão como instrumento de agressão não é assegurada senão nos limites do direito vigente.

No caso em exame, diferente do alegado pela defesa, não se trata de exercício de liberdade de expressão, mas de agressão que transita entre a pregação da deslegitimação do processo eleitoral e a afronta a direitos individuais dos que são alvo das aleivosias praticadas.

Utilizou-se o primeiro investigado de espaço público, de equipamento público para, sob o pretexto de realizar reunião institucional, atacar o processo eleitoral, com o claro e desvirtuado propósito de achincalhar este Tribunal Superior no País e na comunidade internacional, em inaceitável ataque ao Poder Judiciário e a seus membros. Trata-se de ofensa direta ao disposto no art. 2º da Constituição da República e também em desrespeito ao inc. IV do art. 85.

 

Título 3: Do abuso de poder e do uso indevido dos meios de comunicação.

 

42. Contextualizado o conjunto fático-probatório dos autos, a controvérsia jurídica sobre a caracterização, ou não, de abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação no quadro que descreve a reunião do primeiro investigado com os Chefes de Missões Diplomáticas na espécie se realçam os seguintes pontos: a) a presença dos requisitos dos ilícitos eleitorais extraídos da legislação vigente e da jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral; b) a gravidade, compreendida como aptidão dos fatos para causarem lesão à legitimidade e à normalidade das eleições, considerando os elementos quantitativos e qualitativos do caso.

43. Na petição inicial, o investigante defende a capitulação dos fatos como “atos de abuso de poder político ou em razão dos meios de comunicação social”, nos seguintes termos (ID 157940943, p. 4):

a) “o Senhor Jair Messias Bolsonaro, valendo-se de sua condição funcional realizou reunião com os embaixadores de países estrangeiros residentes no Brasil para falar sobre as eleições deste ano, especificamente para atacar a integridade do processo eleitoral com fake news” (ID 157940943, p. 18);

b) “não há como não perceber a presença de laços inquebrantáveis da conduta do ora Investigado com as Eleições 2022”, pois o “programa de campanha [do Senhor Jair Messias Bolsonaro], (...) dentre poucas coisas, abarca os ataques à integridade do processo eleitoral como principal sustentáculo de discurso” (ID 157940943, p. 19);

c) “o Senhor Jair Messias Bolsonaro ultrapassou as lindes do exercício regular das atitudes escorreitas de um Chefe de Estado para conduzir a referida reunião para um viés eleitoral, com a finalidade política de assacar a integridade desta Justiça Especialidade para, logo após, difundir esse tipo de conteúdo através das redes sociais, que possuem alcance incomensurável” (p. 20);

d) “há, na espécie, hipótese clara de desvirtuamento de poder, perfectibilizando-se o abuso”, em violação ao “comando vertido do art. 37, §1º, da Constituição Federal de 1988”, pois “o que ocorreu foi a demonstração e posterior profusão de ideais vinculadas à candidatura à reeleição do Investigado, no contexto de uma reunião que deveria estar umbilicalmente interligada ao interesse público. Mais ainda, utilizou-se de todo aparato estatal para estruturar o ato, especificamente porque a reunião foi realizada nas instalações do Palácio da Alvorada, em Brasília, bem como também o seu conteúdo foi veiculado através da TV Brasil” (ID 157940943, p. 20).

e) “a TV Brasil faz parte da Agência Brasileira de Comunicação (EBC), empresa pública, nos termos da Lei nº 11.652/2008. Ou seja,

utilizou-se de uma empresa pública para veicular e albergar o vídeo referente à reunião em apreço”, contrariamente à “Lei nº 9.504/1997 [a qual] veda a veiculação de propaganda eleitoral na internet, em sítios oficiais ou hospedados por órgãos ou entidades da administração pública dieta ou indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (art. 57-C, §1º, inciso II)” (ID 157940943, p. 21);

d) “o Senhor Jair Messias Bolsonaro, ao promover ataques descabidos ao sistema eletrônico de votação e à democracia, utilizando-se de seu poder político, beneficiou-se sobremodo da conduta ilícita, pois auferiu dividendos através da realização e difusão do ato ora questionado, de modo a abalar a normalidade e a legitimidade do pleito” (ID 157940943, p. 25);

e) “a má-fé do ora Investigado restou coadunada com a distorção e veiculação de fatos que, apesar de serem sabidamente inverídicos, foram veiculados através de suas redes sociais, que contam com alto número de seguidores e, como consectário lógico, gerou dividendos políticos que abalam a normalidade e a legitimidade do pleito; sobretudo o princípio da paridade de armas” (ID 157940943, p. 25);

f) “por figurar como Chefe de Estado, as falas do Senhor Jair Messias Bolsonaro têm capacidade de ocasionar uma espécie de efervescência nos seus apoiadores e na população em geral, ainda mais quando o conteúdo é difundido através de redes sociais, que possuem um alto alcance entre os usuários” (ID 157940943, p. 26);

g) “a veiculação de vídeos que carregam matéria de alta sensibilidade perante o eleitorado, mormente quando se trata de fatos sabidamente inverídicos, em redes sociais, possui reprovabilidade suficiente para caracterizar a gravidade do ato (...) (aspecto qualitativo), sobretudo porque as declarações geram significativo impacto perante o eleitorado, de modo a desequilibrar a disputa eleitoral” (ID 157940943, p. 27-28);

h) “à maneira do que foi decidido por esta Corte Egrégia, por ocasião do julgamento do Recurso Ordinário nº 060397598, também vislumbra-se a viabilidade de caracterização do uso indevido dos meios de comunicação quando há utilização de redes sociais para veicular ataques à integridade do sistema de votação edificado por esta Justiça Eleitoral”  (ID 157940943, p. 27);

i) “além de beneficiar a si próprio, os impropérios proferidos também beneficiam terceiros, principalmente os candidatos apoiadores do Senhor Jair Messias Bolsonaro que também replicam os ataques ao sistema eletrônico de votação como estratégia de campanha eleitoral (ID 157940943, p. 29);

j) “o vídeo com mais de 40 (quarenta) minutos de duração encontra-

se albergado nas redes sociais do Senhor Jair Messias Bolsonaro, bem como também no sítio eletrônico da TV Brasil, para que qualquer um possa ter acesso e continuar a perpetrar os ataques ao sistema eletrônico de votação” (ID 157940943, p. 29);

k) é “inegável” a incidência do inc. I do art. 73 da Lei 9.504/1997 “na hipótese vertente”, pois “o ora Investigado utilizou do Palácio do Planalto, bem como também de todo aparato estatal para desenvolver e difundir o conteúdo verbalizado na referida reunião, o que per se revela incontestável acinte ao princípio da isonomia”, “porém, faz-se necessário analisar esta conduta vedada de forma sistêmica, incluída na miscelânea dos atos narrados nesta petição inicial, de modo que a violação aos bens jurídico tutelado, na espécie, faz-se pulsante e presente na caracterização do abuso de poder político entrelaçado ao uso indevido dos meios de comunicação” (ID 157940943, p. 32).

44. Os investigados negam que os fatos configurem abuso de poder político ou detenham gravidade. Alegam que:

a) “não é qualquer conduta que assume a nefasta forma abuso de poder político (...). É necessário que se observe uma efetiva restrição à liberdade de sufrágio ou ofensa à paridade de armas entre os candidatos, além da óbvia conotação eleitoral da conduta (consistente na intenção de impulsionar ou estorvar candidaturas)” (ID 157977291, p. 19);

b) “[para a caracterização do abuso de poder político] há necessidade de um duplo juízo de valor: (a) aferir a gravidade dos fatos, que deverá estar suficientemente comprovada nos autos, ao invés de simplesmente presumida ou construída retoricamente; (b) aferir a repercussão dos fatos para o processo eleitoral, se efetivamente causaram prejuízo concreto e irreparável” (ID 157977291, p. 19);

c) “há um critério qualitativo e outro quantitativo a serem aferidos em

julgados sobre abuso de poder político e – mais – só se viabiliza a cassação quando os efeitos da conduta forem irreversíveis” (ID 157977291, p. 19);

d) “para a aplicação da sanção ora requestada, é necessária existência de provas contundentes do prejuízo ao processo e eleitoral, o que inexiste nos autos” (ID 157977291, p. 20);

e) “não se pode analisar de maneira descontextualizada a conduta do primeiro Investigado, sendo certo que, diferentemente do que quer fazer crer o Autor, considerações vagas e imprecisas acerca de eventual gravidade do discurso apresentado aos Embaixadores não socorre a procedência da (malfadada) investigação” (ID 157977291, p. 20);

f) “qualquer possibilidade – ainda que remota e inventiva – de lesão à legitimidade das eleições foi prontamente estancada pela Justiça Eleitoral que, ademais, se valeu da oportunidade para prestar relevantes esclarecimentos públicos e reforçar, ainda mais, a certeza de integridade do sistema eleitoral do Brasil” (ID 157977291, p. 22);

g) “a legitimidade dos processos eleitorais e a higidez substancial da

própria democracia servem-se muito bem de debates que tais. São construções permanentes de sindicância pública. (...) Na contramão daquilo que se entende como ilícito e suscetível de sanção, a hipótese dos autos retrata um claro diálogo institucional entre a Justiça Eleitoral e o Chefe do Poder Executivo na conformação de um tema político consistente de legitimidade do processo eleitoral brasileiro” (ID 157977291, p. 22-23).

h) “o evento indigitado não ostentou conotação eleitoral, não foi dirigido ao público em geral, não se expressou sobre plataformas eleitorais, ocorreu pouquíssimos dias após outro evento assemelhado e em data muito distante do dia das eleições” (ID 157977291, p. 23).

45. Em decisão de saneamento e organização do processo, o Relator assim delimitou as questões de direito (ID 158487960):

“Imputa-se aos investigados a prática de abuso de poder político, ante o alegado desvio de finalidade no exercício de suas funções de Presidente da República e no uso de bens públicos, e de uso indevido de meios de comunicação, que teria sido perpetrado pela utilização de redes sociais, inclusive de empresa pública, para difundir conteúdo sabidamente falso acerca do sistema eletrônico de votação.

Ao longo da exposição, o autor menciona ainda a violação aos arts. 37, § 1º da Constituição, 73, I, da Lei 9.504/97 e 9º-A da Res.-TSE 23.610/2019, que descrevem condutas passíveis, em tese, de se amoldar às práticas abusivas descritas no art. 22 da LC 64/90.

Ao refutar a configuração dos ilícitos em comento, os investigados, além de se oporem à ocorrência do desvio de finalidade e do uso das redes para divulgar fake news, afirmam que os fatos não são graves o suficiente para afetar os bens jurídicos tutelados pela AIJE. Em particular, alegam que a publicação da nota do TSE, com ampla repercussão midiática, teria neutralizado eventuais impactos da fala dirigida pelo primeiro investigado aos embaixadores.

Assim, a gravidade da conduta, sob o ângulo qualitativo (grau de reprovabilidade) e quantitativo (repercussão no contexto do pleito específico) é ponto controvertido cuja análise deverá ser balizada pelos elementos probatórios coligidos aos autos.”

Discute-se se os elementos postos nos autos caracterizam o exercício abusivo do poder político e dos meios de comunicação social.

46. Sobre a possibilidade do abuso no exercício do poder, merece ser lembrada a lição de Marcelo Silva Moreira:

“O poder, genericamente falando, é uma forma de controle social, capaz de direcionar a conduta de um determinado grupo de pessoas. Todos os que dispõem de meios materiais para isto são detentores do poder, e quem o exerce não costuma medir esforços para nele se manter. É, pois, autoridade aquele que possui o direito de mandar e, às vezes, a ‘força’ de mandar.” (MOREIRA, Marcelo Silva. Eleições e abuso de poder. Rio de Janeiro: AIDE, 1998, p. 21).

E continua aquele autor:

“Tomado o termo em sua acepção geral, ‘abuso’ significa o aproveitamento de uma situação em detrimento de uma pessoa ou de uma coisa, resultando em toda demasia ou excesso no uso. (...) Comete-se o ‘abuso’ na medida em que se atua aparentemente dentro da esfera lícita ou ética, mas, em realidade, se ultrapassa os limites impostos pela justiça, pela equidade, pela lei e pela razão.” (MOREIRA, 1998, p. 21).

47. No caso em exame, o enquadramento jurídico, como atos de abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação, dos fatos extraídos do acervo probatório dos autos  se tem a aplicação necessária das normas vigentes com as orientações deste Tribunal Superior sobre o contexto atual, no qual se realizam as disputas eleitorais.

48. Como antes acentuado, diferente do que alegam os investigados, extrai-se do acervo probatório produzido nos autos o caráter eleitoreiro da reunião realizada pelo primeiro investigado com Chefes de Missões Diplomáticas, havida no dia 18.7.2022, no Palácio da Alvorada, e transmitida por emissora pública de televisão, a TV Brasil, além de repercutida nas redes sociais do sabidamente pré-candidato e de seus apoiadores.

A finalidade eleitoreira é demonstrada: a) pelo conteúdo das falas do investigado, com autopromoção pessoal, típicas de pré-candidato, mesclada a ataques deliberados e sem provas à Justiça Eleitoral e à confiabilidade do sistema eletrônico de votação; b) pela inserção do evento na estratégia de campanha à reeleição do candidato, a qual em larga medida se baseou na arregimentação de simpatizantes pelo cultivo da desconfiança na lisura das eleições; c) pela transmissão da reunião por emissora pública de televisão e nas redes sociais do investigado, alcançando público mais abrangente do que os embaixadores presentes.

A bravata golpista é inequívoca ao relacionar a uma contaminação de ideias baldas de sustentação fática, mas enfeitadas de pseudopreocupações institucionais.

De resto, esse quadro é agora atestado pelo relator da ONU, Clément Nyaletsossi Voule, segundo o qual Jair Bolsonaro contestou eleições sem apresentar provas, sinalizou apoio ao regime militar no Brasil entre 1964 e 1985, reduziu o espaço da sociedade civil e atacou as instituições democráticas. Essas são algumas das conclusões de um informe preparado pelo relator da ONU, Clément Nyaletsossi Voule, que está sendo apresentado aos governos de todo o mundo nesta quarta-feira, no Conselho de Direitos Humanos da ONU.

No documento, o ex-presidente é acusado de atacar a democracia brasileira, pela primeira vez de forma explícita. Voule ocupa o cargo de relator especial da ONU sobre direitos à reunião pacífica e liberdade de associação. O documento não implica qualquer tipo de sanção internacional contra o primeiro investigado. Voule esteve no Brasil no primeiro semestre de 2022 e realizou visitas a diferentes cidades. Nesta quarta-feira, 28.6.2023, ao relatar sua viagem ao Brasil para os demais membros do Conselho de Direitos Humanos, o especialista destacou os ataques contra a sociedade civil brasileira...”.

49. Sobre o conteúdo eleitoreiro das falas do investigado, destaquem-se os seguintes trechos do vídeo, parcialmente transcritos na petição inicial e extraído dos links que a instruem, nos quais se tem autopromoção pessoal, contraposta a comentários desabonadores sobre adversário político (ID 157940943, p. 4-13):

“O Brasil faz negócios com praticamente o mundo todo, tem adotado uma posição de equilíbrio em conflitos, buscamos a paz, trabalhamos por isso, preservamos a nossa democracia. Até o momento, uma só palavra minha houve fora do que eu chamo de quatro linhas da nossa Constituição. Nós respeitamos as leis.

Me elegi Presidente da República gastando menos de US$ 1 milhão e dentro de um leito de hospital, após sofrer um atentado de uma facada de um elemento de esquerda e cujo inquérito não foi concluído, apesar dos enormes indícios de interesses outros se fazerem presentes. (...)

Sou capitão do exército brasileiro, fiquei 15 anos no exército, fui vereador no Rio de Janeiro por dois anos e 28 anos dentro da Câmara dos Deputados. Conheço muito bem o nosso sistema. Conheço muito bem a política brasileira. Fiz uma campanha sem recurso, mas que começou quatro anos antes do pleito, depois da reeleição da senhora Dilma Rousseff. E, andando pelo Brasil sozinho, três anos sozinho andando pelo Brasil, juntando multidões, fiz a minha campanha.

(...)

Como os senhores viram no começo aqui, em vídeos passando meus, eu ando o Brasil todo. Sou muito bem recebido em qualquer lugar. Ando no meio do povo. O outro lado não. Sequer toma café ou almoça no restaurante do hotel. Come no seu quarto.”

De se registrar que a autopromoção pessoal realizada por pré-candidatos não é em si ilícita, desde que desacompanhada de pedido explícito de voto e respeitadas as formas permitidas pela legislação para a realização da propaganda eleitoral antecipada.

No caso, o destaque ao conteúdo autopromocional das falas se justifica para demonstrar a finalidade eleitoral do discurso, quando proferido por Presidente da República que era também pré-candidato à reeleição, fato de conhecimento geral, foi muito mais grave porque abusou do dever de impessoalidade, de moralidade, de legalidade (caput do art. 37 da Constituição da República), imposto ao agente público.

50. A situação é tanto mais grave pelo abuso também de emissora pública de televisão para divulgação da mensagem.

51. Também se extraem das falas do primeiro investigado, havidas no vídeo, os seguintes trechos contendo informações as quais já se havia exaustivamente demonstrado serem inverídicas e que, no entanto, foram uma vez mais veiculadas usadas para atacar a Justiça Eleitoral e minar a confiabilidade das eleições e dos resultados eleitorais (ID 157940943, p. 4-13):

“Tudo que vou falar aqui está documentado, nada da minha cabeça. (...) O que eu mais quero, por ocasião das eleições, é a transparência. Porque nós queremos que o ganhador seja  aquele que realmente seja votado.

Nós temos um sistema eleitoral que apenas 2 países no mundo usam. No passado, alguns países tentaram usar, começaram até a usar esse sistema e rapidamente foi abandonado. (...)

Teria muita coisa a falar aqui, mas quero me basear exclusivamente em um inquérito da Polícia Federal e foi aberto após o 2º turno das eleições 2018, onde um hacker falou que tinha havido fraude por ocasião das eleições e falou que ele tinha invadido... o grupo dele, o TSE.E, obviamente, quando se fala em manipulação de números após as eleições, quem manipula é que ganhou, então você tem aí, o manipulador e a Polícia Federal começou, então, a apurar se houve, ou não, manipulação e de quem seria a responsabilidade. (...)

Então, tudo começa nesse nessa denúncia que foi de conhecimento do Tribunal Superior Eleitoral, onde o hacker diz claramente que ele teve acesso a tudo dentro do TSE. Disse mais: obteve acesso aos milhares de códigos-fonte, que teve acesso à senha de um ministro do TSE, bem como de outras autoridades, várias senhas ele conseguiu. E obviamente a senhora Ministra do TSE na época, que também é do Supremo Tribunal Federal, Rosa Weber, fez com que o inquérito fosse instalado.

(...) Segundo o TSE, os hackers ficaram por 8 meses dentro dos computadores do TSE. Com códigos-fontes, com senhas e muito à vontade dentro do Tribunal Superiôr Eleitoral. E diz, ao longo do iriquérito, que‘Zele's 'Poderiam alterar nomes de candidatos, tirar voto de um, transferir para cátro. Ou seja, um sistema, segundo documentos do próprio Tribunal  Superior Eleitoral e conclusão da Polícia  Federal, um processo aberto a muitas maneiras de se alterar o processo de votação.

(...)

O que nós entendemos aqui no Brasil é que, quando se fala em eleições, elas têm que ser totalmente transparentes, coisa que não aconteceu em 2018. (...) Entendo que não poderíamos ter tido  eleições em 2020 sem apuração total- do que aconteceu lá dentro. Porque o sistema é completamente vulnerável; segundo o  próprio TSE e obviamente ,a conclusão da Polícia Federal.

Só 2 países do mundo usam esse sistema eleitoral nosso. Vários outros países ou não usam ou começaram a usá-lo ou chegaram à conclusão de que não era o sistema confiável porque ele é inauditável. É impossível fazer uma auditoria em eleições aqui no Brasil.

(...)

Aqui que eu falei, então. Em 2014, a conclusão foi de que... e houve... houve uma dúvida naquela época: quem ganhou as eleições? Daria um capítulo, mas eu não vou entrar nesse capítulo aqui. Já está bem bastante curioso o que aconteceu em 2014.

(...)

E daí entra na frente aqui isso, mais uma personalidade. Deixo claro, quando se fala  em Ministro Fachin, ele foi o responsável  por tornar Lula elegível.

(...)

Continua, continua então o senhor Barroso me atacando. Deixo bem claro, por que o senhor Barroso foi escolhido pelo governo do PT para ser rninistro do Supremo Tribunal Federal? Porque ele trabalhou

para que o terrorista Cesare Battisti ficasse no Brasil. (...)

Bem, não é o Tribunal Superior Eleitoral quem conta os votos; é uma empresa terceirizada.

(...)

Eu teria dezenas e dezenas de vídeos para passar pros senhores, por ocasião das eleições de 2018, onde o eleitor ia votar e simplesmente não conseguia votar. Ou quando ele apertava o número 1, e depois ia apartar o número 7, aparecia o 3 e o voto ia pra o outro candidato. O contrário ninguém reclamou. Temos quase 100 vídeos de pessoas reclamando que foram votar em mim e, na verdade, o voto foi pra outra pessoa, nenhum vídeo falando de outro candidato e porventura apareceu meu nome.

(...)

Agora, isso que está acontecendo, é de interesse de todo o povo brasileiro. A desconfiança no sistema eleitoral tem se avolumado. Nós não podemos enfrentar umas eleições sob o manto da desconfiança. Nós queremos ter a certeza de quem o eleitor votou, pra quem o eleitor votou... o voto vai, diretamente, para aquela pessoa. O próprio TSE diz que em 2018 números podem ter sido alterados.”

De se ressaltar o seguinte trecho, no qual o primeiro investigado estabelece uma ligação entre as supostas denúncias que fazia e as eleições vindouras, ao se colocar no contexto do pleito, como possível candidato à reeleição, associando-se à pauta de defensor da lisura do sistema eleitoral:

“Então, prosseguindo, o invasor teve acesso a toda a... no TSE toda a base de dados por 8 meses. É uma coisa que, com todo o respeito, eu sou o presidente da República do Brasil, eu fico envergonhado de falar isso aí. O que é comum, né, acontecer em alguns países do mundo, é o chefe do Executivo conspirar para conseguir uma reeleição. Estamos fazendo exatamente o contrário, porque temos pela frente três meses até as eleições.’

53. Insubistente a alegação de ausência de finalidade eleitoral do evento, por não ter sido destinado ao convencimento de eleitores específicos.

Como bem salientado pelo voto de Relatoria:

“A petição inicial, em momento algum, contempla afirmação no sentido de que houve pedido de votos dirigidos a embaixadores estrangeiros ou outra forma explícita de propaganda. A imputação de caráter eleitoreiro ao evento se baseia em uma alegada amarra discursiva entre o teor da fala do então Presidente da República e sua estratégia de campanha à reeleição.

Além disso, é incontroverso que a propagação da mensagem do primeiro investigado não ficou restrita às pessoas presentes ao Palácio do Alvorada em 18/07/2022. Isso porque foi transmitida por emissora pública e nas redes sociais do próprio investigado. A ampla publicidade dada ao discurso torna inconcebível, também sob a ótica do ‘público-alvo’, o encapsulamento pretendido pelos investigados.

(...) Em outras palavras, embora a ausência de pedido de votos e de capacidade eleitoral ativa dos embaixadores seja incontroversa, isso não afeta a imputação inicial e não leva a concluir  pela regularidade do evento de 18/07/2022.” (p. 89).

54. Demonstrado o caráter eleitoreiro do evento, há que se perquirir se ele reúne os requisitos que afastariam a caracterização do abuso de poder político e do uso indevido dos meios de comunicação.

Não se tem na Constituição da República nem na legislação eleitoral definições autônomas para os mencionados ilícitos.

Dispõe-se no § 9º do art. 14 da Constituição da República:

“§ 9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.”

Os arts. 19 e 22 da LC 64/1990 preveem:

“Art. 19. As transgressões pertinentes à origem de valores pecuniários, abuso do poder econômico ou político, em detrimento da liberdade de voto, serão apuradas mediante investigações jurisdicionais realizadas pelo Corregedor-Geral e Corregedores Regionais Eleitorais.

Parágrafo único. A apuração e a punição das transgressões mencionadas no caput deste artigo terão o objetivo de proteger a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou do abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta, indireta e fundacional da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. (...)

Art. 22. Qualquer partido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleitoral poderá representar à Justiça Eleitoral, diretamente ao Corregedor-Geral ou Regional, relatando fatos e indicando provas, indícios e circunstâncias e pedir abertura de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político, obedecido o seguinte rito:        (Vide Lei nº 9.504, de 1997)

(...)

XVI – para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam.”

Na doutrina, encontram-se tentativas de definição para o ilícito:

“(...) para caracterizar-se o cometimento do abuso de poder de autoridade, basta a marca de impropriedade administrativa, no sentido de macular a normalidade e legitimidade das eleições. Assim sendo, não se pode admitir que homens que foram designados pela coletividade para exercer cargos públicos se utilizem da res publica em benefício próprio, ou se transmutem em cabos eleitorais de si próprios ou de candidatos.” (MOREIRA, 1998, p. 21).

“O abuso de poder político (...) consubstancia-se no desvirtuamento de ações ou atividades desenvolvidas por agentes públicos no exercício de suas funções. A função pública ou atividade da Administração estatal é desviada de seu fim jurídico-constitucional com vistas a condicionar o sentido do voto e influenciar o comportamento eleitoral de cidadãos.” (GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2021. p. 744).

Apesar da ausência de contornos normativos específicos para os ilícitos, a jurisprudência histórica deste Tribunal Superior Eleitoral firmou-se no sentido de que o abuso de poder político está caracterizado quando “o agente público, valendo–se de sua condição funcional e em manifesto desvio de finalidade, atue em benefício eleitoral próprio ou de candidato, de modo a comprometer a legitimidade do pleito e a paridade de armas entre candidatos(Ac. de 16.12.2021 no AgR-RO-El nº 060293645, rel. Min. Luís Roberto Barroso).

No mesmo sentido, cite-se, por exemplo:

“Ação de investigação judicial eleitoral (AIJE). Abuso de poder político e econômico. Art. 22 da LC 64/90. Prefeito. (...) Conforme a jurisprudência desta Corte Superior, o abuso de poder político se configura quando o agente público, valendo-se de condição funcional e em manifesto desvio de finalidade, desequilibra a disputa em benefício de sua candidatura ou de terceiros (...).” (Ac. de 17.3.2022 no AgR-REspEl nº 060004930, rel. Min. Benedito Gonçalves.)

Este Tribunal Superior também firmou entendimento de que, embora as condutas vedadas pelo art. 73 da Lei 9.504/1997 tenham requisitos diversos do abuso de poder político, e com ele não se confundam, um mesmo ato pode vir a caracterizar ambos os ilícitos, se “h[ouver] nos autos elementos a respeito da gravidade dos fatos que permit[a]m enquadrá–los também” nesta modalidade abusiva (Ac. de 10.11.2020 no RO-El nº 200751, rel. Min. Og Fernandes, red. designado Min. Luis Felipe Salomão).

O inc. I do art. 73 da Lei 9.504/1997 dispõe que:

“Art. 73. São proibidas aos agentes públicos, servidores ou não, as seguintes condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais:

I - ceder ou usar, em benefício de candidato, partido político ou coligação, bens móveis ou imóveis pertencentes à administração direta ou indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios, ressalvada a realização de convenção partidária;”

55. No caso dos autos, é fato incontroverso ter havido o uso do Palácio da Alvorada para realização da reunião ocorrida no dia 18.7.2022 e da TV Brasil para sua transmissão.

Sobre a realização de eventos com finalidade eleitoral em prédios públicos, por candidatos ocupantes de mandato, o Tribunal Superior Eleitoral assentou, para as Eleições de 2022, que, para a caracterização da ilicitude, há de se levar em conta o caráter icônico do local e sua indisponibilidade para uso por outros postulantes ao cargo.

Ao referendar, em 27.9.2022, a decisão liminar na AIJE n. 0601212-32, Relatoria Ministro Benedito Gonçalves, na qual também figurava no polo passivo o primeiro investigado, a quem se atribuía a realização de “live” com finalidade eleitoreira na biblioteca do Palácio da Alvorada, este Tribunal Superior assentou que “o emprego de bens e serviços públicos inacessíveis a qualquer dos demais competidores na campanha do candidato à reeleição(...) é tendente a ferir a isonomia do pleito (...), amolda-se à regra geral do art. 73, I, da Lei 9.504/97 e deve ser coibida em favor do equilíbrio entre os competidores.”

Constou da ementa que:

“AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. REFERENDO DE DECISÃO LIMINAR. ELEIÇÕES 2022. PRESIDENTE. ABUSO DE PODER POLÍTICO. LIVE SEMANAL. ATUAL PRESIDENTE DA REPÚBLICA. FINALIDADE DE DIVULGAÇÃO DE ATOS DE GOVERNO. UTILIZAÇÃO DE BENS E RECURSOS PÚBLICOS. DESVIRTUAMENTO. PROMOÇÃO DE CANDIDATURAS. INTENSIFICAÇÃO NOS DIAS FINAIS DA CAMPANHA. QUEBRA DE ISONOMIA. PLAUSIBILIDADE. URGÊNCIA. REQUERIMENTO LIMINAR DEFERIDO. DECISÃO REFERENDADA.

1. Trata-se de ação de investigação judicial eleitoral – AIJE – destinada a apurar a ocorrência de abuso de poder político, ilícito supostamente perpetrado em decorrência do desvio de finalidade, em proveito de candidaturas, de lives tradicionalmente realizadas por Jair Bolsonaro nas dependências dos Palácios da Alvorada e do Planalto, bens públicos destinados ao uso do Presidente da República.

(...)

6. No caso, alega-se que é notório que o Presidente da República realiza, desde o início de seu mandato, lives semanais, gravadas nas dependências do Palácio do Planalto ou da Alvorada, destinadas a divulgar atos de seu governo. Contudo, conforme link de transmissão indicado pelo autor, em 21/09/2022, o primeiro investigado anunciou que buscaria realizar lives diárias, dedicando “pelo menos metade do tempo para as Eleições pelo Brasil”.

7. De pronto, cabe refutar a alegação de violação à privacidade e à inviolabilidade de domicílio, formulada pelos investigados em manifestação prévia. O caso não versa sobre atos da vida privada do Presidente da República ou da intimidade de seu convívio familiar no Palácio da Alvorada, mas sobre a destinação do bem público para a prática de ato de propaganda explícita, com pedido de votos para si e terceiros, veiculados por canais oficiais do candidato registrados no TSE, alcançando mais de 300.000 (trezentas mil) visualizações.

8. O feito provoca necessária reflexão sobre a aplicação das normas eleitorais no ambiente digital. Na atualidade, a internet ganhou enorme relevância como meio de divulgar projetos eleitorais. Nesse cenário, mostra-se legítima a utilização de lives para atrair eleitores e potencializar o alcance da propaganda, estratégia que leva para o mundo virtual os tradicionais comícios, com ganhos de audiência e redução de custos de deslocamento.

9. Não está em questão, assim, a licitude de lives de cunho eleitoral. O que se discute é tão somente o uso de bens e serviços públicos, em especial a residência oficial do Chefe do Executivo, para realizar esses atos de propaganda.

10. Sob esse enfoque, cabe lembrar que o art. 73, I, da Lei 9.504/97 veda que “bens móveis ou imóveis pertencentes à administração direta ou indireta da União” sejam usados “em benefício de candidato”. Foram previstas duas exceções destinadas compatibilizar a rotina dos Chefes do Executivo com sua agenda de candidatos à reeleição (art. 73, §2º, Lei 9.504/97).

11. A primeira delas diz respeito ao transporte oficial pelo Presidente da República. Nesse caso, a lei permite que o candidato à reeleição e sua comitiva desloquem-se utilizando veículos e aeronaves públicos disponibilizados ao Chefe do Executivo. Porém, há exigência de ressarcimento das despesas, o que fica a cargo do partido político ou coligação que lançou a candidatura.

12. A segunda exceção versa sobre a residência oficial dos governantes, cuja utilização foi autorizada, tomando-se o cuidado sempre relevante de evitar que candidatos à reeleição projetem sua imagem para o eleitorado valendo-se de bens a que outros candidatos não têm acesso.

13. Desse modo, o mandatário que ocupa tais imóveis deve cumprir três exigências: a) somente poderá realizar contatos, encontros e reuniões, ou seja, praticar atos em que se dirige a interlocutores diretos; b) as tratativas devem ser pertinentes à sua própria campanha; e c) por fim, veda-se por completo que tais contatos, encontros e reuniões assumam “caráter de ato público”.

14. Conforme se observa, não foi concedida autorização irrestrita que convertesse bens públicos de uso privativo dos Chefes do Executivo, custeados pelo Erário, em bens disponibilizados, sem reservas, à conveniência da campanha à reeleição. No caso do transporte, o partido político arca com os custos. Quanto à residência oficial, os atos de campanha que a lei autoriza são eminentemente voltados para arranjos internos, permitindo-se ao Presidente receber interlocutores, reservadamente, com o objetivo de traçar estratégias e alianças políticas.

15. Em síntese, a lei não permitiu a realização de atos públicos, em que o candidato se apresenta ao eleitorado com o objetivo de divulgar propaganda.

16. Por exemplo, jamais seria admissível que o governante, seja Presidente, Governador ou Prefeito, abrisse as portas de uma residência oficial para realizar comício dirigido a 30 ou 300 eleitores. Transportada a ideia para o mundo digitalizado, tampouco podem esses candidatos à reeleição usar o imóvel custeado pelo Erário para realizar live eleitoral que alcança mais de 300.000 (trezentos mil) eleitores e eleitoras.

(...)

20. Não há dúvidas do teor eleitoral das mensagens que foram divulgadas em redes sociais da campanha. É o próprio candidato que anuncia, no início da transmissão, que está repetindo estratégia que utilizou durante as Eleições 2018.

21. Quanto ao local em que foi feita a gravação, há indícios, a partir das imagens captadas, que foram realizadas nas conhecidas dependências da biblioteca do Palácio da Alvorada. Em sua manifestação, os investigados não refutaram os indícios, apenas afirmaram o caráter privado da transmissão, com amparo em julgado de 2014.

22. À luz da atual compreensão do TSE – e de toda a sociedade – quanto aos impactos de atos praticados na internet, não mais se sustenta a percepção das redes sociais como ambiente privado. Em julgado paradigmático das Eleições 2018, foram elas expressamente enquadradas como “veículos ou meios de comunicação social”, para os quais migraram maciçamente as campanhas a fim de se beneficiar da ampla repercussão de conteúdos no ambiente público digital.

23. Também se constata que a intérprete de libras é a mesma que participou de diversas outras lives realizadas ao longo do mandato do atual Presidente. Os investigados alegam que a atuação se deu fora do horário de trabalho da servidora, ponto cuja controvérsia não é suficiente para acarretar a revogação da liminar, já que não afastada a informação sobre o local de gravação da live.

24. Os elementos presentes nos autos são suficientes para concluir, em análise perfunctória, que o acesso a bens e serviços públicos, assegurado a Jair Messias Bolsonaro por força do cargo de Chefe de Governo, foi utilizado em proveito de sua campanha e de candidatos por ele apoiados. O alcance do vídeo na internet ultrapassa 316.000 (trezentas e dezesseis mil) visualizações.

25. O emprego de bens e serviços públicos inacessíveis a qualquer dos demais competidores na campanha do candidato à reeleição, conduta cujos substanciais indícios foram trazidos aos autos e é tendente a ferir a isonomia do pleito.

26. A toda evidência, a hipótese que o §2º do art. 73 da Lei 9.504/97 considera lícita é diversa do que se constata nos autos. A live do dia 21/09/2022 consistiu em ato ostensivo de propaganda, veiculado pela internet em diversos canais do candidato, com nítido propósito de fazer chegar ao eleitorado o pedido de voto para si e terceiros.

27. A conduta amolda-se à regra geral do art. 73, I, da Lei 9.504/97 e deve ser coibida em favor do equilíbrio entre os competidores.

28. Assentada a plausibilidade do direito, em razão da verossimilhança da alegação de que a live de cunho eleitoral foi feita no Palácio da Alvorada e contou com a participação de intérprete de libras que acompanha o Presidente no exercício do mandato, conclui-se também pela urgência da concessão de medida que faça cessar os impactos anti-isonômicos do desvio de finalidade em favor das candidaturas dos investigados.

29. Tutela inibitória antecipada deferida, para determinar a remoção de vídeo da live de 21/09/2022 dos canais de propaganda dos investigados e impor que o Presidente, candidato à reeleição, se abstenha de realizar lives similares em dependências de bens públicos e utilizando-se de serviços a que tem acesso em função de seu cargo, sob pena de multa.

30. Decisão liminar referendada.”

O abuso de poder é elemento danoso à autenticidade eleitoral e como tal, tem sido objeto de preocupação não apenas na doutrina nacional, mas também comparada. Disso fazem prova as palavras de Munõz, que nota a relação intrínseca existente entre abuso de poder e quebra da igualdade de oportunidades na disputa:

“La primera forma de influencia abusiva que es preciso evitar es La que puede derivarse de uma utilización partidista lós resortes del poder político. En consonancia com ello, La dimensión negativa del principio de igualdad de oportunidades se traduce em um mandato de estricta neutralidade dos poderes públicos en la campaña electoral, lo que lleva consigo que éstos últimos van a tener vedada la realización de cualquier tipo de actividad comunicativa encaminada a influir en la decisión del electorado, a favor o en contra de alguno o algunos de los competidores.

En resumen, el principio de igualdad de oportunidades se desprende una prohibición terminante: los poderes públicos no pueden tomar parte en la campaña electoral.

Nos referimos (…) exclusivamente a la actuación de lós poderes públicos o de las personas que ejercen dichos poderes como sujetos activos de la campaña (…). Así pues, la neutralidad en la campaña no es sino un aspecto particular del mandato de imparcialidad que rige toda su actuación a lo largo del proceso electoral”. (MUÑOZ, Óscar Sánchez. La igualdad de oportunidades em lãs competiciones electorales. Centro de Estudios Políticos y Constitucionales. Madri, 2007. p. 77).[1]

56. Quanto ao uso indevido dos meios de comunicação, a jurisprudência fixou-se no sentido de que “a utilização proposital dos meios de comunicação social para a difusão dos atos de promoção de candidaturas é capaz de caracterizar a hipótese de uso indevido prevista no art. 22 da Lei das Inelegibilidades” (Ac. de 16.3.2023 no AgR-REspEl nº 060052897, rel. Min. Sérgio Banhos).

Assim, por exemplo:

“O uso indevido dos meios de comunicação social caracteriza–se por se expor desproporcionalmente um candidato em detrimento dos demais, ocasionando desequilíbrio na disputa eleitoral]” (Ac. de 15.4.2021 no AgR-REspEl nº 44228, rel. Min. Luis Felipe Salomão.).

No caso apreciado, foi suficientemente demonstrado o uso de duas espécies de meios de comunicação, a TV Brasil e as redes sociais, para transmissão do vídeo.

A jurisprudência deste Tribunal Superior é firme no sentido de que a utilização de emissora de televisão por detentor de cargo ou função, para fins eleitorais, configura uso indevido dos meios de comunicação.

Assim, por exemplo:

“(...) o uso indevido dos meios de comunicação social caracteriza–se por se expor desproporcionalmente um candidato em detrimento dos demais, ocasionando desequilíbrio na disputa eleitoral, desde que se demonstre a gravidade nas condutas investigadas. Precedentes. 5. A circunstância de o ilícito ter ocorrido antes do período de campanha não descaracteriza o ato abusivo. Precedentes. 6. No caso, é incontroverso que o agravante, como apresentador do programa televisivo [...] divulgou os feitos parlamentares de seu mandato que estava em curso, durante o mês de junho de 2018, como forma de promover sua candidatura no pleito seguinte. 7. Em linhas gerais, o agravante, na condição de deputado estadual, obtia a liberação de emendas, particularmente para melhorias nas escolas de Porto Velho, mas também em outros locais do Estado de Rondônia, e, quando as obras eram realizadas, visitava os locais para gravar as reportagens que veiculou posteriormente no referido programa de TV. 8. O conteúdo eleitoreiro dos programas televisivos é nítido [...] 11. O agravante não só antecipou ilicitamente sua propaganda, mas o fez de forma absolutamente desproporcional ao que autorizado em lei, com quebra de isonomia, pois aos demais candidatos, em condições normais de disputa, não se concedeu tamanha visibilidade (..).” (Ac. de 11.2.2021 no AgR-RO-El nº 060186816, rel. Min. Luis Felipe Salomão).

Sobre a utilização das redes sociais para repercussão da fala, este Tribunal Superior Eleitoral reconhecem em outro caso, que “a internet, incluídas as aplicações tecnológicas de mensagens instantâneas, enquadra-se no conceito de ‘veículos ou meios de comunicação social’ a que alude o art. 22 da LC 64/90” (AIJEs n. 0601771-28 e 0601968-80, Relator Min. Luís Felipe Salomão, DJe de 22.8.2022).

57. No caso dos autos, a aptidão do evento para desequilibrar as condições isonômicas da competição eleitoral decorre da escala exponencial das aleivosias e mentiras expostas pelo primeiro investigado com a transmitido por rede pública de televisão e repercutido nas redes sociais.

De se notar que, tratando-se de notório pré-candidato na data dos fatos, o uso de meios de divulgação a que tem acesso em razão do exercício de cargo público (rede de televisão pública), coloca-o em evidente vantagem frente outros pré-candidatos.

Como se extrai do voto de relatoria:

“(...) o evento foi transmitido pela TV Brasil e pelas redes sociais do primeiro investigado. Isso fez com que a mensagem chegasse a cidadãs e cidadãos brasileiros em momento em que as eleições já constituíam tópico de intenso interesse da sociedade. As pessoas foram, ainda, expostas aos aspectos estéticos do evento, visualizando o pré-candidato á frente de uma plateia de quase cem embaixadores e autoridades, discursando a respeito do processo eleitoral iminente. Em síntese, viram um pré-candidato, diante de qualificada audiência, tratar do pleito vindouro, afirmar sai superioridade sobre o principal adversário, exaltar seu governo e explorar informações falsas e narrativas persecutórias com vistas a atrair simpatizantes para sua iminente candidatura.

(...) é notório que a prática discursiva exercitada em 18/07/2022 converge com a adotada na campanha dos investigados, que explorou os ataques à credibilidade das urnas eletrônicas e do TSE para mobilizar bases eleitorais.” (p. 337-338).

58. Quanto à gravidade dos fatos, a doutrina sintetiza “os três estágios diferentes” por que passou a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral. Nas palavras de Rezende,

“(...) no primeiro [estágio], entendia necessária a necessária a comprovação do nexo entre o abuso e o comprometimento do resultado das eleições; no segundo, (...) dispensou-se tal prova, bastando a constatação do abuso, porque ‘essencial é, exclusivamente, a conduta contrária ao cânone constitucional’; no terceiro, volta-se a falar não necessariamente em nexo com o resultado, mas em (...) ‘probabilidade de comprometimento da normalidade ou da legitimidade, mas não necessariamente do resultado.’” (CASTRO, Edson Resende de. Curso de Direito Eleitoral. 9. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2018, p. 361).

O entendimento deste Tribunal Superior há muito se firmou no sentido de que “não dev[e] tal análise basear-se em eventual número de votos decorrentes do abuso, ou mesmo em diferença de votação, embora essa avaliação possa merecer criterioso exame em cada situação concreta”, mas “deve ser apreciad[a] em função da seriedade (...) da conduta imputada, à vista das particularidades do caso” (RO n. 2098/RO, Relator Min. Arnaldo Versiani Leite Soares, julgamento 16.6.2009, publicação DJE 4.8.2009, p. 103-104).

Assim, por exemplo:

“(...) para se caracterizar o abuso de poder, impõe-se a comprovação, de forma segura, da gravidade dos fatos imputados, demonstrada a partir da verificação do alto grau de reprovabilidade da conduta (aspecto qualitativo) e de sua significativa repercussão a fim de influenciar o equilíbrio da disputa eleitoral (aspecto quantitativo)” (Ac. de 16.3.2023 no AgR-AREspE nº 060036293, rel. Min. Sérgio Banhos).

Conforme a jurisprudência desta Corte e nos termos do art. 22, XVI, da LC 64/90, para que fique configurada a prática de abuso de poder, é necessária a comprovação da gravidade dos fatos, e não sua potencialidade para alterar o resultado da eleição, isto é, deve-se levar em conta o critério qualitativo - a aptidão da conduta para influenciar a vontade livre do eleitor e desequilibrar a disputa entre os candidatos -, e não o quantitativo, qual seja a eventual diferença de votos entre o candidato eleito para determinado cargo e os não eleitos.” (Ac. de 5.2.2019 no REspe nº 114, rel. Min. Admar Gonzaga).

“(...) O abuso de poder (i.e., econômico, político, de autoridade e de mídia) reclama, para a sua configuração, uma análise pelo critério qualitativo, materializado em evidências e indícios concretos de que se procedera ao aviltamento da vontade livre, autônoma e independente do cidadão-eleitor de escolher seus representantes. (...) O critério quantitativo (i.e., potencialidade para influenciar diretamente no resultado das urnas), conquanto possa ser condição suficiente, não se perfaz condição necessária para a caracterização do abuso de poder econômico. (...) O fato de as condutas supostamente abusivas ostentarem potencial para influir no resultado do pleito é relevante, mas não essencial. Há um elemento substantivo de análise que não pode ser negligenciado: o grau de comprometimento aos bens jurídicos tutelados pela norma eleitoral causado por essas ilicitudes, circunstância revelada, in concrecto, pela magnitude e pela gravidade dos atos praticados (...).” (Ac. de 22.11.2016 no AgR-REspe nº 1170, rel. Min. Luiz Fux.)

59. O aspecto quantitativo não mais é interpretado como a diferença estrita entre a votação dos candidatos ou a potencialidade para influir nos resultados, nem é o único ou o mais importante elemento para o exame da gravidade e da aptidão das condutas para lesionar os bens jurídicos protegidos, a legitimidade e a normalidade das eleições.

Entretanto, daí não decorre que elementos quantificáveis da realidade fática sejam desimportantes para a análise do caso, nem que devam ser desconsiderados.

O caso agora analisado apresenta gravidade mensurável pela repercussão obtida. Extraem-se da petição inicial os seguintes números, não impugnados pelos investigados (ID 157940943, p. 13):

“A reunião foi transmitida pela TV Brasil Distribuição, através da Empresa Brasil de Comunicação, empresa pública, nos termos da Lei nº 11.652/2008, e o vídeo do encontro foi veiculado, na íntegra, através das redes sociais do Senhor Jair Messias Bolsonaro, especialmente no Instagram (@jairmessiasbolsonaro) e no Facebook. Importa realçar que, no Facebook, até o momento da elaboração desta petição inicial, a mídia alcançou cerca de 72.000 (setenta e duas mil) curtidas, 55.000 (cinquenta e cinco mil) comentários 589.000 (quinhentos e oitenta e nove mil) visualizações. 10 Já no Instagram, a postagem atingiu cerca de 587.000 (quinhentas e oitenta e sete mil) visualizações e 11.000 (onze mil) comentários.”

60. Em seu aspecto qualitativo, a gravidade dos eventos deve ser examinada no contexto eleitoral em que se inserem. Não se cogita, com isso, analisar fatos estranhos à presente ação, mas de qualificar os mesmos fatos, juridicamente, no cenário em que se apresentaram.

Tem razão o Ministro Relator quando afirma que: “(...) o discurso proferido por Jair Messias Bolsonaro em 18/07/2022 no Palácio da Alvorada disseminou desordem informacional a respeito do sistema eletrônico de votação” (p. 332).

Anote-se que, sobre as Eleições de 2022, o expressivo número de representações por propaganda eleitoral desinformativa e sabidamente inverídica, que levou este Tribunal Superior a tratar o contexto da disputa como “desordem informacional”, a justificar a adoção de medidas vigorosas para garantir a legitimidade da eleição. Assim, por exemplo:

“ELEIÇÕES 2022. REPRESENTAÇÃO. PROPAGANDA ELEITORAL IRREGULAR. INTERNET. VÍDEO PUBLICADO EM REDE SOCIAL. PERFIL DE EMPRESA PRODUTORA DE MULTÍMIDIA. ATRIBUIÇÃO A CANDIDATO DE ESCÂNDALOS DE CORRUPÇÃO QUE NÃO LHE FORAM JUDICIALMENTE IMPUTADOS. DESORDEM INFORMACIONAL CARACTERIZADA. DEFERIMENTO DA LIMINAR.

1. A representante pretende, em sede de tutela provisória de urgência, a remoção de conteúdo publicado no perfil da representada no Twitter, que conteria fatos sabidamente inverídicos e com grave descontextualização em prejuízo à honra e à imagem do candidato Luiz Inácio Lula da Silva, de modo a interferir negativamente no pleito.

2. A empresa representada Brasil Paralelo é uma produtora de multimídia envolvendo entretenimento e educação, que realiza documentários, filmes, cursos e séries que tratam de política, história, filosofia, economia, educação e atualidades.

3. Sob o título “Relembre os esquemas do Governo Lula”, a matéria atribui ao candidato Lula uma série de escândalos de corrupção que não lhe foram judicialmente imputados, e a respeito dos quais, por conseguinte, não teve a oportunidade de exercer sua defesa.

4. Diante da desordem informacional apta a comprometer a autodeterminação coletiva, ou seja, a livre formação da vontade do eleitor, a liminar deve ser deferida.” (Rp n. 0601372-57, Relator Min. Paulo de Tarso Sanseverino, acórdão publicado na sessão de 13.10.2022).

61. Não passaram desapercebidas à Justiça Eleitoral, desde pelo menos as eleições de 2018, as transformações tecnológicas e comunicacionais, notadamente o “novo marco na forma de realizar campanhas, com claras vantagens no uso da internet pelos atores do processo eleitoral, que podem se comunicar e angariar votos de forma mais econômica, com amplo alcance e de modo personalizado mediante interação direta com os eleitores” (AIJEs n. 0601771-28 e 0601968-80, Relator Min. Luís Felipe Salomão, DJe de 22.8.2022).

A jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral tem reconhecido a aptidão para que a divulgação deliberada e reiterada de mentiras e desinformações, que dominam novas formas de confundir e agrilhoar mentes, ideias e induzir comportamentos, incluídos os eleitorais, especialmente aqueles referentes ataques infundados ao sistema eleitoral caracterizem abuso de poder e uso indevido dos meios de comunicação.

No julgamento conjunto das Ações de Investigação Judicial Eleitoral n. 0601771-28 e 0601968-80, Relator o Ministro Luís Felipe Salomão, em 28.10.2021, este Tribunal Superior firmou o entendimento “de ser possível enquadrar condutas como [o uso de aplicações digitais de mensagens instantâneas, visando promover disparos em massa, contendo desinformação e inverdades em prejuízo de adversários e em benefício de candidato] no conceito de abuso do poder econômico ou de uso indevido dos meios de comunicação social”.

Esta a ementa daquele acórdão, no ponto que interessa:

“AÇÕES DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ELEIÇÕES 2018. PRESIDENTE  DA  REPÚBLICA. VICE-PRESIDENTE. TERCEIROS. PRELIMINARES. REJEIÇÃO. TEMA DE FUNDO. ABUSO DO PODER ECONÔMICO. USO INDEVIDO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO SOCIAL. ART. 22 DA LC 64/90. UTILIZAÇÃO. SERVIÇOS. DISPAROS EM MASSA. APLICATIVO DE MENSAGENS INSTANTÂNEAS (WHATSAPP). BENEFÍCIO. CANDIDATURAS. PROPOSTA DE TESE. CASO DOS AUTOS. ELEMENTOS DE PROVA. CIRCUNSTÂNCIAS. INDÍCIOS. COMPROVAÇÃO. DISPAROS. EXAME. GRAVIDADE DOS FATOS. AUSÊNCIA. ELEMENTOS ESSENCIAIS. IMPROCEDÊNCIA.

1. Ações de Investigação Judicial Eleitoral – AIJEs 0601968-80 e 0601771-28 – ajuizadas em desfavor da chapa presidencial eleita em 2018 e de terceiros, versando sobre a prática de abuso do poder econômico e uso indevido dos meios de comunicação social, nos termos do art. 22 da LC 64/90.

(...)

TEMA DE FUNDO. DISPAROS EM MASSA. MENSAGENS. WHATSAPP. COMPROVAÇÃO.

12. A controvérsia reside na alegada prática de abuso do poder econômico e no uso indevido dos meios de comunicação social, nos termos do art. 22 da LC 64/90, com supedâneo em disparos em massa de mensagens de whatsapp, durante o período de campanha, em benefício da chapa vencedora das Eleições 2018, em prejuízo dos seus principais adversários políticos.

(...)

16. É fato notório, a atrair a incidência do art. 23 da LC 64/90, que o uso da ferramenta whatsapp constituiu relevante estratégia de comunicação dos representados nas Eleições 2018, sendo objeto de matérias, estudos e pesquisas de especialistas e institutos independentes a esse respeito.

17. O conjunto probatório das AIJEs 0601968-80 e 0601771-28 não deixa margem para dúvidas de que a campanha dos vencedores das eleições presidenciais de 2018 assumiu caráter preponderante nos meios digitais, mediante utilização indevida, dentre outros, do aplicativo de mensagens whatsapp para promover disparos em massa em benefício de suas candidaturas, valendo-se de estrutura organizada e capilarizada composta por apoiadores e pessoas próximas ao primeiro representado.

PROPOSTA. TESE. DISPAROS EM MASSA. APLICATIVOS DE MENSAGENS INSTANTÂNEAS. POSSIBILIDADE. ENQUADRAMENTO. ABUSO DE PODER ECONÔMICO. USO INDEVIDO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO SOCIAL.

(...)

20. A internet, incluídas as aplicações tecnológicas de mensagens instantâneas, enquadra-se no conceito de “veículos ou meios de comunicação social” a que alude o art. 22 da LC 64/90. Além de o dispositivo conter tipo aberto, a Justiça Eleitoral não pode ignorar a realidade: é notório que as Eleições 2018 representaram novo marco na forma de realizar campanhas, com claras vantagens no uso da internet pelos atores do processo eleitoral, que podem se comunicar e angariar votos de forma mais econômica, com amplo alcance e de modo personalizado mediante interação direta com os eleitores.

21. Proposta de tese: o uso de aplicações digitais de mensagens instantâneas, visando promover disparos em massa, contendo desinformação e inverdades em prejuízo de adversários e em benefício de candidato, pode configurar abuso de poder econômico e/ou uso indevido dos meios de comunicação social para os fins do art. 22, caput e XIV, da LC 64/90.

GRAVIDADE. ART. 22, XVI, DA LC 64/90. CASO DOS AUTOS. AUSÊNCIA. ELEMENTOS ESSENCIAIS. ASPECTOS QUALITATIVOS E QUANTITATIVOS DA CONDUTA. LONGA INSTRUÇÃO PROCESSUAL. PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO.

22. Definida a tese no sentido de ser possível enquadrar condutas como a dos autos no conceito de abuso do poder econômico ou de uso indevido dos meios de comunicação social, cabe aferir, na hipótese em exame, o último elemento para sua efetiva caracterização, qual seja, a gravidade dos fatos.

(...)

36. Ações de Investigação Judicial Eleitoral cujos pedidos se julgam improcedentes.” (AIJEs n. 0601771-28 e 0601968-80, Relator Min. Luís Felipe Salomão, Julgamento em 28.10.2021, Publicação DJe de 22.8.2022).

62. Como também mencionado pelo Ministro Relator, este Tribunal Superior Eleitoral decidiu em outro caso que os ilícitos de abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação também se caracterizam pela transmissão “de live (...) ao vivo em rede social, quando em curso a votação no primeiro turno, para mais de 70 mil internautas, e que até 12/11/2018 teve mais de 105 mil comentários, 400 mil compartilhamentos e seis milhões de visualizações”, na qual candidato “que exercia o cargo de Deputado Federal (...) noticiou a existência de fraudes em urnas eletrônicas e outros supostos fatos acerca do sistema eletrônico de votação” (RO-El n. 0603975-98, Relatoria Min. Luis Felipe Salomão, Julgado em 28.10.2021, DJe de 10.12.2021).

Naquela assentada se definiu que “ataques ao sistema eletrônico de votação e à democracia, disseminando fatos inverídicos e gerando incertezas acerca da lisura do pleito, em benefício de candidato (...) podem configurar abuso de poder político ou de autoridade – quando utilizada essa prerrogativa para tal propósito – e/ou uso indevido dos meios de comunicação quando redes sociais são usadas para esse fim” (RO-El n. 0603975-98, Relatoria Min. Luis Felipe Salomão, Julgado em 28.10.2021, DJe de 10.12.2021).

Anote-se ter-se na ementa daquele julgado:

RECURSO ORDINÁRIO. ELEIÇÕES 2018. DEPUTADO ESTADUAL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL (AIJE). USO INDEVIDO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO SOCIAL. ABUSO DE PODER POLÍTICO E DE AUTORIDADE. ART. 22 DA LC 64/90. TRANSMISSÃO AO VIVO. REDE SOCIAL. DIA DO PLEITO. HORÁRIO DE VOTAÇÃO. FATOS NOTORIAMENTE INVERÍDICOS. SISTEMA ELETRÔNICO DE VOTAÇÃO. FRAUDES INEXISTENTES EM URNAS ELETRÔNICAS. AUDIÊNCIA DE MILHARES DE PESSOAS. MILHÕES DE COMPARTILHAMENTOS. PROMOÇÃO PESSOAL. IMUNIDADE PARLAMENTAR COMO ESCUDO PARA ATAQUES À DEMOCRACIA. IMPOSSIBILIDADE. GRAVIDADE. CASSAÇÃO DO DIPLOMA. INELEGIBILIDADE. PROVIMENTO.

(...)

3. A hipótese cuida de live transmitida ao vivo em rede social, quando em curso a votação no primeiro turno, para mais de 70 mil internautas, e que até 12/11/2018 teve mais de 105 mil comentários, 400 mil compartilhamentos e seis milhões de visualizações. O recorrido – que exercia o cargo de Deputado Federal – noticiou a existência de fraudes em urnas eletrônicas e outros supostos fatos acerca do sistema eletrônico de votação.

4. Sintetizam-se as principais declarações na transmissão: (a) “já identificamos duas urnas que eu digo ou são fraudadas ou adulteradas. [...], eu tô com toda a documentação aqui da própria Justiça Eleitoral”; (b) “nós estamos estourando isso aqui em primeira mão pro Brasil inteiro [...], urnas ou são adulteradas ou fraudadas”; (c) “nosso advogado acabou de confirmar [...], identificou duas urnas que eu digo adulteradas”; (d) “apreensão feita, duas urnas eletrônicas”; (e) “não vamos aceitar que uma empresa da Venezuela, que a tecnologia que a gente não tem acesso, defina a democracia no Brasil”; (f) “só aqui e na Venezuela tem a porcaria da urna eletrônica”; (g) “daqui a pouco nós vamos acompanhar [a apuração dos resultados], sem paradinha técnica, como aconteceu com a Dilma”; (h) “eu uso aqui a minha imunidade parlamentar, que ainda vai até janeiro, independente dessa eleição, pra trazer essa denúncia”.

(...)

6. O sistema eletrônico de votação representa modelo de inegável sucesso implementado nas Eleições 1996 e internacionalmente reconhecido. O propósito dessa verdadeira revolução residiu na segurança e no sigilo do voto, sendo inúmeros os fatores que poderiam comprometer os pleitos realizados com urnas de lona, desde simples erros humanos na etapa de contagem, manipulações em benefício de candidatos e a execrável mercancia do sufrágio. Visou-se, ainda, conferir maior rapidez na apuração, o que possui especial relevância em país de dimensões continentais.

(...)

9. Hipótese inédita submetida a esta Corte Superior é se ataques ao sistema eletrônico de votação e à democracia, disseminando fatos inverídicos e gerando incertezas acerca da lisura do pleito, em benefício de candidato, podem configurar abuso de poder político ou de autoridade – quando utilizada essa prerrogativa para tal propósito – e/ou uso indevido dos meios de comunicação quando redes sociais são usadas para esse fim.

10. Os arts. 1º, II e parágrafo único, e 14, § 9º, da CF/88, além dos arts. 19 e 22 da LC 64/90 revelam como bens jurídicos tutelados a paridade de armas e a lisura, a normalidade e a legitimidade das eleições. Não há margem para dúvida de que constitui ato abusivo, a atrair as sanções cabíveis, a promoção de ataques infundados ao sistema eletrônico de votação e à própria democracia, incutindo-se nos eleitores a falsa ideia de fraude em contexto no qual candidato sobrevenha como beneficiário dessa prática.

11. O abuso de poder político configura-se quando a normalidade e a legitimidade do pleito são comprometidas por atos de agentes públicos que, valendo-se de sua condição funcional, beneficiam candidaturas em manifesto desvio de finalidade. Precedentes.

(...)

13. A internet e as redes sociais enquadram-se no conceito de “veículos ou meios de comunicação social” a que alude o art. 22 da LC 64/90. Além de o dispositivo conter tipo aberto, a Justiça Eleitoral não pode ignorar a realidade: é notório que as Eleições 2018 representaram novo marco na forma de realizar campanhas, com claras vantagens no uso da internet pelos atores do processo eleitoral, que podem se comunicar e angariar votos de forma mais econômica, com amplo alcance e de modo personalizado mediante interação direta com os eleitores.

14. No caso, constata-se sem nenhuma dificuldade que todas as declarações do recorrido durante sua live, envolvendo o sistema eletrônico de votação, são absolutamente inverídicas.

(...)

19. Os dividendos angariados pelo recorrido são incontroversos. A live ocorreu quando a votação ainda estava aberta no Paraná, ao passo que o acesso à internet ocorre de qualquer lugar por dispositivos móveis, reiterando-se que a transmissão foi assistida por mais de 70 mil pessoas, afora os compartilhamentos do vídeo.

20. O recorrido valeu-se das falsas denúncias para se promover como uma espécie de paladino da justiça, de modo a representar eleitores inadvertidamente ludibriados que nele encontraram uma voz para ecoar incertezas sobre algo que, em verdade, jamais aconteceu. Também houve autopromoção ao mencionar que era Deputado Federal e que a imunidade parlamentar lhe permitiria expor os hipotéticos fatos.

21. Gravidade configurada pela somatória de aspectos qualitativos e quantitativos (art. 22, XVI, da LC 64/90). O ataque ao sistema eletrônico de votação, noticiando-se fraudes que nunca ocorreram, tem repercussão nefasta na legitimidade do pleito, na estabilidade do Estado Democrático de Direito e na confiança dos eleitores nas urnas eletrônicas, utilizadas há 25 anos sem nenhuma prova de adulterações. Além disso, reitere-se a audiência de mais de 70 mil pessoas e, até 12/11/2018, mais de 400 mil compartilhamentos, 105 mil comentários e seis milhões de visualizações.

22. Na linha do parecer ministerial, “a transmissão ao vivo de conteúdo em rede social, no dia da eleição, contendo divulgação de notícia falsa e ofensiva por parlamentar federal, em prol de seu partido e de candidato, configura abuso de poder de autoridade e uso indevido de meio de comunicação”, sendo grave a afronta à “legitimidade e normalidade do prélio eleitoral”.

23. Recurso ordinário provido para cassar o diploma do recorrido e declará-lo inelegível (art. 22, XIV, da LC 64/90), com imediata execução do aresto, independentemente de publicação, e recálculo dos quocientes eleitoral e partidário.” (RO-El n. 0603975-98, Relatoria Min. Luis Felipe Salomão, Julgado em 28.10.2021, DJe de 10.12.2021).

63. Ainda sobre a reprovabilidade da conduta (aspecto qualitativo da gravidade), de se ressaltar que o benefício eleitoral foi indevidamente obtido no caso pelo desvirtuamento da finalidade de ato praticado na condição de Presidente da República, o que foi suficientemente demonstrado nos autos.

Como leciona Hely Lopes Meirelles,

“O ‘desvio de finalidade’ ou de ‘poder’ verifica-se quando a autoridade, embora atuando nos limites de sua competência, pratica o ato por motivos ou com fins diversos dos objetivados pela lei ou exigidos pelo interesse público.” (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 1994. p. 96).

64. Sobre a caracterização do abuso de poder político e do uso indevido dos meios de comunicação no caso, pelo desvio de finalidade do evento, extrai-se do parecer da Procuradoria-Geral Eleitoral (ID 158487960):

“Tinha-se, portanto, o Chefe de Estado dizendo, nessa qualidade, para brasileiros e autoridades de países com embaixadores no país, que não se podia acreditar na legitimidade do processo eleitoral. A proximidade das eleições e a repercussão que o evento não poderia deixar de ter impõe concluir que a elocução foi apta para abalançar o grau de confiança de eleitores na fidedignidade do resultado do pleito. Mesmo com as medidas cautelares adotadas neste processo alguns dias depois de realizado o encontro, o episódio ingressou no ambiente da disputa eleitoral e se difundiu. Bastaria, na realidade, a sua ocorrência e a notícia respectiva para que a gravidade qualitativa do evento se positivasse.

(...)

Na realidade, o que se verifica é o desvirtuamento de um ato que, à guisa de consistir num gesto de relacionamento diplomático próprio do Chefe de Estado, expressou manobra imprópria de cariz eleitoral. É de se ter presente que o desvio de finalidade é vício que se pode apurar mesmo em reuniões agendadas para pronunciamento do Presidente da República dirigido a autoridades nacionais e estrangeiras.

O aspecto de ato de Estado que se quis atribuir ao evento, na realidade, concorre para a caracterização da irregularidade.

(...)

O abuso de autoridade se revela, também aqui, pela circunstância de o discurso ter sido proferido pelo Presidente da República, na qualidade de Chefe de Estado. O desvio de finalidade está caracterizado, bem como a ligeireza no trato com fatos oficiais e realidades fenomênicas, incompatível com o momento eleitoral e apta a provocar graves consequências sobre a aceitação da eleição realizada como instrumento de expressão lídimo da sociedade democrática. A busca do benefício pessoal também foi tornada clara. O uso de recursos estatais para a atividade da mesma forma está estampado nos autos.

Todo o evento foi montado para que o pronunciamento se revelasse como manifestação do Presidente da República, Chefe de Estado, daí a chamada de embaixadores estrangeiros e o ambiente oficial em que a reunião ocorreu. O abuso do poder político está positivado.”

Mostra-se especialmente reprovável a conduta de se utilizar, na condição de Chefe de Estado e de Governo, de prédio público e de emissora pública de televisão, a que tinha acesso privilegiado pelo exercício de cargo ou função, para realizar e veicular ato de cunho eleitoral, no qual a autopromoção do pré-candidato se realiza pela promoção do descrédito de outras instituições e do próprio sistema eleitoral.

65. O caso reúne, portanto, os requisitos quantitativos e qualitativos necessários para qualificar os fatos como graves, a justificar a qualificação das condutas como, simultaneamente, atos abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação.

66. Sobre a responsabilização do segundo investigado, Walter Souza Braga Netto, embora os investigantes formulem pedido de “declaração da inelegibilidade dos Investigados, além da cassação do registro ou do diploma, pela prática de abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação (art. 22, inciso XIV, da LC nº 64/90)”, a petição inicial não se lhe atribui a prática de alguma conduta ilícita.

A jurisprudência deste Tribunal Superior consolidou-se no sentido de que “(...) a inelegibilidade tem natureza personalíssima - justificada pela máxima efetividade que deve ser conferida ao exercício do direito fundamental ao ius honorum -, e sua incidência reclama não apenas a existência de condenação à perda do mandato, mas também o reconhecimento da participação ou da autoria de uma das condutas ilícitas previamente tipificadas” (Ac. de 13.12.2016 no REspe nº 19650, rel. Min. Luiz Fux).

Nesse sentido, por exemplo:

“Nos termos do art. 22, XIV, da LC 64/90 e da jurisprudência desta Corte Superior, a sanção de inelegibilidade possui natureza personalíssima, descabendo aplicá-la ao mero beneficiário do ato abusivo (...).” (Ac. de 18.12.2018 no AgR-REspe nº 36424, rel. Min. Jorge Mussi.)

“Não demonstrada a participação do candidato ao cargo de vice-governador no ilícito apurado, não é possível lhe impor a pena de inelegibilidade em decorrência do abuso do poder político. Precedentes. [...]”. NE: Trecho do voto do relator: “Nesse sentido: ‘Para fins de imposição das sanções previstas no inciso XIV do art. 22 da LC n° 64/90, deve ser feita distinção entre o autor da conduta abusiva e o mero beneficiário dela. Caso o candidato seja apenas beneficiário da conduta, sem participação direta ou indireta nos fatos, cabe eventualmente somente a cassação do registro ou do diploma, já que ele não contribuiu para a prática do ato. Precedentes’ (...)” (Ac. de 7.12.2017 no RO nº 172365, rel. Min. Admar Gonzaga).

“Com base na compreensão da reserva legal proporcional, nem toda condenação por abuso de poder econômico em ação de impugnação de mandato eletivo gerará a automática inelegibilidade referida na alínea d, mas somente aquelas que imputem ao cidadão a prática do ato ilícito ou a sua anuência a ele, pois, como se sabe, não se admite a responsabilidade objetiva em matéria de inelegibilidades. Circunstância ausente no caso concreto. (...) Conquanto o mero benefício seja suficiente para cassar o registro ou o diploma do candidato beneficiário do abuso de poder econômico, nos termos do art. 22, inciso XIV, da LC nº 64/90, segundo o qual, ‘além da cassação do registro ou diploma do candidato diretamente beneficiado pela interferência do poder econômico ou pelo desvio ou abuso do poder de autoridade ou dos meios de comunicação’, a parte inicial do citado inciso esclarece que a declaração de inelegibilidade se restringe apenas ao ‘representado e de quantos hajam contribuído para a prática do ato, cominando-lhes sanção de inelegibilidade para as eleições a se realizarem nos 8 (oito) anos subsequentes à eleição em que se verificou’. 8. Conclusão jurídica que se reforça com o art. 18 da LC nº 64/90, que consagra o caráter pessoal das causas de inelegibilidade, afastando, consequentemente, qualquer interpretação que almeje a responsabilização de forma objetiva, pois ‘a declaração de inelegibilidade do candidato à Presidência da República, Governador de Estado e do Distrito Federal e Prefeito Municipal não atingirá o candidato a Vice-Presidente, Vice-Governador ou Vice-Prefeito, assim como a destes não atingirá aqueles’.” (Ac. de 3.3.2016 no RO nº 29659, rel. Min. Gilmar Mendes).

“Para fins de imposição das sanções previstas no inciso XIV do art. 22 da LC nº 64/90, deve ser feita distinção entre o autor da conduta abusiva e o mero beneficiário dela. Caso o candidato seja apenas beneficiário da conduta, sem participação direta ou indireta nos fatos, cabe eventualmente somente a cassação do registro ou do diploma, já que ele não contribuiu para a prática do ato” (Ac. de 13.11.2014 no AgR-REspe nº 48915, rel. Min. Henrique Neves da Silva).

“Ação de investigação judicial eleitoral. 1. Nos termos do art. 22, XIV, da LC n° 64/90, a condenação do candidato pela prática de abuso de poder prescinde da demonstração de sua responsabilidade ou anuência em relação à conduta abusiva, sendo suficiente a comprovação de que ele tenha auferido benefícios em razão da prática do ilícito. Precedentes.” (Ac. de 18.9.2014 no AgR-AI nº 31540, rel. Min. Henrique Neves da Silva).

67. Pelo exposto, voto no sentido de julgar parcialmente procedentes os pedidos da presente ação de investigação judicial eleitoral, para condenar o primeiro investigado, Jair Messias Bolsonaro, pela prática de abuso de poder político e de uso indevido de meios de comunicação, à inelegibilidade por oito anos seguintes ao pleito de 2022.

Deixo de aplicar a cassação do registro de candidatura dos investigados, exclusivamente em virtude de a chapa beneficiária das condutas abusivas não ter sido eleita.

Deixo também de declarar a inelegibilidade do segundo investigado, Walter Souza Braga Neto, por não ter sido demonstrada sua participação nem responsabilidade pelas práticas ilícitas comprovadas nos autos, sendo a presente ação improcedente em relação a ele.

Acompanho o Ministro Relator no sentido de encaminhar o acórdão deste julgamento ao Ministério Público para análise de eventuais providências, ao Tribunal de Contas da União e para o Ministro Alexandre de Moraes, Relator dos Inquéritos n. 4878/DF e 4879/DF do Supremo Tribunal Federal e também ao Ministro Luiz Fux, Relator da Petição n. 10.477/DF, para ciência e, se for o caso, adoção de providências cabíveis.

 


[1] A primeira forma de influência abusiva que é preciso evitar é aquela que pode derivar de um uso partidário das fontes do poder político. Em função dela, a dimensão negativa do princípio de igualdade de oportunidades se traduz em um mandato de estrita neutralidade dos poderes públicos na campanha eleitoral, o que implica que a estes últimos será vedada a realização de qualquer tipo de atividade comunicativa destinada a exercer influência na decisão do eleitorado, a favor ou contra algum ou alguns dos competidores.

Em resumo, do princípio de igualdade de oportunidades se desprende uma proibição terminativa: os poderes públicos não podem tomar parte na campanha eleitoral.

Nos referimos (...) exclusivamente à atuação dos poderes públicos ou das pessoas que exercem ditos poderes como sujeitos ativos da campanha (...). Assim pois, a neutralidade na campanha não é senão um aspecto particular do mandato de imparcialidade que rege toda a sua atuação ao longo do processo eleitoral.” (Tradução nossa.)

 

VOTO

 

O SENHOR MINISTRO NUNES MARQUES: Senhor Presidente, o Diretório Nacional do Partido Democrático Trabalhista ajuizou ação de investigação judicial eleitoral contra Jair Messias Bolsonaro, candidato à reeleição para o cargo de Presidente da República, e Walter Souza Braga Netto, candidato a Vice-Presidente da República, atribuindo-lhes a prática de abuso do poder político e o uso indevido dos meios de comunicação.

Sustenta ter havido desvio de finalidade no evento realizado no dia 18 de julho de 2022, comandado pelo primeiro requerido que, na condição de Chefe de Estado, teria se utilizado de reunião com embaixadores de países estrangeiros para atacar a integridade do processo eleitoral e as instituições da República, em especial o TSE e seus ministros, disseminando desinformações relativas ao sistema eletrônico de votação, em clara estratégia de campanha à reeleição.

Afirma que o então Presidente ventilou, na ocasião, a possibilidade de que os resultados do pleito fossem comprometidos por fraudes no sistema de votação, citando, como exemplos, que: (i) em 2018, as urnas trocaram o dígito 7 pelo 3, transformando o voto no “17” (número de Jair Bolsonaro) em “13”; (ii) o sistema brasileiro de votação é insuscetível de auditoria; (iii) a apuração é realizada por empresa terceirizada e não pode ser acompanhada; e (iv) o TSE admitiu que, em 2018, invasores atribuíram votos de um candidato a outro.

Aduz que Jair Bolsonaro, também na ocasião, apontou interferência eleitoral e defesa de “terroristas” por parte de ministros do STF, dizendo, ainda, que a “esquerda” está envolvida no atentado sofrido em 2018.

Alega que o encontro – fato público e notório – contou com cobertura da Empresa Brasil de Comunicações (EBC), sendo amplamente divulgado pela imprensa e nas redes sociais do primeiro requerido e potencializando o efeito danoso das declarações proferidas.

Ressalta que o discurso foi retirado da plataforma YouTube por iniciativa da empresa, a qual informou que (ID 157940943, fl. 20):

a política de integridade eleitoral do YouTube proíbe conteúdo com informações falsas sobre fraude generalizada, erros ou problemas técnicos que supostamente tenham alterado o resultado de eleições anteriores, após os resultados já terem sido oficialmente confirmados.

Diz contrariados o art. 37, § 1º, da Constituição Federal de 1988; o art. 73, I, da Lei n. 9.504/1997; e o art. 22 da LC n. 64/1990.

Para embasar as alegações, inseriu, na petição inicial, links de internet e prints de postagens nas redes sociais de Jair Messias Bolsonaro, de transmissão do canal da TV Brasil no YouTube e de sites de notícias, além de protocolizar um pendrive contendo o vídeo objeto de apuração da presente AIJE.

Pugnou, ao final, pela:

(i) concessão de medida liminar para determinar a remoção, na internet, dos vídeos que reproduzem o discurso sob análise na presente AIJE;

(ii) confirmação da medida liminar, caso deferida, com a remoção definitiva dos vídeos; e

(iii) declaração da inelegibilidade dos investigados, além da cassação do registro ou do diploma, pela prática de abuso do poder político e por uso indevido dos meios de comunicação.

A tutela de urgência foi deferida pelo então Relator desta AIJE, ministro Mauro Campbell Marques, para determinar a imediata retirada do conteúdo das redes sociais do primeiro investigado e da Empresa Brasil de Comunicação no Facebook, no Instagram e no YouTube, sob pena de multa de R$ 10.000,00 (dez mil reais), sendo essa decisão referendada pela Corte, à unanimidade (ID 157990609), e integralmente cumprida pelas empresas notificadas.

Citados, os investigados apresentaram contestação (ID 157977291), na qual suscitaram preliminar de (i) ausência, no polo passivo, de litisconsorte necessário – a União –, ao argumento de se ter atingido o patrimônio do ente central, ante a determinação de retirada de conteúdo produzido pela TV Brasil, canal vinculado à empresa pública EBC, e (ii) incompetência da Justiça Eleitoral, porquanto os fatos revelam mero exercício das funções privativas de Chefe de Estado, sem relação com a disputa entre candidatos. No mérito, articulam o seguinte, na linha do que destacado pelo eminente Relator (ID 159049013, fls. 6 e 7):

a) na hipótese dos autos, foi praticado “ato de governo”, insuscetível de controle jurisdicional sob a ótica do “fim político” e da soberania, inexistindo ato eleitoral, uma vez que “[n]ão se cuidou de eleições! Não se pediu votos! Não houve ataque a oponentes! E não houve a apresentação comparativa de candidaturas!”;
b) o evento constou de agenda oficial, previamente publicizada, sendo inclusive expedido convite para o então Presidente do TSE, Min. Edson Fachin, “não sendo crível que o primeiro Investigado convidasse destacado membro da própria Justiça Especializada para testemunhar evento de conotação eleitoral”;
c) o “público-alvo da exposição”, formado por representantes de países estrangeiros, “sequer detinha cidadania e capacidade ativa de sufrágio”;
d) “uma leitura imparcial e serena” do discurso do primeiro investigado revela “falas permeadas de conteúdos técnicos, que buscam debater um tema importante (transparência do processo eleitoral), dispostas ao longo de mais de 1h (uma hora) de apresentação [...] no afã de contrapor ideias e dissipar dúvidas sobre a transparência do processo eleitoral”;
e) “a má-fé de determinados setores da imprensa” levou a cobertura do evento a tratar “uma proposta de aprimoramento do processo democrático como se se tratasse de ataque direto à democracia”, quando na verdade se tratou de “um convite ao diálogo público continuado para o aprimoramento permanente e progressivo do sistema eleitoral e das instituições republicanas”;
f) trechos do discurso, que permitiriam sua adequada contextualização e compatibilidade com valores expressos pela OEA ao promover missões de observação eleitoral, “foram (maliciosamente) omitidos da inicial”;
g) o Tribunal de Contas da União fez recomendações para aprimoramento da segurança e da transparência do sistema eletrônico de votação (TC nº 014.328.2021-6) e o próprio TSE criou a Comissão de Transparência Eleitoral (Portaria TSE nº 578/2021), o que ilustra a licitude de apresentar “questionamentos (pontos duvidosos!), postos às claras”;
h) o Presidente do TSE, em 31/05/2022, realizou reunião com a comunidade internacional “a pretexto de fornecer ‘informações sérias e verdadeiras sobre a tecnologia eleitoral brasileira’ [...] a despeito de, como devido respeito, não estar legitimado constitucionalmente para tanto”, o que pode ser considerado um “evento assemelhado” ao discutido nos autos.

Com base nessas considerações fáticas, infirmam as imputações, sustentando que ato de governo não poderia ser enquadrado como abuso do poder político ou uso indevido dos meios de comunicação, à míngua do necessário viés eleitoral.

Alegam que o discurso adotado no evento investigado – cujo intuito seria o de aprimorar a fiscalização e a transparência do sistema eleitoral brasileiro – estaria resguardado pela liberdade de expressão e que não houve, nos autos, quaisquer provas de prejuízo ao processo eleitoral.

Ainda nesse contexto, acrescentam que, após o encontro, o então Presidente do TSE, ministro Edson Fachin, emitiu nota pública de esclarecimento, por meio da qual rebateu, com ampla publicidade, os pontos apresentados pelo Investigado. Aduzem que, dessa forma, esta Corte afastou qualquer possibilidade de lesão à legitimidade das eleições.

Sustentam observada, na espécie, a “teoria dos diálogos institucionais” (ADI n. 4650, ministro Luiz Fux, DJ de 24 de fevereiro de 2016).

Foi apresentada réplica (ID 158067068).

Em seguida, foi proferida decisão de saneamento e organização do processo, mediante a qual dirimidas as questões processuais, fixados os pontos controvertidos e apreciados os requerimentos de prova (ID 158487960).

As preliminares suscitadas foram rejeitadas na ocasião e, posteriormente, a decisão foi referendada, à unanimidade (ID 158550654).

Em 13 de março último, o autor apresentou minuta de decreto de Estado de Defesa, sustentando se tratar de documento – e não de fato – novo, cujo original havia sido apreendido, no dia anterior, pela Polícia Federal na residência de Anderson Torres – ex-ministro da Justiça e Segurança Pública – durante diligência determinada pelo ministro Alexandre de Moraes no âmbito do Inquérito n. 4879, que tramita no Supremo Tribunal Federal.

O Relator admitiu a juntada do documento, reconhecendo a aderência e correlação “entre os fatos e documentos novos e a demanda estabilizada” (ID 158554507).

Houve pedido de reconsideração do pronunciamento, no qual os réus afirmaram que foram violadas a estabilização da demanda e a consumação de decadência (ID 158557843).

O Colegiado confirmou a decisão e fixou orientação a ser aplicada às Aijes das Eleições 2022 em situações semelhantes (ID 158622380). Eis a síntese do acórdão (ID 158703074):

AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ELEIÇÕES 2022. PRESIDENTE. JUNTADA DE DOCUMENTO NOVO. FATOS SUPERVENIENTES. ADMISSIBILIDADE. DESDOBRAMENTO DE FATOS QUE COMPÕEM A CAUSA DE PEDIR. PEDIDO DE RECONSIDERAÇÃO. DECADÊNCIA. VIOLAÇÃO À ESTABILIZAÇÃO DA DEMANDA. INOCORRÊNCIA. QUESTÕES PREJUDICIAIS REJEITADAS. DECISÃO REFERENDADA.
1. Trata-se de decisão em que, rejeitadas as prejudiciais de decadência e de violação à estabilização da demanda, indeferiu-se pedido de reconsideração formulado contra a admissibilidade de documento novo juntado aos autos durante a fase de instrução.
2. Nesta AIJE, apura-se abuso de poder político e uso indevido de meios de comunicação, ilícitos supostamente praticados em reunião de 18/07/2022 ocorrida no Palácio da Alvorada, quando o então Presidente da República, primeiro investigado, proferiu discurso lançando suspeitas de fraude nas urnas eletrônicas e acusações de parcialidade de Ministros do TSE. O evento contou com a presença de embaixadores de países estrangeiros e foi transmitido pela TV Brasil e nas redes sociais do candidato à reeleição.
3. A causa de pedir da AIJE é delimitada pelos contornos fáticos e jurídicos que permitam a compreensão da demanda, não se exigindo que a parte autora, ao postular em juízo, tenha pleno domínio de todos os fatos que podem influir no julgamento e os descreva em minúcias.
4. Na hipótese, a causa de pedir contempla a imputação de que o discurso proferido em 18/07/2022 se insere em uma estratégia de campanha do primeiro réu, de difundir fatos sabidamente falsos relativos ao sistema eletrônico de votação, para mobilizar seu eleitorado por força de grave “desordem informacional” atentatória à normalidade do pleito.
5. Em contrapartida, os investigados refutam qualquer relação entre o evento de 18/07/2022 e as eleições, enxergando no discurso uma legítima manifestação, em salutar “diálogo institucional” com o TSE, afirmando ainda que qualquer efeito do discurso teria sido prontamente neutralizado por nota pública do tribunal.
6. Diante disso, na decisão de organização e saneamento do processo, consignou-se que os fatos constitutivos (o evento, o discurso e seu conteúdo) são incontroversos e que as partes disputam a narrativa sobre o significado e o impacto eleitoral do episódio. Ressaltou-se que, em matéria de abuso de poder, o exame da gravidade da conduta, sob o ângulo qualitativo e quantitativo, reclama especial atenção para a análise de elementos contextuais.
7. O documento novo ora trazido aos autos consiste em minuta de decreto de Estado de Defesa apreendida pela Polícia Federal na residência do ex-Ministro da Justiça e da Segurança Pública, Anderson Torres, no dia 12/01/2023, durante diligência determinada pelo Ministro Alexandre de Moraes no âmbito do Inquérito nº 4879, que tramita no STF.
8. É inequívoco que o fato de o ex-Ministro da Justiça do governo do primeiro investigado ter em seu poder uma proposta de intervenção no TSE e de invalidação do resultado das eleições presidenciais possui aderência aos pontos controvertidos, em especial no que diz respeito à correlação entre o discurso e a campanha e ao aspecto quantitativo da gravidade.
9. A decadência obsta a dedução de ilícitos inteiramente novos, sendo fator de estabilidade política e jurídica. No entanto, apresentada a demanda de modo tempestivo, os fatos supervenientes que guardem relação com a causa de pedir, mesmo que não alegados pelas partes, devem ser obrigatoriamente considerados no julgamento (art. 493, CPC; art. 23, LC 64/90).
10. Desse modo, não se pode interpretar a estabilização da demanda como um recorte completo e irreversível na realidade fenomênica. Essa ideia acarreta um descolamento tal dos fatos em relação a seu contexto que chega a impedir o órgão judicante de levar em conta circunstâncias que gradativamente se tornem conhecidas ou potenciais desdobramentos das condutas em investigação.
11. Ressalte-se que, no caso dos autos, o que a autora pretende discutir são eventos que se conectam a partir do eixo central da narrativa, segundo a qual o discurso na reunião com embaixadores mirava efeitos eleitorais ilícitos. O próprio teor do discurso do Presidente, que livremente escolheu os tópicos que desejava abordar, oferece uma clara visão sobre o fluxo de eventos – passados e futuros – que podem, em tese, corroborar a imputação da petição inicial.
12. Ao lado dessas considerações gerais, deve-se ter em conta que o resultado das eleições presideciais de 2022, embora fruto legítimo e autêntico da vontade popular manifestada nas urnas, se tornou alvo de ameaças severas. Passado o pleito, a diplomação e até a posse do novo Presidente da República, atos desabridamente antidemocráticos e insidiosas conspirações tornaram-se episódios corriqueiros. São armas lamentáveis do golpismo dos que se recusam a aceitar a prevalência da soberania popular e que apostam na ruína das instituições para criar um mundo de caos onde esperam se impor pela força.
13. Os acontecimentos se sucedem de forma vertiginosa. Mas o devido processo legal tem, entre suas virtudes, a capacidade de decantar os fatos e possibilitar seu exame analítico. É isso que deve guiar a instrução das AIJEs, pois é central à consolidação dos resultados das Eleições 2022 averiguar se esse desolador cenário é, ou não, desdobramento de condutas em apuração nas diversas ações. Esse debate não pode ser silenciado ou inibido por uma artificial separação entre as causas de pedir e a realidade fenomênica em que se inserem.
14. Os temas das ações propostas são de conhecimento público. Não há segredo de justiça. As decisões de admissibilidade, de concessão de tutela inibitória e de saneamento, bem como outras de caráter interlocutório, têm contemplado cuidadoso delineamento das matérias em discussão.
15. Tendo em vista o prestígio à celeridade, à economia processual e à boa-fé objetiva, entendo prudente que, especificamente no que diz respeito às AIJEs relativas às eleições presidenciais de 2022, seja fixado um parâmetro seguro e objetivo que dispense, a cada fato ou documento específico, uma nova decisão interlocutória que revolva todos os fundamentos ora expostos.
16. Orientação a ser aplicada em situações semelhantes, no sentido de que a estabilização da demanda e a consumação da decadência não impedem que sejam admitidos no processo e considerados no julgamento elementos que se destinem a demonstrar desdobramentos dos fatos originariamente narrados, a gravidade (qualitativa e quantitativa) da conduta que compõe a causa de pedir ou a responsabilidade dos investigados e de pessoas do seu entorno, tais como: a) fatos supervenientes à propositura das ações ou à diplomação dos eleitos, ocorrida em 12/12/2022; b) circunstâncias relevantes ao contexto dos fatos, reveladas em outros procedimentos policiais, investigativos ou jurisdicionais ou, ainda, que sejam de conhecimento público e notório; e c) documentos juntados com base no art. 435 do CPC.
17. Mantido o indeferimento do pedido de reconsideração.
18. Decisão interlocutória referendada.

Foram, então, determinadas as seguintes diligências suplementares (ID 158764809):

(i) juntada de documentos, extraídos do Inquérito nº 0600371-71;
(ii) expedição de ofício ao Ministro-Chefe da Casa Civil, requisitando-se informações consolidadas sobre a participação de órgãos do Governo Federal na preparação, realização e difusão do encontro realizado no Palácio da Alvorada em 18/07/2022, solicitando-lhe, para tanto, que, além da consulta a seus registros, estenda a comunicação ao Ministério das Relações Exteriores, à Assessoria Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência, à Assessoria de Cerimonial e demais órgãos acaso envolvidos na organização do evento, em prazo hábil para a consolidação; e
(iii) oitiva de testemunhas, para deporem sobre fatos devidamente delimitados, nos seguintes termos:

a) Anderson Gustavo Torres, ex-Ministro da Justiça e da Segurança Pública, a respeito de sua contribuição e participação na live de 29/07/2021, seu eventual envolvimento na reunião de 18/07/2022 e circunstâncias relativas ao decreto de Estado de Defesa apreendido em sua residência, no dia 12/01/2023:
b) Eduardo Gomes da Silva, Coronel reformado, a respeito de sua contribuição e participação na live de 29/07/2021;
c) Ivo de Carvalho Peixinho e Mateus de Castro Polastro, servidores da Polícia Federal, para tratar sobre as circunstâncias em que foram envolvidos na live de 29/07/2021.

Os investigados se insurgiram contra à determinação por meio da interposição de agravo interno – que, recebido como pedido de reconsideração, foi indeferido –, e requereram novas diligências complementares, todas deferidas (ID 158811502):

(i) a oitiva de testemunhas, justificada com base em fatos específicos relacionados à causa que poderão por elas ser elucidados:

a) Filipe Barros, Deputado Federal que “foi relator da PEC que tratava do Voto Impresso (id. 158764856, p. 12) e participou, ativamente, com o Presidente e Investigado Jair Messias Bolsonaro, no programa ‘Pingo nos is’”, sendo ainda “quem, primeiramente, obteve o acesso ao Inquérito Policial 1361/2018-4/DF”;
b) Guilherme Fiuza, Augusto Nunes e Ana Paula Henkel, “jornalistas responsáveis pela condução do programa ‘Pingos nos is’, que poderão elucidar as reais e efetivas razões de se realizar o programa com esse tema específico”, por serem as pessoas que “efetivamente participaram da entrevista realizada com o Investigado Jair Bolsonaro em 04/08/2021, e, por conseguinte, poderão contribuir com efetivos esclarecimentos sobre o contexto em que surgiu o interesse jornalístico sobre o tema versado no Inquérito Policial 1361/2018-4/DF, sobre as atitudes dos Investigados face aos fatos e sobre os bastidores do programa, não capturados, por óbvio, por meio de simples degravação”; e
c) o Ex-Deputado Federal Major Vitor Hugo, que “esteve presente na transmissão e poderá, destarte, esclarecer contexto, sentido, motivação e desenvolvimento da live”, acrescendo que “face à vedação de depoimento pessoal do primeiro Investigado em sede de AIJE, a testemunha mencionada é a única testemunha habilitada, em tese, a prestar os esclarecimentos ora tidos como essenciais para a comprovação da tese principal da defesa”;

(ii) a requisição de documentos, destinados a “demonstrar que as preocupações do investigado Jair Messias Bolsonaro não eram infundadas, mas eram decorrência“ de investigação efetiva levada a cabo pela Polícia Federal, em atenção a pedido formulado por este C. TSE e
(iii) da fiscalização desenvolvida pelo Tribunal de Contas da União sobre o tema das eleições”, a saber:

a) à Delegacia da Polícia Federal em Brasília, dos termos de depoimentos colhidos ao longo das investigações no Inquérito Policial 1361/2018-4/DF e, se existente, do relatório final produzido;
b) ao Supremo Tribunal Federal:

b.1) da complementação das cópias do Inquérito 4878/DF, contendo
os desdobramentos processuais da investigação das circunstâncias de
divulgação do Inquérito Policial nº 1361/2018-4/DF desde 21/02/2022;
b.2) de cópia da Petição nº 10.477/DF, que se refere à apuração de notícia crime a respeito do mesmo fato que compõe a causa de pedir desta AIJE e que conta com parecer, da PGR, pelo arquivamento; e
b.3) de “informações relativas a referida ‘minuta de decreto de Estado de Defesa’, especialmente no que concerne ao resultado dos exames periciais (contendo os nomes das pessoas com digitais em referido documento) e aos termos dos depoimentos prestados pelo Senhor ANDERSON TORRES no âmbito das investigações realizadas naquela Corte.

Com a conclusão das diligências complementares, foi aberta vista ao Ministério Público e às partes, ocasião em que os investigados formularam novos requerimentos (ID 158881918), os quais foram parcialmente deferidos, admitindo-se a juntada de prova documental relativa a fatos mencionados nas audiências realizadas (ID 158886314).

Encerrada a instrução, foram apresentadas alegações finais pelos investigados, nas quais foram reiterados os argumentos deduzidos no curso do processo, requerendo-se (i) a extinção do processo sem resolução de mérito, por incompetência da Justiça Eleitoral; (ii) a extinção do feito somente em relação ao segundo investigado, por ser parte ilegítima; (iii) a redelimitação da demanda, excluindo-se “os fatos e [as] eventuais ‘provas’ oriundos da indevida extensão da causa de pedir, bem como aqueles derivados da inadequação da atuação probatória empreendida pelo Juízo, eis que se revelou excessiva”; e (iv) o julgamento de improcedência do pedido (ID 158914533).

O autor da ação pugna pela procedência da demanda, para que, ao final, seja declarada a inelegibilidade dos investigados (ID 158917113).

A Procuradoria-Geral Eleitoral preconiza a parcial procedência do pedido, para que seja declarada a inelegibilidade somente do primeiro investigado, Jair Messias Bolsonaro, em razão do abuso do poder político e do uso indevido dos meios de comunicação.

É o relato do essencial. Passo ao voto.

Antes de adentrar os temas discutidos na presente ação de investigação judicial eleitoral, cumpre enfrentar as questões preliminares trazidas pelos investigados.

Desde logo, adianto que não acolho nenhuma das preliminares.

Com relação à suposta existência de litisconsórcio passivo necessário com a União, em razão de o evento questionado ter sido veiculado pela TV Brasil, canal pertencente à empresa pública EBC, identifico, nos termos da jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral, que a alegação não merece prosperar.

A jurisprudência do TSE jamais cogitou da possibilidade de permitir que figurem no polo passivo das ações eleitorais, voltadas à cassação de registros ou diplomas, pessoas jurídicas, considerando que não disputam eleição e não detêm mandatos. Por todos, cito: AgR-AREspe n. 0600001-97, ministro Raul Araújo, DJe de 14 de abril de 2023.

Tampouco poder-se-ia cogitar litisconsórcio entre o investigado e o dirigente da EBC e/ou TV Brasil. Isso porque, a partir da análise do RO n. 0603030-63/DF, ministro Mauro Campbell, DJe de 3 de agosto de 2023, o TSE revisou o entendimento até então estabelecido para reconhecer que, a partir das eleições de 2018, não mais se exigiria a formação de litisconsórcio passivo necessário entre o candidato e eventual agente público, responsável pelo abuso do poder político.

Posteriormente, em razão da analogia das situações, também foi reconhecido o afastamento do litisconsórcio passivo necessário nas apurações que envolvessem as condutas vedadas do art. 73 da Lei n. 9.504/1997, que nada mais são que formas de abuso de poder tipificadas pelo legislador. Nesse sentido: RO-EL n. 0608847-75/RJ, ministro Mauro Campbell, DJe de 17 de dezembro de 2021.

No tocante à alegação de incompetência da Justiça Eleitoral, suscitada ao argumento de a reunião constituir mero exercício de funções privativas do Chefe de Estado, guardo compreensão diversa do Relator com relação à impossibilidade de se renovar, neste momento, a discussão a respeito da competência do TSE, em razão do que disposto no art. 48[1] da Resolução n. 23.608/2019/TSE.

Nos autos das ações que questionavam os diplomas outorgados à ex-presidente Dilma Rousseff e a Michel Temer, o TSE, por ocasião do julgamento de mérito dessas ações, renovou a análise das preliminares relativas à competência e à litispendência.

A ressubmissão das questões ao Plenário garante, aos investigados, o exercício da ampla defesa e do contraditório e, aos novos membros do Tribunal, o exercício pleno de sua jurisdição.

Em suma, tenho como viável a renovação da discussão a respeito da competência do TSE.

Examinando a preliminar, cumpre assentar que uma variedade de condutas praticadas por detentor de cargo público pode, em tese, ser desvirtuada para impactar a eleição, de modo que, apenas após a análise detalhada de todos os elementos ligados ao comportamento tido por ilícito, será possível aferir eventual finalidade eleitoral e, caso existente essa finalidade, impor a reprimenda necessária.

Por essa razão, tenho como competente a Justiça Eleitoral para o exame da articulação veiculada na inicial.

Quanto à cogitada ilegitimidade passiva de Walter Souza Braga Neto, compartilho da compreensão exposta pelo eminente Relator. Deve-se observar o enunciado n. 38 da Súmula do TSE: Nas ações que visem à cassação de registro, diploma ou mandato, há litisconsórcio passivo necessário entre o titular e o respectivo vice da chapa majoritária.

A redelimitação da demanda, em razão da juntada da assim denominada “minuta de golpe”, será examinada por ocasião do julgamento do mérito da investigação.

Superados os temas ventilados como preliminares, passo a analisar as questões centrais existentes nesta ação.

Penso ser primordial, desde logo, assentar as premissas que balizaram a análise que fiz da controvérsia contida nestes autos.

A primeira que tenho por essencial é a seguinte: o sistema eletrônico de votação brasileiro não é apenas um sistema confiável de apuração de votos, mas a pedra angular de nossa democracia.

A urna eletrônica, símbolo da nossa eleição desde 1996, representa marco importante da plena liberdade para o exercício do voto.

A redação original do Código Eleitoral em 1965, mais precisamente o art. 151, já dispunha que “[p]oderão ser utilizadas máquinas de votar, a critério e mediante regulamentação do Tribunal Superior Eleitoral”.

Posteriormente, por meio da Lei n. 9.100/1995[2], que visava regular as eleições municipais que ocorreriam em 1996, o legislador pôs fim ao hiato normativo posterior à Constituição de 1988 e, expressamente, autorizou que o TSE implantasse o sistema eletrônico de votação e apuração.

O voto eletrônico, que, como sabemos, vai muito além da urna eletrônica, é a experiência mais bem-sucedida executada por todo o Judiciário Brasileiro.

Ouso e me orgulho de dizer que, no tocante à recepção, apuração e à divulgação de votos, nosso sistema é o mais avançado do mundo. Enquanto nos Estados Unidos da América há tormentoso debate sobre a necessidade da apresentação de documento de identidade para votar (que divide os dois principais partidos – republicanos se põem a favor e democratas, contra[3]), temos aqui a identificação biométrica do eleitor como exigência para habilitar a urna.

A posição de destaque global não impede que o sistema seja constantemente aperfeiçoado. Em verdade, é a permanente busca por melhoria que garante a posição de vanguarda da Justiça Eleitoral.

Nesse mister, o TSE funciona como moto perpétuo de aprimoramento, promovendo adaptações constantes, tanto na seara eletrônica do voto quanto na regulamentar. Quanto a essa última, tive a oportunidade de encaminhar sugestões ao então Presidente do TSE, ministro Edson Fachin, que, para minha satisfação, vieram a ser chanceladas pelo Plenário deste Tribunal Superior por ocasião da atualização da Resolução n. 23.673/2021/TSE – que dispõe sobre os procedimentos de fiscalização e auditoria do sistema eletrônico de votação –, promovida pela Resolução n. 23.687, de 3 de março de 2022.

Ainda no campo da fiscalização e auditoria, destaco outro exemplo advindo da última eleição. Nosso presidente, ministro Alexandre de Moraes, trouxe ao Plenário do TSE para aprovação, no mês que antecedeu o pleito, projeto-piloto que levou o consagrado teste de integridade para as zonas eleitorais de 19 estados (PA n. 0601055-59/DF). A intenção era permitir que os eleitores, voluntariamente, pudessem, com o uso da biometria, participar do teste de integridade no próprio local de votação.

O resultado seguiu o padrão de excelência da Justiça Eleitoral, havendo 100% de correspondência entre o voto dado pelo eleitor e o apurado pelo sistema eletrônico.

A expressa referência a esse quadro de excelência, para além de dar o devido reconhecimento ao trabalho desta Justiça especializada, serve para alertar que o objeto deste julgamento não é, sob nenhuma hipótese, o sistema eletrônico de votação.

O fato que desafia a atenção deste Tribunal Superior, conforme exposto na inicial e no voto do relator, é se o evento realizado pelos investigados, nas dependências do Palácio do Planalto, configura abuso do poder político e/ou uso indevido dos meios de comunicação social, com gravidade suficiente para justificar as graves penas estabelecidas pelo art. 22, XIV, da LC n. 64/1990.

A segunda premissa de meu voto é destinada a alertar, tanto a sociedade como as partes da presente ação, de que não está em julgamento simpatia política por qualquer dos contentores do processo eleitoral ocorrido em 2022.

Conforme brilhantemente exposto pelo ministro Eros Grau, por ocasião do julgamento do Recurso Contra Expedição de Diploma n. 671/MA, que findou por cassar o então governador do Estado do Maranhão Jackson Lago, esta Justiça especializada, apesar de tratar de disputas eleitorais, não considera “[...] quizilas (políticas) e peculiaridades de longo ou curto período histórico”, mas “[...] a materialidade dos fatos sobre os quais devemos decidir”.

Conclui, Sua Excelência, para assentar que “[...] a lei é para ser aplicada, salvo a hipótese de manifestar-se, em cada caso, situação de exceção – e mesmo então ela resulta aplicada, desaplicando-se”.

Passo à análise da presente Aije.

O relator apresentou a seguinte síntese do que está em apuração, in verbis:

A ação tem como causa de pedir fática o alegado desvio de finalidade de reunião havida no dia 18/07/2022, na qual o primeiro réu, no exercício do cargo de Presidente da República, teria se utilizado de encontro com embaixadores de países estrangeiros para atacar a integridade do processo eleitoral, especialmente disseminando “desordem informacional” relativa ao sistema eletrônico de votação. Aponta-se que o discurso se insere em estratégia de campanha voltada para o descrédito ao sistema eletrônico de votação e que o evento contou com cobertura da Empresa Brasil de Comunicações (EBC), sendo amplamente divulgado nas redes sociais do candidato à reeleição, potencializando o efeito danoso das declarações proferidas na condição de chefe de estado.

Ocorre que a citada reunião com embaixadores, veiculada na inicial como suficiente para a procedência da Aije, não é o único elemento fático para a formação de seu entendimento.

O relator propõe, para a análise deste Plenário, quadro mais amplo, em que ao evento realizado no dia 18/7/2022 somam-se outras quatro transmissões ao vivo realizadas pelo primeiro investigado, as denominadas “lives”, que ocorreram em 29/7/2021, 4/8/2021, 5/8/2022 e 12/8/2021. Todas essas transmissões foram objeto do Inquérito Administrativo n. 0600371-71, sob a relatoria do Corregedor.

Transcrevo, no que interessa, o fundamento utilizado no voto para refutar a resistência dos investigados quanto à consideração desse quadro ampliado de fatos:

[...]
Antes de prosseguir, saliento que os investigados buscaram, de certa forma, encapsular a reunião de l 8/ 07 /2022, esperando que ela somente fosse analisada em uma primeira camada, estática, que não alcançasse a prática discursiva do primeiro investigado e a contextualização do discurso.
[...]
A imputação de caráter eleitoreiro ao evento se baseia em uma alegada amarra discursiva entre o teor da fala do então Presidente da República e sua estratégia de campanha à reeleição.
[...]
Assim, o fato de não ter havido ato típico de propaganda eleitoral ou de o discurso não ser proferido para uma plateia presencial de eleitoras e eleitores não afeta a causa de pedir deduzida nesta AIJE, sob qualquer ângulo. Em outras palavras, embora a ausência de pedido de votos e de capacidade eleitoral ativa dos embaixadores seja incontroversa, isso não afeta a imputação inicial e não leva a concluir pela regularidade do evento de l 8/ 07 /2022.
Inequívoco, portanto, que é pertinente aprofundar o exame das camadas discursivas da fala de Jair Messias Bolsonaro na ocasião.
[...].

Para além disso, sua excelência também sublinha que os elementos de prova adicionados foram submetidos ao contraditório e à ampla defesa.

Tenho, com as devidas vênias do Relator e daqueles que o acompanharem, compreensão diversa a respeito da questão.

Desde logo, anoto que o reconhecimento pelo TSE, por meio de representações de propaganda eleitoral antecipada, de que a reunião com os embaixadores se trata de ato eleitoral não implica juízo definitivo sobre o tema, tampouco autoriza o alargamento do que descrito na inicial.

Na verdade, entendo que a conotação eleitoral do evento poderia, inclusive, vir a ser afastada no julgamento que ora realizamos.

Isso porque, conforme afirmei, todas as questões discutidas na Aije podem e devem ser renovadas por ocasião do julgamento de mérito. Ademais, todos os feitos de propaganda seguem rito sumaríssimo, incompatível com a cognição vertical que deve ser levada a efeito nas ações que podem resultar na cassação de registro e/ou diploma.

Com relação à ampliação objetiva dos fatos em apuração, entendo que esta possibilidade somente seria admissível por expressa autorização legal – sabidamente inexistente – ou, ainda, se houvesse firme jurisprudência deste Tribunal Superior.

No tocante aos precedentes do TSE, é inevitável que se tenha como referência o julgamento conjunto realizado da Aije n. 1943-58/DF, Aime n. 7-61 e RP n. 8-46, todas da redatoria do ministro Napoleão Nunes Maia, em que este Tribunal, por maioria, acolheu preliminar para “afastar os elementos ou fatos que deixaram de figurar nas petições iniciais e extrapolaram as causas de pedir das demandas”.

Quanto ao que se convencionou chamar de julgamento da Chapa Dilma/Temer, o TSE expressamente afirmou, no que interessa, que:

[...]
j) Assim, no Direito Eleitoral, o Juiz Eleitoral, ao exercer o seu poder-dever de iniciativa probatória na busca da verdade real, precisa observar os freios impostos pela Constituição - quanto à duração razoável do processo (art. 5°, LXXVIII) -, pela legislação eleitoral – quanto ao prazo decadencial das ações eleitorais (art. 97-A da Lei 9.504/97) - e pelo Código de Processo Civil - no que concerne ao princípio da congruência (arts. 141 e 492).
k) Estas ações são de direito estrito, que não podem ser conduzidas pelo procedimento civil comum ordinário, e exigem prova pré-constituída para a retirada de candidato investido em mandato, de forma legítima, pelo voto popular. O curtíssimo prazo para a realização de atos processuais eleitorais busca preservar a soberania popular, ou seja, o voto manifestado pelo titular da soberania e o exercício do mandato de quem ganhou a eleição, democraticamente, nas urnas.
1) Preliminar acolhida, para afastar os elementos ou fatos que deixaram de figurar nas petições iniciais e extrapolaram as causas de pedir das demandas.
[...].

Guardo compreensão de que esse caso, por tratar especificamente de abuso nas eleições para o cargo de Presidente da República, deve ter prevalência quando da visitação de nossa jurisprudência.

Dessa forma, a análise que faço do caso está centrada tão somente na reunião realizada pelo investigado, Jair Messias Bolsonaro, ocorrida em 17/7/2022, em que foram proferidas inúmeras afirmações em desfavor do nosso sistema eletrônico de votação.

Ainda quanto ao arcabouço fático-probatório, esclareço que as demais lives, bem como os outros elementos probantes trazidos pelo Relator, não serão descartados.

Conhecerei desses elementos, em razão do que disposto no art. 23 da LC n. 64/1990, a prever que:

[o] Tribunal formará sua convicção pela livre apreciação dos fatos públicos e notórios, dos indícios e presunções e prova produzida, atentando para circunstâncias ou fatos, ainda que não indicados ou alegados pelas partes, mas que preservem o interesse público de lisura eleitoral.

Entretanto, a cognição desses fatos será feita a partir dos limites estabelecidos na inicial.

Cumpre reconhecer, desde logo, que, independentemente da forma como será feita a análise das provas existentes nos autos, não há um único elemento que vincule o segundo investigado, Walter Souza Braga Netto, candidato a Vice-Presidente da República, aos fatos em apuração.

Durante toda a instrução probatória, não há menção a seu nome, nem sequer como ouvinte do evento com os embaixadores, de forma que, ainda que se cogite o provimento da Aije, considerando que os investigados perderam a eleição, não há sanção a ser aplicada ao citado investigado.

Retornando à análise do evento dos embaixadores, não se pode olvidar que sua realização não está deslocada dos fatos que marcaram o último ano do mandato do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro, ora investigado.

O corregedor-geral descreve, com precisão, o fato que, na sua concepção, serviu como gatilho para realização do encontro, in verbis:

Em 31/05/2022, o então Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Min. Luiz Edson Fachin, discursou na abertura do evento "Sessão Informativa para Embaixadas: o sistema eleitoral brasileiro e as Eleições de 2022". O objetivo principal do encontro era informar aos diplomatas de países estrangeiros a respeito das eleições brasileiras, em seus múltiplos aspectos, inclusive acerca da tecnologia utilizada.
[...]
É fato notório que o discurso acima transcrito teve significativa repercussão em veículos de imprensa, com ênfase a alguns dos trechos destacados, e, com isso, logrou ser mais uma oportunidade para a Justiça Eleitoral conclamar a sociedade e a buscar informações confiáveis sobre as umas eletrônicas. Não obstante, a mensagem despertou no primeiro investigado uma "reação": também ele, na qualidade de Presidente da República e Chefe de Estado, faria um evento direcionado à comunidade internacional.
Está demonstrado nos autos que a reunião de l8/07/2022, no Palácio da Alvorada, foi planejada como resposta à Sessão Informativa para Embaixadores, realizada pelo TSE.
[...].

Sua excelência, em seguida, atesta que a instrução do feito chancela essa conclusão:

[...]
A prova testemunhal confirmou essa dinâmica. Carlos Alberto França, então Ministro das Relações Exteriores, afirmou categoricamente que a ideia da reunião de 18/07/2022 partiu da Presidência da República - e, não, de seu Ministério - e que tinha por objetivo permitir ao Presidente, que "é quem conduz a política externa", apresentar seu ponto de vista sobre o sistema de votação. Disse, ainda, que isso ocorreu após um "briefing" no TSE, e que foi por isso que se julgou ser papel da Presidência da República "também se manifestar diretamente".
[...]
No que diz respeito à concepção do encontro, as três testemunhas ouvidas a respeito da reunião de 18/07/ 2022 (Carlos França, Ciro Nogueira e Flávio Viana Rocha) apresentaram relatos basicamente de meros espectadores. Em uníssono, disseram que não auxiliaram o ex-Presidente na preparação do material, que não foram chamados a discutir a abordagem e que desconheciam o teor da apresentação. E, isso, embora tenham sido arroladas pela defesa com a justificativa de que diante de suas relevantes funções desempenhadas, os aspectos da dinâmica da reunião seriam por eles conhecido de forma particular.

Sublinho que adiro, integralmente, à análise fática delineada pelo Relator quanto a esse ponto.

De fato, o ora investigado, equivocadamente, entendeu violada a competência privativa estabelecida no art. 84, VII, da Constituição Federal[4], que dispõe caber à Presidência manter relações com Estados estrangeiros e, movido por esse sentimento, realizou evento com os representantes desses Estados para, na sua visão, apresentar elementos que considerava importantes relacionados à eleição brasileira, especialmente, ao sistema de votação e aos agentes públicos responsáveis por administrá-lo.

Antes de promover análise vertical do teor das declarações, com as quais desde logo manifesto minha completa discordância, ressalto que o ex-presidente há muito demonstra seu descontentamento com o sistema eletrônico de votação.

O papel de principal antagonista do sistema, contudo, nem sempre foi desempenhado pelo ora investigado.

Rememoro, entre idas e vindas, ser recorrente na pauta do Congresso Nacional, nas últimas duas décadas, o debate em torno da necessidade, ou não, de as nossas urnas eletrônicas emitirem registro impresso do voto coletado, para possibilitar ao próprio eleitor a conferência de seu voto.

Apenas 3 (três) eleições após a adoção do voto integralmente eletrônico, o então presidente Fernando Henrique Cardoso sancionou a Lei n. 10.408/2002, que, ao acrescentar um § 4º ao art. 59 da Lei n. 9.504/1997 (Lei das Eleições), estabelecia, in verbis: “A urna eletrônica disporá de mecanismo que permita a impressão do voto, sua conferência visual e depósito automático, sem contato manual, em local previamente lacrado, após conferência pelo eleitor”.

A disposição foi revogada pela Lei n. 10.740/2003, sancionada pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

No segundo mandato, o próprio Presidente Lula sancionou a Lei n. 12.034/2009, em cujo art. 5º constava, expressamente, “[f]ica criado, a partir das eleições de 2014, inclusive, o voto impresso conferido pelo eleitor”.

Em 19 de outubro de 2011, o Supremo Tribunal Federal implementou medida acauteladora na ação direta de inconstitucionalidade n. 4.543, ministra Cármen Lúcia, suspendendo a eficácia do citado art. 5º. Em 2014, o Tribunal julgou procedente o pedido e declarou a inconstitucionalidade do preceito.

Em outras palavras, com mais ou menos ruído, o debate sobre o registro impresso do voto para conferência do eleitor é uma discussão quase tão antiga quanto a própria urna eletrônica.

Esse debate atingiu seu ápice por ocasião da reeleição da presidente Dilma Rousseff, em que as infundadas críticas à confiabilidade do sistema foram judicializadas pelo então candidato derrotado no pleito, Aécio Neves.

Em ação proposta diretamente neste Tribunal, requereu-se a realização de auditoria especial para o segundo turno da eleição presidencial (Pet n. 1855-20, ministro Dias Toffoli) [5] [6].

Após o fracasso da petição, que foi classificada pela Procuradoria-Geral Eleitoral como “aventura”, aprovou-se no Congresso Nacional a Lei n. 13.165/2015, que, sob a liderança do então Senador por Minas Gerais, trouxe em um de seus dispositivos, a determinação de que o TSE deveria providenciar a impressão do voto para conferência do eleitor[7]. A Presidente Dilma Rousseff vetou o preceito e o veto foi derrubado pelo Congresso Nacional; ou seja, o registro impresso individual do voto foi aprovado duas vezes pelo legislativo federal.

Atendendo a pedido da Procuradoria-Geral Eleitoral, o Supremo Tribunal Federal, na ADI n. 5889/DF, ministro Gilmar Mendes, suspendeu com efeitos ex tunc, em 6 de junho de 2018, a eficácia do art. 59-A, acrescido à Lei n. 9.504/1997, e o declarou inconstitucional em 16 de setembro de 2020. A execução da lei, que já estava sendo implementada pela Administração do TSE à época, foi interrompida.

Tivemos, ainda, a tentativa de aprovação da PEC n. 135, apresentada em 2019, que tornava obrigatória a expedição de cédulas físicas. A proposta recebeu 229 votos favoráveis e, não tendo alcançado o quórum mínimo, deixou de ser aprovada na Câmara dos Deputados, apesar de contar com apoio expressivo da base do governo liderado por Jair Bolsonaro.

Ademais, os arts. 223 e 224 da Resolução n. 23.669/2021/TSE estabelecem o rito para impugnação do resultado geral das eleições presidenciais no âmbito desta Corte. Esta regra também foi prevista no âmbito das Cortes Regionais pelo art. 217 do mesmo normativo. O fluxo prevê a possibilidade de impugnações e reclamações sobre o processo de votação.

A jurisprudência da Justiça Eleitoral historicamente afasta alegações de fraude no processo eletrônico de votação, porquanto normalmente revelam mero inconformismo com o resultado da eleição e destituídas de fundamento jurídico. Cito: TSE, Recurso Especial Eleitoral n. 158179, Acórdão, ministra Cármen Lúcia, DJe 6 de setembro de 2010.

O breve resgate histórico serve para ilustrar que o questionamento do voto exclusivamente eletrônico é um debate vivo no seio da sociedade brasileira.

Contudo, é inegável que o investigado passou a ostentar protagonismo no debate, seja porque se elegeu Presidente do país em 2018, seja pela forma enfática com que usualmente propõe suas objeções.

Reafirmo, não obstante a irrefutabilidade da integridade do sistema eletrônico de votação, que a atuação de Jair Messias Bolsonaro, no evento sob investigação, não se voltou a obter vantagens sobre os demais contendores no pleito presidencial de 2022, tampouco fazia parte de suposto plano para desacreditar o resultado do pleito a fim de, em momento posterior ao resultado das eleições, dar azo a hipotético golpe de estado, como quis fazer crer a agremiação investigante.

O discurso de fraude no processo eleitoral mencionado na reunião objeto desta AIJE sequer foi motivo de questionamento oportuno no âmbito desta Corte, conforme rito estabelecido nos citados arts. 223 e 224 da Resolução n. 23.669/2021/TSE.

Da análise que faço do arcabouço probatório, o investigado buscou com o evento, em última análise, promover confrontação pública com o então Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro Edson Fachin.

Corrobora esse entendimento a própria resposta formulada pelo eminente Ministro, que corretamente usou toda a estrutura do TSE, bem como as entidades parceiras de checagem de fatos, para rebater ponto a ponto as declarações do então Presidente da República a respeito do sistema de votação eletrônico.

Fosse uma declaração de conotação eleitoral, em sentido estrito, Sua Excelência o ministro Edson Fachin jamais se colocaria em posição de altercação com notório pré-candidato ao pleito que se avizinhava.

Apresento, por relevante, resumo dos fatos que se sucederam à reunião do dia 18 de julho de 2022, também extraído do voto do Relator:

(i) no mesmo dia do evento, o Presidente do TSE à época, ministro Edson Fachin, rebateu a fala do então pré-candidato, tendo sido seguido por todas as agências de checagem parceiras do TSE;

(ii) em 23 de agosto de 2022, o então corregedor-geral eleitoral, ministro Mauro Campbell, deferiu medida liminar para que, em 24 horas, as plataformas YouTube e Facebook, bem como a EBC, promovessem a retirada de quaisquer conteúdos relacionados com a reunião (ID 157951424);

(iii) em 26 de agosto de 2022, tanto o Google quanto a EBC informaram que a liminar havia sido cumprida, tendo o primeiro informado que o vídeo indicado na inicial havia sido retirado do ar pelo próprio usuário (IDs 157961443 e 157961477, respectivamente);

(iv) também no dia 26 de agosto, o Facebook informou que o conteúdo tido por ilícito havia sido indisponibilizado, tanto em sua plataforma como no Instagram (ID 157962283);

(v) em 9 de setembro de 2022, a decisão liminar foi referendada in totum pelo Plenário do TSE.

Em síntese, o iter da reação institucional levada a efeito pelo TSE reforça a concepção que tenho de que o evento com os embaixadores deve ser inserido nesse confronto institucional criado pelo então Presidente da República, como outros do mesmo jaez que marcaram o período em que ocupou a Presidência da República.

Ainda que superada a interpretação que faço da indigitada reunião e, nos termos do voto do Relator, assuma-se que o ato era eleitoral, em sentido estrito, a doutrina e a jurisprudência deste Tribunal Superior afastam a aplicação da grave sanção possível na hipótese dos autos, qual seja, inelegibilidade por 8 (oito) anos, uma vez que se trata de candidato não eleito.

Transcrevo, por relevante, as palavras de Rodrigo López Zilío:

[...]
Conforme dispõe o inciso XVI do art. 22 da LC nº 64/1990, com a redação dada pela LC nº 135/2010, "para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam". O dispositivo não torna superada a exigência da potencialidade lesiva como uma primeira leitura da regra pode sugerir, mas apenas substitui aludida expressão pela "gravidade das circunstâncias". O relevante, in casu, é a demonstração de que o fato teve gravidade suficiente para violar bem jurídico que é tutelado, qual seja, a legitimidade e normalidade das eleições. Vale dizer, é bastante claro que a gravidade como critério de aferição do abuso de poder apresenta uma característica de correlação com o pleito, ou seja, tem por necessário examinar o fato imputado como abuso de poder e perscrutar a sua relação com a eleição [...].

Nessa linha, extraio de nossos precedentes que: “o gênero abuso de poder, por força do que dispõe o art. 22, XVI, da LC n. 64/90, demanda, para sua configuração, a presença do elemento gravidade, especialmente o impacto na normalidade e na legitimidade do pleito” (REspe n. 0600623-87.2020.6.06.0050, ministro Carlos Horbach, DJe de 19 de dezembro de 2022), independentemente de quando tenham ocorrido os fatos.

As palavras-chave, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, são “legitimidade e normalidade do pleito”. Ocorre que os atos que podem conspurcar esses bens jurídicos, ao menos da seara eleitoral, sempre deverão ter por prisma a eleição em sentido estrito, ou seja, a disputa entre os contentores pelo voto do eleitor.

No direito eleitoral, o abuso do poder político advém do uso da máquina administrativa em favor de candidatura, ao impacto negativo desse uso aos mais caros princípios constitucionais, como o republicano, o alusivo à isonomia e à impessoalidade e o da própria soberania popular.

Em outras palavras, somente é abusivo o ato que viola a igualdade entre os candidatos e/ou a liberdade do eleitor de exercer seu voto segundo suas convicções e preferências.

Não há espaço, a meu sentir, para incluir na interpretação do dispositivo situações outras que não se relacionem diretamente com a disputa do voto, porquanto estaríamos fazendo clara extrapolação da própria competência desta Justiça especializada.

No ponto, cumpre fazer distinções importantes entre o caso dos autos e o julgado no RO n. 0603975-98/PR, ministro Luis Felipe Salomão, em que o Plenário deste Tribunal proveu o recurso ordinário interposto pelo Parquet para cassar o diploma e declarar a inelegibilidade do deputado estadual Fernando Destito Francischini. No que interessa, reproduzo trechos da ementa do referido julgado:

RECURSO ORDINÁRIO. ELEIÇÕES 2018. DEPUTADO ESTADUAL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL (AIJE). USO INDEVIDO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO SOCIAL. ABUSO DE PODER POLÍTICO E DE AUTORIDADE. ART. 22 DA LC 64/90. TRANSMISSÃO AO VIVO. REDE SOCIAL. DIA DO PLEITO. HORÁRIO DE VOTAÇÃO. FATOS NOTORIAMENTE INVERÍDICOS. SISTEMA ELETRÔNICO DE VOTAÇÃO. FRAUDES INEXISTENTES EM URNAS ELETRÔNICAS. AUDIÊNCIA DE MILHARES DE PESSOAS. MILHÕES DE COMPARTILHAMENTOS. PROMOÇÃO PESSOAL. IMUNIDADE PARLAMENTAR COMO ESCUDO PARA ATAQUES À DEMOCRACIA. IMPOSSIBILIDADE. GRAVIDADE. CASSAÇÃO DO DIPLOMA. INELEGIBILIDADE. PROVIMENTO.
[...]
3. A hipótese cuida de live transmitida ao vivo em rede social, quando em curso a votação no primeiro turno, para mais de 70 mil internautas, e que até 12/11/2018 teve mais de 105 mil comentários, 400 mil compartilhamentos e seis milhões de visualizações. O recorrido – que exercia o cargo de Deputado Federal – noticiou a existência de fraudes em urnas eletrônicas e outros supostos fatos acerca do sistema eletrônico de votação.
[...]
9. Hipótese inédita submetida a esta Corte Superior é se ataques ao sistema eletrônico de votação e à democracia, disseminando fatos inverídicos e gerando incertezas acerca da lisura do pleito, em benefício de candidato, podem configurar abuso de poder político ou de autoridade – quando utilizada essa prerrogativa para tal propósito – e/ou uso indevido dos meios de comunicação quando redes sociais são usadas para esse fim.
[...]
19. Os dividendos angariados pelo recorrido são incontroversos. A live ocorreu quando a votação ainda estava aberta no Paraná, ao passo que o acesso à internet ocorre de qualquer lugar por dispositivos móveis, reiterando-se que a transmissão foi assistida por mais de 70 mil pessoas, afora os compartilhamentos do vídeo.
[...]
21. Gravidade configurada pela somatória de aspectos qualitativos e quantitativos (art. 22, XVI, da LC 64/90). O ataque ao sistema eletrônico de votação, noticiando-se fraudes que nunca ocorreram, tem repercussão nefasta na legitimidade do pleito, na estabilidade do Estado Democrático de Direito e na confiança dos eleitores nas urnas eletrônicas, utilizadas há 25 anos sem nenhuma prova de adulterações. Além disso, reitere-se a audiência de mais de 70 mil pessoas e, até 12/11/2018, mais de 400 mil compartilhamentos, 105 mil comentários e seis milhões de visualizações.
22. Na linha do parecer ministerial, “a transmissão ao vivo de conteúdo em rede social, no dia da eleição, contendo divulgação de notícia falsa e ofensiva por parlamentar federal, em prol de seu partido e de candidato, configura abuso de poder de autoridade e uso indevido de meio de comunicação”, sendo grave a afronta à “legitimidade e normalidade do prélio eleitoral”.
23. Recurso ordinário provido para cassar o diploma do recorrido e declará-lo inelegível (art. 22, XIV, da LC 64/90), com imediata execução do aresto, independentemente de publicação, e recálculo dos quocientes eleitoral e partidário.

Considero que há tantas diferenças entre os casos que, com as mais respeitosas vênias, não há falar em procedência da presente Aije com base no citado precedente.

Destaco que o evento do indigitado deputado estadual ocorreu no dia do pleito, quando ainda havia votação no seu estado de origem. Isso significa dizer que a live promovida teve lugar quando já encerrados os atos de propaganda para todos os demais candidatos ao cargo de deputado estadual.

Todos os eventos em apuração na presente Aije, por outro lado, ainda que incluídas em sua inteireza todas as lives a que fez referência o corregedor, ocorreram antes do período eleitoral. Para ser mais preciso, o evento com os embaixadores foi o único a ocorrer no ano da eleição, mas, ainda assim, quase um mês inteiro antes do início do período eleitoral.

Se é bem verdade que as ações de investigação judicial eleitoral podem se referir a fatos ocorridos antes do período eleitoral, não é menos preciso que a antecedência dos fatos tende a diluir o impacto do ilícito, de modo a desvanecer o requisito da gravidade exigido pela lei.

Para além disso, outro ponto representa importante distinção entre o caso dos autos e o tido por paradigmático, qual seja: o eleitorado envolvido na disputa.

O total do eleitorado no Paraná na eleição geral de 2018 foi de 7.968.409 (sete milhões novecentos e sessenta e oito mil quatrocentos e nove) eleitores. O eleitorado brasileiro, em 2022, era de 155.756.933 (cento e cinquenta e cinco milhões setecentos e cinquenta e seis mil novecentos e trinta e três) pessoas aptas a votar.

Ainda que se considere a reunião com embaixadores estrangeiros realizada pelo então Presidente da República como ilícito eleitoral, a mim não parece capaz de minimamente perturbar a legitimidade e a normalidade de um pleito do tamanho da eleição presidencial.

Destaco, além disso, o próprio teor das declarações feitas, bem como o público primário dos eventos.

Enquanto o ato realizado pelo então deputado federal que disputava a eleição para o legislativo estadual era direcionado ao seu eleitorado, a fala do presidente voltava-se, primariamente, a embaixadores estrangeiros.

Outra diferença crucial é o teor do discurso exarado pelo ora investigado. Apesar de ser recheada de informações questionáveis, que chegaram a distorcer fatos existentes, toda a fala do ex-presidente é baseada em suposições.

Por outro lado, a live do multicitado parlamentar mimetizava os famosos programas policialescos ao vivo que são pródigos em trazer os fatos diretamente aos espectadores, ainda no “calor do momento”. Assim se iniciou a live do parlamentar:

[...]
Urgente, pessoal, acabamos de pegar o primeiro caso grave [...] e já identificamos duas urnas que eu digo ou são fraudadas ou adulteradas, agora é real porque eu to passando pra vocês, eu tô com toda a documentação da própria Justiça Eleitoral, uma ata da mesa receptora da Justiça Eleitoral, é grave o que eu to passando pra vocês todos [...] e nós estamos estourando isso aqui em primeira mão pro Brasil inteiro para vocês urnas ou são adulteradas ou fraudadas e com a ajuda do Juiz Eleitoral e do Promotor eleitoral a gente tá trazendo essa denúncia gravíssima antes do final e nós estamos estourando isso aqui em primeira mão pro Brasil inteiro para vocês urnas ou são adulteradas ou fraudadas e com a ajuda do Juiz Eleitoral e do Promotor eleitoral a gente tá trazendo essa denúncia gravíssima antes do final [...].

Na fala do ex-deputado não tem cogitação, hipóteses ou dúvidas a respeito da falta de lisura do processo eleitoral. Todo o conteúdo, somado às peculiaridades que elenquei, levaram o TSE a reconhecer o abuso de poder e o uso indevido dos meios de comunicação em seu desfavor.

Reitero, contudo, que o caso dos autos não compartilha dos mesmos elementos que o precedente citado, de forma que o desfecho também deve ser diferente.

Ainda que se admita que as falas se equivalem e, via de consequência, que o evento com os embaixadores promovido pelo ex-presidente era de cunho eleitoral em seu sentido estrito, mister seria a avaliação da gravidade da conduta frente ao cargo em disputa.

O corregedor, ministro Benedito Gonçalves, estabelece os parâmetros para a avaliação da gravidade:

[...]
A gravidade é um juízo de valor que se faz a respeito dos fatos provados. Sob um primeiro ângulo, qualitativo, examina-se sua reprovabilidade. Sob um segundo, quantitativo, analisa-se a forma como essa conduta reverberou no contexto de uma específica eleição, o que pode considerar a votação obtida, mas diversos outros fatores. Compõe-se assim a tríade para apuração do abuso: conduta, reprovabilidade e repercussão.
[...]
O papel da Justiça Eleitoral não é especular se práticas ilícitas foram, ou não, determinantes para a performance das candidaturas. Cabe-lhe avaliar se candidatos e candidatas, agentes públicos, detentores de meios midiáticos e empresários, dentre outros, respeitaram as condições necessárias para que o processo eleitoral se desenvolvesse de forma propícia à plena participação política do eleitorado em todas as suas dimensões: ao longo da campanha, no debate público, no momento da votação e, ainda, na conclusão do processo, com a proclamação dos resultados e a diplomação dos eleitos.
[...].

Na sequência, avalia os fatos à luz dos parâmetros estabelecidos, in verbis:

[...]
No caso dos autos, a repetição massiva de mentiras sobre o sistema eletrônico de votação e as especulações insidiosas sobre Ministros e servidores cumpriram o papel de permitir a conservação das bolhas imunes ao contraponto de informações oficiais a respeito da autenticidade dos resultados eleitorais. Essa estratégia manteve a coesão de um grupo em permanente estado de alarme e, ao mesmo tempo, consolidou o então Presidente da República como fonte primária da cadeia de produção do conhecimento com base no qual os seguidores tomariam decisões.
[...].

Apesar da brilhante argumentação trazida pelo Relator, não identifico a gravidade necessária para formar juízo condenatório em desfavor do investigado Jair Messias Bolsonaro.

A concepção de gravidade, quando se trata das hipóteses de abuso de poder, perpassa:

[...] a comprovação, de forma segura, da gravidade dos fatos imputados, demonstrada a partir da verificação do alto grau de reprovabilidade da conduta (aspecto qualitativo) e de sua significativa repercussão a fim de influenciar o equilíbrio da disputa eleitoral (aspecto quantitativo). A mensuração dos reflexos eleitorais da conduta, não obstante deva continuar a ser ponderada pelo julgador, não constitui mais fator determinante para a ocorrência do abuso de poder, agora revelado, substancialmente, pelo desvalor do comportamento.
(AIJE n. 0601779-05/DF, ministro Luis Felipe Salomão, DJe de 11 de março de 2021)

O pleito que se findou em 31 de outubro de 2022 registrou o comparecimento de 123.714.906 (cento e vinte e três milhões setecentos e quatorze mil novecentos e seis) eleitores, o que representou um acréscimo de mais de 6 milhões de eleitores em relação ao pleito de 2018.

A percepção da segurança do sistema eletrônico de votação, inclusive, avançou mesmo após a multicitada reunião com os embaixadores. De acordo com pesquisa do Datafolha, veiculada pelo Jornal Folha de São Paulo (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/07/datafolha-confianca-nas-urnas-eletronicas-avanca-em-meio-a-ataques-de-bolsonaro.shtml), realizada entre os dias 27 e 28 de julho de 2022, a confiança no sistema eleitoral havia subido de 73% em maio daquele ano para 79% no período consultado.

Os dados de audiência da TV Brasil no mês de agosto de 2022 indicam que a emissora ocupava o 5º lugar de audiência no país (https://www.uol.com.br/splash/noticias/ooops/2022/09/02/ibope-nacional-tv-brasil-esta-na-frente-de-redetv-e-cultura.htm). Entretanto possuía tão-somente 0,30 pontos de audiência, enquanto as emissoras líderes possuíam respectivamente 11,8, 3,54 e 3,33 pontos. Cada ponto de audiência equivale a 250 mil domicílios sintonizados. Assim, a audiência da TV Brasil equivaleria a 70.000 domicílios no mês de agosto de 2022, e essa circunstância, no cotejo com o quantitativo de eleitores votantes, afasta a ideia de que a conduta possui gravidade concreta para impactar negativamente a isonomia do processo eleitoral.

Não encontro, em suma, ainda que considere como irretocável a valoração qualitativa feita pelo Relator, desequilíbrio na disputa apto a autorizar a procedência da Aije e, consequentemente, aplicar a inelegibilidade ao investigado.

Finalmente, sob o pálio do art. 23 da LC n. 64/1990, trago reflexões para a  denominada “minuta do golpe” e outros dois episódios relacionados ao pleito de 2022.

Como se sabe, a indigitada minuta, que continha os termos de suposto decreto de Estado de Defesa, foi apreendida pela Polícia Federal na residência do ex-Ministro da Justiça e da Segurança Pública, Anderson Torres, no dia 12 de janeiro de 2023, durante diligência determinada pelo ministro Alexandre de Moraes no âmbito do Inquérito n. 4.879, que tramita no STF.

Não há elemento que indique a autoria do texto, tornando impensável a alegação do autor de que haveria conexão do documento com o investigado. Esse fato, por si só, afasta sua relevância para o que apurado na presente Aije.

A meu sentir, pretendia a parte, com a juntada da citada minuta, realizar a ressignificação de todos os eventos existentes nestes autos.

Isso porque, na narrativa dos investigantes, a minuta indicaria que tanto a reunião com os embaixadores como as outras manifestações do ex-presidente seguiam minucioso plano de anulação das eleições, em caso de derrota. Ocorre que as provas carreadas aos autos, bem como os fatos públicos e notórios, não autorizam essa conclusão.

Como afirmei no início de meu voto, o encontro com os embaixadores existiu num contexto de reação espontânea e irrefletida do investigado ao evento realizado pelo então Presidente do TSE, ministro Edson Fachin.

Antes de concluir, faço brevíssimas considerações a respeito de dois episódios que, sob a minha ótica, apontam em sentido oposto à tese desenvolvida pelos investigantes. São eles: (i) entrevista do ex-presidente no dia 2 de outubro, após a proclamação do primeiro turno pelo TSE, e (ii) pronunciamento público após o segundo turno ocorrido em 1º/11/2022 (evento referido pelo Relator em seu voto).

Com relação à entrevista no dia 2 de outubro, instigado pelos repórteres a se manifestar sobre as urnas eletrônicas (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/10/bolsonaro-fala-em-confianca-total-no-2o-turno-e-critica-institutos-de-pesquisa.shtml), o então presidente não fez ataques ao sistema eletrônico de votação e manifestou aceitação do resultado que, apesar de habilitá-lo à disputa do segundo turno, deu vitória parcial ao então candidato Luiz Inácio Lula da Silva.

Faço referência a essa entrevista, porquanto foi dada em momento crucial do processo eleitoral, em que, se houvesse um plano pré-definido de anular a eleição, seria mais provável que se mantivesse uma linha de ataque ao sistema eleitoral.

No tocante à manifestação do dia 3 de novembro, embora o Relator esteja correto quando menciona que não houve o reconhecimento explícito da derrota pelo candidato, impende que se faça o registro de que, após a fala do investigado, o então ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, afirmou: “O presidente Jair Messias Bolsonaro me autorizou, quando for provocado, com base na lei, nós iniciaremos o processo de transição”.

Na visão que tenho, não há nada mais explícito – no sentido de admissão da derrota eleitoral – do que o início do processo de transição.

A única certeza que há, dos fatos públicos, das especulações feitas pela imprensa e dos elementos existentes nesta AIJE, é que o ex-presidente Jair Messias Bolsonaro, apesar de estar cercado por cogitações de não aceitação do resultado da eleição, não se moveu para frustrar a efetivação da vontade popular expressa nas urnas.

Nesse sentido, todas as ações conhecidas do investigado até o dia 31 de dezembro de 2022 colaboraram com a assunção do novo eleito ao cargo de Presidente da República.

A longínqua reunião com os embaixadores e os eventos referenciados nesta Aije não se sobrepõem a esses fatos.

Por todas essas razões, acompanho o Relator para rejeitar todas as preliminares, nos termos que declinei no início de meu voto.

No mérito, também o acompanho para afastar a aplicação de qualquer tipo de penalidade ao investigado Walter Souza Braga Netto, porquanto inexiste vinculação sua aos fatos em apuração.

Finalmente, divirjo de Sua Excelência para julgar improcedente o pedido também em relação ao primeiro investigado, Jair Messias Bolsonaro, por não identificar conduta atribuída a ele que justifique a aplicação das graves sanções previstas no art. 22, XIV, da LC n. 64/1990.

É como voto.

 

[1] Art. 48. As decisões interlocutórias proferidas no curso da representação de que trata este capítulo não são recorríveis de imediato, não precluem e deverão ser novamente analisadas pela juíza ou pelo juiz eleitoral ou pela juíza ou pelo juiz auxiliar por ocasião do julgamento, caso assim o requeiram as partes ou o Ministério Público Eleitoral em suas alegações finais.

Parágrafo único. Modificada a decisão interlocutória pela juíza ou pelo juiz eleitoral ou pela juíza ou pelo juiz auxiliar, será reaberta a fase instrutória, mas somente serão anulados os atos que não puderem ser aproveitados, determinando-se a subsequente realização ou renovação dos que forem necessários.

[2] DO SISTEMA ELETRÔNICO DE VOTAÇÃO E APURAÇÃO

Art. 18. O Tribunal Superior Eleitoral poderá autorizar os Tribunais Regionais a utilizar, em uma ou mais Zonas Eleitorais, o sistema eletrônico de votação e apuração.

§ 1º A autorização poderá se referir apenas à apuração.

§ 2º Ao autorizar a votação eletrônica, o Tribunal Superior Eleitoral disporá sobre a dispensa do uso de cédula.

§ 3º O Tribunal Superior Eleitoral poderá autorizar, excepcionalmente, mais de um sistema eletrônico de votação e apuração, observadas as condições e as peculiaridades locais.

§ 4º A votação eletrônica será feita no número do candidato ou da legenda partidária, devendo o nome do candidato e do partido, ou da legenda partidária, conforme for o caso, aparecer no painel da máquina utilizada para a votação.

§ 5º Na votação para a eleição majoritária, deverá aparecer, também, no painel, a fotografia do candidato.

§ 6º Na votação para Vereador, serão computados para a legenda partidária os votos em que não seja possível a identificação do candidato, desde que o número identificador do partido seja digitado de forma correta.

§ 7º A máquina de votar imprimirá cada voto, assegurado o sigilo e a possibilidade de conferência posterior para efeito de recontagem.

Art. 19. O sistema eletrônico adotado assegurará o sigilo do voto e a sua inviolabilidade, garantida aos partidos políticos e aos candidatos ampla fiscalização.

Parágrafo único. Os partidos concorrentes ao pleito poderão constituir sistema próprio de fiscalização, apuração e totalização dos resultados, contratando, inclusive, empresas de auditoria de sistemas, que, credenciadas junto à Justiça Eleitoral, receberão, previamente, os programas de computador e, simultaneamente, os mesmos dados alimentadores do sistema oficial de apuração e totalização.

Art. 20. No mínimo 120 dias antes das eleições, o Tribunal Superior Eleitoral expedirá, ouvidos os partidos políticos, as instruções necessárias à utilização do sistema eletrônico de votação e apuração, garantindo aos partidos o acesso aos programas de computador a serem utilizados.

Parágrafo único. Nas Seções em que for adotado o sistema eletrônico de votação, somente poderão votar eleitores cujos nomes estiverem nelas incluídos, não se aplicando a ressalva do art. 148, § 1º, da Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965.

[3] https://www.nytimes.com/2021/06/23/us/politics/democrats-voter-id-laws.html

[4] Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:

[...]

VII - manter relações com Estados estrangeiros e acreditar seus representantes diplomáticos;

[5] A Procuradoria-Geral Eleitoral, em manifestação no julgamento da Pet 1855/20/DF classificou a demanda para apurar fraude nesse pleito como “aventura”.

[6] https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2015/Novembro/plenario-do-tse-psdb-nao-encontra-fraude-nas-eleicoes-2014.

[7] https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2015/12/28/eleicoes-terao-voto-impresso-a-partir-de-2018.

O SENHOR MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES (presidente): Agradeço ao eminente Ministro Kássio Nunes Marques, que acompanhou o relator em relação às preliminares e acompanhou a divergência inaugurada pelo Ministro Raul Araújo, em relação ao mérito, julgando improcedente a AIJE.

 

VOTO ORAL

 

 O SENHOR MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES (presidente): Eminentes colegas, eu também juntarei voto por escrito. Eu vou fazer um resumo – espero – sucinto do meu voto.

Em relação às diversas preliminares já suscitadas pela defesa,  acompanho integralmente o voto do eminente relator, por suas razões, hoje reforçadas tanto pela eminente Ministra CÀRMEN LÚCIA quanto pelo Ministro  NUNES MARQUES. Assim, rejeito as preliminares suscitadas.

No mérito – isso já foi relembrado várias vezes –, mas só a fim de facilitar o encadeamento do raciocínio, o objeto da presente Aije consiste na acusação de ocorrência de abuso do poder político, uso indevido dos meios de comunicação – e essa diversidade é importante – e, a partir disso, a prática de conduta vedada, realizadas pelo então Presidente Jair Messias Bolsonaro, pré-candidato, à época, à reeleição, na reunião ocorrida em 18 de julho de 2022, no Palácio da Alvorada.

Me parece que, na presente hipótese, principalmente após o detalhadíssimo voto do eminente Ministro Relator, Benedito Gonçalves, que por mais importante que seja a questão a ser resolvida na presente AIJE a solução é extremamente simples, pois já deverá ser tomada com parâmetros já totalmente definidos pela jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral desde 2021. Isso me parece o mais relevante.

E a questão a ser definida é se a convocação oficial de embaixadores estrangeiros, convocação essa realizada diretamente por um presidente da República, utilizando-se do cargo, do cerimonial da Presidência da República, pré-candidato à reeleição, uma convocação ocorrida a menos de dois meses e meio do primeiro turno das eleições presidenciais, com a utilização de recursos públicos: Palácio da Alvorada, toda a infraestrutura da Presidência, inclusive transmissão ao vivo, pelo canal oficial, a TV Brasil, se essa convocação, para a realização de longa exposição – ou como aqui várias vezes foi denominado: um monólogo –, com fartos ataques ao sistema eleitoral, à Justiça Eleitoral e seus membros, com a utilização flagrante, como será demonstrado, de desinformação e notícias fraudulentas, replicadas pelas redes sociais do investigado e de seus apoiadores, com claro sentido de destruir a credibilidade do sistema eletrônico de votação e com a finalidade de influenciar e convencer o eleitor de que estaria sendo vítima de uma grande conspiração do Poder Judiciário para fraudar as eleições presidenciais em 2022; se essa situação faz parte da atribuição constitucional do chefe de Estado que é presidente da República, se faz parte da sua atribuição constitucional de ter relações exteriores com os demais países, ou, no dizer da defesa, um mero diálogo institucional, ou se isso, se essa situação descrita, se isso constitui abuso do poder político e dos meios de comunicação e prática de conduta vedada pela legislação eleitoral.

E a resposta que a Justiça Eleitoral, principalmente o Tribunal Superior Eleitoral, dará a essa questão, eu tenho absoluta certeza que essa resposta confirmará a nossa fé na Democracia, a nossa fé no Estado de Direito e o nosso grau, enquanto Poder Judiciário, de repulsa ao degradante populismo, renascido a partir das chamas dos discursos de ódio, dos discursos antidemocráticos, dos discursos que propagam a infame desinformação – desinformação produzida e, a partir da produção, divulgada por verdadeiros milicianos digitais, em todo o mundo. Se esse viés autoritário e extremista é o que nós queremos para a nossa democracia ou se vamos reafirmar a fé na democracia e no Estado de Direito brasileiro.

E digo que a resposta que a Justiça Eleitoral, o Tribunal Superior Eleitoral dará a essa questão confirmará a nossa fé na democracia, no Estado de Direito, porque – e aqui chamo a atenção – diferentemente do que se pretendeu divulgar nos últimos dias, nas últimas semanas, principalmente pelas redes sociais, o Tribunal Superior Eleitoral em nada está inovando.

O Tribunal Superior Eleitoral está reiterando – e isso ficará demonstrado novamente no meu voto, como já ficou nos votos anteriores –, mas o Tribunal Superior Eleitoral em nada está inovando. Simplesmente está reiterando seu posicionamento, consubstanciado em julgamentos de inúmeras Aijes, e principalmente de duas Aijes que foram julgadas em conjunto e de um recurso ordinário, no dia 28 de outubro de 2021, onde se reforçou – e o Tribunal fez questão de salientar isso –, se reforçou a proteção à Democracia, a proteção e defesa de eleições livres, a confirmação da essencialidade das instituições.

A Justiça Eleitoral avisou a todos os participantes das eleições que ocorreriam no ano seguinte que não admitiria extremismo criminoso e atentatório aos Poderes de Estado, que não admitiria notícias fraudulentas, desinformação, a título de tentar enganar os eleitores sobre fraude às eleições, sobre o sistema eleitoral. Isso em dois acórdãos, em decisões do dia 28 de outubro de 2021, isso ficou pacificado e como um alerta para se evitar exatamente o que estamos fazendo hoje, nesses dias, se evitar que o descumprimento do que já era pacífico gerasse a inelegibilidade daqueles que insistissem em praticar esses ilícitos eleitorais.

Nenhum pré-candidato, nenhum candidato – e especialmente o investigado nessa Aije, Jair Messias Bolsonaro – poderia alegar desconhecimento sobre o posicionamento desta Corte Eleitoral das principais premissas que deveriam ser observadas – em observância também à Constituição e à legislação – para as Eleições de 2022.

E digo isso porque nas Aijes julgadas no dia 28 de outubro, o investigado era o mesmo investigado na presente Aije – o, à época, então presidente, hoje ex-presidente, Jair Messias Bolsonaro. Então não há como se alegar desconhecimento do que seria abuso do poder político, do que seria abuso e uso indevido dos meios de comunicação, porque a Corte já havia definido isso.

A Corte já havia definido de forma pública e definido para todos os candidatos, independentemente de partido, independentemente de ideologia. Todos os pré-candidatos e depois candidatos tinham consciência dos parâmetros estabelecidos e que deveriam ser rigorosamente observados nas Eleições de 2022.

O primeiro parâmetro: julgamento do recurso ordinário eleitoral, de relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão – já citado aqui –, no qual foi cassado o diploma e declarada a inelegibilidade de candidato a deputado estadual eleito. O Tribunal Superior Eleitoral – e é isso o que importa, a meu ver –, o Tribunal Superior Eleitoral decidiu que agentes públicos que realizassem ataques fraudulentos, mentirosos ao sistema eletrônico de votação para iludir o eleitor sobre uma fraude inexistente, disseminando essa desinformação, gerando incertezas sobre a lisura do pleito, em benefício eleitoral, que isso consistiria abuso do poder político. E isso geraria cassação e inelegibilidade. Vejam, a definição foi feita. A definição do fato que levaria à cassação e inelegibilidade já estava prevista, desde 2021, quando o agente público, qualquer que fosse, se utilizasse da sua prerrogativa para tal propósito, para, indevidamente, usar os meios de comunicação, inclusive as redes sociais.

Então, o Tribunal Superior Eleitoral – e esse é o segundo ponto – fixou também, e aí nas Aijes, também de relatoria do então Corregedor, Ministro Luis Felipe Salomão, fixou nas Aijes que a internet, incluídas as aplicações tecnológicas de mensagens instantâneas, todas as redes, inclusive a que se referia ao WhatsApp, enquadrariam-se no conceito de veículos ou meios de comunicação social a que alude o art. 22 da Lei Complementar 64/90. Ou seja, nenhum candidato, nenhum pré-candidato e, principalmente, o investigado na presente Aije, porque era o investigado naquelas Aijes, ninguém poderia alegar surpresa – porque já estava definido o que seria o abuso nos meios de comunicação, incluindo as redes sociais, e já estava definido que seria abuso do poder político se utilizar do cargo para falsamente, de forma mentirosa, acusar de fraude o sistema eleitoral.

As premissas estavam pré-fixadas para todos que pretendessem concorrer às Eleições de 2022. Seria desvio de finalidade a utilização do cargo público para realização de ataques ao sistema eleitoral, com acusações mentirosas de fraude nas eleições, por manipulação nas urnas eletrônicas e, na sequência, porque isso é um modus operandi, na sequência, a propagação por meio das redes sociais, para dar, levar essa dúvida e insuflar o eleitorado contra os demais candidatos e contra a Justiça Eleitoral. Isso estava pacificado que levaria qualquer, qualquer pré-candidato ou candidato, que assim atuasse, isso levaria à sua condenação por abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação, com a consequente cassação, quando possível, e o registro e a inelegibilidade.

E foi muito importante a fixação desses parâmetros – como é muito importante a reafirmação desses parâmetros no julgamento de hoje –,  foi importante para as Eleições de 2022 e será importante para as Eleições de 2024, 2026 e assim por diante, para que pré-candidatos e candidatos não se utilizem dos seus cargos públicos para disseminar notícias fraudulentas sobre o sistema eleitoral, sobre fraude das urnas; aproveitando, depois, para disseminar desinformação via mecanismos de redes sociais, para, com isso, atingir o eleitor.

Isso é importante, essa definição, e hoje essa reafirmação, é importante para proteção da lisura das eleições e da plena isonomia entre todos os candidatos. Não importa qual candidato, não importa qual ideologia, o Tribunal Superior Eleitoral, ele não se preocupa com quem é o candidato, quem é o pré-candidato ou qual é a ideologia; se preocupa que haja lisura nas eleições e um tratamento isonômico em relação a todos os candidatos.

Ora, a partir dessas premissas, que já estavam fixadas e reafirmadas, principalmente, desde outubro de 2021, o que fez o primeiro investigado, Jair Messias Bolsonaro, na condição de presidente da República? Ele organizou e promoveu, em 18 de julho de 2022, com o auxílio do cerimonial do Palácio – aqui foi dito várias vezes, o Itamaraty não participou; o então chanceler reafirmou isso. Ah, se o Itamaraty não organizou, e que seria – e a Ministra Cármen Lúcia até trouxe o decreto que determina isso –, seria competência do Itamaraty. Ah, mas se o Itamaraty não realizou talvez a Casa Civil tenha organizado. E o eminente Ministro Relator, com o zelo e o cuidado necessário, ouviu o então Chefe da Casa Civil, Ministro-Chefe da Casa Civil, Senador Ciro Nogueira, que também não organizou e mais: disse que era contrário à realização dessa reunião.

Então, foi o próprio presidente que organizou, com o cerimonial do Palácio, a toque de caixa, determinou que, dois dias antes – isso consta nos autos, uma reunião com altos representantes diplomáticos –, determinou que a TV Brasil transmitisse e, a partir disso, no modus operandi que, lamentavelmente, segue e seguiu durante todo o mandato, as redes sociais divulgassem desinformação produzida nessa reunião.

Veja, de oficial, só o desvio de finalidade praticado pelo então presidente da República. Porque o Itamaraty não só não organizou, não foi avisado e não participou. A Casa Civil, da mesma forma. A Secretaria de Assuntos Estratégicos, também não. Foi ouvido o ex-Ministro Almirante Flávio Rocha, também não participou. Algo eleitoreiro, um monólogo eleitoreiro. Pauta da reunião definida exclusivamente pelo primeiro investigado, então presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, uma pauta dele, pessoal, eleitoral, em um período, repito, a dois meses e meio faltando para o primeiro turno das eleições. E qual foi essa pauta? Essa pauta foi instigar o seu eleitorado e eleitores indecisos, instigar contra o sistema eleitoral, contra a Justiça Eleitoral, contra as urnas eletrônicas.

Quando se coloca que o público-alvo eram embaixadores, representantes diplomáticos que não votam, ora, isso ou é hipocrisia, ou é ingenuidade. Na verdade, todo o mise en scène, toda a produção foi feita para que a TV Brasil divulgasse, mas, mais do que isso, para que a máquina existente de desinformação nas redes sociais multiplicasse essa desinformação, para que chegasse diretamente ao eleitorado, como chegou. E nos autos se coloca isso: quantos twitters, e as demais redes, pessoal e dos seus apoiadores, seguindo um iter, um procedimento aqui, que já havia sido identificado em várias outras oportunidades. E isso foi bem destacado também no parecer, que deixo de ler, pela celeridade, do Vice-Procurador-Geral da República, Professor Paulo Gonet.

Ora, diz a defesa que isso foi no exercício das competências constitucionais de representação diplomática que tem o Chefe de Estado, em um diálogo institucional.

O presidente da República, em um presidencialismo, sabemos todos, é o chefe diplomático do país. É a ele, realmente, que compete, dentro das suas competências constitucionais, as relações exteriores, com os demais países. Isso desde a Constituição Norte-Americana, de 1787, à qual o Brasil, desde 1891, aderiu ao sistema tripartite de poder com o presidencialismo – no Brasil republicano não há dúvida sobre isso: que a diplomacia deve ser feita pelo chefe do Poder Executivo, pelo presidente da República, com o auxílio, logicamente, do seu ministro das relações exteriores, do Itamaraty, mas faz parte – e não há dúvida aqui –, que faz parte das funções presidenciais. O presidente é, realmente, o chefe das relações exteriores, dentro da múltipla chefia que existe no presidencialismo.

Agora, a liderança do presidente, no presidencialismo, em matéria de política externa, ela tem uma finalidade. E a finalidade – aqui é importante destacar – são dois setores complementares: a formulação da política externa e a condução do relacionamento com os diversos países, inclusive os embaixadores.

Ora, basta assistir ao vídeo, basta ler a transcrição da reunião para ver que nenhuma dessas funções, relacionadas à condução da política externa, foi realizada nessa reunião; basta analisar o vídeo, basta vê-lo – depois como dois embaixadores até publicaram nota de repulsa – para verificar que o desvio de finalidade é patente, foi patente. Começa, e aí eu também pela celeridade não vou ler, mas começa com uma autopromoção, começa com uma autopromoção de que foi militar, que gastou tanto na campanha, que quinze anos no Exército, que junta multidões... Veja, qual é o interesse das relações internacionais nisso?

E, depois, parte para divulgação de mentiras, notícias absolutamente fraudulentas. Não são opiniões, não são opiniões possíveis, são mentiras, são notícias fraudulentas: “teria muita coisa a falar aqui, mas eu quero me basear, exclusivamente, no inquérito da Polícia Federal” – inclusive, inquérito, que o investigado, então presidente, quebrou o sigilo e a investigação na Polícia Federal.

“O inquérito na Polícia Federal que foi aberto, após o segundo turno das Eleições de 2018, onde o hacker falou que houve, que tinha havido fraude, por ocasião das eleições, falou que tinha invadido tudo.” Mentira.

“Tudo começa” – ainda entre aspas –, “tudo começa nessa denúncia, que foi de conhecimento do Tribunal Superior Eleitoral e o hacker diz, claramente, que ele teve acesso a tudo dentro do TSE.” Mentira.

Todos sabemos, primeiro, que as urnas são offline; as urnas não são online. Tudo querendo insinuar fraude. “Segundo o TSE” – ainda o investigado – “os hackers ficaram por oito meses dentro dos computadores do TSE, com códigos-fonte, com senhas e muito à vontade dentro do TSE.” Mentira.

Assim como é mentira quando diz que o código-fonte não foi divulgado. O código-fonte ficou um ano para todos os partidos políticos, todas as organizações – Ministério Público, Polícia Federal, Forças Armadas. Outra mentira. Um encadeamento de mentiras, de notícias fraudulentas.

Ainda outra: “O que é comum, né?”. Isso entre aspas. “O que é comum, né? Acontecer em alguns países do mundo é o chefe do Executivo conspirar para conseguir uma reeleição. Estamos fazendo exatamente o contrário aqui”. Acusando o TSE de conspirar contra a sua reeleição. “Tudo o que eu falo aqui ou é conclusão da PF, ou é diretamente informações prestadas pelo TSE.” Mentira.

“Não é um sistema confiável, porque ele é inauditável. É impossível fazer uma auditoria, em eleições, aqui no Brasil.” Mentira.

Uma série de informações mentirosas, notícias fraudulentas.

Mas qual o objetivo? O objetivo era simplesmente, vamos dizer, desopilar? O presidente acordou nervoso um dia, quis desopilar o seu fígado, e aí vamos atacar. Quem vamos atacar? Ah, o Tribunal Superior Eleitoral. O Supremo ficou na outra semana o ataque; o Ministro Alexandre foi nas três anteriores. Então, vamos, agora, no Tribunal Superior Eleitoral e nas urnas eletrônicas. Mas não foi isso. Um encadeamento, uma produção cinematográfica, com a TV Brasil, com vídeos das reuniões, para, imediatamente, em tempo real, e, na sequência, até a eleição, as redes sociais bombardearem os eleitores com essa desinformação. Essa desinformação no sentido de angariar mais votos, angariar mais eleitores, com esse discurso absolutamente mentiroso e radical.

Não há, aqui, com todo o respeito às posições em contrário, não há aqui nada de liberdade de expressão. Não há nada de liberdade de expressão em um presidente da República, mentirosamente, dizer que há fraudes nas eleições, inclusive na que ele ganhou. E aí, ao ser indagado, diz: mas eu ganharia no primeiro turno. E, ao ser oficiado pelo então presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Ministro Luis Roberto Barroso, para apresentar provas, sobre a fraude – obviamente não as apresentou, porque elas não existem.

Um presidente da República que ataca a Justiça Eleitoral, ataca a lisura do sistema eleitoral que o elege há quarenta anos. Isso não é exercício de liberdade de expressão. Isso é conduta vedada. E, ao fazer isso, utilizando-se do cargo de presidente da República, do dinheiro público, da estrutura do Palácio da Alvorada, da TV pública, é abuso de poder. E, ao preparar tudo isso, para, imediatamente, bombardear o eleitorado, via redes sociais, uso indevido dos meios de comunicação. Tudo absolutamente interligado. Tudo seguindo um modus operandi realizado já em outras oportunidades, inclusive discutidas aqui no Tribunal Superior Eleitoral e no Supremo Tribunal Federal.

E vejam, não me parece que haja nenhuma dúvida de que essa reunião atentou contra a Justiça Eleitoral, tanto que o Tribunal Superior Eleitoral, por unanimidade, em fevereiro, o Tribunal Superior Eleitoral referendou e manteve a decisão que entendeu que essa, essa reunião e essa propaganda – essa divulgação e depois a desinformação – eram ilícitas. Propaganda antecipada irregular. O Tribunal Superior Eleitoral, por unanimidade. Perdão, em fevereiro, não, em trinta de setembro de 2022, o Tribunal Superior Eleitoral referendou:

Comportamentos que tenham alguma conotação eleitoral [diz a ementa] e que sejam proibidos durante o período oficial de campanha são igualmente proibidos na fase antecedente da pré-campanha, ainda que não envolvam pedido explícito de voto ou não-voto. [E ainda] A deslegitimação do sistema, a partir da construção de fatos falsos, forjados, para conferirem estímulos artificiais de endosso a opiniões pessoais é comportamento que já não se insere no legítimo direito à opinião, dúvida, crítica e expressão, descambando para a manipulação desinformativa, via deturpação fática, em grave comprometimento da liberdade de informação e com aptidão para corroer a própria legitimidade da disputa em si.

O Tribunal já havia reconhecido as premissas que haviam sido fixadas em 2021, aplicáveis a esse julgamento e aplicáveis hoje. Eu insisto sempre – e me torno até repetitivo – que liberdade de expressão não é liberdade de agressão. Liberdade de expressão não é consagração da desinformação. Liberdade de expressão não é ataque à democracia; não é ataque aos pilares da democracia; não é ataque à independência do Poder Judiciário, como bem salientou a eminente Vice-Presidente, Ministra Cármen Lúcia: não há democracia sem Poder Judiciário independente. Liberdade de expressão não é ataque ao Poder Judiciário e à sua independência, principalmente por um presidente da República candidato à reeleição.

E aqui é importante salientar que esse modus operandi – essa forma de atuação, não só realizada no Brasil, por extremistas, mas no mundo, esse uso indevido dos meios de comunicação –, essa forma já foi e é estudada, pelo menos há duas obras, uma nacional e uma italiana: Os engenheiros do caos, de Giuliano Da Empoli; e Máquina do ódio, da Jornalista Patrícia Campos Mello, que demonstram Os engenheiros do caos coloca que naturalmente – abre aspas aqui, o trecho menor – “por trás da aparente absurda das fake news e das teorias da conspiração, oculta-se uma lógica bastante sólida. Do ponto de vista dos líderes populistas, as verdades alternativas não são simples instrumento de propaganda, contrariamente às informações verdadeiras, elas constituem um formidável vetor de coesão.” De coesão de quem? Do seu eleitorado, do eleitorado que aquele líder populista, extremista, pretende conquistar.

Tudo isso está patente. Tudo isso está claro na reunião no Palácio da Alvorada. Não há necessidade de analisar fatos anteriores ou fatos posteriores. Há necessidade de se analisar a reunião. A reunião no Palácio da Alvorada constituiu, claramente, abuso de poder político, por desvio de finalidade; constituiu uso indevido dos meios de comunicação. Não há necessidade nem mais nem menos. Há necessidade – e aqueles que tiverem dúvidas, basta ver o vídeo, o vídeo – e, a partir das provas, verificar que foi o presidente, na condição de pré-candidato à sua reeleição, que convocou, que organizou e que, em um monólogo, atacou a lisura das urnas eletrônicas, o que já estava pacificado, em 28 de outubro de 2021, que seria abuso de poder político.

Há a comprovação da divulgação – e aqui eu cito, no voto, como já foi citado –, Facebook, Twitter, além, obviamente, da TV oficial, Instagram, então, isso, como sempre nesse modus operandi, isso fez com que a desinformação chegasse ao eleitorado. Se produz, e esse é o mecanismo internacional e nacional de ataques à democracia: você produz uma notícia com verniz de veracidade. Ora, o eleitor vai dizer: mas era uma reunião; era o presidente, no Palácio da Alvorada, com embaixadores. Você produz uma notícia fraudulenta, com verniz de veracidade, e você usa a sua máquina, nas redes sociais, para divulgar, como se isso verdade fosse, e atingir os seus, as suas finalidades eleitorais. Aqui, todos os elementos necessários para a caracterização do abuso do poder político e do uso indevido dos meios de comunicação, todos os elementos estão presentes.

Eu quero encerrar aqui, ressaltando e reafirmando novamente – e me parece, repito, o mais importante – que é inadmissível qualquer alegação de insegurança jurídica, de surpresa, ou desconhecimento da ilicitude da conduta por parte do investigado. E saliento o que, expressamente, além do próprio acórdão do Tribunal Superior Eleitoral, nas Aijes e no recurso ordinário, no dia 28 de outubro de 2022, eu, no meu voto oral, alertei, como outros ministros o fizeram, desse Plenário, quais seriam as consequências de uma conduta dessa forma. À época, eu disse:

A Justiça Eleitoral, como toda justiça, pode ser cega, mas não é tola. A justiça é cega, mas não é tola.

Nós não podemos criar, de forma alguma, o precedente avestruz – todo mundo sabe o que ocorreu, todo mundo sabe o mecanismo utilizado para obtenção dos votos, só que todos escondem a cabeça embaixo da terra.

Nós não podemos aqui confundir a neutralidade da justiça, o que tradicionalmente se configura com a frase “a Justiça é cega”, com tolice.

A Justiça Eleitoral, como toda justiça, não é tola. É muito importante que o julgamento criasse o precedente, criasse o precedente para impedir a disseminação do ódio, a disseminação da desinformação, da conspiração.

Do ataque à Justiça Eleitoral, a desinformação para enganar o eleitor, porque, ao se enganar o eleitor, se atenta contra uma das garantias da democracia, que é a liberdade do voto: o eleitor, ele deve ter todo tipo de informação verdadeira para escolher os seus candidatos; ele não pode ser bombardeado com notícias fraudulentas, com desinformação. E concluí, à época:

A Justiça aprendeu, a Justiça fez a sua lição de casa. Essa Justiça Eleitoral se preparou, nós já sabemos como são os mecanismos; nós já sabemos agora quais as provas rápidas devem ser obtidas e não vamos admitir [isso em voto, repito, do dia 28 de dezembro de 2021], e não vamos admitir que essas milícias digitais tentem, novamente, desestabilizar as eleições, desestabilizar as instituições democráticas, a partir de financiamentos espúrios, não declarados, a partir de interesses econômicos também não declarados.

À época, pelo lapso temporal e pela falta das provas juntadas, o Tribunal Superior Eleitoral, que analisa os fatos juntados e as provas, o Tribunal Superior Eleitoral julgou improcedente a Aije. Mas salientei que a Justiça Eleitoral aprendeu o modus operandi e que isso seria combatido nas Eleições de 2022.

E encerrei, dizendo que se isso, se esse precedente, que era importantíssimo para a Justiça Eleitoral, fosse desrespeitado; se houvesse repetição no abuso do poder político, na desinformação, no uso indevido dos meios de comunicação, encerrei o voto dizendo: “o registro será cassado, as pessoas que assim fizerem irão para a cadeia e serão inelegíveis, por atentar contra as eleições e contra a democracia no Brasil”.

Não houve nenhuma alteração nos precedentes do TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. E, lamentavelmente, não houve nenhuma alteração no procedimento do investigado. Gravidade, também com todo respeito às posições em contrário, gravidade ímpar um Presidente da República, candidato à reeleição, se utilizar desses mecanismos.

Então, concluo, acompanhando integralmente o eminente Ministro Relator e todos aqueles que o acompanharam para julgar parcialmente procedente a Aije, em relação ao primeiro investigado, nos termos exatos do voto do Ministro Relator, inclusive com as comunicações a serem feitas, e julgar improcedente em relação ao segundo investigado.

É o voto.

 

VOTO 

 

 O SENHOR MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES (presidente): Senhores Ministros, trata-se de Ação de Investigação Judicial Eleitoral ajuizada pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) em desfavor de Jair Messias Bolsonaro e de Walter Souza Braga Netto, candidatos, respectivamente, aos cargos de Presidente e Vice-Presidente da República, nas Eleições de 2022.

 

Na petição inicial, o Autor narrou, em síntese: i) “esta Ação de Investigação Judicial Eleitoral tem por escopo a apurar e reprimir abusos consubstanciados na difusão deliberada de desordens desinformacionais que atentam contra a integridade do processo eleitoral, inclusive os processos de votação, apuração e totalização de votos”; ii) “constitui fato público e notório que o Senhor Jair Messias Bolsonaro se reuniu no dia 18 (dezoito) de julho de 2022 com embaixadores de países estrangeiros residentes no Brasil para falar sobre as eleições deste ano, sobre o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral. A tônica do encontro foi a de soerguer protótipos profanadores da integridade do processo eleitoral e das instituições da República, especificamente o TSE e seu Ministros”; iii) “durante o evento, o Senhor Jair Messias Bolsonaro criou uma ambiência propícia para a propagação de toda sorte de desordem informacional ao asseverar, por diversas vezes, que o sistema eletrônico de votação é receptivo a fraudes e invasões que, sob a ótica do delírio presidencial, podem comprometer a fidedignidade do resultado dos pleitos. Na ocasião, o Presidente da República acentuou, em resumo, o seguinte: i) que as urnas completaram automaticamente o voto no PT nas eleições 2018; ii) que as urnas brasileiras não possuem sistemas que permitem auditoria; iii) que não é possível acompanhar a apuração dos votos; iv) que o inquérito que investiga uma invasão ao sistema do TSE, em 2018, não estava sob sigilo; v) que a apuração dos votos é realizada por uma empresa terceirizada; vi) que o TSE não aceitou sugestões das Forças Armadas para melhorar a segurança do processo eleitoral; vii) que o TSE divulgou que os resultados de 2018 podem ter sido alterados; viii) que as urnas eletrônicas sem impressão do voto são usadas apenas em dois países além do Brasil; ix) que os observadores internacionais não têm o que fazer no Brasil porque a contagem de votos não é pública; x) que um hacker teve acesso a tudo dentro do TSE, inclusive a milhares de códigos-fontes e uma senha de um ministro do TSE; e xi) que a Polícia Federal pediu os registros cronológicos de acesso ao sistema computacional do TSE, mas sete meses depois a Corte asseverou que eles foram apagados”; iv) “a reunião foi transmitida pela TV Brasil Distribuição, através da Empresa Brasil de Comunicação, empresa pública, nos termos da Lei nº 11.652/2008, e o vídeo do encontro foi veiculado, na íntegra, através das redes sociais do Senhor Jair Messias Bolsonaro, especialmente no Instagram (@jairmessiasbolsonaro) e no Facebook. Importa realçar que, no Facebook, até o momento da elaboração desta petição inicial, a mídia alcançou cerca de 72.000 (setenta e duas mil) curtidas, 55.000 (cinquenta e cinco mil) comentários 589.000 (quinhentos e oitenta e nove mil) visualizações. Já no Instagram, a postagem atingiu cerca de 587.000 (quinhentos e oitenta e sete mil) visualizações e 11.000 (onze mil) comentários”; v) “é inegável que o Senhor Jair Messias Bolsonaro aproveitou-se do evento para difundir a gravação do discurso com finalidade eleitoral, indissociável ao pleito de 2022. Isso porque o ataque à Justiça Eleitoral e ao sistema eletrônico de votação faz parte da sua estratégia de campanha eleitoral, de modo que há nítida veiculação de atos abusivos em desfavor da integridade do sistema eleitoral, através de fake news, o que consubstancia-se em um ato de extrema gravidade”; vi) “o Senhor Jair Messias Bolsonaro, valendo-se de sua condição funcional realizou reunião com embaixadores de países estrangeiros residentes no Brasil para falar sobre as eleições deste ano, especificamente para atacar a interidade do processo eleitoral com fakes news. Rememora-se que tanto as agências de checagem, quanto o Tribunal de Contas da União e esta Justiça Eleitoral já desmentiram as inverdades propaladas pelo Senhor Jair Messias Bolsonaro”; vii) “é inegável que a veiculação de vídeos que carregam matéria de alta sensibilidade perante o eleitorado, mormente quando se trata de fatos sabidamente inverídicos, em redes sociais, possui reprovabilidade suficiente para caracterizar a gravidade do ato. Nesse sentido, à maneira do que foi decidido por esta Corte Egrégia, por ocasião do julgamento do Recurso Ordinário nº 060397598, também vislumbra-se a viabilidade de caracterização do uso indevido dos meios de comunicação quando há utilização de redes sociais para veicular ataques à integridade do sistema de votação edificado por esta Justiça Eleitoral”; viii) o comportamento atribuído ao Investigado, além de abuso do poder político e uso indevido dos meios de comunicação, caracteriza a conduta vedada prevista no artigo 73, I, da Lei 9.504/1997, tendo em vista a utilização “do Palácio do Planalto, bem como também de todo aparato estatal para desenvolver e difundir o conteúdo verbalizado na referida reunião, o que per se revela contestável acinte ao princípio da isonomia”.

Requereu, assim, em sede de liminar: i) seja determinado aos Investigados e à empresa provedora do Instagram e Facebook e imediata remoção da postagem; ii) a remoção dos vídeos que reproduzem o discurso impugnado.

No mérito, pretende “a confirmação da medida liminar, caso deferida, com a remoção definitiva dos vídeos dispostos nos itens a e a.1, a declaração da inelegibilidade dos Investigados, além da cassação do registro ou do diploma, pela prática de abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação (art. 22, inciso XIV, da LC nº 64/90)”.

O então Relator, Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, em 23/8/2022, deferiu a liminar, sendo o ato decisório referendado pelo Plenário do TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL:

ELEIÇÕES 2022. CANDIDATOS AOS CARGOS DE PRESIDENTE E VICE-PRESIDENTE DA REPÚBLICA. PEDIDO LIMINAR EM AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ORDEM DE REMOÇÃO DE CONTEÚDO. PRESENÇA CONCOMITANTE DOS REQUISITOS DA FUMAÇA DO BOM DIREITO E DO PERIGO NA DEMORA. LIMINAR DEFERIDA. REFERENDUM. MEDIDA LIMINAR REFERENDADA.

1. Pedido liminar deferido para determinar às plataformas digitais Facebook e Instagram, bem como à Empresa Brasil de Comunicação (EBC), a remoção de vídeos que reproduzem o discurso sob análise nesta AIJE. Presença concomitante da plausibilidade do direito alegado e do perigo da demora.

2. Concessão da medida liminar referendada.

Em contestação (ID 157977290), os Investigados alegaram, em suma: i) necessidade de formação de litisconsórcio, uma vez que, “no caso dos autos, a despeito da posição já consolidada neste C. TSE sobre a natureza facultativa do litisconsórcio em ações como a retratada, não se pode desconsiderar a incindibilidade da relação entre a União e os eventos descritos na petição inicial”; ii) “em nenhum momento da inicial, há narrativa de “atos eleitorais” eventualmente praticados pelo primeiro Investigado. Não se cuidou de eleições! Não se pediu votos! Não houve ataque a oponentes! E não houve a apresentação comparativa de candidaturas! As manifestações impugnadas, ao contrário, na dicção da própria inicial, são representativas de debates públicos dialogados entre Poderes da República, na perspectiva de observação da Comunidade Internacional”; iii) incompetência da JUSTIÇA ELEITORAL, pois os atos foram praticados na condição de Chefe do Poder Executivo e, “dado o caráter afeto às relações exteriores do Brasil, representados por seu Presidente legitimamente eleito e no regular exercício do cargo, com chefes de missões diplomáticas no país, incabível se entremostra a interferência deste E. TSE, diante da ausência de relação com a disputa entre candidatos no pleito vindouro”; iv) “não há como enquadrar a prática de típico “ato de governo” como abuso de poder político ou dos meios de comunicação, muito menos para fins eleitorais”; v) “imprescindível rememorar que os Investigados divulgaram publicamente o evento, constante da agenda oficial do dignatário maior da Nação, e tiveram o zelo de convidar representantes de outros Estados Estrangeiros (igualmente soberanos), não para uma exposição de caráter eleitoral, mas sim para exposição de perfil diplomático. Não havia, dentre os presentes, qualquer ator ou player do processo eleitoral em curso! Perceba-se: o público-alvo da exposição sequer detinha cidadania e capacidade ativa de sufrágio”; vi) “o que se denota de uma leitura imparcial e serena são falas permeadas de conteúdos técnicos, que buscam debater um tema importante (transparência do processo eleitoral), disposta ao longo de mais de 1h (uma hora) de apresentação. Essas peculiaridades, somadas aos convites formulados às indigitadas Autoridades, denotam que não houve qualquer intenção dos Investigados de interferência na vontade do eleitor. A atuação do Investigado Jair Messias Bolsonaro se deu na condição de Chefe de Estado, no afã de contrapor ideias e dissipar dúvidas sobre a transparência do processo eleitoral”; vii) “não parece difícil entender que o sistema eletrônico de votação e as boas práticas que acercam a realização de uma eleição como a brasileira são dignas de constante aperfeiçoamento, não havendo motivos para se confundir questionamentos (pontos duvidosos!), postos às claras, com ato de abuso de poder político e/ou de meios de comunicação”; viii) com o encerramento dos trabalhos da Comissão de Transparência Eleitoral, instituída por esta CORTE, “72% (setenta e dois por cento) das sugestões foram acolhidas, o que demonstra a imprescindibilidade de processos públicos permanentes, sérios e verticalizados, de fiscalização e transparência eleitoral”; ix) “não há qualquer hostilidade antidemocrática ao sistema eleitoral no evento realizado no dia 18/07/2022. Ao contrário, dadas a publicidade e a sinceridade dos questionamentos, a fala do Investigado deu-se como salutar tentativa de exposição de aprimoramento do processo eleitoral, mesmo sem os rigores científicos e a expertise de diversos professos de Universidades (como aqueles que compuseram a Comissão de Transparência Eleitoral), mesmo sem o apoio profissional de analistas e técnicos como aqueles que elaboraram minucioso o relatório que embasou as conclusões do C. TCU expressas no v. ac. 1611/2022”; x) não caracterização dos ilícitos atribuídos, de modo que “não se pode analisar de maneira descontextualizada a conduta do primeiro Investigado, sendo certo que, diferentemente do que quer fazer crer o Autor, considerações vagas e imprecisas acerca de eventual gravidade do discurso apresentado aos Embaixadores não socorre a procedência da (malfadada) investigação”; xi) “o debate público foi completo! O primeiro Investigado, de forma legítima, como Chefe de Estado, revelou seu ponto de vista à comunidade internacional e a Justiça Especializada, pronta e eficazmente, também de forma legítima, enquanto instituição republicana guardiã da lisura do processo eleitoral externou seu contraponto. Ao final do debate público, fértil e desinibido, esfumaçaram-se quaisquer efeitos teóricos deletérios sobre os cânones democráticos”; xii) “qualquer possibilidade – ainda que remota e inventiva – de lesão à legitimidade das eleições foi prontamente estancada pela Justiça Eleitoral que, ademais, se valeu da oportunidade para prestar relevantes esclarecimentos públicos e reforçar, ainda mais, a certeza de integridade do sistema eleitoral do Brasil”.

Dessa forma, requereu: i) o acolhimento das preliminares concernentes à ausência de formação de litisconsórcio necessário e da incompetência da JUSTIÇA ELEITORAL; ii) no mérito, a improcedência da AIJE; e iii) a revogação da liminar deferida.

Ainda, na peça, requereu a produção de prova testemunhal, arrolando: i) Carlos Alberto Franco França, Ministro das Relações Exteriores; ii) Flávio Augusto Viana Rocha, Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República; iii) Ciro Nogueira Lima Filho, Ministro-Chefe da Casa Civil; iv) José Henrique Nascimento de Freitas, Assessor-Chefe do Presidente da República.

O Relator, Ministro BENEDITO GONÇALVES, determinou a intimação das partes, para que: “a) o autor se manifeste sobre as preliminares suscitadas na contestação; b) os réus justifiquem o requerimento de prova testemunhal, indicando os pontos fáticos controvertidos a serem dirimidos pelos respectivos depoimentos”.

Após manifestação das partes, o eminente Relator rejeitou as preliminares da defesa e deferiu a produção da prova testemunhal requerida.

O Plenário desta CORTE referendou a rejeição das preliminares, por meio acórdão (ID 158550654) cuja ementa restou assim consubstanciada:

AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ELEIÇÕES 2022. PRESIDENTE. PRELIMINARES. REJEIÇÃO. QUESTÕES EM TESE APTAS A ACARRETAR DECISÃO TERMINATIVA. COLEGIALIDADE. RACIONALIDADE PROCESSUAL. IMEDIATA SUBMISÃO À CORTE.

ATO DE GOVERNO. ALEGADO DESVIO DE FINALIDADE EM FAVOR DE CANDIDATURA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ELEITORAL. UNIÃO. PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PÚBLICO. ILEGIMIIDADE PASSIVA. LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO. INEXISTÊNCIA. DECISÃO INTERLOCUTÓRIA REFERENDADA.

1. Trata-se de ação de investigação judicial eleitoral (AIJE) destinada a apurar a ocorrência de abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação, ilícitos supostamente perpetrados em decorrência do desvio de finalidade da reunião do Presidente da República com embaixadores de países estrangeiros, a fim de favorecer sua candidatura à reeleição.

2. Concluída a fase postulatória, proferiu-se decisão de saneamento e organização do processo, com o objetivo assegurar que a fase instrutória seja iniciada em ambiente de estabilidade jurídica, resolvidas todas as questões pendentes.

3. No decisum, foram rejeitadas duas preliminares suscitadas pelos investigados.

4. Como  regra  geral,  as  questões  resolvidas  por  decisão  interlocutória,  no  procedimento  do  art. 22  da LC nº 64/90, não são recorríveis de imediato. Nessa hipótese, o reexame pelo Colegiado fica diferido para a sessão em que for julgado o mérito e somente ocorre se a parte o requerer em alegações  finais  (art. 19, Res.-TSE nº 23.478/2016; art. 48, Res.-TSE nº 23.608/2019).

5. A aplicação da regra às ações de  investigação  judicial  eleitoral  foi  reafirmada  no  julgamento  da  AIJE nº 0601969-65 (Rel. Min. Jorge Mussi, DJE de 08/05/2020), quando o TSE declarou preclusa a possibilidade de a parte, silente nas alegações finais, rediscutir decisão em que o Relator indeferiu provas.

6. A sistemática prestigia a celeridade, mas, para que atinja seu objetivo, deve ser aplicada sempre com respeito à racionalidade processual. Desse modo, não se justifica que toda a instrução seja desenvolvida enquanto está pendente de exame pela Corte questão preliminar capaz de, em tese, levar à extinção do processo sem resolução do mérito.

7. Nessa linha, é conveniente ao bom andamento deste feito e à estabilidade do processo eleitoral que a Corte desde logo avalie se, tal como se concluiu na decisão saneadora, ação proposta é efetivamente viável.

PRELIMINAR DE INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ELEITORAL. REJEITADA.

8. A Justiça Eleitoral é competente para apurar desvios de finalidade de atos praticados por agentes públicos, inclusive por Chefe de Estado, quando da narrativa se extrair que o mandatário se valeu do cargo para produzir vantagens eleitorais para si ou terceiros. Entender o contrário seria criar uma espécie de salvo-conduto em relação a desvios eleitoreiros ocorridos, justamente, no exercício do feixe de atribuições mais sensível do Presidente da República.

9. Na hipótese dos autos, os requisitos para a definição da competência do TSE foram devidamente delimitados pela parte autora. Narra-se que o Presidente da República, utilizando-se de seu cargo, convocou reunião com embaixadores de países estrangeiros, mas, agindo com desvio de finalidade, teria passado a atacar a integridade do sistema eleitoral, em estratégia amoldada à de sua campanha, beneficiando-se, ainda, da ampla repercussão da transmissão do evento pela TV Brasil.

10. Os argumentos trazidos pelos investigados, no sentido de que atos de governo não se sujeitam a controle jurisdicional, pressupõem que inexista o desvirtuamento para fins eleitorais, matéria a ser examinada no mérito.

PRELIMINAR DE NÃO FORMAÇÃO DE LITISCONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO COM A UNIÃO. REJEITADA.

11. É pacífica a jurisprudência no sentido da impossibilidade de pessoas jurídicas figurarem no polo passivo da AIJE. Nos intensos debates desta Corte sobre o tema do litisconsórcio passivo necessário, essa premissa jamais foi alterada. O que se vem discutindo é se deve, ou não, ser exigida a inclusão, no polo passivo, dos responsáveis pela prática abusiva – portanto, de pessoas físicas passíveis de suportar inelegibilidade. Precedentes.

12. À luz de todo o arcabouço doutrinário e jurisprudencial para preservar a isonomia entre candidatos à reeleição e seus adversários, recusa-se a ideia de que haja uma “relação jurídica incindível” entre a União e o Presidente da República a impor que o ente federado litigue, na AIJE, ao lado do candidato.

13. Além da indevida mescla de interesses públicos e privados que deriva dessa proposta, seu acolhimento comprometeria, em definitivo, a celeridade e a economicidade, ao forçar a atuação processual de entes federados, autarquias, empresas públicas e fundações em toda e qualquer ação em que se apure finalidade eleitoral ilícita de atos praticados em nome do Poder Público.

14. Assim, mesmo que a União e a Empresa Brasileira de Comunicação entendessem que a remoção de vídeo gravado pela TV Brasil acarretou prejuízo ao seu patrimônio, não se tornariam litisconsortes necessários dos investigados. Ressalte-se que, no caso, nem mesmo isso ocorreu, pois aquelas pessoas jurídicas de direito público não adotaram qualquer medida voltada para assegurar a veiculação do material.

CONCLUSÃO.

15. Rejeitadas as preliminares suscitadas pelos investigados, conclui-se pela viabilidade da AIJE proposta.

16. Decisão interlocutória referendada.

Em audiência realizada em 19/12/2022 (ID 158533126), Carlos Alberto Franco França prestou depoimento. A testemunha, considerando a solicitação de informações apresentada durante sua oitiva, encaminhou o Ofício nº 10 G/DCON, de 21 de dezembro de 2022, contendo “a lista dos demais diplomatas lotados no Ministério das Relações Exteriores que compareceram à reunião objeto da ação em epígrafe” (ID 158555494).

Em 13/1/2023, o Autor requereu a “juntada do embrião gestado com pretensão a golpe de Estado encontrado nas dependências da residência do Senhor Anderson Torres, por determinação de diligência deferida pelo Excelentíssimo Senhor Ministro Alexandre de Moraes no âmbito do Inq. 4879/DF (decreto sobre Estado de Defesa), para fins de compor o compêndio probatório desta AIJE, em ordem a densificar os argumentos que evidenciam a ocorrência de abuso de poder político tendente promover descrédito a esta Justiça Eleitoral e ao processo eleitoral, com vistas a alterar o resultado do pleito”.

O eminente Ministro BENEDITO GONÇALVES (ID 158554507), considerando “a inequívoca correlação entre os fatos e documentos novos e a demanda estabilizada, uma vez que a iniciativa da parte autora converse com seu ônus de convencer que, na linha apresentada na petição inicial, a reunião realizada com os embaixadores deve ser analisada como elemento da campanha eleitoral de 2022, dotada de gravidade suficiente para afetar a normalidade e a legitimidade das eleições”: i) admitiu a juntada da minuta de Decreto de Estado de Defesa e determinou “a abertura de vista aos réus, pelo prazo de três dias, para que se manifestem sobre seu teor”; bem como ii) determinou “a expedição de ofício ao Ministro Alexandre de Moraes, Relator do Inquérito nº 4897/DF, no STF, solicitando a Sua Excelência o envio de cópia oficial da minuta de decreto de Estado de Defesa apreendida pela Polícia Federal na residência de Anderson Torres em 12/01/2023, bem como de outros documentos e informações resultante da busca e apreensão que digam respeito ao processo eleitoral de 2022, em especial voltados para a deslegitimação dos resultados”.

Os Investigados, em manifestação (ID 158557843), insurgiram-se em face da admissão do documento apresentado pelo Autor, assentando, em síntese: i) “no caso de documentos novos, necessária se faz, além da demonstração de que não se encontravam disponíveis na data da propositura da ação, a demonstração inequívoca de correlação concreta, direta e imediata com a causa de pedir, sob pena de sua indevida expansão – cujo prejuízo, no caso, majora-se sobremaneira diante do fato de já ter sido exercido o contraditório e de se ter como formal e materialmente estabilizada a demanda”; ii) “sendo inconteste que a demanda já se encontrava estabilizada, com o conjunto probatório definido pela inicial e pela correlata contestação, deflagrada a fase de instrução, com a realização de oitiva de testemunhas já iniciada, tudo nos termos da causa de pedir reiteradamente delineada, a saber, a (in)existência de abuso na realização da reunião no dia 18/07/2022, a admissão de fato novo, e não de documento novo, em momento tão avançado da marcha processual, corresponde à irreparável violação aos princípios da congruência e, em última instância, ao contraditório e à segurança jurídica”; iii) “ainda que não existissem os óbices antepostos à indevida extensão da causa de pedir após o saneamento do processo, também há que se considerar que a referida pretensão está peremptoriamente fulminada pela decadência, o que justifica a rejeição do requerimento formulado e o consectário desentranhamento do documento”; iv) “é necessário consignar que o documento apócrifo, juntado aos autos, não foi encontrado em posse dos Investigados, nem assinado por eles, e a peça de juntada tampouco indica quaisquer atos concretos ou ao menos indiciário de que tenham participado de sua redação ou agido para que as providências supostamente pretendidas pelo documento fossem materializadas no plano da realidade fenomênica”; v) além de apócrifo, o documento: a) “nunca deixou a residência privada de terceiros”; b) “não foi publicado ou publicizado, a não ser pelos órgãos de investigação e, finalmente”; c) “não se tem notícia de qualquer providência de transposição do mundo do rascunho de papel para o da realidade fenomênica, ou seja, nunca extravasou o plano da cogitação”.

A Polícia Federal, por meio do Ofício nº 292270/2023 – CINQ/CGRC/DICOR/PF (ID 158571842) remeteu a este TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL cópia da minuta de decreto de Estado de Defesa e Relatório de Análise dos dados constantes de Pen Drive, ambos apreendidos na residência de Anderson Torres por ocasião do cumprimento de diligências realizadas no âmbito do Inq. 4.879, em trâmite perante a SUPREMA CORTE.

O eminente Relator (ID 158622380) não acolheu os argumentos formulados pela defesa, tendo o Plenário desta CORTE referendado (ID 158704139) o ato decisório:

AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ELEIÇÕES 2022. PRESIDENTE. JUNTADA DE DOCUMENTO NOVO. FATOS SUPERVENIENTES.  ADMISSIBILIDADE. DESDOBRAMENTO DE FATOS QUE COMPÕEM A CAUSA DE PEDIR. PEDIDO DE RECONSIDERAÇÃO. DECADÊNCIA. VIOLAÇÃO À ESTABILIZAÇÃO DA DEMANDA. INOCORRÊNCIA. QUESTÕES PREJUDICIAIS REJEITADAS. DECISÃO REFERENDADA.

1. Trata-se de decisão em que, rejeitadas as prejudiciais de decadência e de violação à estabilização da demanda, indeferiu-se pedido de reconsideração formulado contra a admissibilidade de documento novo juntado aos autos durante a fase de instrução.

2. Nesta AIJE, apura-se abuso de poder político e uso indevido de meios de comunicação, ilícitos supostamente praticados em reunião de 18/07/2022 ocorrida no Palácio da Alvorada, quando o então Presidente da República, primeiro investigado, proferiu discurso lançando suspeitas de fraude nas urnas eletrônicas e acusações de parcialidade de Ministros do TSE. O evento contou com a presença de embaixadores de países estrangeiros e foi transmitido pela TV Brasil e nas redes sociais do candidato à reeleição.

3. A causa de pedir da AIJE é delimitada pelos contornos fáticos e jurídicos que permitam a compreensão da demanda, não se exigindo que a parte autora, ao postular em juízo, tenha pleno domínio de todos os fatos que podem influir no julgamento e os descreva em minúcias.

4. Na hipótese, a causa de pedir contempla a imputação de que o discurso proferido em 18/07/2022 se insere em uma estratégia de campanha do primeiro réu, de difundir fatos sabidamente falsos relativos ao sistema eletrônico de votação, para mobilizar seu eleitorado por força de grave “desordem informacional” atentatória à normalidade do pleito.

5. Em contrapartida, os investigados refutam qualquer relação entre o evento de 18/07/2022 e as eleições, enxergando no discurso uma legítima manifestação, em salutar “diálogo institucional” com o TSE, afirmando ainda que qualquer efeito do discurso teria sido prontamente neutralizado por nota pública do tribunal.

6. Diante disso, na decisão de organização e saneamento do processo, consignou-se que os fatos constitutivos (o evento, o discurso e seu conteúdo) são incontroversos e que as partes disputam a narrativa sobre o significado e o impacto eleitoral do episódio. Ressaltou-se que, em matéria de abuso de poder, o exame da gravidade da conduta, sob o ângulo qualitativo e quantitativo, reclama especial atenção para a análise de elementos contextuais.

7. O documento novo ora trazido aos autos consiste em minuta de decreto de Estado de Defesa apreendida pela Polícia Federal na residência do ex-Ministro da Justiça e da Segurança Pública, Anderson Torres, no dia 12/01/2023, durante diligência determinada pelo Ministro Alexandre de Moraes no âmbito do Inquérito nº 4879, que tramita no STF.

8. A Justiça Eleitoral é competente para apurar desvios de finalidade de atos praticados por agentes públicos, inclusive por Chefe de Estado, quando da narrativa se extrair que o mandatário se valeu do cargo para produzir vantagens eleitorais para si ou terceiros. Entender o contrário seria criar uma espécie de salvo-conduto em relação a desvios eleitoreiros ocorridos, justamente, no exercício do feixe de atribuições mais sensível do Presidente da República.

9. A decadência obsta a dedução de ilícitos inteiramente novos, sendo fator de estabilidade política e jurídica. No entanto, apresentada a demanda de modo tempestivo, os fatos supervenientes que guardem relação com a causa de pedir, mesmo que não alegados pelas partes, devem ser obrigatoriamente considerados no julgamento (art. 493, CPC; art. 23, LC 64/90).

10.  Desse modo, não se pode interpretar a estabilização da demanda como um recorte completo e irreversível na realidade fenomênica. Essa ideia acarreta um descolamento tal dos fatos em relação a seu contexto que chega a impedir o órgão judicante de levar em conta circunstâncias que gradativamente se tornem conhecidas ou potenciais desdobramentos das condutas em investigação.

11. Ressalte-se que, no caso dos autos, o que a autora pretende discutir são eventos que se conectam a partir do eixo central da narrativa, segundo a qual o discurso na reunião com embaixadores mirava efeitos eleitorais ilícitos. O próprio teor do discurso do Presidente, que livremente escolheu os tópicos que desejava abordar, oferece uma clara visão sobre o fluxo de eventos – passados e futuros – que podem, em tese, corroborar a imputação da petição inicial.

12. Ao lado dessas considerações gerais, deve-se ter em conta que o resultado das eleições presidenciais de 2022, embora fruto legítimo e autêntico da vontade popular manifestada nas urnas, se tornou alvo de ameaças severas. Passado o pleito, a diplomação e até a posse do novo Presidente da República, atos desabridamente antidemocráticos e insidiosas conspirações tornaram-se episódios corriqueiros. São armas lamentáveis do golpismo dos que se recusam a aceitar a prevalência da soberania popular e que apostam na ruína das instituições para criar um mundo de caos onde esperam se impor pela força.

13. Os acontecimentos se sucedem de forma vertiginosa. Mas o devido processo legal tem, entre suas virtudes, a capacidade de decantar os fatos e possibilitar seu exame analítico. É isso que deve guiar a instrução das AIJEs, pois é central à consolidação dos resultados das Eleições 2022 averiguar se esse desolador cenário é, ou não, desdobramento de condutas em apuração nas diversas ações. Esse debate não pode ser silenciado ou inibido por uma artificial separação entre as causas de pedir e a realidade fenomênica em que se inserem.

14.  Os temas das ações propostas são de conhecimento público. Não há segredo de justiça. As decisões de admissibilidade, de concessão de tutela inibitória e de saneamento, bem como outras de caráter interlocutório, têm contemplado cuidadoso delineamento das matérias em discussão.

15. Tendo em vista o prestígio à celeridade, à economia processual e à boa-fé objetiva, entendo prudente que, especificamente no que diz respeito às AIJEs relativas às eleições presidenciais de 2022, seja fixado um parâmetro seguro e objetivo que dispense, a cada fato ou documento específico, uma nova decisão interlocutória que revolva todos os fundamentos ora expostos.

16. Orientação a ser aplicada em situações semelhantes, no sentido de que a estabilização da demanda e a consumação da decadência não impedem que sejam admitidos no processo e considerados no julgamento elementos que se destinem a demonstrar desdobramentos dos fatos originariamente narrados, a gravidade (qualitativa e quantitativa) da conduta que compõe a causa de pedir ou a responsabilidade dos investigados e de pessoas do seu entorno, tais como: a) fatos supervenientes à propositura das ações ou à diplomação dos eleitos, ocorrida em 12/12/2022; b) circunstâncias relevantes ao contexto dos fatos, reveladas em outros procedimentos policiais, investigativos ou jurisdicionais ou, ainda, que sejam de conhecimento público e notório; e c) documentos juntados com base no art. 435 do CPC.

17. Mantido o indeferimento do pedido de reconsideração.

18. Decisão interlocutória referendada.

Os investigados apresentam pedido de desistência da oitiva da testemunha João Henrique Nascimento de Freitas (ID 158626938).

Em audiência de 8/2/2023 (ID 158628231), foram realizadas as oitivas das testemunhas Ciro Nogueira Lima Filho e Flávio Augusto Viana Rocha.

O Ministro BENEDITO GONÇALVES, em decisão interlocutória (ID 158764809), determinou: “a) a imediata juntada aos presentes autos dos seguintes documentos, extraídos do Inquérito nº 0600371-71: a.1) transcrições da degravação das lives de 29/07/2021 e 12/08/2021 e da entrevista concedida por Jair Messias Bolsonaro ao programa “Pingos nos is”, da Jovem Pan, em 04/08/2021 (IDs 147980688, 156064688, 156064738 e 156885874); a.2) relatórios técnicos produzidos pela STI/TSE (IDs 154106088 e 154113838); a.3) depoimentos prestados por Eduardo Gomes da Silva e Anderson Gustavo Torres na Corregedoria-Geral Eleitoral, em 12/08/2012 (IDs 149194688, 150457388, 149194038 e 150457338); a.4) relatório produzido pela Polícia Federal no Registo Especial nº 2021.0058802 (ID 149637788); e a.5) cópias extraídas da Petição 9.842/DF (ID 157315529) e do Inquérito 4.878/DF (IDs 157400756 e 157400757), ambos em trâmite no STF. b) a imediata juntada da transcrição dos depoimentos colhidos nas audiências de 19/12/2022 e 08/02/2023devendo os documentos serem gravados com sigilo até o julgamento de mérito, permitindo-se acesso estritamente às partes e ao Ministério Público Eleitoral; c) a expedição de ofício ao Ministro-Chefe da Casa Civil, Rui Costa, requisitando-se a Sua Excelência, no prazo de 3 (três) dias, informações consolidadas sobre a participação de órgãos do Governo Federal na preparação, realização e difusão do encontro realizado no Palácio do Planalto, em 18/07/2022, solicitando-lhe, para tanto, que além da consulta a seus registros, estenda a comunicação ao Ministério das Relações Exteriores, à Assessoria Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência, à Assessoria de Cerimonial e demais órgãos acaso envolvidos na organização do evento, em prazo hábil para a consolidação; d) a intimação das testemunhas Eduardo Gomes da Silva, Ivo de Carvalho Peixinho e Mateus de Castro Polastro, para comparecer à audiência designada, sob pena de condução coercitiva; e e) expedição de ofício ao Ministro Alexandre de Moraes, Relator do Inquérito nº 4879/DF, solicitando-se a Sua Excelência que autorize o depoimento em audiência de Anderson Gustavo Torres, por sistema de videoconferência, no local em que este se encontra detido e sob responsabilidade da autoridade policial encarregada da custódia”.

No mesmo ato decisório, determinou a intimação das partes e da Procuradoria-Geral Eleitoral, visando à manifestação sobre o interesse na produção de prova complementar.

A Procuradoria-Geral Eleitoral (ID 158786167) e o Partido Democrático Trabalhista (PDT) (ID 158794439) afirmaram não haver outras provas a serem produzidas.

O Ministro de Estado da Casa Civil, Rui Costa, em resposta (ID 158787060) à determinação desta CORTE, solicitou a concessão de prazo adicional de 30 dias para cumprimento da diligência.

Os Investigados, insurgindo-se contra a produção de novas provas determinada pelo Relator, interpuseram Agravo Regimental (ID 158797359), por meio do qual requerem, em suma: “a) a revogação das diligências complementares determinadas, diante do desacerto na utilização das prerrogativas concedidas pela Lei Complementar nº 64/90, fora das balizas ditadas pela ADI 1082/STF e não guiadas pelo respeito ao contraditório, ao dever de fundamentação e à garantia da imparcialidade e segurança jurídica; b) o afastamento da ameaça incomum e injustificada de multa, por litigância de má-fé, no que toca à eventual inadequação de indicação de prova testemunhal, permitindo-se o pleno exercício profissional dos causídicos, em representação material do princípio do contraditório e da ampla defesa”.

Ainda, a defesa apresentou manifestação (ID 158797364), em que requereu a produção das seguintes provas: i) oitiva das testemunhas Deputado Federal Filipe Barros, Deputado Federal Major Vitor Hugo, Guilherme Fiuza, Augusto Nunes e Ana Paula Henkel; ii) “seja oficiada a Delegacia da Polícia Federal, em Brasília, solicitando o imediato envio de informação da D.D. Autoridade Policial, especialmente contendo o relatório final de investigações (se existente) e os termos dos depoimentos colhidos ao longo das investigações, relativos ao Inquérito Policial 1361/2018-4/DF”; iii) “seja oficiado ao C. Supremo Tribunal Federal solicitando a complementação das cópias do Inq. 4878/DF, contendo todos os desdobramentos desde 21.2.2022”; iv) “seja oficiado, junto ao Eg. STF, o Min. LUIZ FUX, solicitando o compartilhamento das provas produzidas no âmbito da investigação ocorrida na Petição nº 10.477/DF, de sua relatoria”; v) “seja solicitado ao C. STF que compartilha com este C. TSE as informações relativas a referida “minuta de decreto de Estado de Defesa”, especificamente o resultado dos exames periciais (contendo os nomes das pessoas com digitais em referido documento) e os termos dos depoimentos prestados pelo Senhor ANDERSON TORRES no âmbito das investigações realizadas no âmbito daquela Corte”.

O Ministro BENEDITO GONÇALVES, em nova decisão interlocutória (ID 158811502): i) considerada sua inadmissibilidade, conheceu do Agravo Regimental como pedido de reconsideração, indeferindo-o, a fim de manter “tanto as diligências complementares determinadas de ofício quanto a advertência contra condutas protelatórias das partes, plenamente compatível com fase atual”; ii) deferiu o requerimento de produção de prova complementar formulado pelos Investigados, determinando: b.1) a designação da data de 27 de março de 2023, às 14h00 para realização da audiência de oitiva das testemunhas arroladas e qualificadas às fls. 19 da petição referida, a ser realizada no Salão Nobre da Corregedoria-Geral Eleitoral (Sala V-720/722, 7º andar do Tribunal Superior Eleitoral, situado no Setor de Administração Federal Sul (SAFS), Quadra 7, Lotes 1/2, Brasília/DF - CEP 70095-901); b.2) a intimação do Deputado Federal Filipe Barros, pelo meio mais célere, para prestar depoimento na audiência acima designada, solicitando-lhe que informe até o dia 24/03/2023 se prefere fazê-lo por sistema de videoconferência e assegurando-lhe, em razão do cargo ocupado, a prerrogativa de ser a primeira testemunha ouvida no ato; b.3) a expedição de ofício ao Diretor-Geral da Polícia Federal, requisitando cópia integral do Inquérito Policial 1361/2018-4/DF; b.4) a expedição de ofício ao Ministro Alexandre de Moraes, Relator dos Inquéritos 4878/DF e 4879/DF no STF, solicitando-lhe: i) cópias dos atos praticados no primeiro processo a partir de 21/02/2022 e que digam respeito aos desdobramentos processuais da investigação das circunstâncias de divulgação do Inquérito Policial 1361/2018-4/DF; e ii) desde que seja compatível com a preservação das investigações no segundo processo, informação sobre o resultado dos exames periciais realizados na “minuta de decreto de Estado de Defesa” e envio de cópia dos termos dos depoimentos prestados por Anderson Gustavo Torres; e b.5) a expedição de ofício ao Ministro Luiz Fux, Relator da Petição nº 10.477/DF no STF, solicitando-lhe cópia integral dos autos; c) a intimação das partes e do Ministério Público Eleitoral para comparecerem à audiência ou solicitar até 24/03/2023 o link para participação por videoconferência, assinalando, no caso dos investigados, que caberá a eles diligenciar pelo comparecimento, presencial ou por videoconferência, das testemunhas Guilherme Fiuza, Augusto Nunes, Ana Paula Henkel e Major Vitor Hugo, presumindo-se a desistência da prova em caso de não se apresentarem na data e horário designados”.

O eminente Relator, em novo despacho, ante a dilação de prazo requerida pelo Ministro de Estado da Casa Civil, concedeu “mais 3 (três) dias para a conclusão da diligência” (ID 158823403).

Em audiência datada de 16/3/2023 (ID 158835188), foram efetuadas as oitivas das testemunhas Anderson Gustavo Torres, Ivo de Carvalho Peixinho, perito criminal da Polícia Federal, e Mateus de Castro Polastro, Perito Criminal da Polícia Federal e Subsecretário de Tecnologia da Informação e Comunicação do Ministério da Justiça e Segurança Pública.

A Secretaria Judiciária certificou (ID 158839055) a juntada do exame pericial papiloscópico realizado na minuta de decreto apreendida na residência de Anderson Torres, assim como a declaração prestada por Gizela Lucy Teixeira Barros perante a polícia federal, conforme determinado pelo SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL na Pet. 10.930.

A Secretaria Judiciária certificou a juntada da documentação remetida a esta CORTE pelo Ministro de Estado da Casa Civil (ID 158839073), pelo Juízo da 10ª Vara Criminal Federal de São Paulo (ID 158850900), consubstanciada no Inquérito Policial nº 5007377-27.2022.4.03.6181, instaurado com a finalidade de “apurar notícia de suposta a invasão a sistemas e bancos de dados do TSE”, bem como pelo SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, consistente nos autos da Pet. 10.477.

Em audiência ocorrida em 27/3/2023 (ID 158843585), foram realizadas as oitivas das testemunhas Major Vitor Hugo e Filipe Barros Baptista de Toledo Ribeiro, bem assim requerida a desistência da inquirição de Guilherme Fiuza.

Em 28/3/2023 (ID 158863332), foi colhido o depoimento de Augusto Nunes. No mesmo ato, houve desistência da oitiva de Ana Paula Henkel.

Ante a conclusão da produção da prova documental, o eminente Relator intimou (ID 158852019) as partes e a Procuradoria-Geral Eleitoral, para manifestação.

Os investigados (ID 158881918) requereram a juntada dos seguintes documentos: i) matéria jornalística https://www.cnnbrasil.com.br/politica/ministerio-publico%20eleitoral-denuncia-quatro-pessoas-por-hackear-sistema-do-tse/, “bem como o requerimento de que seja oficiado o exmo. Juiz Dr. Lizandro Garcia Gomes Filho, da 1ª Zona Eleitoral de Brasília [...], para que encaminhe aos cuidados do d. Corregedor Eleitoral cópia do inquérito policial e do processo judicial instaurado, para oportuna consideração nos presentes autos”; ii) postagem do Presidente do PDT, Carlos Lupi, realizada em 27/5/2021, acompanhada do respectivo vídeo.

Além disso, solicitaram que, na hipótese de o Relator desistir da oitiva de Eduardo Gomes da Silva, a mencionada testemunha seja ouvida.

O Ministro BENEDITO GONÇALVES, em 31/3/2023 (ID 158886314): i) deferiu a juntada da prova documental; ii) indeferiu o pedido de visando ao encaminhamento dos autos do inquérito em tramitação perante a 1ª Zona Eleitoral de Brasília; iii) dispensou a oitiva de Eduardo Gomes da Silva; iv) determinou a juntada da transcrição dos depoimentos prestados nas audiência realizadas em 16, 27 e 28 de março de 2023; v) declarou encerrada a instrução; vi) determinou a intimação das partes para apresentarem alegações finais; e, por fim, vii) vista à Procuradoria-Geral Eleitoral, para parecer.

Jair Messias Bolsonaro e Walter Souza Braga Neto, nas alegações finais (ID 158914533), argumentaram, em síntese: i) “inúmeras questões processuais de inafastável relevância foram levantadas ao longo da instrução, desafiando a escorreita análise final pela decisão do Plenário que se seguirá. Não é enfadonho repisar que, ainda que parte delas já tenha siso objeto de referendo, não é possível vislumbrar, dada irrecorribilidade das decisões interlocutórias, contornos de definitividade”; ii) a matéria concernente à incompetência da Justiça Eleitoral “não foi objeto de discussão plenária definitiva, razão pela qual os argumentos que demonstram a incompetência desta Especializada, no caso, merecem vertical exame e o esperado acolhimento pelo D. Colegiado”; iii) “em nenhum momento do evento com os embaixadores, ocorrido em julho de 2022, antes mesmo do período eleitoral, tratou-se de eleições em sentido estrito. Não se pediu voto. Não houve ataque a oponentes. Não houve a apresentação comparativa de candidaturas. As manifestações impugnadas, ao contrário, na dicção substantiva da própria inicial, são representativas de debates públicos férteis e desinibidos, frutos de necessário diálogo entre Poderes da República, na perspectiva de engajada observação da Comunidade Internacional”; iv) “sendo inconteste que a demanda já se encontrava estabilizada – com o conjunto probatório definido pela inicial e pela correlata contestação – e uma vez deflagrada a fase de instrução – com a realização de oitiva de testemunhas já iniciada, tudo nos termos da causa de pedir reiteradamente delineada, a saber, a (in)existência de abuso na realização da reunião no dia 18/07/2022 –, a admissão de fato novo, e não de documento novo, em momento tão avançado da marcha processual, correspondeu à irreparável violação ao princípio da congruência e, em última instância, às máximas do contraditório e da segurança jurídica”; v) “ainda que não existissem os óbices antepostos à indevida extensão da causa de pedir após o saneamento do processo, também há que se considerar que a referida pretensão estava peremptoriamente fulminada pela decadência, o que justificava a rejeição material do requerimento formulado e o consectário desentranhamento do documento de ID 158553895”; vi) “cumpre registrar que o Il. Relator, de ofício, ainda que tendente à uma instrução suplementar entendida como albergada pelo conteúdo dos arts. 22 e 23, da LC nº 64/90, acabou por se deslocar, data vênia, das balizas atinentes à produção de provas em sede de AIJE, delimitadas pela ADI nº 1082/STF, promovendo indevida correção na deficiente atuação processual do Autor e determinando diligências jamais requeridas pelo investigante, em adiantado momento processual, mesmo que tais providências pudessem ter sido pleiteadas, a tempo em modo, eis que não derivam de efetivo “achado fortuito” nem são alusivas a elementos ocorridos no futuro (vg, lives e programa jornalístico do ano de 2021)”; vii) “a fruição das prerrogativas excepcionais, previstas pelos artigos 22 e 23, da Lei Complementar nº 64/90, demanda, sob uma necessária ótica de constitucionalidade a três requisitos essenciais, quais sejam: i) a garantia do contraditório; ii) o adequado exercício do dever de fundamentação e; iii) a consecução de um processo imparcial e revestido de certeza (segurança) jurídica”; viii) nos termos do entendimento adotado pelo Relator, “restou facultado ao autor, sem paralelismo na lógica jurídica e em evidente tratamento anti-isonômico, juntar quaisquer documentos que reputasse como pertinentes a amparar sua pretensão, desde logo admitidos, sem necessidade de decisão interlocutória fundamentada que justificasse, concretamente, o seu (tardio) ingresso. Em termos mais práticos, trata-se de admissão, em perspectiva, de provas ainda nem produzidas, de fatos desdobráveis ad eternum, e que não orientaram a linha defensiva vertida na contestação, bem como o requerimento de provas”; ix) “na ocasião da admissão do fato novo, correspondente à juntada da minuta apócrifa de decreto de estado de defesa, houve suavização da exigência efetiva ao contraditório, a partir da abertura de prazo de 3 (três) dias para manifestação (ID 158554507), sem a reativa reabertura de novo prazo de contestação, para a necessária harmonização lógica e estratégica, cujo prazo é de 5 (cinco) dias, nos termos do art. 22, inciso I, alínea “a”, LC 64 nº 64/90”; x) não se verifica, na decisão, “a necessária fundamentação sobre as razões para que se procedesse à determinação de juntada dos documentos referidos no item a.1 ou à oitiva das pessoas elencadas no item a.3 do decisum, quando havia prova documental pré-constituída e facilmente acessível ao autor sobre o fato (live de 2021), nenhuma delas trazida ou requerida pelo autor, a tempo e modo, em necessária observância não apenas ao rito processual típico, mas a prazo decadencial por sua natureza fatal, peremptório”; xi) “embora a Lei Complementar faculte ao Relator a promoção de determinadas diligências probatórias, não é crível suprir atuação deficiente do Autor, substituindo-se à parte, sob pena de grave vulneração não apenas do devido processo legal, mas da postura equidistante do Judiciário e da paridade de armas entre as partes”; xii) ainda no que se refere à live, a petição inicial, “que trouxe o vídeo ao conhecimento deste juízo, data de 19 de agosto de 2022 e, nos sete meses transcorridos desde então, não foi requerida qualquer produção de provas sobre o ponto”; xiii) no tocante à contribuição de órgãos oficiais na reunião (Casa Civil, Ministério das Relações Exteriores e Assessoria Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência), embora o eminente tenha entendido que a oitiva das testemunhas arroladas pela defesa não esclareceram os pontos controvertidos de forma suficiente, assertiva segundo a qual não houve envolvimento significativo no evento “não se trata de instrução defeituosa, mas de atuação que corrobora a tese defensiva em detrimento da acusatória”; xiv) o fundamento utilizado para determinar a expedição de ofício ao Ministro-Chefe da Casa Civil “se escorou, intuitivamente, na premissa de que os depoimentos prestados em juízo, por testemunhas devidamente compromissadas, estariam dissociados da realidade fenomênica, razão pela qual caberia, de ofício, contrapô-las mediante a solicitação, genérica e abrangente, de localização de suposta (e inexistente) prova documental”; xv) “seguiu-se indevida e imprópria delegação, data vênia, em sentido material, de poder instrutório ao atual Ministro-Chefe da Casa Civil, que, nas letras do decisum, consolidaria informações aptas a “elucidar se [as pastas] contribuíram, ou não, para preparar ou repercutir evento, e, em caso positivo, de que forma atuaram”, podendo selecionar não apenas os documentos do órgão sob sua chefia, mas também de ao menos um Ministério e duas Assessorias independentes”, de modo que, “o que se teve, in caso, foi a transposição de poderes não só instrutórios, mas também investigativos, por meio de ofício, que permitia ao Ministro do Executivo, FUNDADOR E FILIADO AO PARTIDO DOS TRABALHADORES, numa espécie de devassa documental, a consulta a documentos de diversos órgãos governamentais e a consolidação unilateral e casuísticas de seus (pretendidos) achados, em relatório sujeito a toda sorte de subjetivismos e à natural tendência a contribuir com uma narrativa que se prestasse à condenação judicial e à execração pública de (indesejáveis) adversários políticos”; xvi) “além dos pontos já reportados, a decisão objurgada autorizou a inserção no processo de fatos completamente estranhos à demanda (referidos no item “a”), a exemplo da degravação do programa “Pingo nos is” – jamais referido pela inicial”; xvii) “o art. 23 da LC nº 64/90 não corresponde a uma salvaguarda geral para a ampliação objetiva da demanda, tornando os poderes instrutórios conferidos ao magistrado braço mecânico do indevido elastecimento da causa de pedir, que, no máximo, poderia se limitar à admissão do malfadado e intempestivo documento, acompanhado dos singelos requerimentos feitos pela parte”; xviii) “o indeferimento da oitiva de Eduardo Gomes da Silva, inicialmente indicado como testemunha do juízo (!) e que, a partir dos depoimentos de Ivo de Carvalho Peixinho e Mateus de Castro Polastro, tornou-se ainda mais indispensável para a correta solução da lide”; xix) foi indevidamente “indeferida a juntada de cópias do inquérito relativos à denunciada noticiada pela CNN em 24/03/2023”.

No mérito, afirmam, em suma: i) inexistência de fatos atribuídos ao a Walter Souza Braga Netto, razão pela qual, “uma vez que não há que se falar em cassação de diploma/mandato nos presentes autos, face ao insucesso dos Investigados na campanha eleitoral, a única sanção possível de ser produzida nos presentes autos seria a inelegibilidade que, como assentado, para além de qualquer dúvida razoável, não pode ser imposta ao segundo Investigado, à míngua sequer de alegação de participação, direta ou indireta, nos fatos em julgamento”; ii) em relação a Jair Messias Bolsonaro, “foi demonstrado, de forma cabal e inequívoca, a eminente boa-fé, franqueza e abertura do diálogo institucional travado entre uma série de atores institucionais da República, dentre os quais o Primeiro Investigado, enquanto então Presidente do Brasil. É dizer: o debate sobre a conformação atual do sistema eleitoral – e, com efeito, sobre como torná-lo mais transparente, seguro e confiável – fez-se em via democrática larga, permissiva da participação do Poder Legislativo (incluídos, evidentemente, players de todo o escopo ideológico representado nas câmaras de representantes populares), do então Presidente da República, de especialistas e técnicos de diversos setores e, com similar razão, de membros da Justiça”; iii) o Deputado Federal Filipe Barros “demonstrou firmemente serem as lives eventos que, longe de isolados, incluíam-se num debate público amplo sobre melhoramentos desejáveis no sistema eletrônico de coleta de votos”, bem como esclareceu que o “Investigado jamais foi voz solitária na defesa de uma revisão legislativa sobre o sistema eleitoral”; iv) “está, portanto, dentro dos limites da liberdade de convicção pessoal de determinado player político formular uma posição sobre o sistema de coleta de votos adotado no Brasil. Não se pode, a priori, qualificar uma balizada opinião como fraudulenta, eis que, como cediço, a antinomia “verdadeiro-falso” só cabe a juízos de fato, espécie linguística distinta de uma opinião”; v) “debate público, maduro e responsável, demanda honestidade intelectual e respeito às evidências científicas existentes em concreto. Noutras palavras, agentes públicos devem engajar-se em debate adulto e sereno, pautado, pois, em evidências concretas, incluídas as de especialistas”; vi) “nas lives, o Primeiro Investigado simplesmente relatou, de modo assaz sintético, aliás, a existência de um episódio, nos idos de 2018, de ataque hacker aos sistemas de informatização de toda a Justiça Eleitoral – incluindo Tribunais Regionais Eleitorais de um número de Estados da Federação e o próprio E. Tribunal Superior Eleitoral”; vii) as provas “trazem, neste sentido – e novamente a comprovar a intenção maior de manter diálogo e boa-fé entre as instituições – grande desejo do Primeiro Investigado de, adequadamente, assenhorar-se de informações segurar e de argumentos legítimos palpáveis em suas propostas, consultando peritos com ampla experiência em testagem de segurança de urnas”; viii) “na entrevista concedida ao programa televisivo “Os Pingos nos is”, a tônica de crítica informada repete-se, animada, in casu, pela apresentação de extensa documentação pelo Deputado Filipe Barros – o principal entrevista, na condição de relator da PEC 135/2019. Mantendo o leitmotiv de lealdada ao debate institucional – eis que aderida aos debates legislativos entabulados com vistas à sua aprovação –, teve-se demonstrações sobre a plausibilidade das opiniões expressas por si e pelo Primeiro Investigado, somadas à viabilidade das medidas propostas na alteração ao texto Constitucional”; ix) as falas veiculadas durante o evento realizado com embaixadores traduzem manifestações “de Chefe de Estado, que, como ato de governo de governo, são insuscetíveis de controle judicial, mormente pela Justiça Eleitoral”, razão pela qual “não se revela conforme o bom direito a intervenção judicial em assuntos diplomáticos discricionários do Estado brasileiro, sob o argumento (geral e inespecífico) de proteção de princípios constitucionais abertos”; x) “houve divulgação pública do evento, constante da agenda oficial do dignatário maior da Nação, tendo havido o zelo de convidar representantes de outros Estados Estrangeiros (igualmente soberanos), não para uma exposição de caráter eleitoral, mas sim para exposição de perfil diplomático. Não havia, dentre os presentes, qualquer atos ou player do processo eleitoral em curso! Perceba-se: o público-alvo da exposição sequer detinha cidadania e capacidade ativa de sufrágio”; xi) os documentos encaminhados a esta CORTE pelo Ministro-Chefe da Casa Civil se restringem a “(i)convites a embaixadores e ministros de nações estrangeiras; (ii) convites a autoridades nacionais; (iii) respostas e confirmações de presença destas autoridades; e (iv) ofícios e circulares internas direcionadas à preparação do evento”; xii) “não houve no caso sub examine qualquer postura senão a realização de ato de governo despido de cunho eleitoral ou partidário, desacompanhado do pedido de votos ou de comparação a governos, nem mesmo com exposição de plataformas governamentais ou sociais”; xiii) o encontro com embaixadores foi objeto de noticia criminis apresentada perante o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, no âmbito da qual a Procuradoria-Geral da República, em razão da não configuração dos crimes comuns de abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L do Código Penal) e incitação de animosidade das Forças Armadas contra os poderes constituídos (art. 286, parágrafo único, do Código Penal) e de crime de responsabilidade, manifestou-se pelo seu arquivamento; xiv) “sob a perspectiva da gravidade, não se pode analisar de maneira descontextualizada a conduta do primeiro Investigado, sendo certo que, diferentemente do que quer fazer crer o Autor, considerações vagas e imprecisas acerca de eventual gravidade do discurso apresentado aos Embaixadores não socorre a procedência da (malfadada) investigação”; xv) “o que se teve, na espécie, foi um debate público completo. O primeiro Investigado, de forma legítima, como Chefe de Estado, revelou seu ponto de vista à comunidade internacional e a Justiça Especializada, pronta e eficazmente, também de forma legítima, enquanto instituição republicana guarda da lisura do processo eleitoral, externou seu contraponto. Ao final do debate público, fértil e desinibido, esfumaçaram-se quaisquer efeitos teóricos deletérios sobre os cânones democráticos”; xvi) “a “minuta de Estado de Defesa”, sob o viés jurídico e material efetivamente não consubstancia verdadeiramente “documento”, eis que não assinado, não apresenta identificação de que o produziu, não apresenta destinatário, bem como não identifica efetiva intenção e realidade/materialidade de seu conteúdo”; xvii) “além da irrefutável prova material do desconhecimento, por parte dos Investigados, do teor do “documento”, registra-se óbice processual de vertente constitucional inafastável, diante da inegável contaminação da prova”, tendo em vista a quebra de cadeia de custódia; xviii) os fatos imputados não se revestem da necessária gravidade, bem como não apresentam relação de concatenação entre si; xix) “o que se pode extrair do contexto probatórios dos autos é que o primeiro Investigado apenas deu curso a debate legítimo sobre incertezas e inseguranças alusivas ao processo eleitoral, a partir de relatórios do TCU e de técnicos do próprio TSE, com o confessado objetivo de promover aprimoramentos no sistema eletrônico de votação, notadamente pela introdução do voto impresso, bandeira que sempre defendeu, inclusive desde quando parlamentar”; xx) “os registros públicos da reunião foram imediatamente suprimidos do acesso dos cidadãos, minando-se de largada qualquer possibilidade de dano oriundo da realização da reunião com os chefes do missões diplomáticas, o que reforça a impossibilidade de reconhecimento da efetiva gravidade no caso, sob o viés da materialidade da conduta”.

Dessa forma, requerem: a) O reconhecimento da incompetência da Justiça Eleitoral para o julgamento da causa, em razão de se tratar de ato de Governo, praticado na condição de Chefe de Estado, insuscetível de controle primário no âmbito desta justiça especializada, com a remessa dos autos para a Justiça Comum, para eventual apuração residual dos fatos em disputa; b) A extinção do feito, sem julgamento do mérito, em relação ao segundo Investigado, em virtude de sua ilegitimidade passiva ad causam, diante da ausência de imputação pelo Autor da respectiva participação, direta ou indireta, nos atos questionados, inviabilizando-se, assim, a aplicação da (personalíssima) sanção de inelegibilidade na espécie (por fato de terceiro), única possível de aplicação frente ao insucesso da chapa no pleito eleitoral presidencial de 2022; c) Diante das violações processuais evidenciadas no tópico II, seja a demanda (re) delimitada aos fatos elencados na exordial – que fixa os limites objetivos e subjetivos da lide, com a consequente exclusão dos autos - e do espectro decisório - dos fatos e eventuais “provas” oriundos da indevida extensão da causa de pedir, bem como aqueles derivados da inadequação da atuação probatória empreendida pelo Juízo, eis que se revelou excessiva e em descompasso com o alcance dos arts. 22 e 23 da LC nº 64/90, definidos pelo E. STF no julgamento da ADI nº 1082/STF; d) No mérito, caso ultrapassadas as questões prévias entabuladas, o que se admite apenas para argumentar, a total improcedência da ação, ex vi do art. 14, § 9º da CF/88, do art. 22, caput, incisos XIV e XVI, da LC 64/90, c.c. o art. 371, do CPC/2015, nos termos da reiterada jurisprudência do C. TSE, afastando-se qualquer possibilidade jurídica de imposição de inelegibilidade aos Investigados, sob pena não apenas do cometimento de grave injustiça, mas de subversão dos parâmetros constitucionais, legais e jurisprudenciais historicamente utilizados pela Corte, como garantia de jurisdição séria e obsequiosa das garantias constitucionais aplicáveis a todo e qualquer cidadão, em um processo judicial hígido e justo, plenamente regido na moldura-quadro do Estado Democrático de Direito".

Por sua vez, o Partido Democrático Trabalhista (PDT), em suas alegações finais (ID 158917113), argumenta, em síntese: i) é “incontroverso que o Senhor Jair Messias Bolsonaro se reuniu no dia 18 (dezoito) de julho de 2022 com embaixadores de países estrangeiros residentes no Brasil para falar sobre o pleito de 2022, sobre o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral. A tônica do encontro foi a de soerguer protótipos profanadores da integridade do processo eleitoral e das instituições da República, especificamente o TSE e seus Ministros”; ii) “durante o evento, o Senhor Jair Messias Bolsonaro criou uma ambiência propícia para a propagação de toda sorte de desordem informacional ao asseverar, por diversas vezes, que o sistema eletrônico de votação é receptivo a fraudes e invasões que, sob a ótica do delírio presidencial, podem comprometer a fidedignidade do resultado das eleições brasileiras”; ii) “a referida reunião foi transmitida pela TV Brasil Distribuição, através da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), empresa pública, nos termos da Lei nº 11.652/2008, e o vídeo do encontro foi veiculado, na íntegra, através das redes sociais do Senhor Jair Messias Bolsonaro, especialmente no Instagram (@jairmessiasbolsonaro) e no Facebook”, de modo que “o fato repercutiu de forma intensa perante o meio jornalístico, sobretudo porque as informações sabidamente inverídica (fake news) proferidas pelo Senhor Jair Messias Bolsonaro já foram desmentidas pela Justiça Eleitoral e pelas agências de checagens por inúmeras vezes”; iii) “imediatamente após a veiculação dos vídeos do evento, o Tribunal Superior Eleitoral reuniu, em uma página albergada no seu sítio eletrônico, diversos conteúdos que desmentiam os impropérios proferidos pelo primeiro investigado”; iv) “todo esse arsenal de inverdades (fake news) difundido pelo Senhor Jair Messias Bolsonaro já tem sido desmentido pela Justiça Eleitoral e pelas agências de checagens desde 2018, no que não se faz necessário empreender esforços desmedidos para desmistificar cada uma das afirmações irresponsáveis proferida pelo então Presidente da República”; v) “ao enfrentar o tema relativo à desinformação substanciada nos ataques infundados à integridade do sistema eleitoral, esta Corte Egrégia já se manifestou, por ocasião do julgamento da RP nº 0600549-83, sob a relatoria da Ministra Maria Claudia Bucchianeri, que trata dos desdobramentos dos mesmos fatos desta AIJE, mas sob a ótica da propaganda eleitoral antecipada, no sentido de que a conduta de pôr em descrédito as urnas eletrônicas e o sistema eleitoral também pode configurar “verdadeira pauta política” de candidato, que dali pode extrair algum proveito eleitoral, de modo a, com isso, abalar a normalidade e a legitimidade do pleito”; vi) “o Senhor Jair Messias Bolsonaro sempre agiu de modo a perpetrar condutas desta natureza, mesmo antes do início do período eleitoral. De acordo com os veículos de comunicação, o Senhor Jair Messias Bolsonaro questionou a integridade do sistema eleitoral brasileiro pelo menos 23 (vinte e três) vezes no ano de 2021. Tais fatos podem ser comprovados a partir dos documentos que aportaram dos autos do Inquérito Administrativo nº 0600371-71.2021, em trâmite neste Egrégio TSE, a saber: a) transcrições da degravação das lives de 29/07/2021 e 12/08/2021 e da entrevista concedida por Jair Messias Bolsonaro ao programa “Pingos nos is”, da Jovem Pan, em 04/08/2021; e b) depoimentos prestados por Eduardo Gomes da Silva e Anderson Gustavo Torres na Corregedoria-Geral  Eleitoral, em 12/08/2012”; vii) “é indene de dúvidas, no ponto, que o modus operandi do primeiro investigado não foi outro senão o de utilizar os ataques ao sistema eleitoral e a esta JE como estratégia de campanha para auferir dividendos eleitorais de parcela da população que passou a desacreditar na confiabilidade do processo de votação”; viii) “a proliferação de desordem informacional não se presta a construir pontes para diálogos, muito menos para aperfeiçoar sistemas, institutos ou instituições. A difusão de fake news não perpassa pelo necessário respeito aos princípios da Administração Pública, de modo que qualquer tipo de estorvo ao livre mercado de ideias, que porventura estonteiem a normalidade e a legitimidade do pleito configura abuso que merece ser reprimido de forma assas intensa, com toda a potência da legislação eleitoral”; ix) “esta Corte Superior Eleitoral também já reconheceu que a difusão deliberada de fake news sobre o sistema eletrônico e a legitimidade dos pleitos é extremamente nociva ao Estado Democrático de Direito, em especial quando Excelentíssimo Senhor Ministro Luís Felipe Salomão, na qualidade de Corregedor dessa eg. Corte, proferiu decisão nos autos do IA nº 0600371-71.2021, para fins de suspender a monetização de perfis que veiculam inverdades sobre as eleições”; x) “propagar inverdades como forma de atacar a integridade do sistema eletrônico de votação constitui ato abusivo e que o teor do que fora verbalizado pelo primeiro investigado não corresponde à verdade, em especial porque os fatos veiculados já foram amplamente desmentidos pela Justiça Eleitoral, bem como pelas agências de checagens. Portanto, presente essa moldura, agora resta demonstrar que a reunião com os embaixadores foi estruturada com nítido desvio de finalidade para beneficiar a candidatura do primeiro investigado”; xi) nada obstante as alegações no sentido de que a reunião constituiu ato de governo com a finalidade de promover diálogo institucional para aperfeiçoar o sistema eletrônico de votação, “os autos revelam, especialmente pelo teor das lives, bem como também pelo teor do que fora dito na reunião em apreço, que o Senhor Jair Messias Bolsonaro nunca teve a intenção de manter diálogos amistosos com o TSE. Sempre atacou seus Ministros, em especial os Ministros Barroso, Fachin e Alexandre de Moraes”; xii) “conforme restou salientado pela Delegada de Polícia Federal, quando maior a intensidade dos ataques às instituições e ao sistema eleitoral, maior era a o grau divulgação pelos apoiadores do Senhor Jair Messias Bolsonaro nas redes sociais. Ou seja, para manter a adesão, o apoio dos seus apoiadores e a posterior “viralização” das falas, o primeiro investigado tinha que agir de modo bélico, lastreado em sensacionalismo e inverdades, como sempre agiu, senão não iria alcançar o estado de ebulição do seu eleitorado”; xiii) “nenhum ato é insuscetível ao alcance do Poder Judiciário, em razão da incidência do princípio da inafastabilidade da jurisdição, ainda mais quando se trata de direitos indisponíveis. O Estado Democrático de Direito e a Constituição Federal de 1088 ainda não permitem selar autoridades em sacrários inacessíveis, nem tampouco imunizar atuações governamentais que agridam de forma intensa o regime democrático e a confiabilidade do sistema eletrônico de votação”; xiv) “por mais que se diga que o público-alvo do evento não seria atingido porque “sequer detinha cidadania e capacidade eleitoral ativa de sufrágio” [...], a realização da reunião tinha por escopo: a) difundir o conteúdo do discurso na TV Brasil (via EBC, empresa pública) e nas redes sociais do primeiro investigado, notadamente para que as inúmeras páginas e perfis compartilhassem as mídias para lhe beneficiar; b) buscar adesão dos países estrangeiros para que, se porventura um golpe de Estado fosse instaurado, obtivesse apoio, já que o processo de votação não seria confiável e estaria eivado de fraude”; xv) “o que ocorreu foi a demonstração e posterior profusão de ideias vinculadas à candidatura à reeleição do Investigado, no contexto de uma reunião que deveria estar umbilicalmente interligada ao interesse público. Mais ainda, utilizou-se de todo aparato estatal para estruturar o ato abusivo, especialmente porque a reunião foi realizada nas instalações do Palácio da Alvorada (residência oficial), em Brasília, bem como também o seu conteúdo foi veiculado através da TV Brasil”; xvi) o TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL, no julgamento do RO 060397598, já entendeu que “não há margem para dúvida de que constitui ato abusivo, a atrair as sanções cabíveis, a promoção de ataques infundados ao sistema eletrônico de votação e à própria democracia, incutindo-se nos eleitores a falsa ideia de fraude em contexto no qual sobrevenha como beneficiário dessa prática”; xvii) “a instrução processual densifica o fato de que o Governo Brasileiro nunca recebeu questionamento ou dúvida de embaixadores sobre a confiabilidade das urnas, sobretudo quando o ex-Ministro da Casa Civil e Senador Ciro Nogueira Filho, ao responder às perguntas do magistrado instrutor, assevera o seguintes: “Não, em nenhuma ocasião, e até nesse reunião com a embaixada americana não foi levantada essa questão. Eles tinham preocupação sobre a situação dessas discussões políticas e conflitos, né? E nós procuramos tranquilizá-los. Mas sobre a funcionalidade do sistema, não””; xviii) os elementos de convicção dos autos indicam que “a “minuta de golpe” não apareceu como uma manifestação “folclórica” ou “etérea”, mas era parte de um plano a ser executado. Era mais uma fase da tentativa de perpetuação do primeiro investigado no poder, através da deflagração de um golpe de Estado. A linha argumentativa é bastante factível, especificamente ao realizar o cotejo do teor do discurso proferido pelo primeiro investigado (reunião dos embaixadores), em que dá o ápice à cruzada de ataques à integridade do sistema de votação, com as balizas da “minuta do golpe”, que tinha a finalidade de decretar Estado de Defesa na sede do TSE”; xix) “o perito Mateus de Castro Polastro acentuou que, mesmo tendo demonstrado que a forma de análise das planilhas mencionadas na live do primeiro investigado estava errada e não conduzia à alegada fraude, o evento continuou a ser transmitido sem o menor pudor em propagar inverdades”; xx) “ressoa inconteste, a partir do compêndio probatório estruturado nestes autos, que os ora investigados praticaram as condutas tipificadas como abuso de poder político, uso indevido dos meios de comunicação e a conduta vedada descrita no art. 73, inciso I, da LE”; xxi) “a má-fé do ora Investigado restou coadunada com a distorção e veiculação de fatos que, apesar de serem sabidamente inverídicos, foram veiculados através de suas redes sociais, que contam com alto número de seguidores e, como consectário lógico, gerou dividendos políticos que abalam a normalidade e a legitimidade do pleito”; xxii) mostra-se configurada a gravidade da conduta atribuída ao investigado, tendo em vista que “o elevado grau de agressão aos bens jurídicos tutelados (normalidade, legitimidade e isonomia) é solar. Noutra banda, os efeitos do teor do discurso proferido e difundido também devem ser sopesados no contexto do pleito, mas no período pós-eleitoral. Indubitável que durante o pleito foram inúmeras as fake news difundidas contra a Justiça Eleitoral, todas elas alimentadas pelo primeiro investigado”; xxiii) “outro ponto de maior gravidade diz respeito ao que aconteceu no dia 08/01/2023”; xxiv) “as provas que aportaram aos autos demonstram o quanto da estrutura pública foi movida e utilizada para a realização do evento (convites, estrutura física, logística, alimentação, staff etc.). O primeiro investigado ainda chama atenção para o fato de que foram gastos o total de R$ 12.214,12. No entanto, o foco da presente AIJE não é imputação sobre abuso de poder econômico. O uso desvirtuado do poder político restou claramente demonstrado”.

Requereu, assim, “o julgamento pela procedência dos pedidos deduzidos na petição inicial, especificamente para que se declare a inelegibilidade dos ora Investigados (art. 22, inciso XIV, da LC nº 64/90), em razão da prática de conduta vedada (art. 73, inciso I, da LE), de abuso de poder político, de difusão de desordem informacional e de uso indevido dos meios de comunicação”.

A Procuradoria-Geral Eleitoral, no parecer, manifesta-se “pela procedência do pedido de declaração de inelegibilidade prevista no art. 22, XIV, da Lei Complementar nº 64/1990 apenas com relação ao primeiro investigado, absolvendo-se o segundo”:

Ação de investigação judicial eleitoral. Candidatura à Presidência e à Vice-Presidência da República. Reunião do Presidente da República, à época esperado candidato a um segundo mandato, com embaixadores estrangeiros no Brasil, chamados a palácio para ouvir discurso contrário ao sistema de votação, de apuração e de totalização de votos brasileiro. Evento difundido em redes sociais e em rede de televisão estatal para audiência dos cidadãos brasileiros. Acusações e advertências contra o sistema eleitoral sem lastro em fatos apurados e estabelecidos. Fatos oficialmente desmentidos anteriormente. Potencial de descrédito do mecanismo democrático. Limites da liberdade de expressão no contexto eleitoral. Conduta grave. Precedentes. Hipótese de sanção de inelegibilidade. Absolvição do candidato a Vice-Presidente a quem não se aponta participação no caso.

É o relatório.

 

I – Preliminares:

 

De início, verifica-se que diversas preliminares suscitadas pela defesa já foram submetidas ao exame do Plenário desta CORTE que, no curso da instrução, referendou os atos decisórios do eminente Relator rejeitando os argumentos.

Por essa razão, em relação aos argumentos anteriormente examinados, operou-se a preclusão, no caso “pro judicato”, tendo em vista que os temas já foram devidamente apreciados pelo órgão colegiado, a quem caberia eventual revisão, quando submetidas a referendo. Nessa linha, o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL firmou o entendimento, plenamente aplicável ao caso concreto, segundo o qual “é incabível o reexame de matéria decidida por este Supremo Tribunal” (AP 474, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, Pleno, DJe de 7/2/2013). No mesmo sentido: AP 1.044, Rel. Min. ALEXANDRE DE MORAES, Pleno, DJe de 23/6/2022.

De fato, no tocante à alegada incompetência da Justiça Eleitoral, o TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL, em 13/12/2022, concluiu que “os requisitos para a definição da competência do TSE foram devidamente delimitados pela parte autora, que narra que o Presidente da República, utilizando-se de seu cargo, convocou reunião com embaixadores de países estrangeiros, mas, agindo com desvio de finalidade, teria passado a atacar a integridade do sistema eleitoral, em estratégia amoldada à sua campanha, beneficiando-se, ainda, da ampla repercussão da transmissão do evento pela TV Brasil”.

A narrativa veiculada na petição inicial ajusta-se, em tese, ao conceito de abuso do poder político, ilícito cuja configuração exige, além da condição de agente público, a prática de atos que, “valendo-se de condição funcional e em manifesto desvio de finalidade, desequilibra disputa em benefício de sua candidatura ou de terceiros” (RO 3783-75, Rel. Min. HERMAN BENJAMIN, DJe de 6/6/2016).

Dessa forma, uma vez que os fatos atribuídos aos Investigados se enquadram no conceito de abuso do poder político, a análise sobre a efetiva ocorrência do desvio de finalidade e da conotação eleitoral da conduta vincula-se ao próprio mérito da AIJE, competindo à JUSTIÇA ELEITORAL proceder ao exame a respeito da caracterização, ou não, do ilícito.

Em relação à admissão de documentos novos e à suposta violação ao princípio da correlação decorrente de indevida ampliação objetiva da demanda, o Plenário desta CORTE, referendando a decisão monocrática do eminente Relator, assentou que “a apreensão de minuta de decreto de Estado de Defesa em poder do ex-Ministro da Justiça do primeiro investigado, na qual se propunha uma intervenção para invalidar o resultado das eleições presidenciais por alegada ausência de integridade das urnas, é fato que possui aderência aos pontos controvertidos, em especial no que diz respeito à correlação do discurso com a eleição e ao aspecto quantitativo da gravidade. Afinal, o que a autora procura discutir são eventos que se conectam a partir do eixo central da narrativa, segundo a qual o discurso na reunião com embaixadores mirava efeitos eleitorais ilícitos”.

No ato decisório referendado, o Relator, com suporte na orientação jurisprudencial que o TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL firmou sobre a matéria, notadamente no julgamento da AIJE 1943-58, Red. p/ acórdão Min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, ressaltou que, “sob a ótica da causa de pedir jurídica, não houve qualquer inovação no caso, em que se apura abuso de poder político e uso dos meios de comunicação”. Destaca-se, no ponto, o seguinte trecho da decisão:

Sob o ponto de vista dos fatos que compõem a causa de pedir, o documento revelado em 12/01/2023 se conecta às alegações iniciais da parte autora, no sentido de que o discurso proferido por Jair Messias Bolsonaro no encontro com embaixadores em 18/07/2022 era parte da estratégia de campanha consistente em lançar graves e infundadas suspeitas sobre o sistema eletrônico de votação.

De se notar que o fato constitutivo da imputação (evento e discurso ocorridos em 18/07/2022) é incontroverso. As partes disputam a narrativa referente ao contexto em que se insere o episódio. Esses apontamentos constaram da decisão de saneamento e organização do processo.

Ainda, ficou explicitado que a “a estabilização da demanda e a consumação da decadência não impedem que sejam admitidos no processo e considerados no julgamento elementos que se destinem a demonstrar desdobramentos dos fatos originariamente narrados, a gravidade (qualitativa e quantitativa) da conduta que compõe a causa de pedir ou a responsabilidade dos investigados e de pessoas do seu entorno, tais como: a) fatos supervenientes à propositura das ações ou à diplomação dos eleitos, ocorrida em 12/12/2022; b) circunstâncias relevantes ao contexto dos fatos, reveladas em outros procedimentos policiais, investigativos ou jurisdicionais ou, ainda, que sejam de conhecimento público e notório; e c) documentos juntados com base no art. 435 do CPC”.

Por isso mesmo, vê-se não haver qualquer ampliação nos limites da causa de pedir, pois, conforme bem registrou o Ministro BENEDITO GONÇALVES, a petição inicial “contempla a imputação de que o discurso proferido em 18/07/2022 se insere em uma estratégia de campanha do primeiro réu, de difundir fatos sabidamente falsos relativos ao sistema eletrônico de votação, para mobilizar seu eleitorado por força de grave “desordem informacional” atentatória à normalidade do pleito”.

Assim, tratando-se de circunstâncias fáticas que, diretamente relacionadas à causa de pedir, constituem meros desdobramentos da narrativa veiculada na petição inicial, não se verifica violação ao princípio da correlação. Na realidade, surgem como importantes elementos de convicção a permitir a correta valoração do evento central, desencadeador desta ação. Ademais, “a representação do fato contido na imputação não precisa ser absolutamente idêntica à representação do mesmo fato contida na sentença. Não é necessário que haja uma adequação perfeita em toda sua extensão. Pode haver variação de alguns elementos de ambas as representações dos fatos, sem que isso represente alteração do objeto do processo” (BADARÓ, Gustavo Henrique. Correlação entre acusação e sentença. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 104-105).

Na mesma linha, a orientação jurisprudencial do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL firmou-se no sentido de que “inexiste violação do princípio da correlação quando há relação entre os fatos imputados na denúncia e os motivos que levaram ao provimento do pedido da condenação” (RHC 146.303, Red. p/ acórdão Min. DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, DJe de 7/8/2018).

Quanto à suposta ilegalidade na determinação, de ofício, de produção de provas, “suprindo” a deficiente iniciativa probatória da parte autora, constata-se que a necessidade das diligências foi amplamente fundamentada pelo eminente Relator a partir das informações contidas nas provas anteriormente produzidas durante a instrução, sendo os elementos de convicção submetidos posteriormente ao contraditório. No ponto, depreende-se da decisão:

Ademais, quanto à possibilidade da atuação de ofício, deve-se ter em vista que o art. 23 da LC 64/90, impõe que sejam considerados, para o deslinde dessa ação, "fatos públicos e notórios, [...] atentando para circunstâncias ou fatos, ainda que não indicados ou alegados pelas partes, mas que preservem o interesse público de lisura eleitoral". Esse dispositivo, conforme assentado no julgamento da ADI 1082 (Rel. Min. Marco Aurélio, DJe de 30.10.2014), tem sua constitucionalidade vinculada à necessária garantia do contraditório e ao adequado exercício do dever de fundamentação, de modo que, sendo os fatos e circunstâncias relevantes trazidos aos autos pelo magistrado, é indispensável conceder às partes oportunidade para se pronunciar a respeito.

[...]

Adotadas essas balizas, é possível, no caso em análise, extrair do discurso proferido por Jair Messias Bolsonaro em 18/07/2022 e das circunstâncias da realização e da divulgação do evento, o referencial para avaliar quais diligências são efetivamente relevantes ao deslinde do feito.

Extrai-se do vídeo do evento, juntado aos autos (ID 157957944), que as críticas dirigidas contra o sistema eletrônico de votação tiveram como fio condutor a reiterada referência a Inquérito no qual a Polícia Federal teria concluído que hackers tiveram acesso a “diversos códigos-fonte” e teriam sido capazes de “alterar nomes de candidatos, tirar voto de um, transferir para outro”.  Transcrevo trecho, contínuo, em que fica nítida a evocação do episódio como suposta comprovação de que votos teriam sido adulterados nas Eleições 2018, e que poderiam voltar a sê-lo em 2022:

[...]

Observa-se que a fala possui marcadores cronológicos, que conectam passado, momento presente, e projeções para o futuro: a) a alegada fraude ocorrida em 2018, passando pela advertência de que não poderia ter havido eleições em 2020 antes da “apuração total” do ocorrido; b) a própria urgência de endereçar a mensagem aos embaixadores de países estrangeiros, na iminência do período eleitoral de 2022; e, por fim, c) a enfática reivindicação, somente compreensível nesse arco narrativo alarmista, de que as Eleições 2022 fossem “limpas, transparentes, onde o eleito realmente reflita a vontade da sua população”.

Questão controversa, admitida ao debate, e que está conectada ao item “c” supra, é se a repercussão eleitoral do discurso e sua gravidade podem ser evidenciadas pela minuta de decreto de Estado de Defesa apreendida em 13/01/2023 pela Polícia Federal na residência de Anderson Torres – ex-Ministro da Justiça e Segurança Pública do governo de Jair Bolsonaro – durante diligência determinada pelo Ministro Alexandre de Moraes no âmbito do Inquérito nº 4879, que tramita no STF.

Sob outro ângulo – agora, mirando o item “a” supra –, chama a atenção que o Inquérito da Polícia Federal no qual supostamente se basearia a alegação de fraude nas Eleições 2018 (e de não solução do problema) foi objeto de live realizada por Jair Messias Bolsonaro no ano de 2021. Esse fato também foi mencionado para os embaixadores – “Eu tive acesso a esse inquérito no ano passado [2021], e divulguei”, diz.

A transmissão referida ocorreu no dia 29/07/2021, e, nela, o então Presidente da República, usa o documento para sustentar que houve fraude no sistema eletrônico de votação e interesse do Tribunal Superior Eleitoral em obstar a auditabilidade. Na ocasião, estavam presentes, e participaram com falas, Anderson Gustavo Torres, Ministro da Justiça e Segurança Pública, e Eduardo Gomes da Silva, assessor da Presidência da República.

O fato acima é objeto de apuração no Inquérito Administrativo nº 0600371-71, que tramita sob minha relatoria. Conforme recente decisão que proferi naquele feito, ao passar os autos em revista, constato que estão reunidos elementos que podem ter relevância para o deslinde da AIJE, a saber:

a) degravação da live de 29/07/2021 e de entrevista concedida por Jair Messias Bolsonaro ao programa “Pingos nos is”, da Jovem Pan, em 04/08/2021, e de uma segunda live, veiculada em 12/08/2021, sobre o tema (transcrições juntadas nos IDs 147980688, 156064688, 156064738 e 156885874);

b) manifestação da Secretaria de Tecnologia da Informação do TSE, contendo esclarecimentos sobre o sistema eletrônico de votação e totalização (relatórios técnicos juntados nos IDs 154106088 e 154113838);

c) depoimentos prestados por Eduardo Gomes da Silva e Anderson Gustavo Torres na Corregedoria-Geral Eleitoral (audiência realizada em 12/08/2021, depoimentos juntados nos IDs 149194688, 150457388, 149194038 e 150457338);

d) relatório produzido pela Polícia Federal no Registo Especial nº 2021.0058802 (ID 149637788); e

e) cópias extraídas da Petição 9.842/DF (ID 157315529) e do Inquérito 4.878/DF (IDs 157400756 e 157400757), ambos em trâmite no STF, destacando-se que há na documentação depoimento dos peritos da Polícia Federal Ivo de Carvalho Peixinho e Mateus de Castro Polastro, servidores que foram convocados antes da live para tratar com o Presidente da República sobre o teor do inquérito em curso.

No que diz respeito ao item “b” supra – o momento em que o primeiro investigado se dirigiu aos embaixadores – há um fato a exigir apuração. Ao final do discurso, Jair Messias Bolsonaro expressamente afirmou que Carlos Alberto Franco França, então Ministro das Relações Exteriores, iria encaminhar “extrato” da reunião às Embaixadas, e que disponibilizaria aos interessados, também, a íntegra do Inquérito da Polícia Federal, verbis:

[...]

Carlos Alberto Franco França, ouvido em juízo como testemunha de defesa em 19/12/2022, por sua vez, declarou que desconhece a remessa de documentos sobre o evento às embaixadas, a partir de seu Ministério, e que não se recorda de conversa a respeito com chanceler estrangeiro.

Aliás, as três testemunhas de defesa ouvidas, embora arroladas com a justificativa de que diante das suas “relevantes funções desempenhadas” teriam conhecimento particular sobre a dinâmica do evento, relataram que, pessoalmente ou por meio dos órgãos sob sua gestão (Casa Civil, Ministério das Relações Exteriores e Assessoria Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência), não tiveram envolvimento significativo no evento e desconheciam o que seria tratado.

Nesse cenário, documentos acaso existentes nos órgãos acima referidos podem vir a elucidar se contribuíram, ou não, para preparar ou repercutir evento, e, em caso positivo, de que forma atuaram.

Por fim, pertinente que sejam ouvidas, em juízo, pessoas que detêm inequívoco conhecimento dos fatos em debate, a fim submeter suas versões ao crivo do contraditório, assegurada a arguição pelas partes e pelo Ministério Público Eleitoral. Nesse particular, e em prestígio à máxima objetividade da instrução, cabível a inquirição de:

a) Anderson Gustavo Torres, ex-Ministro da Justiça e da Segurança Pública, a respeito de sua contribuição e participação na live de 29/07/2021, seu eventual envolvimento na reunião de 18/07/2022 e circunstâncias relativas ao decreto de Estado de Defesa apreendido em sua residência, no dia 12/01/2023:

b) Eduardo Gomes da Silva, Coronel reformado, a respeito de sua contribuição e participação na live de 29/07/2021;

c) Ivo de Carvalho Peixinho e Mateus de Castro Polastro, servidores da Polícia Federal, para tratar sobre as circunstâncias em que foram envolvidos na live de 29/07/2021.

Nesse contexto, verifica-se que as diligências determinadas pelo eminente Relator inserem-se nos poderes instrutórios do magistrado, nos termos do artigo 23 da LC 64/90, sendo plenamente admissível e compatível com a busca de uma tutela jurisdicional justa e efetiva.

De fato, conforme ensina a eminente Professora ADA PELLEGRINI GRINOVER, “O papel do juiz, num processo publicista, coerente com sua função social, é necessariamente ativo. Deve ele estimular o contraditório, para que se torne efetivo e concreto. [...] O juiz deve tentar descobrir a verdade e, por isso, a atuação dos litigantes não pode servir de empecilho à iniciativa instrutória oficial. Diante da omissão da parte, o juiz em regra se vale dos demais elementos dos autos para formar seu convencimento. Mas se os entender insuficientes, deverá determinar a produção de outras provas, como, por exemplo, ouvindo testemunhas não arroladas no momento adequado. Até as regras processuais sobre a preclusão, que se destinam apenas ao regular desenvolvimento do processo, não podem obstar ao poder-dever do juiz de esclarecer os fatos, aproximando-se do maior grau possível de certeza, pois sua missão é pacificar com justiça” (GRINOVER, Ada Pellegrini. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal acusatório. Revista Brasileira de Ciências Criminais – Ano 7 – n. 27 – Julho-Setembro, 1999, p. 73-74).

Ainda, após enfatizar que tal “iniciativa oficial no campo da prova, por outro lado, não embaça a imparcialidade do juiz”, a eminente Professora afirma que “existem balizas intransponíveis à iniciativa oficial, que desdobram em três parâmetros: a rigorosa observância do contraditório, a obrigatoriedade de motivação, os limites impostos pela licitude (material) e legitimidade (processual) das provas” (GRINOVER, Ada Pellegrini. Op. Cit. p. 74).

Mencionadas balizas, como visto, foram amplamente observadas, tendo em vista que a produção da prova foi determina com base em critérios de relevância e pertinência. Ou seja, como adverte o Professor ANTÔNIO MAGALHÃES GOMES FILHO, a prova é pertinente quando houver conexão entre o meio de prova requerido e os fatos controvertidos, ao passo que a prova é relevante quando tiver aptidão para estabelecer a existência ou inexistência, a verdade ou a falsidade, de um fato por meio do qual seja possível realizar uma inferência lógica do fato principal (Direito à prova no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 130).

Ainda, os elementos de convicção foram submetidos ao contraditório e não constituem provas revestidas de ilicitude.

De igual modo, no que concerne à expedição de ofício ao Ministro-Chefe da Casa Civil, não se mostra suscetível de acolhimento o argumento segundo o qual se tratou de “delegação de poder instrutório”, pois, como bem enfatizou o Relator ao indeferir o pedido de reconsideração da defesa, “a requisição é o meio usual pelos quais os órgãos públicos compartilham entre si documentos que estão em seu poder, impondo-se aos agentes públicos responsáveis o dever de prestar informações complementas, autênticas e fidedignas. Isso independe do grupo que se encontre no exercício do poder político e é, mesmo, inerente ao princípio republicano e à impessoalidade”.

Além disso, não se verifica cerceamento do direito de defesa a posterior dispensa da oitiva de Eduardo Gomes da Silva, indicado como testemunha do juízo, bem como o indeferimento do pedido de requisição de cópias do inquérito e da denúncia constantes em matéria veiculada pela CNN, uma vez que “a inquirição de testemunha do Juízo situa-se no âmbito da discricionariedade do julgador” (RHC 171.934, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, DJe de 10/11/2020).

Impõe-se ressaltar, no mais, que o eminente Relator concluiu no sentido da dispensabilidade do depoimento da testemunha, uma vez que sua relevância “ficou prejudicada em razão das declarações de Anderson Gustavo Torres, Ivo Peixinho e Mateus Polastro”, não havendo qualquer ilegalidade no indeferimento do pedido da defesa, pois “da mesma forma que se revela viável, ao Juízo, reconsiderando óptica veiculada, autorizar a produção de prova inicialmente deferida, surge legítimo o pronunciamento por meio do qual, ante superveniente constatação da dispensabilidade, indeferida a realização de diligência postulada pela parte, ainda que anteriormente autorizada” (HC 169.846, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, DJe de 28/11/2019).

Por sua vez, no que concerne ao acesso ao inquérito mencionado em notícia da CNN, o Relator indeferiu a diligência por entender que a alusão ao procedimento investigatório, ocorrida durante a oitiva de Filipe Barros, tratou-se de mera conjectura utilizada para o questionamento da testemunha, de modo que “o pretendido acesso a autos da referida investigação é manifestamente desproporcional ao contexto em que a notícia da CNN foi mencionada, como simples elemento ilustrativo da pergunta formulada em audiência”.

A conclusão do Relator, assim, ajusta-se ao entendimento do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL sobre o tema, no sentido de que “inexiste qualquer nulidade no procedimento do Magistrado que indefere, motivadamente, pedido de produção de provas, pois, como se sabe, o juiz exerce, nessa matéria, irrecusável competência discricionária, que lhe permite, a partir de uma avaliação pessoal quanto à conveniência, utilidade ou necessidade da medida, ordenar, ou não, sempre em decisão fundamentada, a adoção dessa providência de caráter instrutório” (AgR-RHC 138.119, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, DJe de 7/2/2019).

Por fim, não se mostra viável acolher o argumento referente à ilegitimidade passiva do Investigado Walter Souza Braga Neto, então candidato a Vice-Presidente, pois, conforme o enunciado 38 da Súmula do TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL, “nas ações que visem à cassação de registro, diploma ou mandato, há litisconsórcio passivo necessário entre o titular e o respectivo vice da chapa majoritária”.

O fato superveniente, consistente na ausência de êxito dos Investigados nas Eleições, não destitui a legitimidade passiva do candidato à Vice, de modo que a aferição da sua responsabilidade nos atos descritos na petição inicial, em tese ilícitos, constitui controvérsia vinculada ao mérito.

Sendo assim, REJEITO as preliminares suscitadas pela defesa.

 

II – Mérito:

 

O objeto da presente AIJE consiste na ocorrência de abuso do poder político, uso indevido dos meios de comunicação e prática de conduta vedada, inferidas da reunião, ocorrida em 18/7/2022 no Palácio da Alvorada, na qual o Investigado Jair Messias Bolsonaro, na presença de embaixadores de países estrangeiros convocados, ao discursar, desfere ataques ao sistema eletrônico de votação e a Ministros do TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL e do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.

O evento em questão foi transmitido pela TV Brasil, bem como divulgado nas redes sociais do então Presidente no Facebook e no Instagram.

Do teor do discurso proferido, infere-se que praticamente toda a fala do Investigado, sob o alegado pretexto de realizar diálogo institucional a respeito do processo eleitoral, representou, com suporte em informações falsas e descontextualizadas, a criação de narrativa visando a destituir a credibilidade do sistema eletrônico de votação, com indicação da existência de conspiração envolvendo Ministros desta CORTE.

Me parece que, na presente hipótese, principalmente após o detalhadíssimo voto do eminente Ministro Relator, Benedito Gonçalves, que por mais importante que seja a questão a ser resolvida na presente AIJE a solução é extremamente simples, pois deverá ser tomada com parâmetros já totalmente definidos pela jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral desde 2021. Isso me parece o mais relevante.

E a questão a ser definida é se a convocação oficial de embaixadores estrangeiros, convocação essa realizada diretamente por um presidente da República, utilizando-se do cargo, do cerimonial da Presidência da República, pré-candidato à reeleição, uma convocação ocorrida a menos de dois meses e meio do primeiro turno das eleições presidenciais, com a utilização de recursos públicos: Palácio da Alvorada, toda a infraestrutura da Presidência, inclusive transmissão ao vivo, pelo canal oficial, a TV Brasil, se essa convocação, para a realização de longa exposição – ou como aqui várias vezes foi denominado: um monólogo –, com fartos ataques ao sistema eleitoral, à Justiça Eleitoral e seus membros, com a utilização flagrante, como será demonstrado, de desinformação e notícias fraudulentas, replicadas pelas redes sociais do investigado e de seus apoiadores, com claro sentido de destruir a credibilidade do sistema eletrônico de votação e com a finalidade de influenciar e convencer o eleitor de que estaria sendo vítima de uma grande conspiração do Poder Judiciário para fraudar as eleições presidenciais em 2022; se essa situação faz parte da atribuição constitucional do chefe de Estado que é presidente da República, se faz parte da sua atribuição constitucional de ter relações exteriores com os demais países, ou, no dizer da defesa, um mero diálogo institucional, ou se isso, se essa situação descrita, se isso constitui abuso do poder político e dos meios de comunicação e prática de conduta vedada pela legislação eleitoral.

E a resposta que a Justiça Eleitoral, principalmente esse Tribunal Superior Eleitoral, dará a essa questão, eu tenho absoluta certeza que essa resposta confirmará a nossa fé na Democracia, a nossa fé no Estado de Direito e o nosso grau, enquanto Poder Judiciário, de repulsa ao degradante populismo, renascido a partir das chamas dos discursos de ódio, dos discursos antidemocráticos, dos discursos que propagam a infame desinformação – desinformação produzida e, a partir da produção, divulgada por verdadeiros milicianos digitais, em todo o mundo. Se esse viés autoritário e extremista é o que nós queremos para a nossa democracia ou se vamos reafirmar a fé na democracia e no Estado de Direito brasileiro.

E digo que a resposta que a Justiça Eleitoral, o Tribunal Superior Eleitoral dará a essa questão confirmará a nossa fé na democracia, no Estado de Direito, porque – e aqui chamo a atenção – diferentemente do que se pretendeu divulgar nos últimos dias, nas últimas semanas, principalmente pelas redes sociais, o Tribunal Superior Eleitoral em nada está inovando.

O Tribunal Superior Eleitoral está reiterando – e isso ficará demonstrado novamente no meu voto, como já ficou nos votos anteriores –, mas o Tribunal Superior Eleitoral em nada está inovando. Simplesmente está reiterando seu posicionamento, consubstanciado em julgamentos de inúmeras Aijes, e principalmente de duas Aijes que foram julgadas em conjunto e de um recurso ordinário, no dia 28 de outubro de 2021, onde se reforçou – e o Tribunal fez questão de salientar isso –, se reforçou a proteção à Democracia, a proteção e defesa de eleições livres, a confirmação da essencialidade das instituições.

Este TRIBUNAL SUPERIOR ELEIOTORAL, sobre o tema, firmou a compreensão no sentido de que “a internet, incluídas as aplicações tecnológicas de mensagens instantâneas, enquadra-se no conceito de “veículos ou meios de comunicação social” a que alude o art. 22 da LC 64/90” (AIJE 0601968-80, Rel. Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, DJe de 22/8/2022).

A Justiça Eleitoral avisou a todos os participantes das eleições que ocorreriam no ano seguinte que não admitiria extremismo criminoso e atentatório aos Poderes de Estado, que não admitiria notícias fraudulentas, desinformação, a título de tentar enganar os eleitores sobre fraude às eleições, sobre o sistema eleitoral. Isso em dois acórdãos, em decisões do dia 28 de outubro de 2021, isso ficou pacificado e como um alerta para se evitar exatamente o que estamos fazendo hoje, nesses dias, se evitar que o descumprimento do que já era pacífico gerasse a inelegibilidade daqueles que insistissem em praticar esses ilícitos eleitorais.

Nenhum pré-candidato, nenhum candidato – e especialmente o investigado nessa Aije, Jair Messias Bolsonaro – poderia alegar desconhecimento sobre o posicionamento desta Corte Eleitoral das principais premissas que deveriam ser observadas – em observância também à Constituição e à legislação – para as Eleições de 2022.

E digo isso porque nas Aijes julgadas no dia 28 de outubro, o investigado era o mesmo investigado na presente Aije – o, à época, então presidente, hoje ex-presidente, Jair Messias Bolsonaro. Então não há como se alegar desconhecimento do que seria abuso do poder político, do que seria abuso e uso indevido dos meios de comunicação, porque a Corte já havia definido isso.

A Corte já havia definido de forma pública e definido para todos os candidatos, independentemente de partido, independentemente de ideologia. Todos os pré-candidatos e depois candidatos tinham consciência dos parâmetros estabelecidos e que deveriam ser rigorosamente observados nas Eleições de 2022.

O primeiro parâmetro: julgamento do recurso ordinário eleitoral, de relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão – já citado aqui –, onde foi cassado o diploma e declarada a inelegibilidade de candidato a deputado estadual eleito. O Tribunal Superior Eleitoral – e é isso o que importa, a meu ver –, o Tribunal Superior Eleitoral decidiu que agentes públicos que realizassem ataques fraudulentos, mentirosos ao sistema eletrônico de votação para iludir o eleitor sobre uma fraude inexistente, disseminando essa desinformação, gerando incertezas sobre a lisura do pleito, em benefício eleitoral, que isso consistiria abuso do poder político. E isso geraria cassação e inelegibilidade. Vejam, a definição foi feita. A definição do fato que levaria à cassação e inelegibilidade já estava prevista, desde 2021, quando o agente público, qualquer que fosse, se utilizasse da sua prerrogativa para tal propósito, para, indevidamente, usar os meios de comunicação, inclusive as redes sociais.

Então, o Tribunal Superior Eleitoral – e esse é o segundo ponto – fixou também, e aí nas Aijes, também de relatoria do então Corregedor, Ministro Luis Felipe Salomão, fixou nas Aijes que a internet, incluídas as aplicações tecnológicas de mensagens instantâneas, todas as redes, inclusive a que se referia ao WhatsApp, enquadrariam-se no conceito de veículos ou meios de comunicação social a que alude o art. 22 da Lei Complementar 64/90. Ou seja, nenhum candidato, nenhum pré-candidato e, principalmente, o investigado na presente Aije, porque era o investigado naquelas Aijes, ninguém poderia alegar surpresa – porque já estava definido o que seria o abuso nos meios de comunicação, incluindo as redes sociais, e já estava definido que seria abuso do poder político se utilizar do cargo para falsamente, de forma mentirosa, acusar de fraude o sistema eleitoral.

As premissas estavam pré-fixadas para todos que pretendessem concorrer às Eleições de 2022. Seria desvio de finalidade a utilização do cargo público para realização de ataques ao sistema eleitoral, com acusações mentirosas de fraude nas eleições, por manipulação nas urnas eletrônicas e, na sequência, porque isso é um modus operandi, na sequência, a propagação por meio das redes sociais, para dar, levar essa dúvida e insuflar o eleitorado contra os demais candidatos e contra a Justiça Eleitoral. Isso estava pacificado que levaria qualquer, qualquer pré-candidato ou candidato, que assim atuasse, isso levaria à sua condenação por abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação, com a consequente cassação, quando possível, e o registro e a inelegibilidade.

E foi muito importante a fixação desses parâmetros – como é muito importante a reafirmação desses parâmetros no julgamento de hoje –,  foi importante para as Eleições de 2022 e será importante para as Eleições de 2024, 2026 e assim por diante, para que pré-candidatos e candidatos não se utilizem dos seus cargos públicos para disseminar notícias fraudulentas sobre o sistema eleitoral, sobre fraude das urnas; aproveitando, depois, para disseminar desinformação via mecanismos de redes sociais, para, com isso, atingir o eleitor.

Isso é importante, essa definição, e hoje essa reafirmação, é importante para proteção da lisura das eleições e da plena isonomia entre todos os candidatos. Não importa qual candidato, não importa qual ideologia, o Tribunal Superior Eleitoral, ele não se preocupa com quem é o candidato, quem é o pré-candidato ou qual é a ideologia; se preocupa que haja lisura nas eleições e um tratamento isonômico em relação a todos os candidatos.

Ora, a partir dessas premissas, que já estavam fixadas e reafirmadas, principalmente, desde outubro de 2021, o que fez o primeiro investigado, Jair Messias Bolsonaro, na condição de presidente da República? Ele organizou e promoveu, em 18 de julho de 2022, com o auxílio do cerimonial do Palácio – aqui foi dito várias vezes, o Itamaraty não participou; o então chanceler reafirmou isso. Ah, se o Itamaraty não organizou, e que seria – e a Ministra Cármen Lúcia até trouxe o decreto que determina isso –, seria competência do Itamaraty. Ah, mas se o Itamaraty não realizou talvez a Casa Civil tenha organizado. E o eminente Ministro Relator, com o zelo e o cuidado necessário, ouviu o então Chefe da Casa Civil, Ministro-Chefe da Casa Civil, Senador Ciro Nogueira, que também não organizou e mais: disse que era contrário à realização dessa reunião.

Na hipótese, as circunstâncias fáticas que envolvem a reunião, tendo em vista seus antecedentes, estrutura e teor do discurso, demonstram a configuração de todos os elementos que compõem os ilícitos atribuídos ao Investigado, considerada a atuação com desvio de finalidade e revestido de conotação eleitoral, acompanhados da gravidade apta a comprometer a lisura e a higidez das Eleições.

Tal fato é corroborado pelas declarações prestadas pelo então Ministro das Relações Exteriores (ID 158766494),o qual, inclusive, também afirmou que a realização da reunião deu-se por iniciativa do próprio Presidente da República, tendo, como propósito, manifestar a posição do Poder Executivo no tocante aos critérios de transparência das urnas eletrônicas. A testemunha, ainda, ressalta não ter havido participação sua na confecção dos slides exibidos por Jair Messias Bolsonaro.

O DOUTOR MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (Juiz Auxiliar da Presidência do TSE): Hum-hum. É... no dia 18.7, agora indo especificamente ao que tá nos... na... na petição inicial, no dia 18.7.2022, qual foi o seu papel, como chanceler, nesse... nessa organização do evento com os embaixadores, para a reunião com o presidente da República?

O SENHOR EMBAIXADOR CARLOS ALBERTO FRANÇA (Ministro das Relações Exteriores): Bom, essa reunião, aquela a que o Senhor se refere, aconteceu no Palácio do Alvorada, não é isso? O DOUTOR MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (Juiz Auxiliar da Presidência do TSE): Isso. O SENHOR EMBAIXADOR CARLOS ALBERTO FRANÇA (Ministro das Relações Exteriores): Bom, essa... esse encontro ocorre... é... por iniciativa da... organizado pelo Cerimonial da Presidência da República... ah... num contato que aconteceu depois que houve aqui, houve uma espécie de briefing, ou uma reunião de coordenação aqui, no Tribunal Superior Eleitoral, né, e julgou-se então que era papel da Presidência da República também se manifestar diretamente aos chefes de missão aqui acreditados, dentro da linha de que o presidente da República é o que... enfim... conduz a política externa em relação com os Estados estrangeiros.

[...]

O SENHOR EMBAIXADOR CARLOS ALBERTO FRANÇA (Ministro das Relações Exteriores): É. Mas... o... é... a... um evento no Palácio da Alvorada ou no Palácio do Planalto, ele é organizado pelo Cerimonial da Presidência da República. Eu sei disso porque eu fui chefe do Cerimonial da Presidência da República. Então...

O DOUTOR MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (Juiz Auxiliar da Presidência do TSE): E... Ministro... o... o... o Senhor disse que houve essa decisão de se fazer essa reunião. Essa decisão partiu diretamente da Presidência da República?

O SENHOR EMBAIXADOR CARLOS ALBERTO FRANÇA (Ministro das Relações Exteriores): Essa decisão foi uma decisão da Presidência da República.

[...]

O DOUTOR MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (Juiz Auxiliar da Presidência do TSE): E sobre essa antecedência do convite, o Senhor não tem condição...?

O SENHOR EMBAIXADOR CARLOS ALBERTO FRANÇA (Ministro das Relações Exteriores): Não. Não... não... não me recordo, não. Houve... houve... houve, na verdade, assim, eu penso, uma ideia do presidente de se dirigir aos chefes de missão, no sentido um pouco de esclarecimento, ou de dizer qual era... ah... ah... a busca que se tinha naquele momento... é..., talvez de transmitir, Excelência, um... um debate que era muito presente na sociedade brasileira naquele momento. Ah... um debate que não era exclusivo do Executivo; um debate sobre o aperfeiçoamento do sistema eleitoral brasileiro, sobre a transparência... é..., que acontecia vamos... vamos... Se eu me recordo bem, em 2019 havia uma PEC no Congresso Nacional, havia um debate sobre a questão do voto auditável. Ah... esse debate, ele depois se transfere ao Judiciário – havia uma... uma... uma... um debate todo. Assim, e o Executivo, ele participa desse debate também. E penso que... é... a intenção do presidente da República em... em chamar aquela reunião, convocar aquela reunião, ou propor aquela reunião, era um pouco manifestar a... a posição do Executivo em relação à busca... é... dessa.... desses critérios de transparência... ah... enfim, de conformidade. A ideia de que, enfim, o voto do eleitor tinha que ser respeitado. Um pouco... um pouco, eu acho, dentro do âmbito do que se quer a democracia vibrante de um país grande como é o... o Brasil, né? O Senhor sabe, não é todo país que... que tem a dimensão do nosso... ah... na organização das eleições. Eu, agora conversando aqui, me recordo que em setembro passado, recebi em Nova Iorque, durante a semana que estive lá e realizei 22 reuniões – me lembro bem o número –, uma delas foi com o chanceler indiano... ah... chanceler Jaishankar. E ele me perguntou sobre as eleições brasileiras, quando seriam, se era um turno, se eram dois turnos. E quando eu disse a ele que nós realizávamos eleições no exterior, ele ficou muito impressionado. Quando eu disse o número de sessões eleitorais, ele falou aos assessores dele ali – deve... talvez haja um relato sobre isso, não sei, mas... é... eu me recordo realmente do que ele falou. Ele falou: – Puxa, esse é um exemplo para nós. Nós poderemos montar uma eleição no exterior também... é... com base na experiência brasileira. E me recordo que até um assessor dele disse o seguinte: – Puxa, mas é que nós temos muito mais eleitores que ele. Ele falou: – Claro, nós temos uma população grande, maior que a do Brasil. No entanto, o princípio é o mesmo, não é? É... é... e aí ele discorreu um pouco sobre o sistema. Parece que lá – salvo engano... é... se... se... se não me falha a memória, ele me disse que eles usam também a urna eletrônica. Agora, eles têm lá uma parte das urnas – eu não me recordo agora se eles têm uma parte das urnas que também imprime o voto, ou se eles têm algumas sessões onde o voto é apenas impresso. Mas eu sei que eles têm um sistema híbrido justamente por conta dessa... dessa... é... preocupação em... em... em auditar o que eles chamam (ININTELIGÍVEL) de materialização do voto. Eu me lembro que ele falou dos três momentos, que era, enfim, a emissão do voto, a materialização do voto, e depois eu acho que a apuração do voto, o escrutínio do voto. É... então, ele falou que há um sistema lá – eu me lembro que ele discorreu um pouco, perguntou, mas eles também usam porque é um contingente de gente muito grande, né? Uma democracia... a Índia é bastante vibrante.

Mas... é... como eu falei, eu acho que é dentro desse espírito desse debate que há na sociedade brasileira, ou havia naquele momento pré-eleitoral, é que se convocou aquela reunião. Eu acho que era um debate que, como eu falei, já existia no Legislativo... é..., era objeto no próprio Judiciário. E eu acho, portanto, é... foi assim que eu vi a manifestação do Presidente Fachin, às missões estrangeiras, a necessidade inclusive manifestada, que o Itamarati trabalhou junto, na questão das missões de observação eleitoral – o que, claro, tem essa dimensão internacional. E, evidentemente, eu acho que o Executivo não fugiu ao debate, né?

O Senador Ciro Nogueira, em seu depoimento (ID 158766495) negou qualquer iniciativa da Casa Civil em relação a suscitar dúvidas sobre o sistema eleitoral, ressaltando sua confiança no sistema. Não prestou maiores esclarecimentos sobre a preparação do evento, bem como das informações que subsidiaram o discurso do Investigado na ocasião.

A testemunha Flávio Augusto Viana Rocha, ex-Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (ID 158766496) apenas noticiou haver prestado apoio logístico-administrativo na realização do evento.

Por sua vez, a prova documental encaminhada pela Casa Civil indica a substancial relevância que o evento assumiu, bem como a incomum celeridade entre os preparativos e sua efetiva realização. Nesse sentido, impõe-se destacar: i) o Ofício-Circular nº 83/2022/GPPR-CERIMONIAL/GPPR (ID 158839080), de 13/7/2022 – ou seja, 2 dias antes da reunião – mediante o qual as unidades envolvidas foram comunicadas que o então Presidente da República receberia os chefes de missões diplomáticas; ii) nota fiscal (ID 158839076), no valor de R$ 12.214,12, concernente ao planejamento e apoio logístico, tendo em vista sonorização, gerador, painel de LED, coordenação de eventos e operação de equipamento audiovisual; iii) 98 convites, datadas de 13 a 17/7/2022, a embaixadores; iv) 21 convites (ID 158839191) direcionados a Presidentes do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, Tribunais Superiores, Casas Legislativas do Congresso Nacional e do Conselho Federal da OAB, além de Ministros de Estado, Procurador-Geral da República e Advogado-Geral da União; v) “lista para segurança” (ID 158851449), com 141 pessoas, das 21 são autoridades brasileiras, 110 representantes diplomáticos e 8 indicadas como apoio “livre”.

Realmente, todas essas circunstâncias se revelam juridicamente aptas a demonstrar que, longe de configurar mero debate institucional, a reunião representou indevida e ilícita utilização das prerrogativas inerentes ao elevado cargo de Presidente da República para, em razão de interesses pessoais do mandatário, convocar reunião com a comunidade internacional, amplamente divulgada e transmitida.

Então não resta nenhuma dúvida de que foi o próprio presidente que organizou, com o cerimonial do Palácio, a toque de caixa, determinou que, dois dias antes – isso consta nos autos, uma reunião com altos representantes diplomáticos –, determinou que a TV Brasil transmitisse e, a partir disso, no modus operandi que, lamentavelmente, segue e seguiu durante todo o mandato, as redes sociais divulgassem desinformação produzida nessa reunião.

Veja, de oficial, só o desvio de finalidade praticado pelo então presidente da República. Porque o Itamaraty não só não organizou, não foi avisado e não participou. A Casa Civil, da mesma forma. A Secretaria de Assuntos Estratégicos, também não. Foi ouvido o ex-Ministro Almirante Flávio Rocha, também não participou. Algo eleitoreiro, um monólogo eleitoreiro. Pauta da reunião definida exclusivamente pelo primeiro investigado, então presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, uma pauta dele, pessoal, eleitoral, em um período, repito, a dois meses e meio faltando para o primeiro turno das eleições. E qual foi essa pauta? Essa pauta foi instigar o seu eleitorado e eleitores indecisos, instigar contra o sistema eleitoral, contra a Justiça Eleitoral, contra as urnas eletrônicas.

Quando se coloca que o público-alvo eram embaixadores, representantes diplomáticos que não votam, ora, isso ou é hipocrisia, ou é ingenuidade. Na verdade, todo o mise en scène, toda a produção foi feita para que a TV Brasil divulgasse, mas, mais do que isso, para que a máquina existente de desinformação nas redes sociais multiplicasse essa desinformação, para que chegasse diretamente ao eleitorado, como chegou. E nos autos se coloca isso: quantos twitters, e as demais redes, pessoal e dos seus apoiadores, seguindo um iter, um procedimento aqui, que já havia sido identificado em várias outras oportunidades. E isso foi bem destacado também no parecer, que deixo de ler, pela celeridade, do Vice-Procurador-Geral da República, Professor Paulo Gonet.

Ora, diz a defesa que isso foi no exercício das competências constitucionais de representação diplomática que tem o Chefe de Estado, em um diálogo institucional.

O presidente da República, em um presidencialismo, sabemos todos, é o chefe diplomático do país. É a ele, realmente, que compete, dentro das suas competências constitucionais, as relações exteriores, com os demais países. Isso desde a Constituição Norte-Americana, de 1787, à qual o Brasil, desde 1891, aderiu ao sistema tripartite de poder com o presidencialismo – no Brasil republicano não há dúvida sobre isso: que a diplomacia deve ser feita pelo chefe do Poder Executivo, pelo presidente da República, com o auxílio, logicamente, do seu ministro das relações exteriores, do Itamaraty, mas faz parte – e não há dúvida aqui –, que faz parte das funções presidenciais. O presidente é, realmente, o chefe das relações exteriores, dentro da múltipla chefia que existe no presidencialismo.

Agora, a liderança do presidente, no presidencialismo, em matéria de política externa, ela tem uma finalidade. E a finalidade – aqui é importante destacar – são dois setores complementares: a formulação da política externa e a condução do relacionamento com os diversos países, inclusive os embaixadores.

Ora, basta assistir ao vídeo, basta ler a transcrição da reunião para ver que nenhuma dessas funções, relacionadas à condução da política externa, foi realizada nessa reunião; basta analisar o vídeo, basta vê-lo – depois como dois embaixadores até publicaram nota de repulsa – para verificar que o desvio de finalidade é patente, foi patente.

Nesse contexto, impõe-se destacar trechos da fala do investigado, a fim de proceder à sua adequada contextualização e evidenciar as premissas em que apoiam.

O início da fala, de modo a indicar a vulnerabilidade do sistema e sua suscetibilidade a sofrer interferências, lastreia-se em “denúncia que foi de conhecimento do Tribunal Superior Eleitoral, onde o hacker diz, claramente, que ele teve acesso a tudo dentro do TSE”, fato que teria dado ensejo a instauração de inquérito policial:

Tudo que vou falar aqui, está documentado, nada da minha cabeça. O que eu mais quero para o meu Brasil é que a sua liberdade continue a valer também, obviamente, depois das eleições. O que eu mais quero, por ocasião das eleições, é a transparência. Porque nós queremos que o ganhador seja aquele que realmente seja votado. Nós temos um sistema eleitoral que apenas 2 países no mundo usam. No passado, alguns países tentaram usar, começaram até a usar esse sistema e rapidamente foi abandonado. Repito, o que nós queremos são eleições limpas, transparentes, onde o eleito realmente reflita a vontade da sua população.

Teria muita coisa a falar aqui mas eu quero me basear exclusivamente em um inquérito da Polícia Federal que foi aberto após o 2º turno das eleições de 2018, onde um hacker falou que tinha havido fraude por ocasião das eleições. Falou que ele tinha invadido, o grupo dele, o TSE. O Tribunal Superior Eleitoral. Obviamente, quando se fala em manipulação de números após eleições, quem manipula é quem ganhou. Então seria eu o manipulador. E a Polícia Federal começou, então, a apurar se houve ou não manipulação e de quem seria a responsabilidade.

Então, tudo começa nesta denúncia que foi de conhecimento do Tribunal Superior Eleitoral, onde o hacker diz, claramente, que ele teve acesso a tudo dentro do TSE. Disse mais: obteve acesso aos milhares de código-fontes, que teve acesso à senha de um Ministro do TSE, bem como de outras autoridades, várias senhas ele conseguiu. E obviamente, a senhora ministra do TSE, na época, e também é do Supremo Tribunal Federal, Rosa Weber, fez com que o inquérito fosse instalado. “Então, temos aqui a instauração do inquérito. Segundo o TSE, a gente vai ver aqui na frente, os hackers ficaram por 8 meses dentro dos computadores do TSE. Com códigosfonte, com senhas e muito à vontade dentro do Tribunal Superior Eleitoral. E, diz ao longo do inquérito que eles poderiam alterar nomes de candidatos, tirar voto de um, transferir para outro. Ou seja, o sistema, segundo documento do próprio Tribunal Superior Eleitoral e conclusão da Polícia Federal, um processo aberto a muitas maneiras de se alterar o processo de votação. Então, de imediato, a Polícia Federal pediu o tal de logs, né, que é a impressão digital do que acontece dentro do sistema informatizado. O que é natural também, é o órgão invadido fornecer os logs independente de pedidos. A Polícia Federal pediu os logs que podiam ser entregues no mesmo dia ou no dia seguinte, mas, sete meses depois, segundo documentos comigo, o TSE informou que os logs haviam sido apagados. “E, uma coisa muito importante, esse inquérito, aberto no mês seguinte do segundo turno das eleições de 2018, até hoje não foi concluído ainda. Diz aqui o próprio TSE e conclusões da própria Polícia Federal: ‘O atacante invasor conseguiu copiar toda a base de dados’. Repito, conseguiu a senha de um ministro do Tribunal Superior Eleitoral. Também a senha do coordenador de Infraestrutura, Cristiano Andrade, que é a pessoa de confiança do chefe de TI chamado Giuseppe Janino. “Então, prosseguindo, o invasor teve acesso a toda a documentação no TSE, toda a base de dados, por 8 meses. É uma coisa que, com todo o respeito, eu sou o Presidente da República do Brasil, eu fico envergonhado de falar isso aí. O que é comum, né, acontecer em alguns países do mundo, é o chefe do Executivo conspirar para ele, conseguir uma reeleição. Estamos fazendo exatamente o contrário, porque temos pela frente 3 meses até as eleições. Mais na frente, tudo que eu falo aqui ou é conclusão da PF ou é diretamente informações prestadas pelo TSE.

O senhor secretário atesta, categoricamente, que o invasor obteve domínio sobre usuários e senhas, que permite a alteração de dados de partidos e candidatos. Até mesmo a sua exclusão, no contexto do processo eleitoral’. Ou seja, esse grupo de invasores puderam até mesmo excluir nomes e, mais, trocar votos entre candidatos. E o que aconteceu depois de tudo isso? Eu tive acesso a esse inquérito no ano passado, divulguei, é um inquérito que não tem qualquer classificação sigilosa e, ao divulgar, o Ministro Alexandre de Moraes abre o inquérito para me investigar sobre vazamento. Em depoimento, o delegado encarregado do inquérito foi bem claro, o inquérito não tinha qualquer classificação sigilosa. Foi instada a Corregedoria da Polícia Federal, que disse a mesma coisa. E como envolvia um outro deputado, que teve acesso a esse documento, também, a Procuradoria da Câmara dos Deputados disse que o inquérito não tinha qualquer classificação sigilosa.

No ponto, embora o inquérito mencionado pelo Investigado (IPL 1361/2018 – cujo teor foi juntado aos autos) efetivamente exista, seu verdadeiro objeto nada tem a ver com as informações divulgadas por Jair Messias Bolsonaro no evento, sem sequer se referir a suposta fraude nas Eleições 2018.

Na realidade, esta CORTE, por meio de nota divulgada em 5/8/2021, frise-se, em data bem anterior à reunião, já havia desmentido a afirmação feita pelo investigado, expressamente registrando que “o acesso indevido, objeto de investigação, não representou qualquer risco à integridade das eleições de 2018. Isso porque o código-fonte dos programas utilizados passa por sucessivas verificações e testes, aptos a identificar qualquer adulteração ou manipulação. [...] Cabe reiterar que as urnas eletrônicas jamais entram em rede. Por não serem conectadas à internet, não são passíveis de acesso remoto, o que impede qualquer tipo de interferência externa no processo de votação e de apuração. Por essa razão, é possível afirmar, com margem de certeza, que a invasão investigada não teve qualquer impacto sobre o resultado das eleições” (https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2021/Agosto/nota-a-imprensa).

O procedimento investigatório, conforme se verifica da Portaria, foi instaurado, em 8/11/2018, justamente após pedido da então Presidente desta CORTE, Ministra ROSA WEBER, realizado por meio do Ofício nº 5825 GAB-SPR, considerando “a notícia de suposta invasão a sistemas e bancos de dados do TSE, com acesso e divulgação de dados sigilosos daquele Tribunal”, sem qualquer menção a eventual repercussão da conduta sobre a higidez do resultado das Eleições de 2018.

De igual modo, a Informação nº 32-STI, subscrita pelo à época Secretário de Tecnologia da Informação do TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL e juntada ao inquérito policial - cujos trechos foram lidos pelo Investigado no discurso –, não apresenta qualquer alusão à manipulação de votos.

Inclusive, no ponto, o Juízo da 10ª Vara Criminal Federal de São Paulo, ao autorizar o compartilhamento dos elementos de convicção do procedimento investigatório, enfatizou que “as provas carreadas no inquérito se interconectam os fatos apurados no Tribunal Superior Eleitoral e podem ser úteis na instrução da AIJE, notadamente porque o inquérito policial referido não aponta nenhum indício da prática de atos ilícitos voltados a abalar a lisura do processo eleitoral, o que justifica o compartilhamento das provas mesmo diante do sigilo decretado nos autos.

Portanto, é certo que as afirmações do Investigado no sentido de que a invasão hacker viabilizou “tirar voto de um, transferir para outro” não se sustentam, de modo que o objeto do inquérito policial, como visto, não permite a realização de qualquer inferência sobre a lisura do sistema de votação. Já nesse ponto, constata-se que a fala do investigado, mais do que descontextualizada, vem embasada em premissas falsas.

O Investigado, então, no discurso, prossegue na tentativa de minar a credibilidade das urnas eletrônicas, indicando, ainda com base no IPL 1361/2018, a ausência de transparência nas Eleições de 2018 e a impossibilidade, na pendência da referida investigação, de realização das Eleições 2020.

Jair Messias Bolsonaro, ainda, categoricamente afirma que “o sistema é completamente vulnerável, segundo o próprio TSE, e obviamente a conclusão da Polícia Federal”: Merece destaque o seguinte trecho:

“O que nós entendemos aqui no Brasil é que, quando se fala em eleições, elas têm que ser totalmente transparentes, coisa que não aconteceu em 2018. Também, a Polícia Federal, depois que demorou 7 meses para o TSE informar que os logs já haviam sido apagados, repito, eles poderiam ser fornecidos de forma espontânea ou através do requerimento, no mesmo dia, ou no dia seguinte.

Então, 7 meses depois, o TSE informou que os logs haviam sido apagados. E a Polícia Federal concluiu, pela total falta de colaboração do TSE para com a apuração, do que os hackers tinham feito ou não por ocasião das eleições de 2018. E repito, até hoje esse inquérito não foi concluído. Entendo que não poderíamos ter tido eleições em 2020 sem apuração total do que aconteceu lá dentro. Porque o sistema é completamente vulnerável, segundo o próprio TSE, e obviamente a conclusão da Polícia Federal.”

Como visto, as informações se revelam destituídas de substrato fático, pois, além de o inquérito ter sido instaurado a partir de ofício encaminhado pela Presidência desta CORTE, o TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL instaurou procedimento interno visando à apuração administrativa dos fatos e encaminhou informações à autoridade policial, adotando postura ativa e colaborativa na adequada elucidação dos fatos.

Ou seja, não há nada que dê respaldo mínimo à vulnerabilidade do sistema.

O investigado também aponta, fazendo referência à suposta auditoria externa realizada pelo PSDB nas Eleições de 2014, que o sistema não seria auditável, além de sugestionar que, mesmo com recomendação da Polícia Federal, o TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL não adota a impressão do voto:

Só 2 países do mundo usam esse sistema eleitoral nosso. Vários outros países ou não usam ou começaram a usá-lo ou chegaram à conclusão de que não era um sistema confiável porque ele é inauditável. É impossível fazer uma auditoria em eleições aqui no Brasil. E, agora, a fotografia de alguns países, com toda certeza tem gente aqui da Inglaterra, França, Irlanda, Austrália, Alemanha, Hong Kong, Coreia do Sul, Japão. Olha, que o pessoal está acompanhando a apuração. No Brasil, não tem como acompanhar a apuração. Eu não sei o que vem fazer os observadores de fora aqui. Vão fazer o quê? Vão observar o que? Se o sistema é falho, segundo o próprio TSE, é inauditável também segundo uma auditoria externa pedido por um partido político, no caso, o PSDB, em 2014. E, com todo respeito, 8 meses passeando dentro dos computadores do TSE, esse grupo de hackers, será que o TSE não sabia? Vamos continuar? Mais outros países: Taiwan, Rússia, Suíça, Noruega, Itália, Israel. O pessoal tem o que observar. Aqui no Brasil os observadores que, por ventura, vierem para cá, eu queria saber o que eles vão observar aqui.

Em 2014, a conclusão foi de que houve uma dúvida grave. Quem ganhou as eleições? Daria um capítulo, mas eu não vou entrar nesse capítulo aqui. Já está bem bastante curioso o que aconteceu em 2014. A Polícia Federal, nesses momentos, recomendou o voto impresso. Manteriam o sistema eleitoral nosso, mas teria impressora do lado da urna. Onde não haveria contato manual por parte do eleitor e, após a confirmação do voto, esse papel cairia dentro de uma urna e essa urna seria então utilizada na mais na frente para uma contagem física caso houvesse dúvidas sobre quem ganhou as eleições. Então, a documentação do próprio TSE também conclui aqui que não há como fazer uma correspondência entre um eleitor específico e seu voto. Ninguém quer descobrir o voto daquela pessoa para quem ela escreveu ali ou pra quem ela queria votar, não é isso. Esse sistema aqui é impossível fazer qualquer relação ou correlação entre o eleitor e o seu voto. Aqui mais uma vez junto, outro parecer da Polícia Federal em 2018 recomendando que fossem envidados todos os esforços para que possa existir o voto impresso para fins de auditoria, também ignorados. Por 4 vezes o parlamento brasileiro, com a minha participação em todas elas, nós aprovamos o voto impresso ao lado da urna eletrônica sem contato manual do eleitor com o voto, e o Supremo Tribunal Federal disse que era inconstitucional. Inconstitucional no quê?

Ocorre que o TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL já havia desmentido a afirmação, ressaltando que “a auditora feita pelo PSDB não constatou nenhuma irregularidade no processo eleitoral”, isto é, “o fato é que a auditoria feita pelo partido concluiu que não foram identificadas fraudes nas Eleições Gerais de 2014” (https://www.justicaeleitoral.jus.br/fato-ou-boato/checagens/auditoria-do-psdb-nao-encontrou-fraude-nas-eleicoes-de-2014).

Do mesmo modo, a insinuação a respeito de eventual resistência na implantação do sistema impresso por esta CORTE não é verdadeira. Na realidade, o tema, de forma específica, foi exaustivamente apreciado pelo SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, oportunidade em que firmou o entendimento no sentido de que “a exigência legal do voto impresso no processo de votação, contendo número de identificação associado à assinatura digital do eleitoral, vulnera o segredo do voto, garantia constitucional expressa” (ADI 4543, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, Pleno, DJe de 13/10/2014):

CONSTITUCIONAL. ELEITORAL. ART. 5º DA LEI N. 12.034/2009: IMPRESSÃO DE VOTO. SIGILO DO VOTO: DIREITO FUNDAMENTAL DO CIDADÃO. VULNERAÇÃO POSSÍVEL DA URNA COM O SISTEMA DE IMPRESSÃO DO VOTO: INCONSISTÊNCIAS PROVOCADAS NO SISTEMA E NAS GARANTIAS DOS CIDADÃOS. INCONSTITUCIONALIDADE DA NORMA. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE.

1. A exigência legal do voto impresso no processo de votação, contendo número de identificação associado à assinatura digital do eleitor, vulnera o segredo do voto, garantia constitucional expressa.

2. A garantia da inviolabilidade do voto impõe a necessidade de se assegurar ser impessoal o voto para garantia da liberdade de manifestação, evitando-se coação sobre o eleitor.

3. A manutenção da urna em aberto põe em risco a segurança do sistema, possibilitando fraudes, o que não se harmoniza com as normas constitucionais de garantia do eleitor.

4. Ação julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade do art. 5º da Lei n. 12.034/2009.

(ADI 4.543, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, Pleno, DJe de 13/10/2014).

Mais recentemente, a SUPREMA CORTE, ao analisar o modelo híbrido de votação instituído pelo art. 59-A da Lei 9.504/1997 no âmbito da ADI 5.889, incluído pela Lei 13.165/2015, reiterou a mesma compreensão. No julgamento, pelo Plenário, da medida cautelar deferida na mencionada Ação Direta de Inconstitucionalidade, ressaltei que “o art. 59-A, especialmente em seu parágrafo único, na opção – e legitimamente o legislador tem o direito constitucional de optar como será o voto – híbrida, fere o sigilo do voto, a liberdade do voto, porque tem uma potencialidade de identificação do eleitor”.

No julgamento do mérito, o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL concluiu no sentido da PROCEDÊNCIA da ADI, por meio de acórdão assim ementado:

CONSTITUCIONAL E ELEITORAL. LEGITIMIDADE DO CONGRESSO NACIONAL PARA ADOÇÃO DE SISTEMAS E PROCEDIMENTOS DE ESCRUTÍNIO ELEITORAL COM OBSERVÂNCIA DAS GARANTIAS DE SIGILOSIDADE E LIBERDADE DO VOTO (CF, ARTS. 14 E 60, § 4º, II). MODELO HÍBRIDO DE VOTAÇÃO PREVISTO PELO ART. 59-A DA LEI 9.504/1997. POTENCIALIDADE DE RISCO NA IDENTIFICAÇÃO DO ELEITOR CONFIGURADORA DE AMEAÇA À SUA LIVRE ESCOLHA. INCONSTITUCIONALIDADE. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA PROCEDENTE.

(ADI 5.889, Rel. Min. GILMAR MENDES, Pleno, DJe de 5/10/2020).

Ainda, constitui fato notório que o Congresso Nacional, em 10/8/2021, ou seja, em deliberação praticamente 1 ano anterior ao discurso do Investigado, rejeitou a PEC 135/2019, cujo objeto consistia na adoção do comprovante impresso de votação. Daí a constatação óbvia de que não houve por parte desta CORTE a alegada resistência à implantação do voto impresso.

Na sequência, Jair Messias Bolsonaro passa a proferir ataques individuais a Ministros desta CORTE e do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, sugerindo haver uma conspiração em seu desfavor, inclusive fazendo menção ao seu adversário nas Eleições de 2022:

E dai entra, na frente aqui, mais uma personalidade. Deixo claro que quando se fala em ministro Fachin, ele foi o responsável por tornar Lula elegível. Numa interpretação de um dispositivo constitucional, o Lula estava preso, e o Supremo entendeu que a prisão só poderia acontecer em última instância, na 4ª instância. Então, ele foi condenado em 1ª instância, 2ª instância, 3ª instância, todos os placares por unanimidade e estava cumprindo pena de prisão. Com a reinterpretação do Supremo Tribunal Federal, ele foi pra rua. Mas como ele, Lula, estava em liberdade mas as condenações estavam valendo, o próprio ministro Fachin, relator de um processo, resolveu tornar o Lula elegível. Então, por 3 a 2, o Supremo Tribunal Federal não o inocentou. Simplesmente, anulou os julgamentos voltando para a 1ª instância o senhor Luiz Inácio Lula da Silva. Ao voltar para a 1ª instância, ele conseguiu, ele reconquistou a possibilidade de ser elegível. Daí, em setembro de 2021, o ministro Barroso, por portaria, resolve convidar algumas instituições, entre elas as Forças Armadas, a participarem de uma comissão de transparência eleitoral. As Forças Armadas não se meteram nesse processo. Foram convidadas. Ao serem convidadas, nós temos um Comando de Defesa Cibernética que, acredito, todos os Chefes, todos os outros países têm também e, como foram convidados, começaram a trabalhar para apresentar soluções, sugestões, para que o ocorrido nas eleições de 2018 não viesse a ocorrer novamente.

Continua então o senhor Barroso me atacando. Deixo bem claro, por quê que o senhor Barroso foi escolhido pelo governo do PT para ser ministro do Supremo Tribunal Federal? Porque ele trabalhou para que o terrorista César Battisti ficasse no Brasil. E, no último dia do presidente Lula em 2010, Battisti ganhou a condição de refugiado no Brasil, graças ao trabalho dele, Barroso, que era advogado naquela época, e o terrorista César Battisti permaneceu no Brasil. Graças a isso, certamente, ele ganhou confiança no Partido dos Trabalhadores e foi indicado para o Supremo Tribunal Federal.

Então, essa acusação que eu vazei dados do inquérito, que é ostensivo, não tem qualquer classificação sigilosa. É uma acusação simplesmente infundada. Carece de base, de amparo legal. É uma acusação mentirosa, nada existe no inquérito. O inquérito, como disse, como o próprio depoimento do delegado encarregado do mesmo, da Corregedoria da PF e da Procuradoria da Câmara dizendo que o inquérito não tinha qualquer classificação sigilosa. E, se tivesse, estava errado. Porque, quando se fala em eleições, se vem à nossa cabeça transparência. E o senhor Barroso também com o senhor Fachin, começaram a andar pelo mundo me criticando, como se eu estivesse preparando um golpe por ocasião das eleições. É exatamente o contrário o que está acontecendo. O Barroso, nos Estados Unidos, faz uma palestra como se livrar de um presidente. Ele era presidente do Tribunal Superior Eleitoral e é do Supremo Tribunal Federal. A gente não tem notícias de pessoas que ocupam essa Corte nos países que tem, e que fique falando, dando entrevista, dando palestras e colocando a sua opinião pessoal sobre esse ou aquele governo. Lamentável a ação do ministro Barroso pelo mundo. Isso atrapalha o Brasil. Repito, os senhores nunca ouviram uma só palavra minha de censurar a mídia, de derrubar página de alguém que me critique, de prender deputado, nunca mandei prender nenhum deputado. Quem prendeu foi outro colega deles, Alexandre de Moraes.

Como se vê, o trecho do discurso, em grande parte, reproduz ataques ao Poder Judiciário e à figura de Ministros da SUPREMA CORTE, de modo a ferir a credibilidade de seus juízes e das decisões a respeito da situação jurídica de seu adversário político, empregando nítido tom de conspiração, em evidente alusão às Eleições que se avizinhavam.

A seguir, também com base em informações descontextualizadas, o Investigado, utilizando-se de trecho de entrevista coletiva do Ministro LUÍS ROBERTO BARROSO durante as Eleições de 2020, novamente busca colocar dúvidas sobre a integridade do processo eleitoral, agora a partir da premissa, sem substrato fático preciso, segundo a qual “não é o Tribunal Superior Eleitoral quem conta os votos, é uma empresa terceirizada”:

[início da transmissão de um vídeo, no qual o ministro Luís Roberto Barroso participa de entrevista coletiva no dia do primeiro turno das eleições de 2020]

Pergunta de jornalista ao ministro Luís Roberto Barroso: “Boa noite, Ministro. Com as informações que a gente tem até agora, dá para saber se a gente vai ter resultado hoje ainda, ou só amanhã? E a outra coisa é: quem que faz a manutenção do supercomputador que o senhor mencionou, é a própria equipe do TSE ou uma empresa terceirizada? Obrigado”.

Ministro Luís Roberto Barroso: “Eu vou pedir ao nosso Secretário de Tecnologia da Informação, Giusepe, se você puder comparecer ali ao microfone e explicar. Houve um problema de infraestrutura, que é a hora que eu estava atendendo, mas eu não gostaria de dar uma explicação equivocada. Portanto, Giuseppe, por favor”.

Giuseppe: “Boa noite. Esse computador ele é instalado por meio de um serviço, ele faz justamente esse papel da nuvem computacional. Ou seja, é um supercomputador. Ele é contratado por uma empresa, no caso essa empresa é a Oracle. Ela instala esse computador e mantém ele em funcionamento. É um serviço justamente, e não é uma aquisição. Portanto, a manutenção, a conservação, o suporte, o bom funcionamento do equipamento é de responsabilidade da empresa”.

Ministro Luís Roberto Barroso: “Não é propriamente uma terceirização, é uma contratação de um serviço, como explicou o nosso secretário, ok?”

[retorno da fala do Presidente Jair Messias Bolsonaro]

Bem, não é o Tribunal Superior Eleitoral quem conta os votos, é uma empresa terceirizada. Eu acho que nem precisava continuar essa explanação aqui. Nós queremos obviamente, estamos lutando para apresentar uma saída para isso tudo. Nós queremos confiança e transparência no sistema eleitoral brasileiro.

No ponto, impõe-se ressaltar que a “informação” divulgada não se sustenta, sendo desmentida por esta CORTE em 25/11/2020, ficando esclarecido que a “totalização dos votos é feita em computadores localizados na sala-cofre do Tribunal, em Brasília” (https://www.justicaeleitoral.jus.br/fato-ou-boato/checagens/supercomputador-do-tse-nao-e-servico-de-nuvem-estrangeiro-que-abre-brecha-para-fraude/#).

A mencionada empresa contratada, por sua vez, oferece “os softwares de banco de dados, bem como presta serviços de suporte e atualização dos produtos, mas quem controla o equipamento é a equipe do TSE” (https://www.justicaeleitoral.jus.br/fato-ou-boato/checagens/supercomputador-do-tse-nao-e-servico-de-nuvem-estrangeiro-que-abre-brecha-para-fraude/#).

Na sequência, Jair Messias Bolsonaro defende a veracidade das suas acusações, novamente mencionando a existência do IPL 13621/2018, e sugere que, ante a suposta impossibilidade de aferir a higidez do sistema, os Observadores Internacionais “vêm dar ares de legalidade”.

O Investigado prossegue na investida contra o processo eleitoral, dizendo possuir “dezenas e dezenas de vídeos para passar para os senhores por ocasião das eleições de 2018, onde o eleitor ia votar e simplesmente não conseguia votar. Ou quando ele apertava o número 1, e depois ia apertar o número 7, aprecia o 3 e o voto ia para outro candidato”. Eis o trecho do discurso em que extraída tal assertiva:

Aqui uma reunião com o Ministro Fachin, com alguns dos senhores ou representantes alertando-os contra acusações levianas. O que eu estou falando aqui não tem nada de leviano. Esse inquérito, tem uma cópia comigo e quem porventura quiser ter acesso a ele eu forneço a cópia. Que repito: não tem qualquer classificação sigilosa o que está dentro dele. E aqui eu já falei: ‘Fachin assina acordo do TSE com entidade estrangeira para observação das eleições’. Eu peço aos senhores, o que essas pessoas vêm fazer no Brasil? Vêm observar o quê? Que o voto é totalmente informatizado, vêm dar ares de legalidade? Vêm dizer que tudo ocorreu numa normalidade? Eu teria dezenas e dezenas de vídeos pra passar pros senhores por ocasião das eleições de 2018, onde o eleitor ia votar e simplesmente não conseguia votar. Ou quando ele apertava o número 1, e depois ia apertar o número 7, aparecia o 3 e o voto ia pra outro candidato. O contrário ninguém reclamou. Temos quase 100 vídeos de pessoas reclamando que foram votar em mim e, na verdade, o voto foi para outra pessoa, nenhum vídeo de alguém foi votar no outro candidato e porventura apareceu meu nome.

Além de repetir a indevida associação entre o referido Inquérito Policial e fraude no sistema de votação, Jair Messias Bolsonaro reproduz notícia evidentemente falsa a respeito de automática alteração do número de candidatos por ocasião do voto de eleitor, no sentido de que, ao apertar o número 1, automaticamente constava o 3, transferindo voto para outro candidato.

A alegada adulteração do voto, porém, foi amplamente desmentida (https://g1.globo.com/fato-ou-fake/noticia/2018/10/07/e-fake-video-em-que-eleitor-seleciona-a-tecla-1-e-aparece-automaticamente-o-candidato-fernando-haddad-na-urna.ghtml?utm_source=twitter&utm_medium=social&utm_campaign=fatooufake&utm_content=post ; https://www.tse.jus.br/hotsites/esclarecimentos-informacoes-falsas-eleicoes-2018/urna-autocompleta-voto.html), traduzindo afirmação de conteúdo similar a discurso já submetido ao exame desta CORTE por ocasião do julgamento do RO 0603975-98, Rel. Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, tendo o Plenário firmado a compreensão no sentido de que “ataques ao sistema eletrônico de votação e à democracia, disseminando fatos inverídicos e gerando incertezas acerca da lisura do pleito, em benefício de candidato, podem configurar abuso de poder político ou de autoridade – quando utilizada essa prerrogativa para tal propósito – e/ou uso indevido dos meios de comunicação quando redes sociais são usadas para esse fim”.

O Investigado, então, invocando a condição de comandante supremo das Forças Armadas passa a exaltar o trabalho por elas desempenhado na Comissão de Transparência. Assim, de modo a corroborar sua narrativa a respeito da fragilidade do sistema de votação e de suposta conspiração interessada em não solucionar fraudes, menciona as sugestões apresentadas pelas Forças Armadas.

Depreende-se, ainda, explícita alusão às Eleições 2022, ao sugerir, sem qualquer prova, que o eminente Ministro EDSON FACHIN poderia estar a antever que seu candidato, “que ele tornou elegível, vai ganhar as eleições”.

Também se verifica menção à possível questionamento ao resultado das eleições, motivado pela suposta falta de confiabilidade do processo eleitoral:

Nós queremos é corrigir falhas. Nós queremos transparência. Nós queremos democracia de verdade. Agora, eu estou sendo acusado o tempo todo pelo Barroso, Fachin, Alexandre de Moraes, como uma pessoa que quer dar o golpe. Eu estou questionando antes porque temos tempo ainda de resolver esse problema. Com a própria participação das Forças Armadas, que foram convidadas pelo Tribunal Superior Eleitoral. Os senhores devem estranhar: ‘O que as Forças Armadas estão fazendo no processo eleitoral?’. Nós fomos convidados. E eu sou o chefe supremo das Forças Armadas. Nós jamais, com esse convite, iríamos participar apenas para dar ares de legalidade. O Comando de Defesa Cibernética, que os senhores têm equivalente nos países de vocês, é algo extremamente sério. Pessoas extremamente, mais que habilitadas, confiáveis.

Depois de convidar as Forças Armadas, o trabalho das Forças Armadas junto com o Comando de Defesa Cibernética, que é algo louvável, confiável e verdadeiro, o ministro Fachin disse que as sugestões apresentadas pelas Forças Armadas serão avaliadas depois de 2022, todas sugestões apresentadas pelas Forças Armadas podem ser cumpridas até 2 de outubro e, se tiver qualquer despesa extra, o Poder Executivo arranja recurso para tal. Sempre ouvimos, em especial da esquerda, que ‘democracia não tem preço’. Por quê uma declaração como essa? Será que já está antevendo que o candidato dele, que ele tornou elegível, vai ganhar as eleições? E do lado de cá teria uma reação? Que o resultado das eleições se cumpre. Agora estamos tentando antecipar um problema que interessa para todo mundo. O mundo todo quer estabilidade democrática no Brasil. Os senhores todos querem continuar representando os seus países. Porque o Brasil é um país que interessa para todo mundo. Nós alimentamos mais de 1 bilhão de pessoas pelo mundo com o nosso o agronegócio. Repito: temos negócios com o mundo todo, é um país fantástico. Teria muito a falar sobre o Brasil. Os senhores bem acompanham o que vem acontecendo aqui em nossa pátria. E nós, se o povo resolver voltar o que era antes, paciência. Agora, num sistema eleitoral como esse, que apenas 2 países o adotam, outros estudaram e abandonaram, outros fizeram uma ou outra eleição e desistiram. Nós não queremos isso para o Brasil. Nós não queremos que, após as eleições um lado ou outro, questione os resultados das eleições.

Na sequência, o Investigado continua a exaltar a atuação das Forças Armadas no processo eleitoral, dizendo expressamente que jamais “participariam de uma farsa. Jamais seriam moldura de uma fotografia”, e passa a proferir novos ataques pessoais a Ministros do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, sugerindo haver vinculação entre a figura dos juízes, o candidato adversário e o MST.

Além disso, o teor da fala reproduz críticas a atuação da SUPREMA CORTE, com o nítido intuito de transmitir a ideia de que seus Magistrados se comportam contra a democracia e a lisura das Eleições:

Depois das Forças Armadas serem convidadas para participar da Comissão da Transparência Eleitoral, o Fachin, quem tornou o Lula elegível, disse que quem trata das eleições do Brasil são as ‘forças desarmadas’. Então, por que nos convidaram? Achavam que iam dominar as Forças Armadas? Será que se esqueceram que eu sou o chefe supremo das Forças Armadas? Será que esqueceram da responsabilidade das nossas Forças Armadas, que gozam de um conceito excepcional perante a opinião pública? Jamais as Forças Armadas participariam de uma farsa. Jamais seriam moldura de uma fotografia. E olha uma coisa inacreditável. O que que o Fachin disse, o homem que tornou Lula elegível, sempre foi advogado do MST, o grupo terrorista que há até pouco tempo atrás era bastante ativo no Brasil: ‘A auditoria não é instrumento para rejeitar resultado das eleições’. Para que serve a auditoria? Eu tenho vergonha de estar falando isso para vocês. Eu tenho vergonha. Agora eu sou obrigado a conversar com os senhores. Agradeço a presença empenhoradamente. E sei que os senhores todos querem a estabilidade democrática em nosso país. E ela só será conseguida por eleições transparentes. Confiáveis.

O ministro Alexandre de Moraes: ‘Manda quem prender quem disseminar as fake news nas eleições de 2022’. O que que é fake news? É o que eles acham que é fake news. Como já aconteceu comigo, botaram uma página minha no Facebook, uma matéria de uma revista falando sobre AIDS e vírus COVID e ele achou que aquilo é fake news e está me processando. Eu não sei onde ele acha que ele pode parar. Nós temos a paz, tranquilidade, o respeito que não tem da outra parte para conosco. Eu não sei o que faz uma pessoa agir dessa maneira. Quem escolhe as pessoas pra dizer o que esse ou aquele candidato bota em sua página,, se é fake news ou não, é o próprio TSE. Que desmonetiza páginas, que derruba outras, que sugere prisões, que cassa parlamentar por coisas que não tem tipificação na lei. Como cassaram o deputado por fake news. Que cria jurisprudência de interesse deles mesmos para prejudicar o nosso lado.

[...]

Atentar contra as eleições e a democracia. Quem faz isso? O próprio TSE, ao esconder, ao tentar esconder o inquérito de 2018. Não pode um magistrado ameaçar quem quer que seja. Quando ele diz que existe gabinete do ódio, que seria algo do meu governo, diz que tem um ministro que falou, mas não diz o nome do ministro, não apresenta uma só matéria que poderia ter sido produzida no tal do gabinete do ódio. O que ele quer comisso? Pra quê acirrar os ânimos entre o Poder Judiciário e o Poder Executivo? E não é o comportamento de um magistrado, a ameaça. Se diz que houve, existe gabinete do ódio, repito, apresente uma só matéria que poderia ser produzida por um gabinete vinculado a mim, na Presidência da República. É lamentável esse comportamento ameaçando, quer amedrontar quem? Quer fazer valer esse processo eleitoral onde o próprio TSE diz que ele é vulnerável. Onde a própria Polícia Federal disse com documentação do próprio TSE que aquilo é mais que um queijo suíço, é uma peneira. Por quê eles convidam as Forças Armadas e depois não querem mais as nossas sugestões?

O último slide: Jornal O Estado de São Paulo: ‘Ministros do Supremo Tribunal Federal formam célula política para combater o governo Bolsonaro’. Quem diz não sou eu. Tem a própria imprensa, que sempre esteve ao lado deles, acaba deixando transparecer uma verdade cristalina. As ações contra o nosso governo são inúmeras. Eu recebo uma interferência por semana no meu governo. Você dá prazo para explicar por 48 horas porque que eu não fiz isso, porque não fiz aquilo. E ajuizada por parlamentares de esquerda, da extrema esquerda brasileira, tentando o tempo todo desestabilizar o governo. Então, a presença dos senhores aqui, que eu agradeço mais uma vez, com qual intenção nossa? Nosso objetivo é transparência e confiança nas eleições. Quem ganhar, o outro lado tem que se conformar, estamos a 3 meses das eleições.

No ponto, é preciso novamente enfatizar não ser verdadeira a afirmação, que se baseia no Inquérito Policial 1361/2018, no sentido de que o próprio TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL e Polícia Federal teriam apontado a vulnerabilidade do sistema de votação, uma vez que o objeto do procedimento investigatório não tem qualquer relação com falhas ou fraude nas urnas eletrônicas.

Da mesma forma, também não se revela verídica a informação sobre eventual rejeição das sugestões das Forças Armadas durante os trabalhos da Comissão de Transparência Eleitoral para eleições de 2022.

O TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL divulgou que “acolheu, de forma completa ou parcial, 32 propostas feitas pelos integrantes da Comissão de Transparência Eleitoral (CTE) ainda para as Eleições 2022. Esse número representa 72% do total de 44 propostas – o número inicial era 47, mas algumas repetições foram aglutinadas – e 25% delas (11 propostas) estão sendo avaliadas para as próximas eleições municipais. Apenas uma proposta foi rejeitada” (https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2022/Junho/mais-de-70-das-propostas-da-cte-foram-acolhidas-para-as-eleicoes-2022).

É certo, ainda, que houve o acolhimento de propostas emanadas das Forças Armadas https://www.tse.jus.br/++theme++justica_eleitoral/pdfjs/web/viewer.html?file=https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/arquivos/quadro-resumo-das-contribuicoes/@@download/file/quadro-resumo-sugestoes-recebidas-da-comissao-de-transparencia-das-eleicoes.pdf).

Prosseguindo no discurso, o Investigado retoma a acusação de fraude nas Eleições de 2018, associando-a às informações do Inquérito Policial mencionado, passa a exaltar feitos durante o seu governo e profere outros ataques a Ministros da SUPREMA CORTE, atribuindo-lhes a responsabilidade por instabilidades nas relações institucionais entre os Poderes da República:

As propostas sugeridas pelas Forças Armadas praticamente estancam a possibilidade de manipulação de números, como sugere o próprio TSE, por ocasião das eleições de 2018. Eu não quero falar do que eu acho que aconteceu. Eu estou simplesmente em cima dos autos. Estou me comportando aqui como um outro magistrado deveria se comportar. Com esse inquérito, como eu convidei o Presidente do TSE a comparecer a esse evento, não veio. Convidei o presidente de todos os poderes, né? Presente aqui o Ministro do STM, Superior Tribunal Militar. Não compareceram, tudo bem. Agora, isso que está acontecendo é de interesse de todo o povo brasileiro. A desconfiança do sistema eleitoral tem se avolumado. Nós não podemos enfrentar eleições sob o manto da desconfiança. Nós queremos ter a certeza de que quem o eleitor votou, para quem o eleitor votou, o voto vai exatamente para aquela pessoa. O próprio TSE diz que, em 2018, números podem ter sido alterados. Os hackers tiveram acesso a uma dezena de senhas, por 8 meses. Eles não perceberam? Não perceberam? 8 meses. 7 meses depois que a Polícia Federal pede os logs, que são as impressões digitais da cena, do fato. 7 meses depois os logs foram apagados. Poderiam ser entregues os logs no mesmo dia, por iniciativa do próprio TSE, nem precisava ser provocado pela Polícia Federal. E 7 meses depois, foram apagados. O próprio ministro Barroso chama o chefe da Tecnologia da Informação e ele responde: os votos são contados por uma empresa terceirizada. Que empresa é essa? Temos um nome? Sim, temos um nome. Mas cadê a confiança? Eleições são questões de segurança nacional. Nós não queremos instabilidade no Brasil. O Brasil está voando.

Nos comportamos muito bem durante a pandemia. Nos comunicamos e fazemos negócios com o mundo todo. Nos mantivemos em função de equilíbrio em situações complexas pelo mundo. Nós garantimos a segurança alimentar para mais de 20% da população mundial. Também a segurança energética, o Brasil desponta como um exemplo para o mundo.

O que que nós queremos? Paz, tranquilidade. Agora, por que um grupo de 3 pessoas apenas, 3 pessoas, querem trazer instabilidade para o nosso país? Não aceitam nada, as sugestões das Forças Armadas que foram convidadas, são perfeitas. Chega a perfeição absoluta? Talvez não. Que nenhum sistema informatizado pode dar garantia de 100% de segurança. As Forças Armadas, da qual sou comandante, ninguém mais do que nós, como sempre, queremos estabilidade em nosso país. E por quê agem de maneira diferente? E nós vemos claramente, o ministro Fachin, que foi quem tornou o Lula elegível e agora é presidente do TSE. O ministro Barroso foi advogado do terrorista Battisti, que recebeu aqui o acolhimento do presidente Lula em dezembro de 2010. O ministro Alexandre de Moraes advogou no passado para grupos que, se eu fosse advogado, não advogaria. É um direito dele advogar para quem quer que seja, mas eu não faria esse trabalho. Tem posição que, de um comportamento que não se adequa ao sistema democrático, uma ameaça. ‘Vou caçar o registro, vou prender. Quem duvidar eu prendo’. Olha, quem está duvidando do que está acontecendo, não sou eu. É o próprio Tribunal Superior Eleitoral que ele agora não quer deixar que se aperfeiçoe, que ele realmente mostre no dia 2 de outubro do corrente ano, os números reais das eleições pelo Brasil.

Então, o que eu tinha a falar aos senhores era isso. Eu vou pedir ao ministro Carlos França que o extrato disso chegue na embaixada dos senhores aqui. Quem quiser o processo na íntegra, eu entrego também. Porque ele não tem qualquer grau de sigilo. Repito: me sinto até envergonhado desse momento, dado o que está acontecendo em nosso país.

Isso que vocês ouviram aqui acontece no Brasil todo, como eu já disse, o povo gosta da gente. Não pago um centavo para ninguém participar de absolutamente nada. É um povo que, cristão no Brasil, é um povo ordeiro, trabalhador, tem seus problemas, mas acima de tudo quer paz. Quer segurança. E tem encontrado em mim isso daí. Diferentemente, do que algumas notícias de jornais transmitem, o que é natural, infelizmente, no mundo todo. Temos boa imprensa no Brasil também, mas o que mais ressalta aos olhos são as acusações.

Então, a gente lamenta o que vem acontecendo, vou convidar integrantes da Câmara, do Senado, do Superior Tribunal de Justiça, do Tribunal de Contas da União, do Tribunal Superior do Trabalho, a participar de conversas comigo sobre esse inquérito que, curiosamente, não foi fechado até o presente momento, para que nós possamos ter paz e tranquilidade e confiança por ocasião das eleições no corrente ano.

Importante destacar alguns breves trechos, novamente. A fala começou com uma autopromoção, começa com uma autopromoção de que foi militar, que gastou tanto na campanha, que quinze anos no Exército, que junta multidões,  etc.

Qual é o interesse das relações internacionais nisso?

 

E, depois, parte para divulgação de mentiras, notícias absolutamente fraudulentas. Não são opiniões, não são opiniões possíveis, são mentiras, são notícias fraudulentas: “teria muita coisa a falar aqui, mas eu quero me basear, exclusivamente, no inquérito da Polícia Federal” – inclusive, inquérito, que o investigado, então presidente, quebrou o sigilo e a investigação na Polícia Federal.

“O inquérito na Polícia Federal que foi aberto, após o segundo turno das Eleições de 2018, onde o hacker falou que houve, que tinha havido fraude, por ocasião das eleições, falou que tinha invadido tudo.” Mentira.

“Tudo começa” – ainda entre aspas –, “tudo começa nessa denúncia, que foi de conhecimento do Tribunal Superior Eleitoral e o hacker diz, claramente, que ele teve acesso a tudo dentro do TSE.” Mentira.

Todos sabemos, primeiro, que as urnas são offline; as urnas não são online. Tudo querendo insinuar fraude. “Segundo o TSE” – ainda o investigado – “os hackers ficaram por oito meses dentro dos computadores do TSE, com códigos-fonte, com senhas e muito à vontade dentro do TSE.” Mentira.

Assim como é mentira quando diz que o código-fonte não foi divulgado. O código-fonte ficou um ano para todos os partidos políticos, todas as organizações – Ministério Público, Polícia Federal, Forças Armadas. Outra mentira. Um encadeamento de mentiras, de notícias fraudulentas.

Ainda outra: “O que é comum, né?”. Isso entre aspas. “O que é comum, né? Acontecer em alguns países do mundo é o chefe do Executivo conspirar para conseguir uma reeleição. Estamos fazendo exatamente o contrário aqui”. Acusando o TSE de conspirar contra a sua reeleição. “Tudo o que eu falo aqui ou é conclusão da PF, ou é diretamente informações prestadas pelo TSE.” Mentira.

“Não é um sistema confiável, porque ele é inauditável. É impossível fazer uma auditoria, em eleições, aqui no Brasil.” Mentira.

 Uma série de informações mentirosas, notícias fraudulentas.

Mas qual o objetivo? Um encadeamento, uma produção cinematográfica, com a TV Brasil, com vídeos das reuniões, para, imediatamente, em tempo real, e, na sequência, até a eleição, as redes sociais bombardearem os eleitores com essa desinformação. Essa desinformação no sentido de angariar mais votos, angariar mais eleitores, com esse discurso absolutamente mentiroso e radical.

Não há, aqui, com todo o respeito às posições em contrário, exercício de liberdade de expressão. Não há nada de liberdade de expressão em um presidente da República, mentirosamente, dizer que há fraudes nas eleições, inclusive na que ele ganhou. E aí, ao ser indagado, diz: mas eu ganharia no primeiro turno. E, ao ser oficiado pelo então presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Ministro Luis Roberto Barroso, para apresentar provas, sobre a fraude – obviamente não as apresentou, porque elas não existem.

Um presidente da República que ataca a Justiça Eleitoral, ataca a lisura do sistema eleitoral que o elege há quarenta anos. Isso não é exercício de liberdade de expressão. Isso é conduta vedada. E, ao fazer isso, utilizando-se do cargo de presidente da República, do dinheiro público, da estrutura do Palácio da Alvorada, da TV pública, é abuso de poder. E, ao preparar tudo isso, para, imediatamente, bombardear o eleitorado, via redes sociais, uso indevido dos meios de comunicação. Tudo absolutamente interligado. Tudo seguindo um modus operandi realizado já em outras oportunidades, inclusive discutidas aqui no Tribunal Superior Eleitoral e no Supremo Tribunal Federal.

E vejam, não me parece que haja nenhuma dúvida que essa reunião atentou contra a Justiça Eleitoral, tanto que o Tribunal Superior Eleitoral, por unanimidade, em 30 de setembro de 2022, referendou e manteve a decisão que entendeu que essa reunião e essa propaganda – essa divulgação e depois a desinformação – eram ilícitas. Propaganda antecipada irregular:

Comportamentos que tenham alguma conotação eleitoral [diz a ementa] e que sejam proibidos durante o período oficial de campanha são igualmente proibidos na fase antecedente da pré-campanha, ainda que não envolvam pedido explícito de voto ou não-voto. [E ainda] A deslegitimação do sistema, a partir da construção de fatos falsos, forjados, para conferirem estímulos artificiais de endosso a opiniões pessoais é comportamento que já não se insere no legítimo direito à opinião, dúvida, crítica e expressão, descambando para a manipulação desinformativa, via deturpação fática, em grave comprometimento da liberdade de informação e com aptidão para corroer a própria legitimidade da disputa em si.

O Tribunal já havia reconhecido as premissas que haviam sido fixadas em 2021, aplicáveis a esse julgamento e aplicáveis hoje.

Impõe-se, ainda, rememorar a advertência formulada pelo eminente Ministro CELSO DE MELLO, no sentido de que “nenhuma agremiação partidária nem líderes políticos ou instituições da República ou grupos organizados ou pessoas em geral podem cometer atos que estimulem a prática da violência, ou o descumprimento de ordens judiciais ou que sustentem medidas que objetivem a própria destruição do sistema democrático, com o consequente desrespeito aos direitos assegurados pela Lei Fundamental do Estado, sob pena de o modelo normativo instituído pelo ordenamento constitucional proteger e amparar, paradoxalmente, aqueles que visam destruí-lo, assumindo o papel desprezível e criminosa de verdadeiros iconoclastas da República e do sistema democrático” (ADPF 572, Rel. Min. EDSON FACHIN, Voto Min. CELSO DE MELLO, Pleno, DJe de 7/5/2021).

A pregação de discursos autoritários, golpistas, apoiados em desinformação e tendentes a vulnerar o sistema de votação e sua confiabilidade, por isso mesmo, não guarda compatibilidade com o exercício legítimo do cargo de Presidente da República, de modo que as franquias inerentes ao desempenho de tal elevada função não podem ser utilizados com finalidades ilícitas, visando a satisfazer interesses pessoais do mandatário e a gerar benefícios no curso da campanha eleitoral, tendo em vista a circunstância de que “não pode partido político, candidato ou agente político invocar normas constitucionais e direitos fundamentais para erodir a democracia constitucional brasileira” (TPA 39-MC, Red. p/ acórdão Min. EDSON FACHIN, Segunda Turma, DJe de 13/9/2022).

No caso, desde logo cumpre ressaltar, ao contrário do que alega a defesa, que o teor da fala do primeiro investigado, em cotejo com as circunstâncias subjacentes ao evento impugnado, infirma o argumento de que se tratou de mero “diálogo institucional travado entre uma série de atores institucionais da República”, inserido no âmbito do regular debate eleitoral e da livre manifestação de pensamento.

É fato que, conforme tenho reiteradamente enfatizado, a liberdade do direito de voto depende, preponderantemente, da ampla liberdade de discussão, de maneira que deve ser garantida aos pré-candidatos, candidatos e seus apoiadores, a ampla liberdade de expressão e de manifestação, possibilitando ao eleitor pleno acesso as informações necessárias para o exercício da livre destinação de seu voto.

Tanto a liberdade de expressão quanto a participação política em uma Democracia representativa somente se fortalecem em um ambiente de total visibilidade e possibilidade de exposição crítica das diversas opiniões sobre os principais temas de interesse do eleitor e também sobre os governantes, que nem sempre serão “estadistas iluminados”, como lembrava o JUSTICE HOLMES ao afirmar, com seu conhecido pragmatismo, a necessidade do exercício da política de desconfiança (politics of distrust) na formação do pensamento individual e na autodeterminação democrática, para o livre exercício dos direitos de sufrágio e oposição; além da necessária fiscalização dos órgãos governamentais.

Essa estreita interdependência entre a liberdade de expressão e o livre exercício dos direitos políticos, também, é salientada por JONATAS E. M. MACHADO, ao afirmar que:

“o exercício periódico do direito de sufrágio supõe a existência de uma opinião pública autônoma, ao mesmo tempo que constitui um forte incentivo no sentido de que o poder político atenda às preocupações, pretensões e reclamações formuladas pelos cidadãos. Nesse sentido, o exercício do direito de oposição democrática, que inescapavelmente pressupõe a liberdade de expressão, constitui um instrumento eficaz de crítica e de responsabilização política das instituições governativas junto da opinião pública e de reformulação das políticas públicas... O princípio democrático tem como corolário a formação da vontade política de baixo para cima, e não ao contrário” (Liberdade de expressão. Dimensões constitucionais da esfera pública no sistema social. Editora Coimbra: 2002, p. 80/81).

A liberdade de expressão permite que os pré-candidatos, candidatos e seus apoiadores e os meios de comunicação optem por determinados posicionamentos e exteriorizem seu juízo de valor; bem como autoriza programas humorísticos e sátiras realizados a partir de trucagem, montagem ou outro recurso de áudio e vídeo, como costumeiramente se realiza, não havendo nenhuma justificativa constitucional razoável para a interrupção durante o período eleitoral.

A plena proteção constitucional da exteriorização da opinião (aspecto positivo) não significa a impossibilidade posterior de análise e responsabilização de pré-candidatos, candidatos e seus apoiadores por eventuais informações injuriosas, difamantes, mentirosas, e em relação a eventuais danos materiais e morais, pois os direitos à honra, intimidade, vida privada e à própria imagem formam a proteção constitucional à dignidade da pessoa humana, salvaguardando um espaço íntimo intransponível por intromissões ilícitas externas, mas não permite a censura prévia pelo Poder Público.

Nesse cenário, a livre circulação de pensamentos, opiniões e críticas visam a fortalecer o Estado Democrático de Direito e à democratização do debate no ambiente eleitoral, de modo que a intervenção da Justiça Eleitoral deve ser mínima em preponderância ao direito à liberdade de expressão dos candidatos. De outro lado, e não menos importante, a atuação da Justiça Eleitoral deve coibir práticas abusivas ou divulgação de notícias falsas, de modo a proteger o regime democrático, a integridade das Instituições e a honra dos candidatos, garantindo o livre exercício do voto (TSE, REspe 0600025-25.2020 e AgR no Arespe 0600417-69, Rel. Min. ALEXANDRE DE MORAES).

A Constituição Federal não permite aos pré-candidatos, candidatos e seus apoiadores, inclusive em período de propaganda eleitoral, a propagação de discurso de ódio, ideias contrárias à ordem constitucional e ao Estado Democrático (CF, art. 5º, XLIV, e art. 34, III e IV), tampouco a realização de manifestações nas redes sociais ou através de entrevistas públicas visando ao rompimento do Estado de Direito, com a extinção das cláusulas pétreas constitucionais – Separação de Poderes (CF, art. 60, §4º), com a consequente instalação do arbítrio.

A Constituição Federal consagra o binômio “LIBERDADE e RESPONSABILIDADE”; não permitindo de maneira irresponsável a efetivação de abuso no exercício de um direito constitucionalmente consagrado; não permitindo a utilização da “liberdade de expressão” como escudo protetivo para a prática de discursos de ódio, antidemocráticos, ameaças, agressões, infrações penais e toda a sorte de atividades ilícitas.

Liberdade de expressão não é Liberdade de agressão!

Liberdade de expressão não é Liberdade de destruição da Democracia, das Instituições e da dignidade e honra alheias!

Liberdade de expressão não é Liberdade de propagação de discursos mentirosos, agressivos, de ódio e preconceituosos!

A lisura do pleito deve ser resguardada, sob pena de esvaziamento da tutela da propaganda eleitoral (TSE, Representação 0601530-54/DF Rel. Min, LUÍS FELIPE SALOMÃO, DJe DE 18.3.2021), e, portanto, as competências constitucionais dessa CORTE ELEITORAL, inclusive no tocante à fiscalização, são instrumentos necessários para garantir a obrigação constitucional de se resguardar eleições livres e legítima (TSE, RO-EL 2247-73 e 1251-75, redator para Acórdão Min. ALEXANDRE DE MORAES).

A liberdade de expressão não permite a propagação de discursos de ódio e ideias contrárias à ordem constitucional e ao Estado de Direito (STF, Pleno, AP 1044, Rel. Min. ALEXANDRE DE MORAES), inclusive pelos pré-candidatos, candidatos e seus apoiadores antes e durante o período de propaganda eleitoral, uma vez que a liberdade do eleitor depende da tranquilidade e da confiança nas instituições democráticas e no processo eleitoral (TSE, RO-EL 0603975-98, Rel. Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, DJe de 10/12/2021).

Os excessos que a legislação eleitoral visa a punir, sem qualquer restrição ao lícito exercício da liberdade dos pré-candidatos, candidatos e seus apoiadores, dizem respeito aos seguintes elementos: a vedação ao discurso de ódio e discriminatório; atentados contra a Democracia e o Estado de Direito; o uso de recursos públicos ou privados, a fim de financiar campanhas elogiosas ou que tenham como objetivo denegrir a imagem de candidatos; a divulgação de notícias sabidamente inverídicas; a veiculação de mensagens difamatórias, caluniosas ou injuriosas ou o comprovado vínculo entre o meio de comunicação e o candidato.

A Constituição Federal não autoriza, portanto, a partir de mentiras, ofensas e de ideias contrárias à ordem constitucional, a Democracia e ao Estado de Direito, que os pré-candidatos, candidatos e seus apoiadores propaguem inverdades que atentem contra a lisura, a normalidade e a legitimidade das eleições.

De fato, não se podem desconsiderar, notadamente no contexto alusivo às Eleições 2022, as sucessivas medidas adotadas por esta CORTE visando ao combate à desinformação, nas quais se inclui a edição da Resolução 23.714/2022, cujo art. 4º visa a tutelar a higidez, a integridade e a credibilidade das Eleições e do processo eleitoral, de modo a coibir práticas que, por meio de desinformação, representam substancial transgressão à própria democracia.

O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, ao indeferir a liminar requerida na ADI 7.261 com a finalidade de suspender a eficácia dos dispositivos da Resolução, reiterou a importância da norma para o combate da desinformação no processo eleitoral, conforme bem ressaltou o Relator, Ministro EDSON FACHIN:

Sendo, portanto, a liberdade valor normativo estruturante e vinculante, o seu respectivo exercício, no pleito eleitoral, deve servir à normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico (§ 9º do artigo 14 da Constituição da República).

Portanto, uma eleição com influência abusiva do poder econômico não é normal nem legítima, vale dizer, não é livre nem democrática. Quando essa abusividade se materializa no regime da informação, recalcando a verdade e compondo-se de falsos dados e de mentiras construídas para extorquir o consentimento eleitoral, a liberdade resta aprisionada em uma caverna digital, supondo-se estar em liberdade; porém, não é livre o agrilhoado na tela digital e esses novos prisioneiros da caverna platônica “estão inebriados pelas imagens mítico-narrativas”, conforme nos alerta o professor Byung-Chul Han, da Universidade de Berlim (HAN, Byung-Chul. Infocracia: digitalização e a crise da democracia. Petrópolis, Vozes, 2022 , p. 106).

Nesse contexto de uma sociedade pós-factual, dissociada do compromisso com a facticidade, é a produção de fatos criados que produz dominação, vigilância e submissão; paradoxalmente, acresce o citado professor Byung-Chul Han, “é o sentimento de liberdade que assegura a dominação” (p. 13), aduzindo ainda:

“Desse modo, fake news, notícias falsas, geram mais atenção do que fatos. Um único tuíte que contenha fake news ou fragmentos de informação descontextualizadas é possivelmente mais efetivo do que um argumento fundamentado”.

O referido autor segue explicitando que quando “exércitos de trolls intervêm nas campanhas eleitorais ao propagarem fake news e teorias conspiratórias calculadas”, “bots sociais, contas-fake autônomas nas mídias sociais, se passa por pessoas de verdade e postam, tuítam, curtem e compartilham”, quando, ainda, propagam fake News, calúnias e comentários de ódio”, e também quando “os eleitores ficam expostos inconscientemente a essa influência”, a conclusão é a de que “a democracia está em perigo” (Ob. cit., p. 42-3).

Em suma, a normalidade das eleições está em questão quando a liberdade se converte em ausência de liberdade, porquanto desconectada da realidade, da verdade e dos fatos. Esse exercício abusivo coloca em risco a própria sociedade livre e o Estado de Direito democrático.

(ADI 7.621-MC, Rel. Min. EDSON FACHIN, Pleno, DJe de 23/11/2022).

De fato, “a desinformação - entendida como uma ação comunicativa fraudulenta, baseada na propagação de afirmações falsa ou descontextualizadas com objetivos destrutivos - conflita com valores básicos da normativa eleitoral, na medida em que impõe sérios obstáculos à liberdade de escolha dos eleitores e, adicionalmente, à tomada de decisões conscientes", comprometendo, "portanto, a normalidade do processo político, dada a intenção deliberada de suprimir a verdade, gerando desconfiança, com consequente perda da credibilidade e fé nas instituições da democracia representativa" (ADI 7.261-MC, Rel. Min. EDSON FACHIN, Voto Min. ALEXANDRE DE MORAES, julgado em 25/10/2022).

A atuação desta JUSTIÇA ESPECIALIZADA deve direcionar-se a fazer cessar manifestações revestidas de ilicitude não inseridas no âmbito da liberdade de expressão, a qual não pode ser utilizada como verdadeiro escudo protetivo da prática de atividades ilícitas, tendo em vista a circunstância de que não há, no ordenamento jurídico, direito absoluto à manifestação de pensamento, ou seja, “não há direito no abuso de direito” (ADPF 572, Rel. Min. EDSON FACHIN, Pleno, DJe de 7/5/2021), de modo que os abusos praticados devem sujeitar-se às punições legalmente previstas.

Realmente, a “veiculação de factoides empobrece a deliberação e dificulta a busca por uma resposta ou por medida adequadas a determinado problema social, pois a deliberação passa a ser baseada na mentira ou em algo inexistente.” (LOPES, Eduardo Lasmar Prado. Regulação é Censura? Igual Liberdade de Expressão e Democracia na Constituição de 1988. Revista Dados. 2023, v. 66, n. 3. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/dados.2023.66.3.298>. Outubro de 2022.p. 19).

Por isso mesmo, é certo que a emissão de discurso desprovido – como anteriormente demonstrado - de qualquer substrato fático e tendente a criar narrativa artificial a partir de alusão a fatos descontextualizados e, inclusive, inverídicos, não se insere nos limites da livre manifestação de pensamento e, de igual modo, mostra-se incompatível com qualquer pretensão legítima de promover debate institucional a respeito do sistema eletrônico de votação.

Ou seja, conforme o entendimento da SUPREMA CORTE, “não se deve confundir o livre debate público de ideias e a livre disputa eleitoral com a autorização para disseminar desinformação, preconceitos e ataques ao sistema eletrônico de votação, ao regular andamento do processo eleitoral, ao livre exercício da soberania popular e à democracia” (TPA 39-MC, Red. p/ acórdão Min. EDSON FACHIN, Segunda Turma, DJe de 13/9/2022).

 Eu insisto sempre – e me torno até repetitivo – que liberdade de expressão não é liberdade de agressão. Liberdade de expressão não é consagração da desinformação. Liberdade de expressão não é ataque à democracia; não é ataque aos pilares da democracia; não é ataque à independência do Poder Judiciário, como bem salientou a eminente Vice-Presidente, Ministra Cármen Lúcia: não há democracia sem Poder Judiciário independente. Liberdade de expressão não é ataque ao Poder Judiciário e à sua independência, principalmente por um presidente da República candidato à reeleição.

E aqui é importante salientar que esse modus operandi – essa forma de atuação, não só realizada no Brasil, por extremistas, mas no mundo, esse uso indevido dos meios de comunicação –, essa forma já foi e é estudada, pelo menos há duas obras, uma nacional e uma italiana:  Os engenheiros do caos, de Giuliano Da Empoli; e Máquina do ódio, da Jornalista Patrícia Campos Mello. Na obra Os engenheiros do caos, o autor aponta que naturalmente – abre aspas aqui, o trecho menor – “por trás da aparente absurda das fake news e das teorias da conspiração, oculta-se uma lógica bastante sólida. Do ponto de vista dos líderes populistas, as verdades alternativas não são simples instrumento de propaganda, contrariamente às informações verdadeiras, elas constituem um formidável vetor de coesão.” De coesão de quem? Do seu eleitorado, do eleitorado que aquele líder populista, extremista, pretende conquistar.

Tudo isso está patente. Tudo isso está claro na reunião no Palácio da Alvorada. Não há necessidade de analisar fatos anteriores ou fatos posteriores. Há necessidade de se analisar a reunião. A reunião no Palácio da Alvorada constituiu, claramente, abuso de poder político, por desvio de finalidade; constituiu uso indevido dos meios de comunicação. Não há necessidade nem mais nem menos. Há necessidade – e aqueles que tiverem dúvidas, basta ver o vídeo, o vídeo – e, a partir das provas, verificar que foi o presidente, na condição de pré-candidato à sua reeleição, que convocou, que organizou e que, em um monólogo, atacou a lisura das urnas eletrônicas, o que já estava pacificado, em 28 de outubro de 2021, que seria abuso de poder político.

Há a comprovação da divulgação, Facebook, Twitter, além, obviamente, da TV oficial, Instagram, então, isso, como sempre nesse modus operandi, isso fez com que a desinformação chegasse ao eleitorado. Se produz, e esse é o mecanismo internacional e nacional de ataques à democracia: você produz uma notícia com verniz de veracidade.

No que concerne à divulgação do vídeo pela TV Brasil, nada obstante a informação da Gerência Executiva das Redes da EBC (ID 157961483) no sentido de que as postagens foram deletadas, é possível constatar: i) no Twitter, o print, contido no email, do vídeo exibe a existência de 62,2 mil espectadores, 1.186 Retweets, 77 comentários e 3.904 Curtidas; ii) no Facebook, o alcance a 348,4 mil, 178,6 mil visualizações, 43,3 mil reações e 20 mil curtidas.

A emissora, ainda, divulgou o vídeo no Youtube, sendo o conteúdo removido pela própria plataforma, não sendo possível obter informações a respeito do engajamento virtual.

No mais, a também evidenciar a maior e ilegítima exposição que o Investigado obteve com a realização do evento, verifica-se que Jair Messias Bolsonaro procedeu à veiculação do vídeo da reunião em suas contas pessoais nas redes sociais Instagram e Facebook , tendo o autor, na petição inicial, noticiado que, à época do ajuizamento da ação, o conteúdo havia obtido, na primeira plataforma, 587 mil visualizações e 11 mil comentários e, na segunda, 589 mil visualizações, 72 mil curtidas e 55 mil comentários.

Ora, o eleitor vai dizer: mas era uma reunião; era o presidente, no Palácio da Alvorada, com embaixadores. Você produz uma notícia fraudulenta, com verniz de veracidade, e você usa a sua máquina, nas redes sociais, para divulgar, como se isso verdade fosse, e atingir os seus, as suas finalidades eleitorais.

Aqui, todos os elementos necessários para a caracterização do abuso do poder político e do uso indevido dos meios de comunicação estão presentes.

Todas as provas trazidas aos autos configuram a ocorrência de abuso do poder, conforme entendimento anteriormente firmado por esta CORTE a respeito da controvérsia, segundo o qual “os arts. 1º, II e parágrafo único, e 14, §9º, da CF/88, além dos arts. 19 e 22 da LC 64/90 revelam como bens jurídicos tutelados a paridade de armas e a lisura, a normalidade e a legitimidade das eleições. Não há margem para dúvida de que consistiu ato abusivo, a atrair as sanções cabíveis, a promoção de ataques infundados ao sistema eletrônico de votação e à própria democracia, incutindo-se nos eleitores a falsa ideia de fraude em contexto no qual candidato sobrevenha como beneficiário dessa prática” (RO 0603975-98, Rel. Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, DJe de 10/12/2021).

Realmente, a partir dos elementos de convicção existentes nos autos, notadamente do teor da fala do Investigado, não se mostra viável concluir no sentido da ausência de conotação eleitoral, tendo em vista os seguintes aspectos extraídos: i) exaltação de qualidades pessoais e do próprio governo; ii) desinformação sobre o sistema eleitoral, de modo a transgredir a confiabilidade das urnas eletrônicas e o resultado das Eleições que se aproximavam; iii) ataques ao TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL, ao SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL e a seus Juízes, sugerindo a ausência de imparcialidade e a existência de conspiração em benefício de adversário político; iv) criticas diretas ao oponente na disputa eleitoral.

Tais aspectos fáticos, além de enfatizar a existência do desvio de finalidade na conduta de Jair Messias Bolsonaro, também se revelam apta a configurar a prática de uso indevido dos meios de comunicação, ilícito que, na linha da orientação jurisprudencial desta CORTE, “caracteriza-se pela exposição desproporcional de um candidato em detrimento dos demais” (AgR-RO 0601586-22, Rel. Min. ALEXANDRE DE MORAES, DJe de 13/9/2021), exatamente o que se deu no caso concreto.

Conforme pacificado por essa CORTE, “o abuso do poder político caracteriza-se quando determinado agente público, valendo-se de sua condição funcional e em manifesto desvio de finalidade, compromete a igualdade da disputa eleitoral e a legitimidade do pleito em benefício de sua candidatura ou de terceiros” (AgR-REspe 833-02, Rel. Min. JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, DJe de 19/8/2014). Ainda: “o abuso do poder político qualifica-s quando a estrutura da administração pública é utilizada em benefício de determinada candidatura” (RO 2650-41, Rel. Min. GILMAR MENDES, DJe de 8/5/2017).

Ressalto e reafirmo novamente – e me parece, repito, o mais importante – que é inadmissível qualquer alegação de insegurança jurídica, de surpresa, ou desconhecimento da ilicitude da conduta por parte do investigado. E saliento o que, expressamente, além do próprio acórdão do Tribunal Superior Eleitoral, nas Aijes e no recurso ordinário, no dia 28 de outubro de 2022, eu, no meu voto oral, alertei, como outros ministros o fizeram, desse Plenário, quais seriam as consequências de uma conduta dessa forma. À época, eu disse:

A Justiça Eleitoral, como toda justiça, pode ser cega, mas não é tola. A justiça é cega, mas não é tola. Nós não podemos criar, de forma alguma, o precedente avestruz – todo mundo sabe o que ocorreu, todo mundo sabe o mecanismo utilizado para obtenção dos votos, só que todos escondem a cabeça embaixo da terra. Nós não podemos aqui confundir a neutralidade da justiça, o que tradicionalmente se configura com a frase “a Justiça é cega”, com tolice. A Justiça Eleitoral, como toda justiça, não é tola. É muito importante que o julgamento criasse o precedente, criasse o precedente para impedir a disseminação do ódio, a disseminação da desinformação, da conspiração.

Do ataque à Justiça Eleitoral, a desinformação para enganar o eleitor, porque, ao se enganar o eleitor, se atenta contra uma das garantias da democracia, que é a liberdade do voto: o eleitor, ele deve ter todo tipo de informação verdadeira para escolher os seus candidatos; ele não pode ser bombardeado com notícias fraudulentas, com desinformação. E concluí, à época:

A Justiça aprendeu, a Justiça fez a sua lição de casa. Essa Justiça Eleitoral se preparou, nós já sabemos como são os mecanismos; nós já sabemos agora quais as provas rápidas devem ser obtidas e não vamos admitir que essas milícias digitais tentem, novamente, desestabilizar as eleições, desestabilizar as instituições democráticas, a partir de financiamentos espúrios, não declarados, a partir de interesses econômicos também não declarados.

À época, pelo lapso temporal e pela falta das provas juntadas, o Tribunal Superior Eleitoral, que analisa os fatos juntados e as provas, o Tribunal Superior Eleitoral julgou improcedente a Aije. Mas salientei que a Justiça Eleitoral aprendeu o modus operandi e que isso seria combatido nas Eleições de 2022.

E encerrei, dizendo que se isso, se esse precedente, que era importantíssimo para a Justiça Eleitoral, fosse desrespeitado; se houvesse repetição no abuso do poder político, na desinformação, no uso indevido dos meios de comunicação, encerrei o voto dizendo: “o registro será cassado, as pessoas que assim fizerem irão para a cadeia e serão inelegíveis, por atentar contra as eleições e contra a democracia no Brasil”.

Não houve nenhuma alteração nos precedentes do Tribunal Superior Eleitoral. E, lamentavelmente, não houve nenhuma alteração no procedimento do investigado.

Em relação à gravidade das circunstâncias (art. 22, XVI da LC 64/90), não há dúvidas da presença de todos seus elementos constitutivos, pois demonstrados seus “dois aspectos jurídicos determinantes: i) gravidade da conduta apta a revelar, de modo perceptível, sua relevância jurídica no contexto da disputa eleitoral; ii) interferência na higidez e autenticidade das eleições pela influência do poder econômico e pelo exercício abusivo de função ou cargo público” (AgR-REspe 1-93, Rel. Min. ALEXANDRE DE MORAES, DJe de 12/2/2021) e, consequentemente, não resta dúvidas sobre a “existência de fatos que tenham a dimensão bastante para desigualar a disputa eleitoral” (AgR-AREspe 0600462-43, Rel. Min. ALEXANDRE DE MORAES, DJe de 2/8/2022).

No presente caso, os elementos de convicção dos autos e as circunstâncias subjacentes aos comportamentos praticados por Jair Messias Bolsonaro revelam-se juridicamente aptos a comprovar a indispensável gravidade ao reconhecimento dos ilícitos eleitoral.

Gravidade ímpar um presidente da República, candidato à reeleição, se utilizar desses ilícitos mecanismos.

No caso, portanto, não há qualquer dúvida quanto à participação direta do investigado Jair Bolsonaro nos atos ilícitos, tendo em vista ser o próprio autor dos discursos impugnados.

Em relação ao Investigado Walter Souza Braga Neto, inexiste qualquer elemento de convicção que o vincule, ainda que de forma mínima, direta ou indiretamente, aos atos abusivos, revelando-se inviável a formulação de juízo condenatório em seu desfavor.

Concluo acompanhando integralmente o eminente Ministro Relator, BENEDITO GONÇALVES, rejeitando as preliminares suscitadas pela defesa e JULGANDO PARCIALMENTE PROCEDENTE a AIJE em relação a Jair Messias Bolsonaro, condenando-o pela prática de abuso do poder político e uso indevido dos meios de comunicação e, em consequência, reconhecendo sua inelegibilidade pelo prazo de 8 anos subsequentes às Eleições de 2022, nos termos exatos do voto do Ministro Relator, inclusive com as comunicações a serem feitas, e julgar improcedente em relação ao segundo investigado e JULGO IMPROCEDENTE a AIJE em relação a Walter Souza Braga Neto, absolvendo-o das imputações deduzidas.

É o voto.

 

PROCLAMAÇÃO DO RESULTADO

 

 O SENHOR MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES (presidente):Proclamo o resultado: o Tribunal, por unanimidade, não conheceu da preliminar de incompetência da Justiça Eleitoral, rejeitou a preliminar de ilegitimidade passiva de causa do segundo investigado e a alegação de nulidade processual e indeferiu o requerimento de reabertura de instrução. Por maioria, não conheceu da prejudicial de “redelimitação” da demanda, nos termos do voto do relator, vencido, neste ponto, o Ministro Raul Araújo.

No mérito, por unanimidade, o Tribunal julgou improcedente o pedido para absolver o investigado Walter Souza Braga Netto, e por maioria, vencidos os Ministros Raul Araújo e Nunes Marques, julgou parcialmente procedente o pedido para condenar o primeiro investigado, Jair Messias Bolsonaro, pela prática de abuso de poder político e pelo uso indevido de meios de comunicação, e declarar sua inelegibilidade por oito anos seguintes ao pleito de 2022, deixando de aplicar a cassação do registro de candidatura dos investigados, exclusivamente em virtude de a chapa beneficiária das condutas abusivas não ter sido eleita. Por fim, determinou a comunicação imediata, nos termos do voto do relator, à Secretaria da Corregedoria-Geral Eleitoral, para que, independentemente da publicação do acórdão, promova a devida anotação do histórico de Jair Messias Bolsonaro, no cadastro eleitoral, da hipótese de restrição a sua capacidade eleitoral passiva. À Procuradoria-Geral da República, para análise de eventuais providências na esfera penal. Ao Tribunal de Contas da União, considerando-se o comprovado emprego de bens e recursos públicos na preparação do evento em que se consumou o desvio de finalidade eleitoreira. E, ao Ministro Alexandre de Moraes, na condição de relator do STF, dos Inquéritos nos 4.878 e 4.879; ao Ministro Luiz Fux, na condição de relator da Petição 10.477, para ciência e providências que entenderem cabíveis, nos termos do voto do relator.

 

EXTRATO DA ATA

 

AIJE nº 0600814-85.2022.6.00.0000/DF. Relator: Ministro Benedito Gonçalves. Representante: Partido Democrático Trabalhista (PDT) – Nacional (Advogados: Walber de Moura Agra – OAB: 757-B/PE e outros). Representados: Jair Messias Bolsonaro e outro (Advogados: Tarcisio Vieira de Carvalho Neto – OAB: 11498/DF e outros).

Decisão: O Tribunal, por unanimidade, não conheceu da preliminar de incompetência da Justiça Eleitoral, rejeitou a preliminar de ilegitimidade passiva de causa do segundo investigado e a alegação de nulidade processual e indeferiu o requerimento de reabertura de instrução. Por maioria, não conheceu da prejudicial de “redelimitação” da demanda, nos termos do voto do relator, vencido, neste ponto, o Ministro Raul Araújo.

No mérito, por unanimidade, o Tribunal julgou improcedente o pedido para absolver o investigado Walter Souza Braga Netto, e por maioria, vencidos os Ministros Raul Araújo e Nunes Marques, julgou parcialmente procedente o pedido para condenar o primeiro investigado, Jair Messias Bolsonaro, pela prática de abuso de poder político e pelo uso indevido de meios de comunicação, e declarar sua inelegibilidade por 8 (oito) anos seguintes ao pleito de 2022, deixando de aplicar a cassação do registro de candidatura dos investigados, exclusivamente em virtude de a chapa beneficiária das condutas abusivas não ter sido eleita. Por fim, determinou a comunicação imediata, nos termos do voto do relator, à Secretaria da Corregedoria-Geral Eleitoral, para que, independentemente da publicação do acórdão, promova a devida anotação do histórico de Jair Messias Bolsonaro, no cadastro eleitoral, da hipótese de restrição a sua capacidade eleitoral passiva. À Procuradoria-Geral da República, para análise de eventuais providências na esfera penal. Ao Tribunal de Contas da União, considerando-se o comprovado emprego de bens e recursos públicos na preparação do evento em que se consumou o desvio de finalidade eleitoreira. E, ao Ministro Alexandre de Moraes, na condição de relator do STF, dos Inquéritos nos 4.878 e 4.879; ao Ministro Luiz Fux, na condição de relator da Petição 10.477, para ciência e providências que entenderem cabíveis, nos termos do voto do relator.

Acompanharam integralmente o relator, os Ministros Floriano de Azevedo Marques, André Ramos Tavares, Cármen Lúcia e Alexandre de Moraes (presidente).

Registradas as presenças, no Plenário, do Dr. Walber de Moura Agra e da Dra. Ezikelly Silva Barros, advogados do representante, Partido Democrático Trabalhista (PDT) Nacional; e do Dr. Tarcisio Vieira de Carvalho Neto, advogado dos representados, Jair Messias Bolsonaro e Walter Souza Braga Netto.

Composição: Ministros Alexandre de Moraes (presidente), Cármen Lúcia, Nunes Marques, Benedito Gonçalves, Raul Araújo, Floriano de Azevedo Marques e André Ramos Tavares.

Vice-Procurador-Geral Eleitoral em exercício: Carlos Frederico Santos.

 

 SESSÃO EXTRAORDINÁRIA REALIZADA EM REGIME HÍBRIDO EM 30.6.2023.