TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL

ACÓRDÃO

AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL Nº 0600814-85.2022.6.00.0000 – BRASÍLIA – DISTRITO FEDERAL


Relator: Ministro Benedito Gonçalves

Representante: Partido Democrático Trabalhista (PDT) – Nacional

Advogados: Walber de Moura Agra – OAB: 757-B/PE e outros

Representados: Jair Messias Bolsonaro e outro

Advogados: Tarcisio Vieira de Carvalho Neto – OAB: 11498/DF e outros

 

 

AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ELEIÇÕES 2022. ELEIÇÃO PRESIDENCIAL. CANDIDATO À REELEIÇÃO. REUNIÃO COM CHEFES DE MISSÕES DIPLOMÁTICAS. PALÁCIO DA ALVORADA. ANTEVÉSPERA DAS CONVENÇÕES PARTIDÁRIAS. DISSEMINAÇÃO DE INFORMAÇÕES FALSAS A RESPEITO DO SISTEMA ELETRÔNICO DE VOTAÇÃO. ANTAGONIZAÇÃO INSTITUCIONAL COM O TSE. COMPARATIVO ENTRE PRÉ-CANDIDATURAS. ASSOCIAÇÃO DE EVENTUAL DERROTA DO PRIMEIRO INVESTIGADO À OCORRÊNCIA DE FRAUDE. ESTRATÉGIAS DE MOBILIZAÇÃO POLÍTICO-ELEITORAL. TV BRASIL. REDES SOCIAIS. AMPLA REPERCUSSÃO PERANTE A COMUNIDADE INTERNACIONAL E O ELEITORADO. SEVERA DESORDEM INFORMACIONAL. DESVIO DE FINALIDADE NO USO DE BENS E SERVIÇOS PÚBLICOS E DE PRERROGATIVAS DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. GRAVIDADE. VIOLAÇÃO À NORMALIDADE ELEITORAL E À ISONOMIA. USO INDEVIDO DE MEIOS DE COMUNICAÇÃO. ABUSO DE PODER POLÍTICO. RESPONSABILIDADE PESSOAL DO PRIMEIRO INVESTIGADO. PROCEDÊNCIA PARCIAL. INELEGIBILIDADE. DETERMINAÇÕES.

1. Trata-se de Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) destinada a apurar a ocorrência de abuso de poder político e uso indevido de meios de comunicação, em virtude de reunião realizada em 18/07/2022, no Palácio da Alvorada.

2. O evento contou com a presença de embaixadoras e embaixadores de países estrangeiros, que assistiram à apresentação do primeiro investigado, então Presidente da República e pré-candidato à reeleição, a respeito do sistema eletrônico de votação e da governança eleitoral brasileira. Houve transmissão pela TV Brasil e pelas redes sociais do primeiro investigado.

3. Na hipótese, o autor alega que houve desvio de finalidade eleitoreiro, resultante do uso de bens e serviços e das prerrogativas do cargo em favor da iminente candidatura à reeleição. Alega, também, que houve difusão de fatos sabidamente falsos relativos ao sistema eletrônico de votação e ataques à Justiça Eleitoral, estratégia destinada a mobilizar o eleitorado por força de grave “desordem informacional”, atentatória à normalidade do pleito.

4. Em contrapartida, os investigados refutam qualquer relação entre o evento de 18/07/2022 e as eleições, enxergando no discurso uma legítima manifestação, em salutar “diálogo institucional” com o TSE. Afirmam ainda que qualquer efeito do discurso teria sido prontamente neutralizado por nota pública do Tribunal, sendo a conduta incapaz de ferir bens jurídicos eleitorais.

I - Preliminares

Preliminar de incompetência da Justiça Eleitoral (suscitada pelos investigados). Não conhecida.

5. Alegação rejeitada em decisão interlocutória já referendada pelo Plenário do TSE. Em benefício da racionalidade do processo e sem prejuízo às partes, submeteu-se de imediato ao órgão colegiado o exame de questões que pudessem levar à extinção do processo sem resolução do mérito.

6. Ocorrência de preclusão pro iudicato, no âmbito do TSE, sem impacto na recorribilidade para instância superior.

Questão prejudicial de “redelimitação da demanda” (suscitada pelos investigados). Não conhecida.

7. As questões prejudiciais de violação à estabilização da demanda e à decadência já foram objeto de decisão interlocutória referendada pelo Plenário do TSE. A Corte, por unanimidade, admitiu ao exame fato superveniente apresentado pelo autor como desdobramento dos fatos alegados na inicial, reservando-se ao mérito avaliar se a alegação procede.

8. Impossibilidade de reexame da decisão pelo mesmo órgão colegiado, nos moldes já apontados.

Preliminar de ilegitimidade passiva ad causam do segundo investigado (suscitada pelos investigados). Rejeitada.

9. Ação proposta no curso do processo eleitoral, com observância à Súmula nº 38/TSE, cujo enunciado estabelece que “[n]as ações que visem à cassação de registro, diploma ou mandato, há litisconsórcio passivo necessário entre o titular e o respectivo vice da chapa majoritária”.

10. Ainda que a chapa investigada tenha sido derrotada, não há perda da condição de legitimado passivo, que decorre do vínculo formado entre os candidatos para o específico pleito ou do interesse processual, que permitiu ao segundo investigado exercitar ampla defesa.

Preliminar de nulidade processual decorrente da determinação de diligências complementares (suscitada pelos investigados). Rejeitada.

11. A atuação do Corregedor para determinar diligências, de ofício ou a requerimento das partes posteriormente à audiência de instrução é prevista expressamente no procedimento da AIJE (art. 22, VI a IX, LC nº 64/1990).

12. A estabilização da demanda não acarreta uma blindagem do debate processual contra fatos que possam influir no julgamento, uma vez que há disposições legais expressas no sentido de que o órgão julgador leve em consideração fatos constitutivos, modificativos ou extintivos supervenientes ao ajuizamento (art. 493, CPC) e, ainda, fatos públicos e notórios e circunstâncias, ainda que não alegadas pelas partes, que preservem a lisura eleitoral (art. 23, LC nº 64/1990).

13. A adequada aplicação dos dispositivos citados se dá como regra de instrução, ou seja, mediante prévia submissão ao contraditório de fatos e provas admitidos ao processo, o que foi feito. Entendimento que se amolda ao decidido na ADI nº 1082/STF (Rel. Min. Marco Aurélio, DJe de 30.10.2014).

14. Requisitados à Casa Civil documentos relativos à preparação do evento de 18/07/2022, os investigados se opuseram à diligência, ao argumento de que se tratava de “delegação de poder instrutório a grupo político beneficiário de eventual procedência da ação”, a permitir “um relatório sujeito a toda sorte de subjetivismos”.

15. A decisão foi mantida, tendo em vista que a requisição de documentos constitui meio legal de prova, sendo dever dos agentes públicos a que ela se destina prestarem informações completas, autênticas e fidedignas. A dinâmica é inerente aos princípios republicano e da impessoalidade.

16. A Casa Civil forneceu os documentos públicos que atendiam aos parâmetros da solicitação, sem apresentar sobre eles qualquer juízo de valor. Os investigados não apontaram qualquer ilegalidade in concreto e se utilizaram da prova para deduzir alegações em sua defesa.

17. Todos os elementos admitidos ao debate processual no curso da instrução possuem estrita correlação com a causa de pedir estabilizada. Sua força probante deve ser examinada no julgamento de mérito.

Requerimento de reabertura da instrução (formulado pelos investigados). Indeferido.

18. Na última audiência de inquirição de testemunhas, o advogado da defesa fez menção à denúncia apresentada pelo Ministério Público Eleitoral contra quatro pessoas acusadas de hackeamento que deixou instável o aplicativo e-título no pleito de 2020.

19. Deferiu-se a juntada da notícia jornalística, datada de 24/03/2023, da qual consta que o fato não tem relação com a segurança do sistema de votação.

20. A requisição do inquérito sigiloso em que foi apurado o episódio, referido apenas de passagem em pergunta do advogado dos investigados, é medida desproporcional. Caracterizados a impertinência e, mesmo, o viés protelatório do requerimento, é dever do Relator indeferir a produção da prova.

21. A dispensa de oitiva de testemunha indicada pelo juízo, após a coleta de outros três depoimentos convergentes sobre o mesmo fato, não induz nulidade. Os próprios investigados dispensaram três das testemunhas que arrolaram, pelo mesmo fundamento.

II - Mérito

Premissas de julgamento

22. O abuso de poder político se caracteriza como o ato de agente público (vinculado à Administração ou detentor de mandato eletivo) praticado com desvio de finalidade eleitoreira, que atinge bens e serviços públicos ou prerrogativas do cargo ocupado, em prejuízo à isonomia entre candidaturas.

23. O uso indevido de meios de comunicação, tradicionalmente, caracteriza-se pela exposição midiática desproporcional de candidata ou candidato. A compreensão se amolda ao paradigma da comunicação de massa (um-para-muitos), marcado pela concentração do poder midiático em poucos veículos com particular capacidade de influência sobre a sociedade.

24. A gravidade é elemento típico das práticas abusivas, que se desdobra em um aspecto qualitativo (alto grau de reprovabilidade da conduta) e outro quantitativo (significativa repercussão em um determinado pleito). Seu exame exige a análise contextualizada da conduta, que deve ser avaliada conforme as circunstâncias da prática, a posição das pessoas envolvidas e a magnitude da disputa.

25. As práticas ilícitas e sua forma de aferição ganham novos contornos no atual paradigma comunicacional, que é o da comunicação em rede (muitos-para-muitos). O aumento do tráfego de informações a partir de fontes múltiplas traz aspectos positivos, mas também faz crescer os ruídos e a dificuldade de checagem da veracidade de dados factuais. A expansão do discurso de ódio e da desinformação e a monetização de conteúdos falsos a serem consumidos por bolhas cativas são exemplos de fatores que podem degradar o debate público.

26. A premissa da abordagem da matéria é a ampla liberdade de manifestação do pensamento na internet, o que é plenamente compatível com o controle e a punição a novas formas de praticar condutas abusivas na sociedade em rede.

27. Nesse cenário, o TSE firmou entendimento no sentido de que “o uso de aplicações digitais de mensagens instantâneas, visando promover disparos em massa, contendo desinformação e inverdades em prejuízo de adversários e em benefício de candidato, pode configurar abuso de poder econômico e/ou uso indevido dos meios de comunicação social para os fins do art. 22, caput e XIV, da LC 64/90” (AIJEs nº 0601986-80 e nº 0601771-28, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJE de 22/08/2022).

28. O Tribunal também assentou a tese de que “a transmissão ao vivo de conteúdo em rede social, no dia da eleição, contendo divulgação de notícia falsa e ofensiva por parlamentar federal, em prol de seu partido e de candidato, configura abuso de poder de autoridade e uso indevido de meio de comunicação, sendo grave a afronta à legitimidade e normalidade do prélio eleitoral” (RO-El nº 0603975-98, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJE de 10/12/2021).

29. No segundo julgado, cassou-se o diploma de deputado estadual que, no dia do pleito de 2018, fizera live disseminando falso relato de apreensão de urnas fraudadas. Na caracterização dos elementos típicos do abuso, foram considerados: a) a credibilidade inspirada pela fonte, por se tratar de parlamentar; b) o alinhamento do discurso com estratégia político-eleitoral; c) o severo descompromisso com a verdade, eis que utilizados simples relatórios de substituição de urna para persuadir o eleitorado a acreditar na existência de fraude sistêmica e a não aceitar o resultado das urnas; d) a incompatibilidade do comportamento com a expectativa de conduta do agente público; e e) a exploração da imunidade parlamentar para reforçar a credibilidade das declarações falsas.

30. Em síntese, o abuso de poder midiático e político pode se configurar, em tese, mediante a divulgação de informações falsas sobre o sistema eletrônico de votação, feita por detentor de mandato eletivo, apta a produzir impactos sobre pleito específico. Considerada a posição preferencial da liberdade de expressão, há ônus elevados para o reconhecimento do ilícito, especialmente em uma eleição presidencial.

31. Em diversos campos jurídicos, reconhece-se que a palavra pode provocar dano a bens jurídicos de dimensão imaterial. Nesse sentido, citam-se o dano moral individual e coletivo e os crimes contra a honra. Destaca-se que a injúria racial, hoje equiparada ao racismo, tem pena majorada se o crime for cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou de publicação de qualquer natureza, inclusive em redes sociais e na internet.

32. A política é essencialmente performada por discursos. A palavra é o instrumento de governantes e parlamentares para transformar a realidade. Se assim é no campo da licitude, o mesmo ocorre quando se resvala para os ilícitos eleitorais.

33. Exatamente em razão da grande relevância da performance discursiva para o processo eleitoral e para a vida política, não é possível fechar os olhos para os efeitos antidemocráticos de discursos violentos e de mentiras que coloquem em xeque a credibilidade da Justiça Eleitoral.

34. Na atualidade, não há como negar que a desinformação é capaz de deteriorar o debate público e influir severamente sobre o processo de tomada de decisões.

35. Em primeiro lugar, estudos neurocientíficos demonstram que o novo paradigma comunicacional está produzindo transformações no cérebro. Reações rápidas, superficiais e pouco refletidas ocorrem diante do excesso de estímulos exteriores apresentados em alta velocidade. Os comportamentos, em geral, passam a ser afetados pela dinâmica de hiperestímulo a prazeres sensoriais, ligados a emoções básicas, em especial o medo e a raiva. 

36. Em segundo lugar, pesquisas empíricas comprovam que o fenômeno das fake news, instalado nesse cenário, produziu efeitos políticos em larga escala. Notícias falsas possuem maior capacidade de intensificar o tráfego para sites, canais e perfis que as divulgam, e permitem promover engajamento político a partir não de pautas propositivas, mas da mobilização de paixões. Por suas características inflamáveis, essa mobilização acaba por direcionar um sentimento de inconformismo, nem sempre bem elaborado individualmente, para uma ação coletiva antissistema e antidemocrática. Seu uso foi rapidamente incorporado a ações estratégicas de grande impacto, como o Brexit, no Reino Unido.

37. Em terceiro lugar, a desordem informacional acarreta uma grave crise de confiança, que abala uma distribuição do trabalho cognitivo, que é essencial para o desenvolvimento das sociedades humanas. A contínua contestação de fontes de conhecimento especializado e o repúdio às instituições não tornam as pessoas mais autônomas e críticas. Surgem grupos orientados pela mobilização em torno de crenças, em que cada pessoa supre com um componente passional (o pertencimento ao grupo) a falta de um suporte epistêmico (validação de conteúdo) para a tomada de decisões. As fontes “alternativas” provocam um curto-circuito na chamada normatividade de coordenação (que nos ensina em quem confiar), que acaba por  degradar a normatividade epistêmica (que nos diz em que conteúdo confiar).

38. A responsabilidade de candidatas e candidatos pelas informações que divulgam observa o modelo da accountability. Ou seja, ao se habilitarem para concorrer às eleições, essas pessoas se sujeitam a ter suas condutas rigorosamente avaliadas com base em padrões democráticos, calcados na isonomia, na normalidade eleitoral, no respeito à legitimidade dos resultados e na liberdade do voto.

39. Essa avaliação rigorosa não recai apenas sobre o agir em sentido estrito – como realizar uma carreata, ou custear despesas eleitorais. Ela incide também sobre a prática discursiva. Candidatas e candidatos exercem um importante papel na coordenação do conhecimento, ao disputar a confiança de eleitoras e eleitores para que sejam convencidos a agir de um determinado modo: apoiar pautas, engajar-se na campanha, convencer outras pessoas e, enfim, votar da forma sugerida.

40. Para atingir esse objetivo, é lícito que emitam opiniões e interpretem fatos de acordo com sua visão e inclinação políticas. Mas lhes é vedado utilizar informações falsas como ferramenta de mobilização política, como estratégia de domínio do debate público ou, no limite, para criar riscos de ruptura democrática.

41. No caso da pessoa ocupante do cargo de Presidente da República, o padrão de conduta democrática a ser observado é integrado pela responsabilidade pessoal por zelar pelo livre exercício dos demais Poderes, pelo exercício dos direitos políticos e pela segurança interna do país (art. 85, II, III e IV, da Constituição).

Fixação da moldura fática

42. A prova dos autos atesta, de forma inequívoca, que a reunião de 18/07/2022 no Palácio da Alvorada foi planejada pessoalmente pelo primeiro investigado como uma “resposta” à Sessão Informativa para Embaixadas, realizada pelo TSE em 30/05/2022. Na ocasião, o então Presidente do TSE estimulou os presentes a buscarem informações sérias e confiáveis sobre o sistema eletrônico de votação e ressaltou a importância das missões de observação internacional.

43. Testemunhas da defesa, ocupantes de altos cargos no governo do primeiro investigado, declararam que não houve envolvimento da Casa Civil, do Ministério das Relações Exteriores e da Assessoria Especial da Presidência da República. Os relatos, de meros espectadores, são uníssonos em informar que não foram chamados a discutir a abordagem e que desconheciam o teor da apresentação que seria feita.

44. O ex-Chanceler brasileiro observou o ineditismo da reunião envolvendo um Presidente da República e ressaltou que a temática não era afeta à política externa. O Ministro-Chefe da Casa Civil qualificou o evento como “evitável” e “superdimensionado”.

45. Os documentos requisitados à Casa Civil demonstram a magnitude do evento e a celeridade com que foram adotadas as providências para a realização do encontro. Entre os dias 13 e 17/07/2022 (dos quais apenas três eram úteis), o Cerimonial da Presidência disparou quase uma centena de convites dirigidos a Chefes de Missões Diplomáticas e outros 21 a outras autoridades brasileiras. Diversas unidades foram acionadas para fins logísticos e para o indispensável aparato de segurança envolvido.

46. No discurso proferido em 18/07/2022, o primeiro investigado, de forma expressa, declarou falsamente que as Eleições 2018 foram marcadas pela manipulação de votos, que havia risco de que o fato se repetisse em 2022 e que era interesse do TSE manter um sistema sujeito a fraudes e inauditável, a fim de permitir a adulteração do resultado em favor de candidato adversário. Houve, ainda, expresso desencorajamento ao envio de missões de observação internacional e hiperdimensionamento da participação das Forças Armadas para integrar Comissão de Transparência do TSE.

47. O primeiro investigado, no discurso, adotou explícita antagonização com o TSE, incentivando o descrédito a informações oficiais oriundas do Tribunal. Para tanto, valeu-se de afirmações insidiosas sobre Ministros desta Corte e atacou a competência do seu corpo técnico, afirmando falsamente que uma investigação em curso na Polícia Federal conteria prova da prática de fraude eleitoral e da desídia dos servidores.

48. A análise do IPL nº 135/2019 demonstra que o primeiro investigado não tinha em seu poder elemento mínimo relacionado à manipulação de votos ou a qualquer tipo de fraude eleitoral. A investigação versava sobre usual ataque a redes informatizadas, aos moldes dos que sofrem diversas instituições.

49. Além disso, não se tratava de um novo achado, mas de fato falso que o primeiro investigado, juntamente com o Deputado Federal Filipe Barros, havia divulgado em live de 04/08/2021. O teor das declarações foi desmentido em nota pública do TSE e o vazamento da investigação sigilosa rendeu o indiciamento de Mauro Cid, ajudante de ordens da Presidência durante o governo do primeiro investigado.

50. No ponto possivelmente de maior tensionamento do discurso, o então Presidente da República, em leitura distorcida de sua competência privativa para “exercer o comando supremo das Forças Armadas” (art. 84, XIII, da Constituição), enxerga-se como militar em exercício, à frente das tropas. A abordagem desconsidera uma conquista democrática, de incomensurável importância simbólica no pós-ditadura, que é a sujeição do poderio militar brasileiro a uma máxima autoridade civil democraticamente eleita.

51. O discurso, em diversos momentos, insinua uma perturbadora interpretação das ideias de “autoridade suprema do Presidente da República”, “defesa da Pátria” e “garantia da lei e da ordem” (art. 142 da Constituição). Com base nelas, o primeiro investigado adota a narrativa de que as Forças Armadas estavam comprometidas com a missão de debelar uma “farsa” que estaria sendo gestada no TSE. Essa visão se mostrou impermeável a qualquer argumento técnico ou decisão negocial do Tribunal que embasou o não acolhimento pontual de sugestões na Comissão de Transparência.

52. O primeiro investigado verbalizou insistentemente o desejo por eleições transparentes e por resultados autênticos. Essa afirmação somente pode ser compreendida no contexto das afirmações de que as Eleições 2018 foram marcadas pela fraude e que medidas para estancá-la, como o voto impresso e as propostas dos militares, eram alvo de resistência por parte de forças que conspiravam contra sua reeleição, ameaçando a paz, a soberania e a democracia.

53. Conforme a dinâmica própria às fake news, essa mensagem mobiliza sentimentos negativos capazes de produzir engajamento consistente na internet. Dispara-se um gatilho de urgência, no sentido de que algo precisa ser feito para impedir que o risco venha a se consumar. Esse pensamento intrusivo deixou latente a indagação sobre “o que fazer”. O primeiro investigado não deu uma resposta explícita a essa pergunta. Mas desenhou um cenário desolador que estreitava o leque de alternativas.

54. Para fechar o arco dos sentidos inscritos nesse discurso, salienta-se que o primeiro investigado inicia sua fala em 18/07/2022 dizendo que “até o momento, não fez nada fora das quatro linhas da Constituição”. Porém, ao longo da exposição, são acionados os sentimento de desesperança e de urgência, propensos a ampliar a margem de tolerância com ações que viessem a ser ditas necessárias para debelar fraudes eleitorais. 

55. O discurso se encerra sem nenhuma proposição às embaixadoras e aos embaixadores, a não ser a insistente oferta do primeiro investigado em compartilhar seus slides e, ainda, cópias do IPL nº 1361/2018. O objetivo era rechaçar o TSE como fonte fidedigna de informações e conquistar adeptos para a crença disseminada, sem nenhuma prova, de que o sistema eletrônico de votação adotado no Brasil não era capaz de assegurar que o eleito nas Eleições 2022 seria quem de fato recebesse mais votos.

56. O evento contou com cobertura ao vivo da TV Brasil, emissora pertencente ao conglomerado da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), empresa pública que integra a Administração Pública Federal Indireta. É presumível que houve necessidade de algum ajuste às pressas na grade da programação, considerada a curta antecedência com que foi designado o evento. A gravação ficou disponível nas redes sociais da emissora até a ordem judicial para que fosse retirada do ar, em 23/08/2022.

57. Houve, também, transmissão do evento pelas redes sociais do primeiro investigado. As visualizações no Facebook e no Instagram, no momento da propositura da ação, ultrapassavam um milhão, contabilizadas somente aquelas diretamente nos citados perfis do candidato à reeleição. Houve, portanto, deliberado direcionamento do conteúdo para alcançar simpatizantes (seguidores) do já notório pré-candidato à reeleição.

58. O conteúdo da mensagem divulgada perante embaixadoras e embaixadores, portanto, não ficou restrito ao Palácio da Alvorada. O uso dos meios de comunicação, no caso em tela, criou uma multidão de espectadores, os quais puderam assistir ao primeiro investigado, na condição de Chefe de Estado, dirigir-se a uma prestigiosa plateia de Chefes de Missão Diplomática.

59. Essa dimensão performativa cumpre também função pragmática. Isso porque reforça a percepção de que o primeiro investigado tinha autoridade para tratar do tema, ao ponto de ser ouvido, respeitosamente, pela comunidade internacional.

60. O exame minucioso do discurso de 18/07/2022, em seu contexto, demonstra que a fala teve conotação eleitoral, sob tríplice dimensão: a) tratou-se de risco de fraude nas Eleições 2022; b) houve promoção pessoal e do governo do primeiro investigado, identificado com valores do povo brasileiro, em contraponto ao “outro lado”, associado a retrocessos e reputado como desprovido de apoio popular; c) narrou-se uma imaginária conspiração de Ministros do TSE para fazer com que um iminente adversário, já à época favorito em pesquisas pré-eleitorais, fosse eleito Presidente da República.

61. A narrativa apresentada no discurso estabelece-se em um contínuo com episódios anteriores, ocorridos no ano de 2021. Os elementos conspiratórios cultivados ao longo do tempo foram acionados pelo primeiro investigado, em 18/07/2022, ao evocar denúncias que vinha fazendo, há ao menos um ano, a respeito de supostas fraudes eleitorais.

62. Destacam-se, entre os fatos evocados, lives realizadas entre julho e agosto de 2021, quando o primeiro investigado explorou fortemente informações falsas a respeito do sistema eletrônico de votação no contexto de tramitação da PEC nº 135/2019. No ápice, chegou a afirmar que houve um acordo com um hacker para desviar 12 milhões de votos em 2018, o que, em sua narrativa fantasiosa, explicaria por que o primeiro investigado não foi eleito no primeiro turno.

63. Nessas ocasiões, o primeiro investigado se fez acompanhar de Anderson Torres, então Ministro da Justiça e da Segurança Pública (29/06/2021) e do Deputado Filipe Barros (04/08/2021), que endossaram o discurso de que haveria provas de fraudes eleitorais, produzidas pela Polícia Federal e pelo próprio TSE. Para essa finalidade, as autoridades distorceram relatórios técnicos de auditoria e o IPL nº 1361/2018. Ademais, análises precárias foram divulgados como material técnico, contra o aconselhamento de peritos da Polícia Federal, que haviam sido levados ao Palácio do Planalto a fim de que deles se extraísse declaração no sentido de que havia prova da fraude eleitoral, o que foi veementemente negado pelos policiais.

64. As lives foram transmitidas nas redes sociais do primeiro investigado e, ao menos em duas ocasiões, pela emissora Jovem Pan, durante o programa Os Pingos nos Is, normalizando um estado de paranoia injustificada e tornando familiar a prática discursiva que viria a ser exercitada pelo primeiro investigado em 18/07/2022.

65. Assim, a mensagem divulgada em 18/07/2022 não constituiu um fato esporádico, mas um importante marco na estratégia comunicacional do primeiro investigado com suas bases políticas, assegurando sua mobilização permanente.

66. Essa prática discursiva moldou um pensamento conspiracionista que se conservou latente e foi acionado com facilidade às vésperas do período eleitoral de 2022.

67. Não há como dar guarida à tese de que o primeiro investigado buscou travar um diálogo institucional na reunião de 18/07/2022. Sua fala foi um monólogo composto por conteúdos técnicos falsos e ataques insidiosos a reputações. O objetivo era esgarçar a confiabilidade do sistema de votação e da própria instituição que tem a atribuição constitucional de organizar eleições.

68. Tampouco é possível acolher a alegação de que teria havido, no discurso, mera defesa da necessidade de transparência eleitoral, respaldada pela liberdade de expressão e pelo interesse público. No contexto da narrativa, o suposto desejo por “transparência” era posto como inatingível, tendo em vista que eventual vitória do adversário, desde então à frente nas pesquisas, era tratada como suficiente para “comprovar” a fraude. O negacionismo se mostrava irredutível, a despeito de dados empíricos, consensos políticos e decisões técnicas que sustentam a robustez dos mecanismos de transparência já existentes.

69. Por fim, é também insubsistente a tese de que havia uma disposição de aceitação pacífica dos resultados pelo primeiro investigado. Os fatos apurados demonstram que um pensamento conspiratório, segundo o qual uma fraude seria engendrada pelo próprio TSE para entregar resultados eleitorais inautênticos, foi sendo normalizada pelo primeiro investigado e por seu entorno, com forte influência sobre o eleitorado. O então Presidente da República não fez qualquer gesto público que refletisse a pessoal aceitação dos resultados eleitorais de 2022 como legítimos. Manteve ativado, assim, o prognóstico trágico sobre o risco de fraude, que havia apresentado à comunidade eleitoral e ao eleitorado em 18/07/2022, em um perigoso flerte com o golpismo.

Subsunção dos fatos às premissas de julgamento

70. A “prova robusta”, necessária para a condenação em AIJE, equivale ao parâmetro da prova “clara e convincente” (clear and convincing evidence).

71. A tríade para apuração do abuso – conduta, reprovabilidade e repercussão – se perfaz diante de: a) prova de condutas que constituem o núcleo da causa de pedir; e b) elementos objetivos que autorizem: b.1) estabelecer um juízo de valor negativo a seu respeito, de modo a afirmar que são dotadas de alta reprovabilidade (gravidade qualitativa); e b.2) inferir com necessária segurança que essas condutas foram nocivas ao ambiente eleitoral (gravidade quantitativa).

72. Sob essa ótica:

72.1 restou comprovado que o primeiro investigado concebeu, planejou e mandou executar o evento de 18/07/2022 como uma reação a evento do TSE, uma atípica reunião em que o Presidente da República, com o objetivo de antagonizar com o Tribunal, apresentou a chefes de Missão Diplomática desconfiança sobre as urnas eletrônicas e desencorajou o envio de missões de observação internacional;

72.2 a análise integral do discurso proferido pelo primeiro investigado em 18/07/2022 no Palácio da Alvorada demonstra que foi disseminada severa desordem informacional a respeito do sistema eletrônico de votação e graves ataques a Ministros do TSE, com vistas a abalar a confiabilidade na governança eleitoral brasileira;

72.3 a reunião teve nítida finalidade eleitoral, mirando influenciar o eleitorado e a opinião pública nacional e internacional;

72.4 a prática discursiva exercitada em 18/07/2022 converge com a adotada na campanha dos investigados, que explorou os ataques à credibilidade das urnas eletrônicas e do TSE para mobilizar bases eleitorais;

72.5 comprovou-se, com riqueza de detalhes, que a estrutura pública da Presidência e as prerrogativas do cargo de Presidente da República foram direcionadas em favor da candidatura dos investigados;

72.6 os números relativos ao alcance do vídeo na internet não deixam dúvidas de que a transmissão pela TV Brasil e pelas redes sociais potencializou a difusão do discurso de 18/07/2022 e, com isso, da desinformação divulgada pelo primeiro investigado; e

72.7 é possível concluir com a segurança necessária que a estratégia de descredibilização das urnas eletrônicas e os ataques à Justiça Eleitoral contribuíram significativamente para fomentar um ambiente de não aceitação dos resultados das Eleições 2022.

73. Está configurado nos autos o uso indevido de meios de comunicação, perpetrado pessoalmente pelo primeiro investigado mediante difusão massiva de gravíssima desordem informacional sobre o sistema eletrônico de votação e a governança eleitoral brasileira, na reunião de 18/07/2022 no Palácio da Alvorada, que foi convocada e protagonizada pelo então Presidente da República e pré-candidato à reeleição, transmitida em suas redes sociais e pela TV Brasil.

74. Restou demonstrado, ainda, que o primeiro investigado negligenciou relevantes premissas simbólicas da relação entre os Poderes da República e explorou, no interesse exclusivo de sua estratégia eleitoral, prerrogativas do cargo, bens e serviços empregados para viabilizar um evento que teve por único fim veicular discurso extremamente danoso à normalidade eleitoral.

75. Assim, também se conclui pela ocorrência do abuso de poder político, praticado de forma pessoal pelo primeiro investigado, que concebeu, definiu e ordenou que se realizasse, em tempo recorde, evento estratégico para sua pré-campanha, no qual fez uso de sua posição de Presidente da República, de Chefe de Estado e de “comandante supremo” das Forças Armadas para potencializar os efeitos da massiva desinformação a respeito das eleições brasileiras apresentada à comunidade internacional e ao eleitorado.

76. A disponibilidade para candidatar-se pressupunha o compromisso com a preservação da normalidade eleitoral, da isonomia, da legitimidade e da liberdade do voto. Além disso, o cargo ocupado exigia-lhe respeitar a missão institucional da Justiça Eleitoral, abster-se de difundir pensamentos intrusivos capazes de perturbar o exercício de direitos políticos e, ainda, contribuir para que as eleições transcorressem em um ambiente pacífico e seguro. Esses deveres foram descumpridos.

77. Sob a ótica da accountability, a condição de Presidente da República candidato à reeleição era incompatível com os comportamentos adotados, por meio dos quais o primeiro investigado promoveu severo esgarçamento do tecido democrático. Desse modo, o primeiro investigado é pessoalmente responsável pelos ilícitos praticados.

78. Não foram comprovadas condutas ilícitas imputáveis pessoalmente ao segundo investigado.

III. Dispositivo

79. Preliminar de incompetência da Justiça Eleitoral e prejudicial de “redelimitação” da demanda não conhecidas.

80. Preliminar de ilegitimidade passiva ad causam do segundo investigado e alegação de nulidade processual rejeitadas.

81. Requerimento de reabertura da instrução indeferido.

82. Pedido julgado parcialmente procedente, para condenar o primeiro investigado, Jair Messias Bolsonaro, pela prática de abuso de poder político e de uso indevido de meios de comunicação nas Eleições 2022 e, em razão de sua responsabilidade direta e pessoal pela conduta ilícita praticada em benefício de sua candidatura à reeleição para o cargo de Presidente da República, declarar sua inelegibilidade por 8 (oito) anos seguintes ao pleito de 2022.

83. Cassação do registro de candidatura dos investigados prejudicada, exclusivamente em virtude de a chapa beneficiária das condutas abusivas não ter sido eleita, sem prejuízo de reconhecer-se os benefícios eleitorais ilícitos auferidos por ambos os investigados.

84. Comunicação imediata da decisão à Secretaria da Corregedoria-Geral Eleitoral para que, independentemente da publicação do acórdão, promova a devida anotação no histórico de Jair Messias Bolsonaro, no Cadastro Eleitoral, da hipótese de restrição a sua capacidade eleitoral passiva.

85. Determinação de envio de comunicações à Procuradoria-Geral Eleitoral, ao Tribunal de Contas da União e aos Relatores, no STF, dos Inquéritos nos 4878/DF e 4879/DF e da Petição nº 10.477/DF, para ciência e providências que entenderem cabíveis.

 

Acordam os ministros do Tribunal Superior Eleitoral, por unanimidade, em não conhecer da preliminar de incompetência da Justiça Eleitoral, rejeitar a preliminar de ilegitimidade passiva de causa do segundo investigado e a alegação de nulidade processual e indeferir o requerimento de reabertura de instrução. Por maioria, em não conhecer da prejudicial de “redelimitação” da demanda, nos termos do voto do relator, vencido, neste ponto, o Ministro Raul Araújo.

No mérito, por unanimidade, em julgar improcedente o pedido para absolver o investigado Walter Souza Braga Netto, e por maioria, vencidos os Ministros Raul Araújo e Nunes Marques, julgar parcialmente procedente o pedido para condenar o primeiro investigado, Jair Messias Bolsonaro, pela prática de abuso de poder político e pelo uso indevido de meios de comunicação, e declarar sua inelegibilidade por 8 (oito) anos seguintes ao pleito de 2022, deixando de aplicar a cassação do registro de candidatura dos investigados, exclusivamente em virtude de a chapa beneficiária das condutas abusivas não ter sido eleita. Por fim, determinar a comunicação imediata, nos termos do voto do relator, à Secretaria da Corregedoria-Geral Eleitoral, para que, independentemente da publicação do acórdão, promova a devida anotação do histórico de Jair Messias Bolsonaro, no cadastro eleitoral, da hipótese de restrição a sua capacidade eleitoral passiva. À Procuradoria-Geral da República, para análise de eventuais providências na esfera penal. Ao Tribunal de Contas da União, considerando-se o comprovado emprego de bens e recursos públicos na preparação do evento em que se consumou o desvio de finalidade eleitoreira. E, ao Ministro Alexandre de Moraes, na condição de relator do STF, dos Inquéritos nos 4.878 e 4.879; ao Ministro Luiz Fux, na condição de relator da Petição 10.477, para ciência e providências que entenderem cabíveis, nos termos do voto do relator.

 

Brasília, 30 de junho de 2023.

 

MINISTRO BENEDITO GONÇALVES –  RELATOR  

 

RELATÓRIO

 

O SENHOR MINISTRO BENEDITO GONÇALVES: Obrigado, Presidente. Saúdo inicialmente Vossa Excelência, Presidente deste Tribunal, Ministro Alexandre de Moraes; nossa Vice-Presidente, Ministra Cármen Lúcia; Ministro Nunes Marques; Ministro Raul Araújo; Ministro Floriano; Ministro André; e o nosso servidor, na pessoa do nosso Diretor; e o Ministério Público Eleitoral, na pessoa do nosso Professor Paulo Gonet; e saudação inicialmente aos advogados que farão uso da palavra em defesa dos seus constituintes, e a todos os advogados aqui presentes.

Outra saudação também, que se encontram no Plenário – está aqui a informação – aos estudantes do Ensino Médio da Escola Comunitária de Campinas, São Paulo, e do Curso de Direito da Faculdade Santa Lúcia de Mogi, São Paulo. Sejam bem-vindos.

Presidente, permita-me, antes da leitura específica do relatório, eu fazer algumas considerações preliminares. Esse relatório foi juntado aos autos em 1º de junho deste ano, mesma data em que fiz o pedido de inclusão em pauta, prontamente atendido por Vossa Excelência. Embora o teor do relatório seja público desde aquela data, é muito oportuno que o julgamento desta AIJE seja iniciado por ele, como será, e isso permitirá dar amplo conhecimento do trâmite do processo a todas e todos que acompanham a sessão.

Adianto que, na leitura, irei me abster de detalhar as questões que já foram objeto de decisões interlocutórias submetidas ao crivo deste Colegiado. Também darei máxima objetividade à abordagem dos demais pontos. Farei isso, porém, com o cuidado de ser didático e de bem refletir as alegações de fato e de direito que compuseram o debate em contraditório. Como nós sabemos, o relatório não apresenta nenhuma conclusão do relator sobre o mérito, somente o que foi feito, instruído, coletado, na maior fidedignidade aos fatos e ao Direito, aqui tratada.

Passo ao relatório especificamente, Presidente.

Senhor Presidente, trata-se de ação de investigação judicial eleitoral ajuizada pelo Diretório Nacional do Partido Democrático Trabalhista contra Jair Messias Bolsonaro, à época candidato à reeleição para o cargo de Presidente da República, e Walter Souza Braga Netto, candidato a Vice-Presidente da República, por suposta prática de abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação.

A ação tem como causa de pedir fática o alegado desvio de finalidade de reunião havida no dia 18/07/2022, na qual o primeiro réu, no exercício do cargo de Presidente da República, teria se utilizado de encontro com embaixadores de países estrangeiros para atacar a integridade do processo eleitoral, especialmente disseminando “desordem informacional” relativa ao sistema eletrônico de votação. Aponta-se que o discurso se insere em estratégia de campanha voltada para o descrédito ao sistema eletrônico de votação e que o evento contou com cobertura da Empresa Brasil de Comunicações (EBC), sendo amplamente divulgado nas redes sociais do candidato à reeleição, potencializando o efeito danoso das declarações proferidas na condição de Chefe de Estado.

A petição inicial contempla as seguintes alegações de fato (ID 157940943):

a) a ocorrência da reunião com os embaixadores é fato público e notório;

b) a tônica do evento foi a de questionamento da integridade do processo eleitoral e das instituições da República, “especificamente o TSE e seus Ministros”;

c) o Presidente candidato à reeleição, pessoalmente, afirmou a possibilidade de que os resultados do pleito pudessem ser comprometidos por fraudes no sistema de votação;

d) foi literalmente afirmado pelo primeiro investigado, entre outras informações falsas, que, em 2018, as urnas trocaram o dígito 7 pelo 3, transformando o voto no “17” (número de Jair Bolsonaro) em “13”; que o sistema brasileiro de votação é “inauditável”; que a apuração é realizada por empresa terceirizada e não pode ser acompanhada; que o TSE teria admitido que, em 2018, “invasores puderam [...] trocar votos entre candidatos”;

e) no discurso, foram também feitas insinuações sobre suposta interferência eleitoral e defesa de “terroristas” por parte de Ministros do STF, bem como associado à “esquerda” o atentado sofrido por Bolsonaro em 2018;

f) o discurso obteve amplo alcance, pois a reunião foi transmitida pela TV Brasil, ligada à Empresa Brasil de Comunicação, e o vídeo foi veiculado nas redes sociais do primeiro investigado, alcançando, até a propositura da ação, aproximadamente 589.000 e 587.000 visualizações (respectivamente, no Facebook e no Instagram);

g) o então Presidente do TSE, Ministro Edson Fachin, agências de checagem e veículos de imprensa apontaram o caráter falso das afirmações lançadas contra o sistema de votação;

h) o discurso foi retirado da plataforma YouTube por iniciativa da empresa, que informou que “a política de integridade eleitoral do YouTube proíbe conteúdo com informações falsas sobre fraude generalizada, erros ou problemas técnicos que supostamente tenham alterado o resultado de eleições anteriores, após os resultados já terem sido oficialmente confirmados”;

i) o evento foi utilizado inegavelmente para fins eleitorais, pois o candidato à reeleição difundiu a gravação de discurso em que ataca a Justiça Eleitoral e o sistema eletrônico de votação, o que converge com estratégia de sua campanha.

Quanto à capitulação jurídica dos fatos, o autor sustenta que houve violação aos arts. 37, § 1º, da Constituição, 73, I, da Lei nº 9.504/97 e 22 da LC nº 64/1990, com base nas seguintes teses:

a) a conduta caracteriza desvio de finalidade no exercício do poder discricionário outorgado ao agente público, que foi utilizado para a consecução de fins eleitoreiros;

b) o uso da condição funcional de Presidente da República para, em manifesto desvio de finalidade, reunir embaixadores de países estrangeiros e difundir fake news contra o processo eleitoral amolda-se ao abuso de poder político;

c) foi também utilizado o aparato estatal em favor da candidatura, pois a reunião foi realizada no Palácio da Alvorada e, ainda, transmitida pela TV Brasil, ligada a empresa pública;

d) o alcance do ato praticado com desvio de finalidade foi amplificado pela divulgação do conteúdo sabidamente inverídico nas redes sociais;

e) “por figurar como Chefe de Estado, as falas do Senhor Jair Messias Bolsonaro têm capacidade de ocasionar uma espécie de efervescência nos seus apoiadores e na população em geral”, o que foi explorado, na hipótese, em “matéria de alta sensibilidade perante o eleitorado”;

f) conforme fixado no RO nº 0603975-98 (Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJE de 10/12/2021), a disseminação de ataques infundados ao processo eleitoral por meio de redes sociais caracteriza o uso indevido dos meios de comunicação;

g) a conduta possui alto grau de reprovabilidade e alcançou parcela significativa do eleitorado, revestindo-se de gravidade (aspectos qualitativo e quantitativo).

Por fim, no que diz respeito às provas, o autor:

a) inseriu na petição inicial links de internet e prints, destacando-se postagens nas redes sociais do primeiro investigado, transmissão do canal da TV Brasil no YouTube e sites de notícias, com vistas a conferir suporte à narrativa fática;

b) apresentou protesto genérico pela produção de provas;

c) protocolizou pendrive contendo o vídeo objeto de apuração da AIJE, o que foi certificado pela Secretaria (ID 157942663), que fracionou o conteúdo da mídia em seis partes sequenciais para juntada aos autos (ID 157957944).

Foi juntada procuração outorgada aos advogados que subscrevem a petição inicial (ID 157940944).

O investigante formulou requerimento de tutela de urgência, que foi deferido por meu antecessor, Min. Mauro Campbell Marques, para determinar a imediata retirada do conteúdo das redes sociais do primeiro investigado e da Empresa Brasil de Comunicação no Facebook, no Instagram e no YouTube, sob pena de multa de R$10.000,00 (dez mil reais). A decisão foi referendada pela Corte, à unanimidade, em 30/08/2022 (IDs 157951424 e 157984156).

No que diz respeito ao cumprimento da decisão liminar:

a) a Google Brasil declarou que o vídeo já havia sido tornado indisponível pelo responsável pela postagem, mas que foi possível à empresa adotar medidas para preservar o conteúdo (ID 157961443);

b) a Empresa Brasil de Comunicação informou que excluiu os conteúdos (ID 157961477);

c) o Facebook Brasil informou que excluiu o conteúdo e que procedeu à sua preservação, ainda que não tenha constado ordem expressa nesse sentido e que o material já tenha sido juntado aos autos, razão pela qual requer que seja declarado o integral cumprimento da ordem (ID 157962283).

Certificou-se nos autos, em 25/10/2022, o cumprimento do mandado de citação do primeiro investigado e a expedição de citação por correio para o segundo investigado (IDs 157961240 e 157961242).

Os investigados apresentaram contestação conjunta em 29/10/2022 (ID 157977291).

Suscitaram preliminares de:

a) exigência de formação de litisconsórcio passivo necessário com a União, ao argumento de que seu patrimônio jurídico foi afetado pela decisão de retirada de conteúdo produzido e publicado pela TV Brasil, canal vinculado à empresa pública EBC, o que acarreta a “incindibilidade da relação jurídica entre a União e os eventos descritos na petição inicial”;

b) incompetência da Justiça Eleitoral, uma vez que o ato descrito foi praticado pelo investigado na condição de Chefe de Estado, no regular desempenho da função privativa de manter relações com Estados estrangeiros (art. 84, VII, CF/88), sem qualquer relação com a disputa entre candidatos.

No mérito, argumentam, quanto aos fatos, que:

a) na hipótese dos autos, foi praticado “ato de governo”, insuscetível de controle jurisdicional sob a ótica do “fim político” e da soberania, inexistindo ato eleitoral, uma vez que “[n]ão se cuidou de eleições! Não se pediu votos! Não houve ataque a oponentes! E não houve a apresentação comparativa de candidaturas!”;

b) o evento constou de agenda oficial, previamente publicizada, sendo inclusive expedido convite para o então Presidente do TSE, Min. Edson Fachin, “não sendo crível que o primeiro Investigado convidasse destacado membro da própria Justiça Especializada para testemunhar evento de conotação eleitoral”;

c) o “público-alvo da exposição”, formado por representantes de países estrangeiros, “sequer detinha cidadania e capacidade ativa de sufrágio”;

d) “uma leitura imparcial e serena” do discurso do primeiro investigado revela “falas permeadas de conteúdos técnicos, que buscam debater um tema importante (transparência do processo eleitoral), dispostas ao longo de mais de 1h (uma hora) de apresentação [...] no afã de contrapor ideias e dissipar dúvidas sobre a transparência do processo eleitoral”;

e) “a má-fé de determinados setores da imprensa” levou a cobertura do evento a tratar “uma proposta de aprimoramento do processo democrático como se se tratasse de ataque direto à democracia”, quando na verdade se tratou de “um convite ao diálogo público continuado para o aprimoramento permanente e progressivo do sistema eleitoral e das instituições republicanas”;

f) trechos do discurso, que permitiriam sua adequada contextualização e compatibilidade com valores expressos pela OEA ao promover missões de observação eleitoral, “foram (maliciosamente) omitidos da inicial”;

g) o Tribunal de Contas da União fez recomendações para aprimoramento da segurança e da transparência do sistema eletrônico de votação (TC nº 014.328.2021-6) e o próprio TSE criou a Comissão de Transparência Eleitoral (Portaria TSE nº 578/2021), o que ilustra a licitude de apresentar “questionamentos (pontos duvidosos!), postos às claras”;

h) o Presidente do TSE, em 31/05/2022, realizou reunião com a comunidade internacional “a pretexto de fornecer ‘informações sérias e verdadeiras sobre a tecnologia eleitoral brasileira’ [...] a despeito de, como devido respeito, não estar legitimado constitucionalmente para tanto”, o que pode ser considerado um “evento assemelhado” ao discutido nos autos.

As teses jurídicas foram contrapostas da seguinte forma:

a) um ato de governo, por sua própria natureza, não pode ser enquadrado como abuso de poder político ou uso indevido dos meios de comunicação;

b) encontra-se resguardada pela liberdade de expressão “a exposição de pontos de dúvidas à comunidade internacional, em evento público constante de agenda oficial de Chefe de Estado soberano, no afã de aprimorar o processo de fiscalização/transparência do processo eleitoral”;

c) não há, nos autos, “provas contundentes do prejuízo ao processo eleitoral”, mas apenas “considerações vagas e imprecisas acerca da eventual gravidade do discurso apresentado aos embaixadores”;

d) “o debate público foi completo”, uma vez que, após a legítima exposição do ponto de vista do Chefe de Estado à comunidade internacional, o Presidente do TSE “emitiu nota pública reativa de esclarecimento” por meio da qual rebateu, com ampla publicidade, um total de 20 (vinte) pontos apresentados pelo Investigado”;

e) “qualquer possibilidade – ainda que remota e inventiva – de lesão à legitimidade das eleições foi prontamente estancada pela Justiça Eleitoral”, tendo em vista a ampla divulgação da nota do TSE pelos meios de comunicação, “com alcance social igual ou maior” e “com emprego de termos duros e cáusticos até mesmo para discursos jornalísticos”;

f) aplica-se à espécie a “teoria dos diálogos institucionais”, acolhida pela jurisprudência do STF (ADI nº 4650, Rel. Luiz Fux, DJ de 24/02/2016), que repudia a existência de instituição detentora do monopólio do sentido e do alcance das normas, devendo os pronunciamentos da Suprema Corte serem tomados como “última palavra provisória”.

A iniciativa probatória dos réus, nessa fase, consistiu em:

a) requerimento de oitiva de quatro testemunhas, a saber: Carlos Alberto Franco França, Ministro das Relações Exteriores; Flávio Augusto Viana Rocha, Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República; Ciro Nogueira Lima Filho, Ministro-Chefe da Casa Civil; e João Henrique Nascimento de Freitas, Assessor-Chefe do Presidente da República;

b) prova documental composta por relatório de auditoria do TCU; relatório da análise, pelo TSE, das sugestões da Comissão de Transparência indicando acolhimento de 72,7% das propostas; Carta Democrática Interamericana (CID-OEA); notícias jornalísticas sobre a nota do TSE emitida após a reunião.

Foram juntadas procurações outorgadas pelos investigados aos subscritores da peça de defesa (IDs 157977297 e 157977298).

Com vistas a assegurar o pleno contraditório em torno das questões e requerimentos a serem examinados por ocasião do saneamento do processo, as partes foram intimadas, abrindo-se prazo comum de 3 dias para que o autor se manifestasse sobre as preliminares suscitadas na contestação e os réus justificassem o requerimento de prova testemunhal, indicando os pontos fáticos controvertidos a serem dirimidos pelos respectivos depoimentos (ID 158045220).

A réplica do autor acrescentou ao debate processual os seguintes argumentos (ID 158067068):

a) inexiste litisconsórcio passivo necessário com a União em razão do simples fato de a TV Brasil haver albergado o vídeo, sendo a remoção de conteúdos ilícitos decorrência do art. 9º-A da Res.-TSE nº 23.610/2019;

b) a Justiça Eleitoral é competente para examinar a difusão de fake news “intimamente ligadas ao pleito” e que foram praticadas com “desvirtuação da atuação legítima estatal para confortar ânimos eleitorais e escusos do Chefe de Estado”;

c) a “teoria do ato de governo” não pode ser utilizada para “lançar uma espécie de verniz imunizante sobre as falas do Senhor Jair Messias Bolsonaro, que não tem o poder de tudo poder”, sendo legítimo pleitear o controle jurisdicional sobre conduta que representa agressão à integridade do processo eleitoral;

d) o primeiro investigado é responsável por conferir à reunião viés eleitoral, estando configurada a hipótese de abuso de poder político, ante o uso da condição funcional, em manifesto desvio de finalidade com impacto sobre as Eleições 2022.

Por sua vez os réus justificaram o requerimento de prova testemunhal nos seguintes termos (ID 158072327):

a) é necessário expor a dinâmica do evento questionado, falas e comentários dos presentes;

b) o rol de testemunhas denota “a possibilidade de conhecimento dos fatos sequiosos de esclarecimento, frente às relevantes funções desempenhadas por cada uma das pessoas indicadas”;

c) a prova não ostenta caráter protelatório, “inclusive porque postulada até como modicidade, eis que não postulado, como de direito, sequer o número máximo de 06 (seis) testemunhas, previsto em lei (art. 22, V, da LC nº 64/90)”.

Proferiu-se, então, decisão de saneamento e organização do processo, na qual foram dirimidas questões processuais, fixados os pontos controvertidos e, com base nestes, apreciados os requerimentos de prova. Destaco da referida decisão (ID 158487960):

a) registro da formação válida do processo, com ênfase para o comparecimento espontâneo do segundo investigado ao apresentar defesa conjunta antes da juntada do aviso de recebimento (art. 239, § 1º, do CPC);

b) registro da regularidade representação das partes, por advogadas e advogados aos quais foram outorgadas procurações;

c) declaração do devido e tempestivo cumprimento da decisão liminar em que se ordenou às redes sociais e à TV Brasil remover conteúdos no prazo assinalado e conservá-los durante o curso da ação;

d) constatação da tempestividade dos atos processuais até então práticos, razão pela qual foram analisadas todas as manifestações e documentos apresentados;

e) rejeição das preliminares de incompetência da Justiça Eleitoral e de ausência de formação de litisconsórcio passivo necessário com a União, ambas suscitadas pelos réus;

f) delimitação das questões de fato, a acarretar a estabilização da demanda (art. 329, II, do CPC), sem prejuízo da admissão, à controvérsia, da obrigatória consideração de fatos supervenientes (art. 493 do CPC) ou diretamente relacionados com a causa de pedir já estabilizada, uma vez que “[n]ão decorre dessa medida a blindagem do debate processual contra alegações e documentos que possam influir no julgamento da causa”, apresentando-se os “contornos gerais da matéria controvertida sobre a qual recairá a prova” nos seguintes termos:

“Na hipótese dos autos, o substrato fático que motivou a propositura da AIJE é a realização de reunião do Presidente da República com embaixadores de países estrangeiros no Palácio da Alvorada, no dia 18/07/2022, bem como sua ampla divulgação, pela TV Brasil e pelas redes sociais do primeiro representado. Na ocasião, o primeiro investigado realizou exposição em que abordou o sistema eletrônico de votação brasileiro e fez referência a Ministros do STF.

Esses fatos quedaram incontroversos ao final da fase postulatória. A autora juntou mídia contendo vídeo da realização do discurso. Não houve objeção, por parte dos réus, à autenticidade ou integridade do material.

A controvérsia fática recai sobre as circunstâncias em que a reunião foi realizada e em que ocorreu sua divulgação nas redes.

O autor afirma que o primeiro réu, atuando com desvio de finalidade, utilizou-se do encontro com chefes de missões para atacar a integridade do processo eleitoral, especialmente disseminando “desordem informacional” relativa ao sistema eletrônico de votação e fazendo insinuações sobre a conduta de Ministros que presidiram o TSE. Além disso, argumenta que o discurso tem aderência à estratégia de campanha do candidato à reeleição para mobilizar suas bases por meio de fatos sabidamente falsos, devendo-se levar em conta que a transmissão pelas redes sociais fez com que a mensagem chegasse ao eleitorado.

De sua parte, os investigados refutam qualquer relação entre o evento e o pleito de 2022. Defendem que a reunião se ateve à sua finalidade pública, uma vez que, segundo sua narrativa, o Presidente da República, no exercício da liberdade de expressão, expôs seu ponto de vista sobre o sistema de votação para convidados que nem mesmo eram eleitores. Ressaltam que a fala fez parte de um diálogo institucional sobre tema de interesse público, devendo ser lida em cotejo com anterior evento do TSE (em que o Ministro Edson Fachin, então seu Presidente, se dirigiu a membros da comunidade internacional) e com nota em que o tribunal rebateu as afirmações feitas por Jair Bolsonaro na reunião do Palácio do Alvorada.”

g) delimitação das questões de direito, com a seguinte fundamentação:

“Embora seja de rigor afirmar que o réu se defende dos fatos e não da qualificação jurídica dada a estes, é certo que as particularidades das ações eleitorais exigem que, ao ter início a fase instrutória, tenha-se plena ciência das questões de direito que serão relevantes para o deslinde do feito. Isso porque, em Direito Eleitoral, uma mesma conduta pode ser capitulada sob a ótica de ilícitos diversos, com consequências distintas.

Tais ilícitos possuem elementos típicos próprios que influem na iniciativa probatória das partes. Por exemplo, o que é suficiente para demonstrar que foi realizada propaganda irregular, punível com multa mediana, pode não bastar para a condenação por conduta vedada ou por uso indevido de meios de comunicação. Do mesmo modo, e com especial interesse para a AIJE, cada modalidade abusiva possui características próprias, que devem ser levadas em conta ao longo da instrução.

No caso vertente, as teses jurídicas deduzidas pelo autor encontram-se bem delimitadas. Imputa-se aos investigados a prática de abuso de poder político, ante o alegado desvio de finalidade no exercício de suas funções de Presidente da República e no uso de bens públicos, e de uso indevido de meios de comunicação, que teria sido perpetrado pela utilização de redes sociais, inclusive de empresa pública, para difundir conteúdo sabidamente falso acerca do sistema eletrônico de votação.

Ao longo da exposição, o autor menciona ainda a violação aos arts. 37, § 1º da Constituição, 73, I, da Lei 9.504/97 e 9º-A da Res.-TSE 23.610/2019, que descrevem condutas passíveis, em tese, de se amoldar às práticas abusivas descritas no art. 22 da LC 64/90.

Ao refutar a configuração dos ilícitos em comento, os investigados, além de se oporem à ocorrência do desvio de finalidade e do uso das redes para divulgar fake news, afirmam que os fatos não são graves o suficiente para afetar os bens jurídicos tutelados pela AIJE. Em particular, alegam que a publicação da nota do TSE, com ampla repercussão midiática, teria neutralizado eventuais impactos da fala dirigida pelo primeiro investigado aos embaixadores.

Assim, a gravidade da conduta, sob o ângulo qualitativo (grau de reprovabilidade) e quantitativo (repercussão no contexto do pleito específico) é ponto controvertido cuja análise deverá ser balizada pelos elementos probatórios coligidos aos autos.”

h) cotejo dos requerimentos de prova com os pontos controvertidos, sob a ótica da pertinência e utilidade, o que conduziu ao deferimento da oitiva de todas as quatro testemunhas arroladas pelos réus, justificada como meio para conhecimento da dinâmica do evento, “falas e comentários dos presentes”, com destaque para a importância de que os fatos fossem descritos sob a ótica de autoridades que desempenhavam “relevantes funções” no governo findo em 2022;

i) designação de audiência para oitiva das testemunhas;

j) submissão da rejeição das preliminares suscitadas pelos investigados a referendo em plenário, tendo em vista que, caso acolhidas, poderiam levar à extinção do feito, antecipando-se, para a mesma oportunidade a realização de sustentação oral sobre a matéria.

A rejeição das preliminares foi referendada, por unanimidade, na sessão de 13/12/2022. Transcrevo o teor da ementa do acórdão respectivo (ID 158550654):

“AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ELEIÇÕES 2022. PRESIDENTE. PRELIMINARES. REJEIÇÃO. QUESTÕES EM TESE APTAS A ACARRETAR DECISÃO TERMINATIVA. COLEGIALIDADE. RACIONALIDADE PROCESSUAL. IMEDIATA SUBMISÃO À CORTE.

ATO DE GOVERNO. ALEGADO DESVIO DE FINALIDADE EM FAVOR DE CANDIDATURA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ELEITORAL. UNIÃO. PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PÚBLICO. ILEGIMIIDADE PASSIVA. LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO. INEXISTÊNCIA. DECISÃO INTERLOCUTÓRIA REFERENDADA.

1. Trata-se de ação de investigação judicial eleitoral (AIJE) destinada a apurar a ocorrência de abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação, ilícitos supostamente perpetrados em decorrência do desvio de finalidade da reunião do Presidente da República com embaixadores de países estrangeiros, a fim de favorecer sua candidatura à reeleição.

2. Concluída a fase postulatória, proferiu-se decisão de saneamento e organização do processo, com o objetivo assegurar que a fase instrutória seja iniciada em ambiente de estabilidade jurídica, resolvidas todas as questões pendentes.

3. No decisum, foram rejeitadas duas preliminares suscitadas pelos investigados.

4. Como regra geral, as questões resolvidas por decisão interlocutória, no procedimento do art. 22 da LC nº 64/90, não são recorríveis de imediato. Nessa hipótese, o reexame pelo Colegiado fica diferido para a sessão em que for julgado o mérito e somente ocorre se a parte o requerer em alegações finais (art. 19, Res.-TSE nº 23.478/2016; art. 48, Res.-TSE nº 23.608/2019).

5. A aplicação da regra às ações de investigação judicial eleitoral foi reafirmada no julgamento da AIJE nº 0601969-65 (Rel. Min. Jorge Mussi, DJE de 08/05/2020), quando o TSE declarou preclusa a possibilidade de a parte, silente nas alegações finais, rediscutir decisão em que o Relator indeferiu provas.

6. A sistemática prestigia a celeridade, mas, para que atinja seu objetivo, deve ser aplicada sempre com respeito à racionalidade processual. Desse modo, não se justifica que toda a instrução seja desenvolvida enquanto está pendente de exame pela Corte questão preliminar capaz de, em tese, levar à extinção do processo sem resolução do mérito.

7. Nessa linha, é conveniente ao bom andamento deste feito e à estabilidade do processo eleitoral que a Corte desde logo avalie se, tal como se concluiu na decisão saneadora, ação proposta é efetivamente viável.

PRELIMINAR DE INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ELEITORAL. REJEITADA.

8. A Justiça Eleitoral é competente para apurar desvios de finalidade de atos praticados por agentes públicos, inclusive por Chefe de Estado, quando da narrativa se extrair que o mandatário se valeu do cargo para produzir vantagens eleitorais para si ou terceiros. Entender o contrário seria criar uma espécie de salvo-conduto em relação a desvios eleitoreiros ocorridos, justamente, no exercício do feixe de atribuições mais sensível do Presidente da República.

9. Na hipótese dos autos, os requisitos para a definição da competência do TSE foram devidamente delimitados pela parte autora. Narra-se que o Presidente da República, utilizando-se de seu cargo, convocou reunião com embaixadores de países estrangeiros, mas, agindo com desvio de finalidade, teria passado a atacar a integridade do sistema eleitoral, em estratégia amoldada à de sua campanha, beneficiando-se, ainda, da ampla repercussão da transmissão do evento pela TV Brasil.

10. Os argumentos trazidos pelos investigados, no sentido de que atos de governo não se sujeitam a controle jurisdicional, pressupõem que inexista o desvirtuamento para fins eleitorais, matéria a ser examinada no mérito.

PRELIMINAR DE NÃO FORMAÇÃO DE LITISCONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO COM A UNIÃO. REJEITADA.

11. É pacífica a jurisprudência no sentido da impossibilidade de pessoas jurídicas figurarem no polo passivo da AIJE. Nos intensos debates desta Corte sobre o tema do litisconsórcio passivo necessário, essa premissa jamais foi alterada. O que se vem discutindo é se deve, ou não, ser exigida a inclusão, no polo passivo, dos responsáveis pela prática abusiva – portanto, de pessoas físicas passíveis de suportar inelegibilidade. Precedentes.

12. À luz de todo o arcabouço doutrinário e jurisprudencial para preservar a isonomia entre candidatos à reeleição e seus adversários, recusa-se a ideia de que haja uma “relação jurídica incindível” entre a União e o Presidente da República a impor que o ente federado litigue, na AIJE, ao lado do candidato.

13. Além da indevida mescla de interesses públicos e privados que deriva dessa proposta, seu acolhimento comprometeria, em definitivo, a celeridade e a economicidade, ao forçar a atuação processual de entes federados, autarquias, empresas públicas e fundações em toda e qualquer ação em que se apure finalidade eleitoral ilícita de atos praticados em nome do Poder Público.

14. Assim, mesmo que a União e a Empresa [Brasil] de Comunicação entendessem que a remoção de vídeo gravado pela TV Brasil acarretou prejuízo ao seu patrimônio, não se tornariam litisconsortes necessários dos investigados. Ressalte-se que, no caso, nem mesmo isso ocorreu, pois aquelas pessoas jurídicas de direito público não adotaram qualquer medida voltada para assegurar a veiculação do material.

CONCLUSÃO.

15. Rejeitadas as preliminares suscitadas pelos investigados, conclui-se pela viabilidade da AIJE proposta.

16. Decisão interlocutória referendada.”

A primeira audiência para oitiva de testemunha foi realizada em 19/12/2022, quando foi tomado o depoimento de Carlos Alberto Franco França, então Ministro das Relações Exteriores (IDs 158533126 e 158533127).

Em 13/01/2023, o autor promoveu a juntada de documento novo, consistente em imagens de minuta de decreto de Estado de Defesa, cujo original havia sido apreendido, no dia anterior, pela Polícia Federal na residência de Anderson Torres – ex-Ministro da Justiça e Segurança Pública do governo de Jair Bolsonaro – durante diligência determinada pelo Ministro Alexandre de Moraes no âmbito do Inquérito nº 4879, que tramita no STF. Requereu, ainda, que fosse solicitadas “cópias oficiais dos documentos pertinentes à busca e apreensão em apreço, especificamente os que dizem respeito à minuta do decreto descrito em linhas anteriores” (ID 158553894).

Os requerimentos foram deferidos em decisão interlocutória na qual expressamente consignada a aderência do fato superveniente à demanda em curso, em especial no que diz respeito à correlação do discurso com a eleição e ao aspecto quantitativo da gravidade. Destaco trecho em que foi explicado o ponto (ID 158554507):

“Tem-se, em síntese, que as partes controvertem sobre: a) a relação entre o evento realizado em 18/07/2022 e as eleições ocorridas no mesmo ano; b) caso estabelecida essa correlação, a gravidade da conduta, no aspecto qualitativo (o discurso em si) e quantitativo (repercussão no contexto eleitoral).

Com base na fixação da matéria fática e jurídica controvertida, já se deferiu, nos presentes autos, prova testemunhal requerida pela parte ré. Note-se que essa prova foi pleiteada, a despeito de se ter acesso à íntegra do discurso proferido por Jair Bolsonaro, porque os investigados sustentaram a relevância de expor outros fatores relativos à dinâmica do evento, tais como “falas e comentários dos presentes” e, ainda, a ótica de autoridades que desempenhavam “relevantes funções” no governo.

A justificativa mostrou aderência à tese defensiva que se dirige ao aspecto qualitativo da gravidade, uma vez que, segundo os investigados, as circunstâncias do evento, a serem relatadas pelas testemunhas, demonstrariam a sua regularidade, vez que estaria inserido em um “diálogo institucional” entre o TSE e o Poder Executivo. Desse modo, deferi a prova, consignando que “[n]a presente ação, constata-se que a disputa de narrativas tem por objeto o contexto do evento (reunião com embaixadores) e, não, sua existência.

De igual forma, constato que os fatos ora trazidos a juízo pela parte autora possuem aderência aos pontos controvertidos, em especial no que diz respeito à correlação do discurso com a eleição e ao aspecto quantitativo da gravidade.

Conforme se observa, a tese da parte autora, desde o início, é a de que o discurso realizado em 18/07/2022 não mirava apenas os embaixadores, pois estaria inserido na estratégia de campanha do primeiro investigado de “mobilizar suas bases” por meio de fatos sabidamente falsos sobre o sistema de votação. Na petição ora em análise, alega que a minuta de decreto de Estado de Defesa, ao materializar a proposta de alteração do resultado do pleito, “densifica os argumentos que evidenciam a ocorrência de abuso de poder político tendente promover descrédito a esta Justiça Eleitoral e ao processo eleitoral”.

Constata-se, assim, a inequívoca correlação entre os fatos e documentos novos e a demanda estabilizada, uma vez que a iniciativa da parte autora converge com seu ônus de convencer que, na linha da narrativa apresentada na petição inicial, a reunião realizada com os embaixadores deve ser analisada como elemento da campanha eleitoral de 2022, dotado de gravidade suficiente para afetar a normalidade e a legitimidade das eleições e, assim, configurar abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação.

A decisão foi objeto de pedido de reconsideração, no qual os réus afirmaram que foram violadas a estabilização da demanda e a consumação de decadência (ID 158557843). Após ouvir a parte autora (ID 158560428), indeferi o pedido, mantendo a decisão por seus fundamentos, e fixei orientação a ser aplicada às AIJEs das Eleições 2022 em situações semelhantes (ID 158622380).

Tendo em vista o caráter prejudicial das questões suscitadas, cujo acolhimento poderia impactar na instrução, remeti ao Plenário o exame dos fundamentos adotados e da orientação fixada. Ambos os pontos foram referendados na sessão de 14/02/2023, o que constou em acórdão assim ementado (ID 158704139):

“AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ELEIÇÕES 2022. PRESIDENTE. JUNTADA DE DOCUMENTO NOVO. FATOS SUPERVENIENTES.  ADMISSIBILIDADE. DESDOBRAMENTO DE FATOS QUE COMPÕEM A CAUSA DE PEDIR. PEDIDO DE RECONSIDERAÇÃO. DECADÊNCIA. VIOLAÇÃO À ESTABILIZAÇÃO DA DEMANDA. INOCORRÊNCIA. QUESTÕES PREJUDICIAIS REJEITADAS. DECISÃO REFERENDADA.

1. Trata-se de decisão em que, rejeitadas as prejudiciais de decadência e de violação à estabilização da demanda, indeferiu-se pedido de reconsideração formulado contra a admissibilidade de documento novo juntado aos autos durante a fase de instrução.

2. Nesta AIJE, apura-se abuso de poder político e uso indevido de meios de comunicação, ilícitos supostamente praticados em reunião de 18/07/2022 ocorrida no Palácio da Alvorada, quando o então Presidente da República, primeiro investigado, proferiu discurso lançando suspeitas de fraude nas urnas eletrônicas e acusações de parcialidade de Ministros do TSE. O evento contou com a presença de embaixadores de países estrangeiros e foi transmitido pela TV Brasil e nas redes sociais do candidato à reeleição.

3. A causa de pedir da AIJE é delimitada pelos contornos fáticos e jurídicos que permitam a compreensão da demanda, não se exigindo que a parte autora, ao postular em juízo, tenha pleno domínio de todos os fatos que podem influir no julgamento e os descreva em minúcias.

4. Na hipótese, a causa de pedir contempla a imputação de que o discurso proferido em 18/07/2022 se insere em uma estratégia de campanha do primeiro réu, de difundir fatos sabidamente falsos relativos ao sistema eletrônico de votação, para mobilizar seu eleitorado por força de grave “desordem informacional” atentatória à normalidade do pleito.

5. Em contrapartida, os investigados refutam qualquer relação entre o evento de 18/07/2022 e as eleições, enxergando no discurso uma legítima manifestação, em salutar “diálogo institucional” com o TSE, afirmando ainda que qualquer efeito do discurso teria sido prontamente neutralizado por nota pública do tribunal.

6. Diante disso, na decisão de organização e saneamento do processo, consignou-se que os fatos constitutivos (o evento, o discurso e seu conteúdo) são incontroversos e que as partes disputam a narrativa sobre o significado e o impacto eleitoral do episódio. Ressaltou-se que, em matéria de abuso de poder, o exame da gravidade da conduta, sob o ângulo qualitativo e quantitativo, reclama especial atenção para a análise de elementos contextuais.

7. O documento novo ora trazido aos autos consiste em minuta de decreto de Estado de Defesa apreendida pela Polícia Federal na residência do ex-Ministro da Justiça e da Segurança Pública, Anderson Torres, no dia 12/01/2023, durante diligência determinada pelo Ministro Alexandre de Moraes no âmbito do Inquérito nº 4879, que tramita no STF.

8. É inequívoco que o fato de o ex-Ministro da Justiça do governo do primeiro investigado ter em seu poder uma proposta de intervenção no TSE e de invalidação do resultado das eleições presidenciais possui aderência aos pontos controvertidos, em especial no que diz respeito à correlação entre o discurso e a campanha e ao aspecto quantitativo da gravidade.

9. A decadência obsta a dedução de ilícitos inteiramente novos, sendo fator de estabilidade política e jurídica. No entanto, apresentada a demanda de modo tempestivo, os fatos supervenientes que guardem relação com a causa de pedir, mesmo que não alegados pelas partes, devem ser obrigatoriamente considerados no julgamento (art. 493, CPC; art. 23, LC 64/90).

10.  Desse modo, não se pode interpretar a estabilização da demanda como um recorte completo e irreversível na realidade fenomênica. Essa ideia acarreta um descolamento tal dos fatos em relação a seu contexto que chega a impedir o órgão judicante de levar em conta circunstâncias que gradativamente se tornem conhecidas ou potenciais desdobramentos das condutas em investigação.

11. Ressalte-se que, no caso dos autos, o que a autora pretende discutir são eventos que se conectam a partir do eixo central da narrativa, segundo a qual o discurso na reunião com embaixadores mirava efeitos eleitorais ilícitos. O próprio teor do discurso do Presidente, que livremente escolheu os tópicos que desejava abordar, oferece uma clara visão sobre o fluxo de eventos – passados e futuros – que podem, em tese, corroborar a imputação da petição inicial.

12. Ao lado dessas considerações gerais, deve-se ter em conta que o resultado das eleições presidenciais de 2022, embora fruto legítimo e autêntico da vontade popular manifestada nas urnas, se tornou alvo de ameaças severas. Passado o pleito, a diplomação e até a posse do novo Presidente da República, atos desabridamente antidemocráticos e insidiosas conspirações tornaram-se episódios corriqueiros. São armas lamentáveis do golpismo dos que se recusam a aceitar a prevalência da soberania popular e que apostam na ruína das instituições para criar um mundo de caos onde esperam se impor pela força.

13. Os acontecimentos se sucedem de forma vertiginosa. Mas o devido processo legal tem, entre suas virtudes, a capacidade de decantar os fatos e possibilitar seu exame analítico. É isso que deve guiar a instrução das AIJEs, pois é central à consolidação dos resultados das Eleições 2022 averiguar se esse desolador cenário é, ou não, desdobramento de condutas em apuração nas diversas ações. Esse debate não pode ser silenciado ou inibido por uma artificial separação entre as causas de pedir e a realidade fenomênica em que se inserem.

14.  Os temas das ações propostas são de conhecimento público. Não há segredo de justiça. As decisões de admissibilidade, de concessão de tutela inibitória e de saneamento, bem como outras de caráter interlocutório, têm contemplado cuidadoso delineamento das matérias em discussão.

15. Tendo em vista o prestígio à celeridade, à economia processual e à boa-fé objetiva, entendo prudente que, especificamente no que diz respeito às AIJEs relativas às eleições presidenciais de 2022, seja fixado um parâmetro seguro e objetivo que dispense, a cada fato ou documento específico, uma nova decisão interlocutória que revolva todos os fundamentos ora expostos.

16. Orientação a ser aplicada em situações semelhantes, no sentido de que a estabilização da demanda e a consumação da decadência não impedem que sejam admitidos no processo e considerados no julgamento elementos que se destinem a demonstrar desdobramentos dos fatos originariamente narrados, a gravidade (qualitativa e quantitativa) da conduta que compõe a causa de pedir ou a responsabilidade dos investigados e de pessoas do seu entorno, tais como: a) fatos supervenientes à propositura das ações ou à diplomação dos eleitos, ocorrida em 12/12/2022; b) circunstâncias relevantes ao contexto dos fatos, reveladas em outros procedimentos policiais, investigativos ou jurisdicionais ou, ainda, que sejam de conhecimento público e notório; e c) documentos juntados com base no art. 435 do CPC.

17. Mantido o indeferimento do pedido de reconsideração.

18. Decisão interlocutória referendada.”

No ínterim entre a rejeição do pedido de reconsideração e seu referendo em plenário, foi realizada a segunda audiência para oitiva de testemunhas arroladas pelos réus. Em 08/02/2023 (ID 158628231), foram ouvidos Ciro Nogueira Lima Filho, ex-Ministro Chefe da Casa Civil (ID 158629232), e Flávio Augusto Viana Rocha, ex-Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência (ID 158628233). Os investigados desistiram da oitiva de João Henrique Freitas (ID 158626938), inicialmente prevista para a mesma data.

Concluída a produção da prova requerida na fase postulatória, sobreveio decisão em que determinei diligências complementares, de ofício, nos termos dos incisos VI a IX do art. 22 da LC nº 64/1990 (ID 158764809).

No decisum, ressaltei que os citados dispositivos impõem ao relator da AIJE assegurar, de ofício ou a requerimento das partes, o esgotamento da instrução probatória, mediante requisições, oitivas e outras providências que atendam ao interesse público na elucidação de possíveis práticas abusivas. Ponderei a necessidade de se atentar para o caráter complementar dessa atividade, preservando a objetividade da apuração. Ainda, fiz referência à necessidade de que o art. 23 da LC nº 64/1990 seja considerado regra de instrução, reconhecendo a indispensabilidade de que, diante de fatos e circunstâncias relevantes identificados pelo magistrado, sejam estes previamente apresentados, concedendo-se às partes oportunidade para se pronunciar a respeito.

Com essas balizas, procedi à análise das providências a serem adotadas, extraindo do discurso proferido por Jair Messias Bolsonaro em 18/07/2022 e das circunstâncias da realização e da divulgação do evento o referencial para avaliar quais diligências são efetivamente relevantes ao deslinde do feito. Consignei, com apoio em transcrição literal e contínua do discurso dirigido aos embaixadores de países estrangeiros, que:

a) as críticas dirigidas contra o sistema eletrônico de votação tiveram como fio condutor a reiterada referência a Inquérito no qual a Polícia Federal teria concluído que hackers tiveram acesso a “diversos códigos-fonte” e teriam sido capazes de “alterar nomes de candidatos, tirar voto de um, transferir para outro”;

b) a fala possui marcadores cronológicos, que conectam passado, momento presente e projeções para o futuro:

b.1) a alegada fraude ocorrida em 2018, passando pela advertência de que não poderia ter havido eleições em 2020 antes da “apuração total” do ocorrido;

b.2) a própria urgência de endereçar a mensagem aos embaixadores de países estrangeiros, na iminência do período eleitoral de 2022; e, por fim,

b.3) a enfática reivindicação, somente compreensível nesse arco narrativo alarmista, de que as Eleições 2022 fossem “limpas, transparentes, onde o eleito realmente reflita a vontade da sua população”;

c) fatos relacionados ao primeiro daqueles marcadores – “b.1” supra – passaram-se em 2021, quando teve início no TSE o Inquérito Administrativo nº 0600371-71, instaurado pelo Corregedor-Geral Eleitoral para apurar condutas praticadas em lives conduzidas pelo então Presidente Jair Messias Bolsonaro e que, em tese, poderiam caracterizar disseminação de informações falsas a respeito do sistema eletrônico de votação com potenciais danos às Eleições 2022;

d) constam do referido Inquérito Administrativo degravações de lives realizadas em:

d.1) 29/07/2021, em que Jair Messias Bolsonaro dividiu a transmissão com Eduardo Gomes da Silva e, ao final, com o então Ministro da Justiça e da Segurança Pública, Anderson Gustavo Torres;

d.2) 04/08/2021, ocasião em que o primeiro investigado e o Deputado Filipe Barros, com transmissão da Jovem Pan durante o programa “Os Pingos nos Is”, divulgaram Inquérito da Polícia Federal e, com base nele, teceram afirmações sobre adulteração de votos nas Eleições 2018, discurso que voltou a ser ventilado perante os embaixadores em 2022, com a declaração “eu tive acesso a esse inquérito no ano passado [2021] e divulguei”;

 d.3) 12/08/2021, após a rejeição da “PEC do voto impresso”, em que o então Presidente volta a afirmar que hackeamento haveria atingido o computador “que conta os votos, que faz a apuração” e cogita que “o acordo com esses hackers seria de desviar 12 milhões de votos do candidato Jair Messias Bolsonaro, sumir com 12 milhões de votos”, ao mesmo tempo em que declara: “não tenho provas [...], mas alguma coisa aconteceu”;

e) os depoimentos das três testemunhas da defesa até então ouvidas, que declararam não ter envolvimento na realização do evento de 18/07/2022, seja pessoalmente ou por meio dos órgãos sob sua gestão (Casa Civil, Ministério das Relações Exteriores e Assessoria Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência), contrastou com o relevo dos cargos desempenhados e, mais especificamente, com expressa referência de Jair Messias Bolsonaro no sentido de que Carlos Alberto Franco França, seu Ministro das Relações Exteriores, encaminharia “extrato” da reunião às Embaixadas e disponibilizaria a eventuais interessados a íntegra do Inquérito da Polícia Federal;

f) oportuna a oitiva de pessoas que foram ouvidas no IA nº 0600371-71, a fim de que pudessem ser inquiridas em juízo e com respeito ao contraditório;

g) cabível, portanto, a determinação das seguintes diligências complementares, de ofício:

g.1) juntada de documentos, extraídos do Inquérito nº 0600371-71;

g.2) expedição de ofício ao Ministro-Chefe da Casa Civil, requisitando-se informações consolidadas sobre a participação de órgãos do Governo Federal na preparação, realização e difusão do encontro realizado no Palácio da Alvorada em 18/07/2022, solicitando-lhe, para tanto, que, além da consulta a seus registros, estenda a comunicação ao Ministério das Relações Exteriores, à Assessoria Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência, à Assessoria de Cerimonial e demais órgãos acaso envolvidos na organização do evento, em prazo hábil para a consolidação; e

g.3) oitiva de testemunhas, para deporem sobre fatos devidamente delimitados, nos seguintes termos:

“a) Anderson Gustavo Torres, ex-Ministro da Justiça e da Segurança Pública, a respeito de sua contribuição e participação na live de 29/07/2021, seu eventual envolvimento na reunião de 18/07/2022 e circunstâncias relativas ao decreto de Estado de Defesa apreendido em sua residência, no dia 12/01/2023:

b) Eduardo Gomes da Silva, Coronel reformado, a respeito de sua contribuição e participação na live de 29/07/2021;

c) Ivo de Carvalho Peixinho e Mateus de Castro Polastro, servidores da Polícia Federal, para tratar sobre as circunstâncias em que foram envolvidos na live de 29/07/2021”.

Na decisão, ainda determinei a juntada da transcrição dos depoimentos colhidos nas audiências de 19/12/2022 e 08/02/2023, devendo os documentos ser gravados com sigilo até o julgamento de mérito, permitindo-se acesso estritamente às partes e ao Ministério Público Eleitoral. As transcrições constam dos IDs 158766494, 158766495 e 158766496.

Concedeu-se vista dos documentos às partes e ao MPE, permitida a formulação de novos requerimentos de provas, compatíveis com a etapa processual em curso. Quanto ao ponto, em atenção ao caráter complementar dessas diligências, adverti as partes de que requerimentos protelatórios estariam sujeitos a multa, nos seguintes termos:

“Adianto que os requerimentos acaso formulados serão analisados de forma rigorosa, somente se deferindo aqueles que tenham sua pertinência e utilidade objetivamente demonstrada, a partir da estrita vinculação aos fatos específicos que se pretende provar, e que não estejam cobertos pela preclusão. Nesse sentido, advirto as partes, desde logo, que, caso evidenciado o caráter protelatório de qualquer requerimento, inclusive em virtude da abstração ou amplitude da justificativa da prova, será aplicada multa por litigância de má-fé, em montante proporcional à circunstância concreta.

(Com destaques no original)

Em 16/03/2023, realizou-se a terceira audiência de oitiva de testemunhas, sendo ouvidos Anderson Gustavo Torres, ex-Ministro da Justiça e da Segurança Pública (ID 158835189), e os policiais federais Ivo de Carvalho Peixinho (ID 158835190) e Mateus de Castro Polastro (ID 158835192), que haviam sido convocados ao Palácio do Planalto para reunião que precedeu a live de 29/07/2021. Eduardo Gomes não foi ouvido, uma vez que não foi possível localizá-lo nos endereços que constam no Cadastro Eleitoral (IDs 158774250 e 158789869).

No que diz respeito à iniciativa de produção de diligências complementares, a Procuradoria-Geral Eleitoral e o Partido Democrático Trabalhista (PDT) expressaram seu desinteresse na produção de outras provas (IDs 158786167 e 158794439).

Por sua vez, os investigados requereram (ID 158797364):

a) a oitiva de testemunhas, justificada com base em fatos específicos relacionados à causa que poderão por elas ser elucidados:

a.1) Filipe Barros, Deputado Federal que “foi relator da PEC que tratava do Voto Impresso (id. 158764856, p. 12) e participou, ativamente, com o Presidente e Investigado Jair Messias Bolsonaro, no programa ‘Pingo nos is’”, sendo ainda “quem, primeiramente, obteve o acesso ao Inquérito Policial 1361/2018-4/DF”;

a.2) Guilherme Fiuza, Augusto Nunes e Ana Paula Henkel, “jornalistas responsáveis pela condução do programa ‘Pingos nos is’, que poderão elucidar as reais e efetivas razões de se realizar o programa com esse tema específico”, por serem as pessoas que “efetivamente participaram da entrevista realizada com o Investigado Jair Bolsonaro em 04/08/2021, e, por conseguinte, poderão contribuir com efetivos esclarecimentos sobre o contexto em que surgiu o interesse jornalístico sobre o tema versado no Inquérito Policial 1361/2018-4/DF, sobre as atitudes dos Investigados face aos fatos e sobre os bastidores do programa, não capturados, por óbvio, por meio de simples degravação”; e

a.3) o Ex-Deputado Federal Major Vitor Hugo, que “esteve presente na transmissão e poderá, destarte, esclarecer contexto, sentido, motivação e desenvolvimento da live”, acrescendo que “face à vedação de depoimento pessoal do primeiro Investigado em sede de AIJE, a testemunha mencionada é a única testemunha habilitada, em tese, a prestar os esclarecimentos ora tidos como essenciais para a comprovação da tese principal da defesa”;

b) a requisição de documentos, destinados a “demonstrar que as preocupações do investigado Jair Messias Bolsonaro não eram infundadas, mas eram decorrência (i) de investigação efetiva levada a cabo pela Polícia Federal, em atenção a pedido formulado por este C. TSE e (ii) da fiscalização desenvolvida pelo Tribunal de Contas da União sobre o tema das eleições”, a saber:

b.1) à Delegacia da Polícia Federal em Brasília, dos termos de depoimentos colhidos ao longo das investigações no Inquérito Policial 1361/2018-4/DF e, se existente, do relatório final produzido;

b.2) ao Supremo Tribunal Federal:

b.2.1) da complementação das cópias do Inquérito 4878/DF, contendo os desdobramentos processuais da investigação das circunstâncias de divulgação do Inquérito Policial nº 1361/2018-4/DF desde 21/02/2022;

b.2.2) de cópia da Petição nº 10.477/DF, que se refere à apuração de notícia crime a respeito do mesmo fato que compõe a causa de pedir desta AIJE e que conta com parecer, da PGR, pelo arquivamento; e

b.2.3) de “informações relativas a referida ‘minuta de decreto de Estado de Defesa’, especialmente no que concerne ao resultado dos exames periciais (contendo os nomes das pessoas com digitais em referido documento) e aos termos dos depoimentos prestados pelo Senhor ANDERSON TORRES no âmbito das investigações realizadas naquela Corte”.

Na mesma oportunidade, os investigados interpuseram agravo interno contra a decisão que determinou, de ofício, a realização de diligências complementares, sustentando que (ID 158797358):

a) o recurso é cabível, “mesmo diante da regra geral de recorribilidade diferida quanto a decisões interlocutórias em matéria eleitoral”, pois aos processos originários do tribunal deve ser aplicado o art. 36, § 8º, do Regimento Interno do TSE, para permitir a insurgência imediata;

b) a decisão agravada não atendeu às balizas fixadas na ADI nº 1082/STF a respeito da instrução suplementar permitida ao Corregedor e promoveu “indevida correção na deficiente atuação processual do Autor, determinando diligências jamais requeridas pelo Autor, em adiantado momento processual, mesmo que tais providências pudessem ter sido pleiteadas, a tempo e modo, eis que não derivam de efetivo ‘achado fortuito’ nem são alusivas a elementos ocorridos no futuro (vg, lives e programa jornalístico do ano de 2021)”;

c) a requisição de documentos dirigida à Casa Civil envolveu “intimação de Ministro do Presidente Lula (grupo político adversário ferrenho dos investigados!), para empreender elástica atuação probatória prospectiva, em sua pasta e em quaisquer outros órgãos federais, na perspectiva ostensiva de aferir a ‘participação de órgãos do Governo Federal na preparação, realização e difusão do encontro realizado no Palácio [da Alvorada], em 18/07/2022”, o que caracteriza “delegação de poder instrutório a grupo político beneficiário de eventual procedência da ação”, devendo-se observar que:

c.1) a oitiva das testemunhas arroladas pela defesa na contestação, devidamente compromissadas, comprovou “o não envolvimento direto dos órgãos de maior pertinência temática ao evento (Casa Civil, MRE e SAJ)”, o que é relevante para afastar a imputação de abuso de poder político e não pode ser reputado “instrução defeituosa” a ser suprida pela requisição de documentos à Casa Civil;

c.2) a solicitação, genérica e abrangente, de localização de suposta (e inexistente) prova documental”, dirigida “ao atual Ministro-Chefe da Casa Civil do governo petista – que, à época do ocorrido, longe dos fatos, era Governador do Estado da Bahia”, disparou “a consulta a documentos de diversos órgãos governamentais e a consolidação unilateral e casuística de seus (pretendidos) achados, em relatório sujeito a toda sorte de subjetivismos”, possibilitando “ao adversário político a engenhosa apresentação analítica de eventuais achados fortuitos”; e

c.3) “a prerrogativa de realização de verdadeira devassa, em arquivos federais, abre ensejo à edição conveniente de elementos probatórios e viabiliza, inclusive, o descarte seletivo de provas desfavoráveis à sanha persecutória, com mácula indelével à imparcialidade na construção da materialidade da instrução probatória”;

d) em decisão anterior, que admitiu a juntada da minuta de decreto de Estado de Defesa, consumou-se tratamento anti-isonômico às partes, uma vez que “restou facultado ao autor juntar quaisquer documentos que repute como pertinentes a amparar sua pretensão, estando estes desde já admitidos, sem necessidade de decisão interlocutória que homologue o seu (tardio) ingresso”, privilégio que alcançaria, “provas ainda nem produzidas, de fatos desdobráveis ad aeternum, e que não orientaram a linha defensiva vertida na contestação, bem como o requerimento de provas, considerando os fatos efetivamente expostos na exordial, a tempo e a modo”;

e) a citada decisão ainda violou o contraditório substancial, pois em lugar de reabrir o prazo de contestação de cinco dias, ou de assegurar prazo equivalente a este com base no art. 329 do CPC, concedeu-se três dias para a manifestação;

f) também houve violação ao contraditório durante a sessão de 14/02/2023, uma vez que se negou aos réus a oportunidade de realizar sustentação oral relativo ao pedido de reconsideração, em contrariedade a determinação expressa do Relator;

g) a determinação da oitiva de Anderson Torres, “para além de impertinente, ostenta pouca ou nenhuma utilidade processual”, tanto porque a testemunha se encontra sob a custódia do Estado e amparada pelo princípio da não autoincriminação, quanto porque o depoimento sobre sua participação em live de 29/07/2021, ocorrido mais de um ano antes da eleição, já foi prestado à Corregedoria-Geral Eleitoral;

h) embora a petição inicial já contivesse referência à live protagonizada pelo primeiro investigado em 2021, a parte autora não requereu a produção de provas em relação ao fato, quer no ajuizamento da AIJE ou ao pleitear a juntada da minuta de decreto de Estado de Defesa;

i) a determinação de juntada de documentos oriundos do Inquérito Administrativo nº 0600371-71 não atendeu aos limites do art. 23 da LC nº 64/1990, por referir-se a fatos que não se inserem ao conceito doutrinário de “fato simples”;

j) a advertência de que eventuais requerimentos de prova de caráter protelatório ensejariam multa por litigância de má-fé contém “tom de verdadeira ameaça às partes”, que atenta contra as garantias do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, bem como contra a prerrogativa profissional da advocacia, “a partir de inusual advertência de multa (já aplicada em valores verdadeiramente milionários!), acabando por desestimular a atuação das partes e do advogados no processo, receosos de reprimenda desproporcional e incompatível com os fins que efetivamente justificariam penalidades inibitórias de comportamento protelatório dos agentes processuais”.

Com esses argumentos, requereram:

a) “a revogação das diligências complementares determinadas, diante do desacerto na utilização das prerrogativas concedidas pela LC nº 64/1990, fora das balizas ditadas pela ADI nº 1082/STF e não guiadas pelo respeito ao contraditório, ao dever de fundamentação e à garantia da imparcialidade e segurança jurídica”;

b) “o afastamento da ameaça incomum e injustificada de multa, por litigância de má-fé, no que toca à eventual inadequação de indicação de prova testemunhal, permitindo-se o pleno exercício”.

Apreciei as manifestações dos investigados em decisão única, na qual: a) deferi todos os requerimentos de diligências complementares e, b) conhecendo o agravo interno como pedido de reconsideração, o indeferi (ID 158811502).

No que diz respeito ao vício formal da insurgência contra a determinação das diligências complementares de ofício, salientei o não cabimento do agravo interno, com suporte nas normas vigentes (arts. 19 da Res.-TSE nº 23.478/2016; 48 da Res.-TSE nº 23.608/2019; 36, § 6º, do Regimento Interno do TSE; e 932, I, do CPC). Destaquei que, conforme metodologia aplicada nesta ação, foram submetidas de imediato à Corte a rejeição de preliminares e questões prejudiciais – matérias cujo acolhimento extinguiriam a ação, total ou parcialmente – e a orientação que pautou o exame das diligências complementares. O capítulo foi concluído com os seguintes fundamentos:

“Percebe-se, assim, que o agravo interno é cabível para devolver ao colegiado o exame da decisão em que o relator, nos limites da delegação do Regimento Interno, substitui a atuação da Corte e julga monocratimente o recurso ou o pedido em ação originária – adentrando ou não o mérito, mas sempre com o intuito de exaurir a competência do TSE.

Essa não é a hipótese de decisão interlocutória proferida pelo Corregedor ao determinar a produção de provas. Nesse caso, na condição de Relator da AIJE, incumbe-lhe por lei processar e instruir o feito, preparando-o para o julgamento, que adiante se dará em Plenário ou, nas hipóteses autorizadas pelos §§ 6º e 7º do RITSE, por decisão monocrática. No curso da instrução o Corregedor deverá avaliar situações em que seja recomendável, ainda que não imperativo submeter ao Plenário questões incidentais.

Aliás, o ponto já foi tratado no feito ora em exame, quando consignei que, a par da irrecorribilidade imediata das decisões interlocutórias, na hipótese específica de rejeição de preliminares que em tese podem levar à extinção do feito, a racionalidade e a economia processual recomendavam levar a decisão a referendo. O enfrentamento da matéria pela Corte se destinava a assegurar que a atividade instrutória somente tivesse início caso assentada a admissibilidade da ação. [...]

A Corte também voltou a ser consultada durante a tramitação desta ação, mais uma vez por iniciativa deste Relator, a fim de avaliar se a diretriz instrutória consignada na decisão que admitiu ao debate processual fato superveniente. Naquele momento, os réus haviam apresentado pedido de reconsideração, que foi indeferido de forma fundamentada. Teve-se então o cuidado de extrair dessa fundamentação balizas objetivas relativas à aplicação conjugada do art. 23 da LC nº 64/1990 e do art. 329 do CPC e de levá-la a Plenário antes de que fosse dada sequência ao trâmite processual, já que a orientação se aplicaria à etapa seguinte, justamente relativa às diligências complementares (art. 22, VI a IX, LC nº 64/1990.

Assim, não há respaldo para a alegação dos réus de que o art. 36, § 8º do RITSE afasta a aplicação dos art. 19, da Res.-TSE 23.478/2016 e 48, da Res.-TSE 23.608/2019 à AIJE, formulada ao argumento de que a lógica da irrecorribilidade imediata teria sido concebida para “processos típicos, originados em primeira instância”, evitando a remessa de autos ao tribunal em razão de agravo de instrumento.

Em verdade, está-se diante de regras concebidas para evitar interrupções no fluxo dos atos processuais de qualquer ação eleitoral, em qualquer fase, em plena compatibilidade com a função de relatoria em ação originária. A sistemática, conforme visto, é compatível com a possibilidade de o Corregedor optar, diante de questões preliminares ou prejudiciais que conduziam a uma encruzilhada procedimental, por submeter ao Colegiado o caminho que traçou, para que este seja confirmado ou refutado, prestigiando-se à segurança jurídica e o fluxo lógico entre etapas procedimentais.

No momento, como se nota, não está em jogo definir se a ação será extinta ou se prossegue, resolver questão prejudicial ou fixar orientação plenária. A decisão agravada apenas concretizou a atuação deste Relator como responsável por dirigir e ordenar a instrução, inclusive no que diz respeito à produção da prova, nos termos do art. 932, I, CPC, e atento às particularidades das ações eleitorais, conforme arts. 22, VI a IX e 23 da LC nº 64/1990.

O agravo interno é, portanto, manifestamente inadmissível.”

Uma vez conhecido o agravo interno como pedido de reconsideração, os argumentos ventilados pelos réus foram objeto de exame. Transcrevo trechos da fundamentação adotada para rejeitar as alegações de vícios processuais, de “delegação de poderes instrutórios” a grupo adversário, e de constrangimento ao exercício da advocacia:

“[...] observada a metodologia de máximo prestígio ao contraditório e ao dever de fundamentação, recebo a petição ID 158797358 como pedido de reconsideração e o examino, desde já registrado, pelos fundamentos acima expostos, a desnecessidade de submeter a presente decisão a referendo.

O pedido abarca, em parte, pontos já fulminados pela preclusão temporal, lógica e consumativa. É que, conforme relatado, a admissibilidade da juntada da minuta de decreto de Estado de Defesa e o entendimento pela inexistência de violação à estabilização da demanda ou de alteração da causa de pedir são pontos decididos anteriormente e referendados em Plenário. Não há espaço para rediscutir esses pontos e, menos ainda, para questionar o prazo que havia sido assinalado para a manifestação dos investigados a respeito do documento.

Com efeito, os três dias assinalados – que, diga-se, são superiores ao prazo de dois dias previsto no art. 44, § 4º da Res.-TSE nº 23.608/2019 para manifestação sobre documentos juntados no curso da instrução nas representações especiais – foram devidamente utilizados pelos réus para se contrapor à força probante do documento e, ainda, para formular pedido de reconsideração. Silente a parte à época, não há ensejo, a essa altura, para reivindicar que o prazo fosse maior.

Além disso, a pretensão de que fosse observada simetria com o prazo de contestação, concedendo cinco dias para falar sobre o documento com fundamento no art. 329 do CPC, apenas denota a insistência na tese, já refutada, de que teria havido ampliação da causa de pedir.

Os réus também se insurgem contra as balizas fixadas para a aplicação dos arts. 435 e 493 do CPC em conjugação com o art. 23 da LC nº 64/1990, e que foram referendadas pela Corte. Rememoro que as diretrizes aprovadas pelo colegiado se assentam na premissa de que “a estabilização da demanda não acarreta uma blindagem do debate processual contra fatos que possam influir no julgamento”, uma vez que “há disposições legais expressas no sentido de que o magistrado leve em consideração fatos constitutivos, modificativos ou extintivos supervenientes ao ajuizamento (art. 493, CPC) e, ainda, fatos públicos e notórios e circunstâncias, ainda que não alegadas pelas partes, que preservem a lisura eleitoral (art. 23, LC nº 64/90). [...]

Os investigados afirmam que a orientação redunda em tratamento anti-isonômico às partes, pois, em sua visão, teria sido franqueada à autora a juntada até mesmo de “provas ainda nem produzidas, de fatos desdobráveis ad aeternum, e que não orientaram a linha defensiva vertida na contestação”. A assertiva tem conotação incompatível com o modo de condução deste processo, uma vez que todas as decisões e despachos evidenciam o extremo rigor na manutenção da ordem e da regularidade da tramitação.

A metodologia aplicada às AIJEs das Eleições 2022 envolve uma rotina de saneamento e de diálogo constante, resultando em determinações judiciais delimitadas com precisão, fundamentadas de forma exauriente e que permitem às partes compreender cada passo do trâmite processual. Nesse sentido, o que se definiu em Plenário é a adequação, em tese, da admissibilidade não apenas de fatos supervenientes que constituam desdobramentos da causa de pedir, como também elementos que demonstrem a gravidade da conduta ou a responsabilidade do investigado e de pessoas em seu entorno.

Essa fórmula diz respeito à análise da pertinência da prova à causa de pedir. Não está indicado em qualquer ponto que a partir dela se permitirá um prolongamento ad aeternum da instrução, pois não foram abandonados outros parâmetros que devem ser conjugados na organização da atividade probatória, inclusive a preclusão.

Não há também respaldo para concluir que essa fórmula privilegia a parte autora. Ao réu também importa ter a oportunidade de trazer ao debate processual fatos que digam respeito aos desdobramentos da causa de pedir, à gravidade da conduta e à responsabilidade do investigado e de pessoas em seu entorno. Tanto assim que os investigados, neste feito, requereram a juntada de parecer da PGR, produzido em março de 2023, que indicaria a ausência de indícios de prática de crime em decorrência do discurso proferido por Jair Messias Bolsonaro na reunião de 18/07/2022.

No que diz respeito à negativa de sustentação oral pela parte ré em 14/02/2023, trata-se de ato da Presidência, que não está submetido a revisão pelo Corregedor.

Passando-se aos argumentos propriamente relacionados ao conteúdo da decisão que determinou, de ofício, a realização de diligências complementares, constata-se que o renitente inconformismo dos agravantes com os contornos conferidos à aplicação do art. 23 da LC nº 64/1990 se somou ao desagrado com a aplicação dos incisos VI a IX do art. 22 da mesma lei, para conduzir a afirmações hiperbólicas que desenhariam um cenário de parcialidade do juízo.

Primeiramente, cabe rememorar que a atuação do Corregedor para determinar diligências de ofício ou a requerimento das partes, posteriormente à audiência de instrução é prevista expressamente no procedimento da AIJE. A decisão questionada pelos investigados foi bastante explícita a esse respeito, conforme se lê do trecho a seguir transcrito: [...]

Teve-se, então, o cuidado de, em conformidade à melhor técnica processual, assegurar que a regra de julgamento   com base em fatos notórios e circunstâncias não alegadas pelas partes (art. 23 da LC nº 64/1990) fosse necessariamente associada a uma regra de instrução (art. 22, VI a IX, da mesma lei). Ou seja: se é possível julgar com base naqueles elementos, é obrigatório que eles sejam previamente inseridos no processo, permitindo às partes e ao MPE se manifestarem a seu respeito e, quando for cabível, requererem provas. Reforça-se, com isso, a garantia de não-surpresa, em pleno respeito ao contraditório efetivo. [...]

Os investigados enxergaram na determinação de ofício das diligências complementares uma “indevida correção na deficiente atuação processual do Autor”, eis que seu objeto seriam provas que não foram pretendidas pelo investigante e que aportariam aos autos em momento tardio.

Não está caracterizada, porém, atuação tardia, mas, sim, medida ajustada perfeitamente ao momento que para ela foi previsto no art. 22, VI a IX da LC nº 64/1990, ou seja, após a audiência de instrução. Tampouco há “correção” da atividade da parte autora, eis que é dever do Corregedor, à luz das provas produzidas até a audiência de instrução, avaliar se há diligências necessárias para o deslinde da controvérsia. Este é o comando legal que se impõe ao Relator da AIJE, e que foi estritamente cumprido.

Nesse sentido, após a avaliação do estágio processual do feito, constatou-se haver pontos de dúvida que poderiam ser dirimidos por diligências complementares. Isso porque os termos do discurso proferido por Jair Messias Bolsonaro na reunião de 18/07/2022 com os embaixadores de países estrangeiros e a prova oral produzida em razão de requerimento da parte ré suscitaram questões de relevo para o deslinde da controvérsia.

Por exemplo, na reunião, o primeiro investigado expressamente incumbiu o então Ministro das Relações Exteriores, Carlos França, a repassar o material da apresentação aos embaixadores, enfatizando ainda que o Ministro também poderia enviar a íntegra do inquérito da Polícia Federal em que, segundo o ex-Presidente, “um hacker falou que tinha havido fraude por ocasião das eleições”. Ocorre que Carlos França, ouvido como testemunha da defesa, negou o envio de material e declarou não ter participado de forma significativa do evento. As duas outras testemunhas da defesa também negaram envolvimento substancial na preparação ou realização da reunião, embora arroladas pelos réus por deterem “particular conhecimento” sobre aspectos da dinâmica do evento.

Nesse cenário, a pertinência da requisição da prova documental aos órgãos governamentais que foram encabeçados pelas testemunhas da defesa – destinada a aferir se tiveram, ou não o envolvimento que a princípio foi sugerido tanto pela fala de Jair Bolsonaro no dia do evento quanto pela justificativa de seu arrolamento – não representa qualquer desbordo dos poderes instrutórios do Relator. Há expressa previsão legal de que o Corregedor pode requisitar documentos de ofício, e assim foi feito. Acrescente-se que a diligência não foi determinada com vista a um resultado pré-definido e pode muito bem ser concluída, como sustentam os réus, com a inexistência de documentos a respeito.

Relembre-se que a orientação plenária fixada em 14/02/2023 contempla três eixos: a) desdobramentos dos fatos originariamente narrados; b) gravidade (qualitativa e quantitativa) da conduta que compõe a causa de pedir; e c) responsabilidade dos investigados e de pessoas de seu entorno. Por isso, não se sustentam as objeções dos investigados à juntada de cópias do IA 0600371-71 ou à atenção dada às lives protagonizadas pelo primeiro investigado em 2021 e expressamente referidas no discurso proferido por Jair Messias Bolsonaro no Palácio [da Alvorada] em 18/07/2022.

Os réus se mostraram especialmente afligidos pelo fato de que a requisição de documentos dirigida à Casa Civil será cumprida por Ministro nomeado pelo atual Presidente da República, que venceu a chapa encabeçada pelo primeiro investigado, no pleito de 2022. Chegam a prever uma “elástica atuação probatória prospectiva, em sua pasta e em quaisquer outros órgãos federais”, que, no momento da consolidação, permitirá “ao adversário político a engenhosa apresentação analítica de eventuais achados fortuitos”, congregados em “um relatório sujeito a toda sorte de subjetivismos”. A isso denominaram “delegação de poder instrutório a grupo político beneficiário de eventual procedência da ação”, o que seria mais um elemento a denotar a parcialidade na condução do processo.

Sabe-se, porém, que a requisição é o meio usual pelos quais os órgãos públicos compartilham entre si documentos que estão em seu poder, impondo-se aos agentes públicos responsáveis o dever de prestar informações completas, autênticas e fidedignas. Isso independe do grupo que se encontre no exercício do poder político e é, mesmo, inerente ao princípio republicano é à impessoalidade.

Governantes, ministros, secretários e demais servidores públicos devem zelar pela integridade dos documentos sob sua guarda e cumprir de forma escorreita a determinação judicial para exibi-los, não lhes sendo lícito usar da requisição como meio para beneficiar ou prejudicar um candidato. Essa obrigação se impõe aos integrantes do atual governo federal, como também se aplicaria se o ex-Presidente tivesse sido reeleito. Descabe partir da premissa de que, ante uma requisição judicial, agentes estatais deliberadamente adulterarão ou ocultarão documentos públicos, a fim de ludibriar o juízo e produzir benefício ilegal para uma das partes, em franco atentado à dignidade da Justiça, prática de improbidade e incursão em conduta criminosa.

Ademais, qualquer relatório informativo que acompanhe os documentos eventualmente compartilhados será submetida ao crivo do contraditório. As partes e o MPE terão a faculdade de apontar o valor que, entendem, deva ser dado às informações. A disputa narrativa, inerente ao devido processo legal, será assegurada. Vieses poderão ser contestados, e, no limite, caso se entenda por indício de falsidade ou ocultação, poderão ser solicitadas as medidas processuais cabíveis, e que reforçam o controle do correto desempenho das funções estatais. Essa dinâmica, que se aplica à sucessão do poder no menor dos municípios brasileiros, se nele tramitar ação que impute ilícito ao Prefeito que não se reelegeu, igualmente rege a AIJE ajuizada no contexto da disputa do mais alto cargo do Poder Executivo brasileiro.

 A requisição não se dirige a um “grupo político” e tampouco transfere poder instrutório a ser exercido com “toda sorte de subjetivismos”. Também irrelevante que à época dos fatos o atual Ministro Chefe da Casa Civil não estivesse no governo federal e não tenha pessoal ciência do que se passou. Aquela autoridade não foi intimada como testemunha. Foi oficiada para, exercendo seu papel de coordenação dos demais Ministérios (que foi bem descrito em juízo pela testemunha Ciro Nogueira, anterior ocupante do cargo), reunir a documentação oficial – pertencente ao Estado Brasileiro, e, não, a um ou outro governo – que, acaso existente, possa elucidar as circunstâncias da preparação, da realização e da divulgação do encontro do dia 18/07/2022.

Os réus asseveraram, ainda no que diz respeito à requisição dirigida ao Ministro-Chefe da Casa Civil, que a solicitação foi “genérica e abrangente”, disparando “a consulta a documentos de diversos órgãos governamentais e a consolidação unilateral e casuística de seus (pretendidos) achados”. É afirmação que não encontra eco na determinação, objetiva, de que sejam prestadas “informações consolidadas sobre a participação de órgãos do Governo Federal na preparação, realização e difusão do encontro realizado no Palácio [da Alvorada], em 18/07/2022”. O objeto está perfeitamente delimitado e o êxito da incumbência somente depende de existir devida catalogação documental nos órgãos potencialmente envolvidos e de a diligência ser cumprida de forma eficiente.

Do mesmo modo, não há como interpretar a referência à necessária consolidação de documentos pela Casa Civil para envio à CGE como “prerrogativa de realização de verdadeira devassa, em arquivos federais”, que “abre ensejo à edição conveniente de elementos probatórios e viabiliza, inclusive, o descarte seletivo de provas desfavoráveis à sanha persecutória, com mácula indelével à imparcialidade na construção da materialidade da instrução probatória”. Simplesmente, descabe interpretar uma ordem judicial corriqueira, de compilação documental, como aval para o cometimento de ilegalidades com a gravidade descrita.

Certo é que todas essas elucubrações a respeito de supostos comportamentos ilegais são inservíveis para a finalidade de obstar a produção da prova. Em momento adequado, os réus terão oportunidade de se manifestar a respeito do resultado da diligência e, se assim entenderem, a vista do que concretamente for remetido a este juízo, e não a partir de ilações, poderão apontar deficiência, incompletude ou mesmo irregularidades graves no cumprimento da medida.

A determinação da oitiva de Anderson Torres foi classificada pelos réus como impertinente e inútil, pois a testemunha se encontra sob a custódia do Estado e amparada pelo princípio da não autoincriminação e, ainda, já teria prestado depoimento perante a Corregedoria sobre sua participação em live de 29/07/2021.

A primeira razão de insurgência se mostra inteiramente superada pelos fatos. Anderson Torres, embora sob custódia do Estado e tendo direito ao silencio para não se autoincriminar, foi ouvido em juízo no dia 16/03/2023 e optou por responder a todas as perguntas que lhe foram dirigidas. A inquirição foi feita pelo juiz instrutor, pelos autores, pelos réus e pelo representante do MPE. O depoimento transcorreu em perfeita normalidade, observadas todas as garantias inerentes à condição da testemunha de investigado em inquérito criminal.

O segundo argumento, que sugere a repetição inútil de ato já realizado, desconsidera que a primeira oitiva de Anderson Torres na CGE ocorreu no âmbito de inquérito administrativo, sem a participação das partes que litigam nesta AIJE. A nova coleta do depoimento, em contraditório, com oportunidade para a testemunha falar livremente e corroborar declarações anteriores, retificá-las ou explicá-las, bem se sabe, não é um preciosismo, mas importante reforço na qualidade da prova.

O último aspecto a ensejar objeção pelos réus foi a advertência de que eventuais requerimentos de prova de caráter protelatório ensejariam multa por litigância de má-fé. Enxergaram na decisão “tom de verdadeira ameaça às partes” e ofensa ao legítimo exercício da advocacia.

Na verdade, na atual sistemática do CPC, a advertência prévia está longe de ser uma ameaça. Consiste em desdobramento dos princípios da cooperação e da não-surpresa e, em algumas situações, até mesmo em dever do magistrado (art. 77, IV e VI, c/c §1º; art. 78, § 1º). A descrição de conduta em tese passível de gerar sanção processual permite às partes orientar sua atuação com base em parâmetros prévios, evitando comportamentos discrepantes da boa-fé objetiva.

No caso, a advertência consistiu em indicar que as partes (não somente os réus, como também o autor) deveriam atentar para o caráter complementar das diligências a serem requeridas neste momento processual, demonstrando de forma objetiva a pertinência e a utilidade da prova, “a partir da estrita vinculação aos fatos específicos que se pretende provar. Detalhou-se, ainda, que o caráter protelatório dos requerimentos poderia decorrer da formulação de requerimento abstrato ou amparado em justificativa amplíssima. Por fim, sem fixar valor prévio para eventual descumprimento, consignou-se que esta seria “proporcional à circunstância concreta”, caso praticado o ato protelatório.

O teor da advertência é compatível com a premissa da boa-fé objetiva e com os deveres das partes e de seus procuradores, em especial o de “não produzir provas e não praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou à defesa do direito” (art. 77, III). Mais que isso, denota o rigor que se tem adotado nesta ação para assegurar que o procedimento siga fluxo regular, a salvo de turbações, pari passu com a máxima amplitude do contraditório. Não há, então, nenhuma colisão entre franquear o requerimento de prova e advertir a parte de que esta oportunidade, complementar, deve ser exercitada com especial atenção ao momento processual e de forma cuidadosa o suficiente para viabilizar o exame do requerimento de prova.

Mencione-se que, longe de produzir efeito intimidatório, a advertência parece ter contribuído para a necessária objetividade da formulação a respeito de diligências complementares de interesse dos réus. O tema será abordado no próximo tópico.

Os fundamentos declinados conduzem ao indeferimento do pedido de reconsideração, devendo ser mantidas tanto as diligências complementares determinadas de ofício quanto a advertência contra condutas protelatórias das partes, plenamente compatível com fase atual.”

(com destaques no original)

Em inquirição iniciada em 27/03/2023 e concluída em 28/03/2023, colheram-se os depoimentos das testemunhas Filipe Barros, Deputado Federal (ID 158843587), Vitor Hugo, ex-Deputado Federal (ID 158843586), e Augusto Nunes, apresentador do programa “Os Pingos nos Is” (ID 158863333). Houve desistência, pelos investigados, da oitiva de Guilherme Fiúza e Ana Paula Henkel (ID 158863332).

As requisições e solicitações de documentos, pelo juízo e pelos investigados foram integralmente cumpridas, constando dos autos:

a) documentos extraídos do Inquérito nº 0600371-71 (ID 158764855);

b) prova documental requisitada à Casa Civil (IDs 158839073 a 158851459);

c) cópia integral do Inquérito Policial nº 1361/2018-4/DF, atualmente em trâmite sigiloso na 10ª Vara Federal de São Paulo/SP sob o número 5007377-27 (ID 158850900);

d) cópias dos Inquéritos nos 4878/DF e 4879/DF, em trâmite no STF sob Relatoria do Min. Alexandre de Moraes, inclusive resultado dos exames periciais realizados na “minuta de decreto de Estado de defesa” (IDs 158835933 e 158839056);

e) juntada de cópia integral da Petição nº 10.477/DF, em trâmite no STF sob Relatoria do Min. Luiz Fux (ID 158871511).

Tendo em vista a conclusão das diligências complementares relativas à prova documental requisitada a outros órgãos, abriu-se vista às partes e ao Ministério Público Eleitoral, nos termos do art. 44, § 4º, da Res.-TSE nº 23.608/2019 (ID 158852019).

Em resposta, o autor limitou-se a requerer o prosseguimento do feito (ID 158880544).

Por sua vez, os réus formularam novos requerimentos, a saber (ID 158881918):

a) juntada de matéria jornalística da CNN de 24/03/2023, relativa ao “recebimento de denúncia concernente a invasão hacker de sistemas (periféricos) do TSE, por ocasião das eleições municipais do ano de 2020”, “a fim de que o d. Corregedor avalie a necessidade de abertura de vista específica à parte contrária e ao d. órgão ministerial sobre o aludido documento”;

b) envio de ofício ao juízo responsável pela investigação do fato noticiado pela CNN, a fim de que “encaminhe cópia integral do inquérito (eis que já efetivada a denúncia) ao crivo do il. Corregedor e a consequente juntada aos autos, para ciência e manifestação das partes e do parquet eleitoral”;

c) juntada de postagem de autoria do “Sr. Carlos Lupi, enquanto presidente do PDT – Nacional, realizada em data recente, 27/05/2021 (contemporânea às lives trazidas aos autos pelo d. juízo), acompanhada do vídeo respectivo, que ostenta o seguinte trecho verbal: ‘Sem a impressão do voto, não há possibilidade de recontagem. Sem a recontagem, a fraude impera. Confira meu recado defendendo eleições honestas e verdadeiramente democráticas.’”;

d) oitiva de Eduardo Gomes da Silva, a princípio determinada pelo juízo, uma vez que “além da pertinência, já divisada àquela altura pelo juízo, inclusive quanto à submissão de elementos probatórios colhidos em caráter inquisitorial ao crivo do contraditório, cumpre enfatizar que alegações de Eduardo Gomes da Silva, prestadas extra autos, foram utilizadas, por diversas vezes e de forma expressa, para indagação de outras testemunhas do Juízo, notadamente os peritos federais Ivo de Carvalho Peixinho e Mateus de Castro Polastro”.

A Procuradoria-Geral Eleitoral informou “que analisará a prova documental produzida nos autos, incluindo a compartilhada pelo Juízo da 10ª Vara Criminal de São Paulo/SP e aquela apresentada pela Casa Civil, por ocasião da manifestação a que se refere o art. 22, XIII, da Lei Complementar n. 64/1990” (ID 158882219).

Os requerimentos de novas diligências requeridas pelos investigados foram parcialmente deferidos, apenas para aceitar-se a juntada de prova documental relativa a fatos mencionados na audiência. Quanto aos demais requerimentos, que restaram indeferidos, explicou-se o seguinte (ID 158886314):

“[...] a presente AIJE contou com amplo prestígio à iniciativa probatória das partes, associado à minudente análise da pertinência objetiva das diligências a serem determinadas.

Com isso, foi possível conjugar contraditório e celeridade, conduzindo-se o procedimento com estrita observância ao diálogo processual, à boa-fé objetiva, ao princípio da não surpresa e ao dever de fundamentação. Em pouco mais de 3 meses, foram realizadas cinco audiências e requisitados todos os documentos, inclusive procedimentos sigilosos, relacionados aos fatos relevantes para deslinde do feito. Saliente-se que foi deferida a oitiva de nove testemunhas da defesa e, em razão da desistência dos investigados, ouvidas seis delas. Foram ouvidas ainda 3 testemunhas por determinação do juízo, sempre com a necessária delimitação dos fatos que seriam objeto do depoimento.

Aberta vista a respeito dos documentos produzidos, a parte ré juntou documentos relativos a pontos tangenciados nas audiências de 27 e 28/03/2023 e manifestou interesse em novas diligências, a saber: requisição de inquérito relativo a ataque hacker a sistemas periféricos da Justiça Eleitoral em 15/11/2020 e oitiva de Eduardo Gomes da Silva.

No que diz respeito à denúncia ofertada pelo MPE em razão do ataque de 15/11/2020, os próprios investigados admitem que se tratou de exemplo utilizado na audiência, durante a inquirição de Filipe Barros, para lhe indagar “se esse tipo de situação contribuiria, de alguma forma e em tese, para a compreensão de que a matéria atinente ao aprimoramento da votação eletrônica, em sentido amplo, estaria a merecer debate público, revestido de interesse jornalístico”, “ao que assentiu conclusivamente a testemunha”.

Tratou-se, portanto, de uma conjectura, ilustrada pela matéria divulgada em 24/03/2023 e utilizada para fazer uma pergunta à testemunha. Esta, por sua vez, apenas emitiu uma opinião, concordando com a sugestão de que “esse tipo de situação contribuiria, de alguma forma e em tese” para estimular a defesa do “aprimoramento da votação eletrônica”. O teor da notícia da CNN relatado na audiência não foi posto em dúvida pela parte autora, pelo MPE ou pelo juiz instrutor e, ainda assim, os réus diligenciaram por juntar cópia da matéria, que demonstra que a informação dos advogados foi fidedigna ao fato noticiado (ID 158881919).

Nesse cenário, o pretendido acesso a autos da referida investigação é manifestamente desproporcional ao contexto em que a notícia da CNN foi mencionada, como simples elemento ilustrativo da pergunta formulada em audiência. Assevera-se que a requisição de informações sobre investigações em curso, o que já foi deferido neste feito em mais de uma ocasião, não pode ser trivializada, exigindo sempre avaliar se o conhecimento de fatos sensíveis e diligências estratégicas é mesmo essencial para a solução da controvérsia. No caso, a resposta é negativa, eis que adentrar os detalhes da denúncia é algo que extrapola a correlação estabelecida pelos próprios investigados ao se referir à matéria da CNN.

Quanto ao manifestado interesse na oitiva de Eduardo Gomes da Silva, que havia sido arrolada pelo juízo, é de se observar que a relevância desse depoimento em juízo ficou prejudicada em razão das declarações de Anderson Gustavo Torres, Ivo Peixinho e Mateus Polastro, suficientes ao esclarecimento da reunião prévia à live de 29/07/2021. A conclusão não é diferente daquela que levou os réus a desistirem de três das testemunhas que haviam arrolado. Assim, tendo em vista que Eduardo Gomes da Silva acabou não sendo localizado, descabe persistir na prova, que a essa altura seria meramente redundante.

Por fim, os documentos juntados pelos réus, relacionados a ocorrências da audiência, não desafiam nova vista à contraparte e à PGE, pois poderão ser objeto de exame nas alegações finais e no parecer, na linha já indicada pelos próprios sujeitos processuais em suas manifestações nesta fase.

Conclui-se, assim, que o rico acervo probatório reunido nos autos, que foi formado com ampla participação das partes e do MPE, esgota as finalidades da instrução, razão pela qual cumpre encerrar a presente etapa processual.”

(Com destaques no original)

Nesses termos, a instrução foi encerrada, expedindo-se intimações: a) às partes, para apresentarem alegações finais no prazo comum de dois dias, e b) ao Ministério Público Eleitoral, para apresentar parecer nos dois dias imediatamente subsequentes ao término do prazo de alegações finais, independentemente de nova intimação.

Determinou-se a juntada imediata, sob sigilo, das transcrições dos depoimentos colhidos nas audiências de 16, 27 e 28/03/2023. Os depoimentos constam dos IDs 158886321, 158886322, 158886323 e 158886324.

Os investigados apresentaram alegações finais, requerendo, sucessivamente: a) a extinção do processo sem resolução de mérito, por incompetência da Justiça Eleitoral; b) a extinção do feito somente em relação ao segundo investigado, que seria parte ilegítima; c) a redelimitação da demanda, excluindo-se “os fatos e eventuais ‘provas’ oriundos da indevida extensão da causa de pedir, bem como aqueles derivados da inadequação da atuação probatória empreendida pelo Juízo, eis que se revelou excessiva”; e d) o julgamento de improcedência do pedido (ID 158914533).

Suscitam, primeiramente, questões processuais, inclusive já decididas em Plenário, por entender que também estas podem ser renovadas em alegações finais, com base no art. 48 da Res.-TSE nº 23.608/2019. Com isso:

a) reiteram preliminar de incompetência da Justiça Eleitoral para a análise de atos praticados na condição de Chefe do Executivo, afirmando que os depoimentos colhidos em audiência corroboraram a tese de que na reunião com os embaixadores não se tratou sobre eleições em sentido estrito e não houve pedido de votos, comparação entre candidaturas ou ataques a oponentes;

b) retomam a objeção à admissão da juntada da minuta do decreto de estado de defesa, com fundamento em alegada violação à estabilização da demanda, ao princípio da congruência, ao contraditório e à segurança jurídica;

c) reafirmam que a decisão que determinou a realização de diligências complementares foi ilegal e consubstanciou tratamento anti-isonômico às partes, uma vez que seu teor:

c.1) destoou das balizas fixadas na ADI nº 1082/STF a respeito da instrução suplementar permitida ao Corregedor, provendo indevida correção na deficiente atuação processual do Autor, determinando, sem apresentar a necessária fundamentação, a complementação de provas que deveriam ter sido por ele requeridas a tempo e modo;

c.2) violou o contraditório substancial, pois em lugar de reabrir o prazo de contestação de cinco dias ou de assegurar prazo equivalente a este com base no art. 329 do CPC, concedeu três dias para a manifestação;

c.3) procedeu a uma indevida “delegação de poder instrutório” ao requisitar documentos à Casa Civil, confiando ao Ministro do Executivo, adversário político do investigado Jair Bolsonaro, “a realização de busca ampla e abrangente, sem critérios objetivamente predefinidos”; e

c.4) afrontou a segurança jurídica ao se utilizar da regra prevista no art. 23 da LC nº 64/1990 para determinar a realização de diligências que não guardavam qualquer relação com a causa de pedir originária e, com isso, promover a ampliação objetiva da demanda;

d) persistem na necessidade de oitiva de Eduardo Gomes da Silva – cuja oitiva, determinada de ofício, foi reputada redundante após os depoimentos de Anderson Torres, Ivo de Carvalho Peixinho e Mateus de Castro Polastro – e na requisição de cópia de inquérito cuja instauração foi noticiada pela CNN em 24/03/2023 e mencionada pelo advogado de defesa na audiência, argumentando que a prova é necessária para corroborar “uma das principais teses de defesa, a saber, a legitimidade do debate público travado pelo investigado Jair Messias Bolsonaro acerca do sistema eletrônico de votação, sempre em prol do progressivo aprimoramento dos meios disponíveis”;

e) suscitam a ilegitimidade passiva ad causam do segundo investigado, “diante da ausência de imputação pelo Autor da respectiva participação, direta ou indireta, nos atos questionados, inviabilizando-se, assim, a aplicação da (personalíssima) sanção de inelegibilidade na espécie (por fato de terceiro), única possível de aplicação frente ao insucesso da chapa no pleito eleitoral presidencial de 2022”;

Quanto ao mérito, sustentam que:

a) as provas documental e testemunhal produzidas demonstraram que nas lives realizadas nos dias 29/07/2021 e 05/08/2021, assim como na entrevista concedida ao programa televisivo “Os Pingos nos Is”, o primeiro investigado adentrou, de forma legítima, “o debate sobre a conformação atual do sistema eleitoral” e sobre os “melhoramentos desejáveis no sistema eletrônico de coleta de votos”;

b) seu comportamento pautou-se pela “eminente boa-fé, franqueza e abertura do diálogo institucional travado entre uma série de atores institucionais da República, dentre os quais o Primeiro Investigado, enquanto então Presidente do Brasil”, tendo como pano de fundo dos debates de Comissão Especial da Câmara dos Deputados em que se debatia proposta de Emenda Constitucional “com vistas a benfazejas alterações do sistema eletrônico de votação”;

c) as manifestações do primeiro investigado nas referidas lives e na entrevista respeitaram os limites da liberdade de convicção pessoal, que não pode ser taxada fraudulenta, uma vez que “a antinomia ‘verdadeiro-falso’ só cabe a juízos de fato, espécie linguística distinta de uma opinião”, e que “conforme os termos da lógica filosófica, atribuir veracidade ou falsidade a um juízo de valor constitui erro categorial, a se concluir ser item impassível de controle jurisdicional”;

d) não houve divulgação de informação falsa, pois relatou-se, “de modo assaz sintético, aliás, a existência de um episódio, nos idos de 2018, de ataque hacker aos sistemas de informatização de toda a Justiça Eleitoral – incluindo Tribunais Regionais Eleitorais de um número de Estados da Federação e o próprio E. Tribunal Superior Eleitoral”;

e) a informação se baseou em subsídios concretos obtidos a partir da análise do teor do Inquérito Policial nº 1361/2018-4SR/PF/DF, que não estava gravado com sigilo, e das informações fornecidas pelos peritos Ivo de Carvalho Peixinho e Mateus de Castro Polastro sobre possíveis vulnerabilidades do sistema eletrônico de votação, o que foi confirmado no depoimento prestado pelos policiais federais;

f) referidos policiais foram convidados a comparecer ao Palácio do Planalto “(pelos canais hierárquicos apropriados, mediante procedimento regular, afastando-se ação extra legem) para explicar, com técnica e cientificidade, possíveis vulnerabilidades do sistema eletrônico de votação adotado no Brasil”, em procedimento inteiramente regular, sem “abuso de funções sou poder”;

g) os depoimentos prestados pelos peritos permitem afirmar “serem verossímeis os motivos a basear todo o debate sobre segurança das urnas eletrônicas sem jamais, contudo, frise-se, duvidar da integridade institucional da Justiça Eleitoral ou da boa-fé de sua conduta”;

h) “não se crê agora, nem em tempo algum, terem sido vulneradas as urnas eletrônicas no pleito de 2018 ou, com efeito, de 2022 – ou em qualquer outra eleição, geral ou local”, pois o TSE assume “postura leal e institucionalmente irmanada com a genuína proteção da democracia” e “frequentemente faz rigorosos (e públicos) testes de segurança nos receptáculos eletrônicos de votos, adotando com presteza e diligência ímpares medidas fundadas de aprimoramento sugeridas, sempre com abundante zelo e elogiável competência”;

i) o depoimento do Deputado Filipe Barros explicitou circunstâncias regulares em que recebeu o Inquérito Policial nº 1361/2018-4SR/PF/DF, para fins de estudo na Comissão Especial da Câmara dos Deputados;

j) o depoimento prestado pelo Embaixador Carlos Alberto França e os documentos apresentados pela Casa Civil, formada em grande parte por convites, corroboram a afirmação de que a reunião com os embaixadores consistiu em um evento oficial, que constou da agenda oficial do Presidente da República, para o qual foram convidados representantes de Estados estrangeiros – que sequer detinham capacidade ativa de sufrágio –, para uma exposição de perfil diplomático de interesse das relações exteriores do Brasil;

k) o caráter oficial do evento, que configurou típico ato de governo, também é confirmado pelo fato de terem sido convidados o Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, assim como os chefes do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, do Tribunal Superior do Trabalho e do Tribunal de Contas da União, além de altas autoridades dos três poderes da República;

l) a documentação apresentada pela Casa Civil também comprovou a trivialidade da organização de “evento simples, verdadeiramente ‘franciscano’”, que teve um custo total correspondente ao módico montante de R$12.214,12 (doze mil duzentos e quatorze reais e doze centavos);

m) as testemunhas Ciro Nogueira Lima Filho e Flávio Augusto Viana Rocha, então Ministro-Chefe da Casa Civil e Secretário Especial de Assuntos Estratégicos, respectivamente, confirmaram que o evento não teve cunho eleitoral ou partidário e que nele se buscou debater o importante tema da transparência do processo eleitoral, sem a veiculação de pedido de votos, de comparação de governos ou de exposição de plataformas governamentais ou sociais;

n) a Procuradoria-Geral da República, entendendo pela atipicidade das condutas atribuídas a Jair Bolsonaro e enfatizando a importância de um debate público sobre temas eleitorais relevantes, manifestou-se pelo arquivamento de notitia criminis apresentada ao Supremo Tribunal Federal que, com base no mesmo fato, objetiva apurar a prática dos crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L do CP), incitação de animosidade das Forças Armadas contra os poderes constitucionais (art. 286, parágrafo único, do CP) e de responsabilidade (art. 85, II a V, da CF);

o) em diversos momentos do discurso de 18/07/2022, o primeiro investigado enfatizou seu desejo por eleições limpas e pela correção de falhas, para que “o ganhador seja aquele que realmente seja votado”, o que demonstra que “não houve qualquer hostilidade antidemocrática ao sistema eleitoral no evento”;

p) a análise da gravidade da conduta deve ser feita de forma contextualizada, considerando as seguintes circunstâncias, que demonstram a inexistência de significação eleitoral:

p.1) as dúvidas do primeiro investigado sobre a segurança do processo eleitoral, compartilhadas por parcela significativa da população, estavam fundamentadas em documentos oficiais que lhe foram entregues;

p.2) poucos dias antes da reunião com os embaixadores o Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, “a despeito de, com o devido respeito, não estar legitimado constitucionalmente para tanto”, convocou reunião com a comunidade internacional “a pretexto de fornecer ‘informações sérias e verdadeiras sobre a tecnologia eleitoral brasileira’”;

p.3) o primeiro investigado “expôs, às claras, sem rodeios, em linguagem simples, fácil e acessível, em rede pública, quais seriam suas dúvidas e os pontos que – ao seu sentir – teriam potencial de comprometer a lisura do processo eleitoral”, em “diálogo aberto”;

p.4) o Tribunal Superior Eleitoral emitiu nota pública de esclarecimento, à qual foi dada ampla publicidade, rebatendo 20 (vinte) pontos apresentados pelo investigado durante a reunião, inclusive por parte dos órgãos de imprensa;

p.5) com a reação imediata “qualquer possibilidade – ainda que remota e inventiva – de lesão à legitimidade das eleições foi prontamente estancada pela Justiça Eleitoral que, ademais, se valeu da oportunidade para prestar relevantes esclarecimentos públicos e reforçar, ainda mais, a certeza de integridade do sistema eleitoral do Brasil”;

p.6) “não houve qualquer autopromoção, crítica a adversários ou considerações de caráter eleitoral-partidário no evento, como sustentaram, sob juramento, em uníssono, as testemunhas que compareceram ao evento”;

q) a minuta de decreto de Estado de Defesa não pode ser admitida como prova, pois “não consubstancia verdadeiramente ‘documento’, eis que não assinado, não apresenta identificação de que o produziu, não apresenta destinatário, bem como não identifica efetiva intenção e realidade/materialidade de seu conteúdo”;

r) laudo pericial realizado no documento atesta que este “jamais foi sequer tocado pelo primeiro investigado”, sendo identificadas digitais que levam a concluir pela “contaminação” do material e pela “quebra da cadeia de custódia da prova”, gerando sua nulidade para todos os fins;

s) ainda que seja considerada como prova, a minuta de decreto não é apta a comprovar qualquer ilegalidade, pois trata-se de documento apócrifo e inidôneo, que não foi retirado a residência de Anderson Torres e que nunca foi levado ao conhecimento do então Presidente da República, inexistindo notícia “de qualquer ato praticado no contexto da realidade fenomênica para sua consecução”, como a necessária oitiva prévia do Conselho da República do Conselho de Defesa Nacional;

t) as provas compartilhadas pelo Supremo Tribunal Federal demonstram que não houve quebra de sigilo por parte do investigado ou de terceiros quando da divulgação de documentos constantes do Inquérito Policial nº 1361/2018-4/DF, pois o referido procedimento não tramitava sob sigilo e não continha documentos sigilosos;

u) é infundada a pretensão de que as lives realizadas em 2021, a reunião com os Embaixadores promovida em 2022, os fatos apurados no Inquérito nº 4878/DF e a denominada minuta de decreto de Estado de Defesa sejam considerados em conjunto, pois “[o]s fatos não são passíveis de concatenação entre si, seja por não possuírem natureza idêntica (falas em lives de opinião versus pronunciamento como Chefe de Estado), seja pelo extenso decurso temporal entre um e outro” e, ainda, porque o investigado não teve qualquer participação nos últimos fatos, que são posteriores à eleição, inexistindo possibilidade lógica ou temporal de que tenham interferido na liberdade do sufrágio ou na legitimidade do pleito; e

v) a pronta reação do TSE em contrapor as opiniões manifestadas na reunião impugnada e a propositura desta demanda, com a concessão de liminar determinando a retirada do vídeo da reunião das redes sociais do investigado e da plataforma da EBC, retiraram a possibilidade de que o discurso proferido aos embaixadores produzisse danos à normalidade e à lisura do pleito, não havendo gravidade, sob a perspectiva quantitativa, apta a configurar a alegada conduta abusiva.

Havendo gravado suas alegações finais com sigilo, os investigados justificaram a medida tendo em vista que “substancial parcela do caderno probatório utilizada como substrato de defesa encontra-se protegida por segredo de justiça” (ID 158914531).

Em vista da justificativa apresentada, a manutenção do sigilo foi confirmada em despacho, no qual ainda se determinou à Secretaria Judiciária colocar a íntegra dos autos em sigilo provisório, até que apresentadas as alegações finais do autor e o parecer do Ministério Público, momento no qual, gravadas individualmente essas manifestações, deveria ser levantado o sigilo dos autos. Na oportunidade, salientou-se “o dever de todos que produzirem ou acessarem as alegações finais e o parecer de preservar as informações sigilosas transcritas ou avaliadas nas referidas peças.”  (ID 158916745).

Na sequência, vieram aos autos as alegações finais do investigante (ID 158917113), manifestação que se conclui com o requerimento de que os pedidos sejam julgados procedentes, para declarar os investigados inelegíveis. Colhem-se os seguintes argumentos:

a) as falas do primeiro investigado na reunião de 18/07/2022 confirmam que “[a] tônica do encontro foi a de soerguer protótipos profanadores da integridade do processo eleitoral e das instituições da República, especificamente o TSE e seus Ministros”, sendo que “o Senhor Jair Messias Bolsonaro criou uma ambiência propícia para a propagação de toda sorte de desordem informacional ao asseverar, por diversas vezes, que o sistema eletrônico de votação é receptivo a fraudes e invasões que, sob a ótica do delírio presidencial, podem comprometer a fidedignidade do resultado das eleições brasileiras”;

b) o discurso, que converge com estratégia de campanha, foi transmitido pela TV Brasil, pertencente à EBC (empresa pública, nos termos da Lei nº 11.652/2008), e pelas redes sociais do primeiro investigado, obtendo expressivo alcance na difusão de informações falsas já reiteradamente desmentidas pelo TSE e por agências independentes de checagem desde 2018;

c) a convergência entre o episódio e a “pauta política” do candidato já foi reconhecida pelo TSE no julgamento da a RP nº 0600549-83, de Relatoria da Min. Maria Cláudia Bucchianeri, relativa aos mesmos fatos tratados nesta AIJE, o que resultou em condenação do primeiro investigado por propaganda eleitoral antecipada, a confirmar o desvio de finalidade eleitoreira do evento;

d) Jair Messias Bolsonaro questionou a integridade do sistema eleitoral brasileiro por, pelo menos, 23 (vinte e três) vezes durante o ano de 2021, o que foi comprovado por meio dos documentos oriundos do Inquérito Administrativo nº 0600371-71 que se encontram nesta AIJE;

e) a difusão de desordem informacional dessa natureza constitui “modus operandi do primeiro investigado”, que deliberadamente utilizou “os ataques ao sistema eleitoral e a esta JE como estratégia de campanha para auferir dividendos eleitorais de parcela da população que passou a desacreditar na confiabilidade do processo de votação”, um “caminho [...] palmilhado para atingir o ápice da difusão de fake News nos período próximo ao início da propaganda eleitoral”;

f) a conduta é grave, pois, “para além de esgarçar o tecido social, mina a essência do Estado Democrático de Direito”, como drástica consequência de uma “manipulação de informação” que “não está dentro do espectro da liberdade de expressão nem tampouco de ‘atos de governo’”;

g) “[a] proliferação de desordem informacional não se presta a construir pontes para diálogos, muito menos para aperfeiçoar sistemas, institutos ou instituições”, tratando-se na realidade de conteúdo desinformativo de grande potencial ofensivo, agravado pelo “uso de todo o aparato estatal para se beneficiar dos efeitos da veiculação do evento telado”;

h) a documentação apresentada pela Casa Civil demonstra que a organização da reunião com os embaixadores, na qual foi proferido o discurso impugnado nesta AIJE, envolveu a adoção de providências por parte da Secretaria de Administração da Secretaria-Executiva da Casa Civil da Presidência da República, do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República e do Ministério de Relações Exteriores e do Gabinete Pessoal do Presidente da República, que, por sua vez, demandaram diversos outros departamentos, além de ter contado com a cobertura da TV Brasil;

i) já está evidente, desde que a desmonetização de canais que propagavam notícias falsas produzidas pelo primeiro investigado foi determinada no Inquérito Administrativo nº 0600371-71, que esses ataques intensos às instituições eram estratégicos e que “para manter a adesão, o apoio dos seus apoiadores e a posterior ‘viralização’ das falas, o primeiro investigado tinha que agir de modo bélico, lastreado em sensacionalismo e inverdades, como sempre agiu, senão não iria alcançar o estado de ebulição do seu eleitorado”;

j) a “teoria do ato de governo” não torna o ato insuscetível de controle do Poder Judiciário, uma vez que não é compatível com o Estado Democrático de Direito “selar autoridades em sacrários inacessíveis, nem tampouco imunizar atuações governamentais que agridam de forma intensa o regime democrático e a confiabilidade do sistema eletrônico de votação”;

k) é insubsistente a tese de que o público-alvo do evento não ostentava “capacidade ativa de sufrágio”, uma vez que a ocasião foi planejada com desvio de finalidade, utilizando-se da TV Brasil e das redes sociais do então Presidente da República “para que inúmeras páginas e perfis compartilhassem as mídias” e, ainda, para “buscar adesão de países estrangeiros para que, se porventura um golpe de Estado fosse instaurado, obtivesse apoio, já que o processo de votação não seria confiável e estaria eivado de fraude”;

l) o vídeo do evento violou a política de integridade eleitoral do Youtube, sendo, por isso, removido por iniciativa da plataforma, o que corrobora o desvio de finalidade do evento alegadamente voltado para o interesse público, e, por conseguinte, o uso do aparato estatal, que abarca a transmissão da TV Brasil e as instalações do Palácio da Alvorada, em favor da campanha;

m) os depoimentos prestados por Flávio Augusto Viana Rocha, Carlos Alberto França e Ciro Nogueira Lima comprovaram que o governo brasileiro, diretamente ou pelo Ministério das Relações Exteriores, nunca recebeu questionamentos formais acerca da integridade do processo eleitoral brasileiro, seja por governos estrangeiros, seja por organismos internacionais, tampouco houve demanda por parte de embaixadores para conhecer o sistema eleitoral brasileiro, o que revela o “caráter insólito” da iniciativa inédita e pessoal do investigado Jair Bolsonaro;

n) do ponto de vista das relações internacionais do Brasil, “a imprestabilidade da reunião foi tanta – o que seria o contrário caso o interesse para sua realização tivesse sido idôneo –, que as embaixadas participantes sequer deram algum retorno sobre o ato, o que denota o total desinteresse”;

o) o depoimento prestado por Anderson Torres foi contraditório, revelou postura omissiva do então Ministro da Justiça – que, mesmo de posse da “minuta do golpe”, não adotou providências para apurar fatos “gravíssimos” – e autoriza concluir que a minuta era a “materialização da última fase de um plano milimetricamente traçado para derrubar o Estado Democrático de Direito”, o qual remete ao teor do discurso de 18/07/2022;

p) as provas carreadas aos autos convergem no sentido de que não houve quebra da integridade do processo eleitoral que pudesse justificar as alegadas dúvidas sobre a idoneidade e confiabilidade das urnas, destacando-se que os depoimentos prestados por Anderson Torres e pelos peritos da Polícia Federal comprovaram que, a despeito das afirmações feitas por Jair Bolsonaro na live realizada em julho de 2021 e na reunião com os embaixadores, nenhum dos elementos constantes dos relatórios da Polícia Federal e do Inquérito Policial por ele mencionados permitiam a conclusão da existência de fraude nas Eleições 2018;

q) as testemunhas Augusto Nunes, Ciro Nogueira Filho e Filipe Barros “foram uníssonas ao asseverarem que nunca tiveram ciência a respeito da existência de fraudes nas urnas eletrônicas”;

r) na perspectiva do uso indevido dos meios de comunicação, “é inegável que a veiculação de vídeos que carregam matéria de alta sensibilidade perante o eleitorado, mormente quando se trata de fatos sabidamente inverídicos, em redes sociais, possui reprovabilidade suficiente para caracterizar a gravidade do ato”, tratando-se de condutas que “abalaram de forma intensa a normalidade e a legitimidade do pleito”, apresentando-se como “efeito mais palpável e perceptível do discurso [...] o que ocorreu em Brasília no último 08/01/2023”;

s) os fatos e as circunstâncias que restaram demonstrados se subsomem aos parâmetros delimitados no julgamento do RO nº 0603975-98, tanto no aspecto qualitativo, ante a intensa reprovabilidade da conduta, quanto no aspecto quantitativo, em vista dos massivos dados de audiência apurados e do efeito multiplicador que certamente ampliou o alcance do discurso;

t) o discurso impugnado nesta AIJE deve ser sopesado não apenas no contexto do pleito, mas também considerando os graves fatos ocorridos no período pós-eleitoral, como: a “cruzada antidemocrática” que os apoiadores do investigado Jair Bolsonaro iniciaram após o resultado do pleito; a ação intentada pelo Partido Liberal (PL) com o objetivo de invalidação de votos; a invasão das sedes do Supremo Tribunal Federal, do Congresso Nacional e do Palácio do Planalto por “vândalos” em 08/01/2023; e a minuta do decreto de estado de defesa apreendida na residência de Anderson Torres – fatos já “batizados” pelo “contraditório substancial”; e

u) o desvio eleitoral do uso da reunião com os embaixadores, com o aproveitamento de toda a montagem e estrutura do evento para fins de divulgá-lo como pauta de campanha, não é mensurável pelo valor empregado (R$12.214,12), sendo evidente a prática de conduta vedada (art. 73, I, da Lei nº 9.504/1997) e o “uso desvirtuado do poder político”.

A Procuradoria-Geral Eleitoral ofereceu parecer no qual opina pela parcial procedência da ação, a fim de que seja declarada a inelegibilidade somente de Jair Messias Bolsonaro em razão de abuso de poder político e de uso indevido dos meios de comunicação, e pela “absolvição do candidato a Vice-Presidente a quem não se aponta participação no caso. Embasa a manifestação nos seguintes pontos (ID 158931404):

a) o TSE reconheceu, ao julgar procedentes quatro representações por propaganda eleitoral extemporânea com base nos mesmos fatos – incluindo-se uma proposta pelo Ministério Público Eleitoral – “que o pronunciamento do Presidente da República destoava da verdade e que servia a propósitos eleitoreiros”, assentando conclusão sobre a matéria fática que se repete nesta ação;

b) naquela ocasião, a PGE já havia assinalado que o discurso de 18/07/2022 integrava “um conjunto de assertivas que compõe o propósito de desacreditar a legitimidade do sistema de votação digital que será empregado nas eleições vindouras e que tem sido adotado desde 1996”, o que, embora não fosse novidade no histórico do primeiro investigado, ocorreu, daquela vez, “em período próximo das eleições, veiculando noções que já foram demonstradas como falsas, sem que o representado haja mencionado os desmentidos oficiais e as explicações dadas constantemente no passado”;

c) à época da realização da reunião com os embaixadores, a Proposta de Emenda à Constituição destinada a implementar o comprovante impresso de votação já havia sido rejeitada pelo Congresso Nacional, o que, juntamente com a constatação de “desmentidos de índole oficial e baseados em dados técnicos não foram mencionados, nem contraditados”, repele a versão “do propósito republicano de contribuir para a melhoria das instituições”;

d) o discurso também procurou incutir na audiência formada por embaixadores “a errada impressão de que o processo de votação é obscuro, insuscetível de gerar confiança e aparelhado para manipulações de resultado em favor de um candidato e em detrimento de outro”, o que não é inócuo sequer considerando a audiência presencial, pois teve o intuito de descredibilizar perante a comunidade internacional o futuro resultado das eleições, em momento no qual as pesquisas eleitorais indicavam vantagem de um adversário;

e) os ataques a Ministros do TSE, no qual se destaca a insinuação de que o então Presidente do tribunal era também “responsável” pelo restabelecimento da elegibilidade de Lula, têm “o indubitável propósito de associar a direção da Justiça Eleitoral aos interesses de um dos candidatos”, por meio de descontextualização e distorção de fundamentos adotados pelo STF para anular processos criminais por questões processuais;

f) ante a severa dissociação dos fatos, “[n]ão há como ouvir o discurso e o admitir no domínio normativo da liberdade de expressão”, percebendo-se que “as assertivas proferidas se voltam para animar parcela do eleitorado” e a retratar Jair Messias Bolsonaro “como fustigado pelo sistema vigente”;

g) sob a ótica do abuso de poder, a “escusa do propósito republicano de contribuir para a melhoria das instituições [...] é descabida e não se sustenta em fundamento que impressione”, não obstante a “dedicada e industriosa defesa” arguir que “o intuito do investigado terá sempre sido o de contribuir para o debate em torno de tema de inequívoca relevância democrática”, pois a proposta de voto impresso já havia sido rejeitada pelo Congresso Nacional e o que se tinha era “o Chefe de Estado dizendo, nessa qualidade, para brasileiros e autoridades de países com embaixadores no país, que não se podia acreditar na legitimidade do processo eleitoral”;

h) “[m]esmo com as medidas cautelares adotadas neste processo alguns dias depois de realizado o encontro, o episódio ingressou no ambiente da disputa eleitoral e se difundiu”, sendo que “[b]astaria, na realidade, a sua ocorrência e a notícia respectiva para que a gravidade qualitativa do evento se positivasse”;

i) a gravidade dos fatos, em seu aspecto qualitativo, reforça-se porque o discurso objeto da ação “ecoou” episódios anteriores, em que o primeiro investigado apressadamente divulgou “como fatos certos o que eram especulações sem base idônea, sabidas inverdades ou conclusões desavindas do seu contexto”, em uma “linha de denúncia” que culminava em induzir uma “crença de que as tramas no sistema eleitoral se ordenaram a favorecer a candidatura da oposição”, destacando-se da referência ao ataque hacker ocorrido na rede do Tribunal Superior Eleitoral em 2018 que:

i.1) não foram abordados detalhes técnicos que indicavam que a invasão teve como alvo apenas sistemas administrativos e não era apta a forjar dados essenciais ao sistema de votação, apuração e totalização de votos, extraindo dos fatos conclusão que deles não se deduz;

i.2) insinuou-se que o Tribunal Superior Eleitoral tinha se negado a fornecer elementos cruciais à apuração da invasão, enquanto os elementos constantes do Inquérito Policial, ao qual o primeiro investigado teve pleno acesso, demonstravam que o TSE encaminhou à Polícia Federal logs relevantes para a investigação;

i.3) os pronunciamentos oficiais do Tribunal Superior Eleitoral quanto ao alcance da atuação do hacker foram distorcidos, afirmando-se falsamente que o TSE teria reconhecido que os sistemas de apuração e de totalização haviam sido invadidos e que os resultados das Eleições 2018 poderiam ter sido adulterados;

j) as distorções e inverdades repetidas pelo investigado Jair Bolsonaro por ocasião da reunião com os embaixadores e às insinuações de que a Justiça Eleitoral teria o intuito de beneficiar o candidato adversário influenciaram indevidamente parte do eleitorado a desconfiar do sistema eleitoral, o que se confirmou por fatos notórios, “alguns violentos, de inconformismo com os resultados das eleições presidenciais, em que se lhes atribuía a pecha de ilegítimos e fraudulentos”;

k) a tese de “ato de governo” não torna o ato insindicável pelo Poder Judiciário”, mesmo porque, no caso, “o aspecto de ato de Estado que se quis atribuir ao evento, na realidade, concorre para a caracterização da irregularidade”;

l) a prova documental indica que “o tema do voto impresso efetivamente ocupou a atenção do então postulante a novo mandato de Presidente da República desde bem antes das eleições”, sendo que o primeiro investigado, ao sustentar a “tese de que eleições corretas e legítimas seriam somente aquelas em que houvesse sistema de voto escrito paralelo ao digital”, associava conceitos como “eleições limpas” e “voto democrático e transparente” à existência do comprovante físico e imputava má-fé às pessoas que não endossassem sua visão;

m) “[o] discurso a autoridades diplomáticas estrangeiras, que pretendia também alcançar autoridades brasileiras e que se voltava a impressionar, à toda evidência, a população em geral, culmina com avisos sobre a iminência de fraude, sempre associada ao voto digital, indicando que o sistema vigente estaria disposto para forjar resultado eleitoral favorável ao candidato do partido de esquerda, que desde sempre despontava como o seu principal oponente”;

n) o prestígio e a imponência do cargo de Presidente da República, o teor do discurso e a proximidade cronológica com as eleições convergem, no evento de 18/07/2022, para “gerar impacto e a inquietar ânimos pessimistas com relação à legitimidade do pleito que já vinham sendo exasperados em outros pronunciamentos”;

o) “[o]bjetivamente, o discurso atacou as instituições eleitorais, e ao tempo que dava motivo para indisposição do eleitorado com o candidato adversário, que seria o beneficiário dos esquemas espúrios imaginados, atraía adesão à sua posição de candidato acossado pelas engrenagens obscuras do tipo de política a que ele seria estranho”;

p) sucedeu-se ao ajuizamento desta AIJE e mesmo às eleições “uma inédita mobilização de parcelas da população que rejeitavam aberta e publicamente o resultado do pleito, por não serem legítimas”, sendo notórios os acampamentos e manifestações que reuniram “pessoas convictas de que as eleições haviam sido fraudadas”, estando “ainda muito presentes e nítidas as imagens do dia 8 de janeiro último de destruição e de acintosa violência aos Poderes constituídos”, tudo a constituir “expressiva exposição” da gravidade do discurso contra a confiabilidade do sistema de votação eletrônica;

q) as questões procedimentais suscitadas nas alegações finais já foram objeto de decisões do Relator ratificadas por unanimidade em Plenário;

r) a conclusão pela configuração do abuso de poder político e pelo uso indevido de meios de comunicação, a acarretar a inelegibilidade do primeiro investigado, não atrita com manifestação da Procuradoria-Geral da República, perante o STF, no sentido de não estar configurada conduta criminal em decorrência do discurso; e

s) ausente discussão acerca da participação do segundo investigado, candidato a Vice-Presidência, nos atos abusivos, a ação deve ser julgada improcedente em relação a ele.

Posteriormente à apresentação do parecer ministerial, os investigados requereram que fosse reconsiderada a determinação de sigilo aposto àquele e às alegações finais, a fim de que as manifestações fossem submetidas ao “escrutínio público” e, ainda, afirmando que teria ocorrido “vazamento ilegal” dos conteúdos sigilosos (ID 15893317).

Nada houve a prover em relação ao requerimento, tendo em vista que o fundamento da determinação (feita a partir de provocação dos próprios investigados) era evitar que a publicidade das alegações finais e do parecer – peças que, por sua natureza, discutem as provas produzidas na instrução – permitissem, por via transversa, a exposição pública do teor de informações que estão reservadas ao conhecimento das partes, do MPE e do juízo até o julgamento do processo. Ressaltou-se, mais uma vez, o dever de todos os sujeitos processuais agirem em conformidade a esse objetivo, o que, conforme já indicado, não impede a divulgação pública de argumentos apresentados pelas partes e pelo Ministério Público (ID 158934588).

As providências relativas ao sigilo foram cumpridas de forma escorreita e célere pela Secretaria Judiciária, estando certificadas nos IDs 158914542, 158917702 e 158931203. 

Na sequência, proferiu-se decisão de inadmissibilidade da intervenção de terceiro como amicus curiae, modalidade incabível na espécie e que, no caso, fora apresentada por quem expressamente declarou que seus “argumentos” – a saber: uma “fábula escrita a duas mãos com o ChatGPT” – “podem não ser os melhores”. Tendo em vista a inadequação formal, jurídica e de linguagem da manifestação, confessadamente sabida pelo peticionário – advogado que se utilizou da capacidade postulatória no PJe para conduta incompatível com as prerrogativas da profissão – determinei o desentranhamento da peça e apliquei ao peticionário multa por litigância de má-fé, equivalente a dois salários mínimos, a ser redobrada em caso de reincidência em conduta temerária (ID 158938227).

Consigna-se ainda que foi encartado aos autos, por iniciativa dos investigados, petição denominada “recurso extraordinário”, dirigido contra o acórdão de ID 158704139, em que a Corte referendou a decisão que admitiu documento novo e fato superveniente. A petição é formalmente endereçada ao Ministro Alexandre de Moraes, Presidente do TSE, ao qual se requer “após a colheita de contrarrazões e admitido o inconformismo ora manifestado, sejam os autos encaminhados ao C. STF para competente julgamento” (ID 158764011).

Registra-se por fim que, em atenção aos fundamentos da aposição de sigilo às alegações finas e ao parecer do Ministério Público Eleitoral, não foram incluídas neste relatório trechos literais das transcrições de depoimentos e de documentos sigilosos, os quais constaram das três peças referidas, sem prejuízo de se apresentar as conclusões do autor, dos réus e da Procuradoria-Geral Eleitoral acerca da força probante do material produzido ao longo da instrução.

É o relatório.

 

PARECER

 

O DOUTOR PAULO GUSTAVO GONET BRANCO (vice-procurador-geral eleitoral): Exmo. Sr. Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Ministro Alexandre de Moraes.

Exma. Sra. Vice-Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Ministra Cármen Lúcia.

Exmo. Sr. Ministro Nunes Marques.

Exmo. Sr. Corregedor-Geral e relator do feito, Ministro Benedito Gonçalves.

Exmo. Sr. Ministro Raul Araújo.

Exmo. Sr. Ministro Floriano de Azevedo Marques.

Exmo. Sr. Ministro André Ramos Tavares.

Dignos Advogados aqui presentes, que cumprimento na pessoa do ínclito e admirado Dr. Tarcisio Vieira de Carvalho.

Doutor João Paulo Oliveira.

Senhoras e senhores.

As particularidades fáticas do caso já foram apresentadas de modo exaustivo. E isso me permite resumir o parecer do Ministério Público Eleitoral juntado aos autos atendo-me às linhas principais da discussão da causa.

A ação foi proposta contra o então Presidente da República e o seu Vice, que concorreram à reeleição. Todos os fatos descritos e apurados dizem respeito a condutas apenas do primeiro. Não se atribui ao candidato a Vice-Presidente nenhuma participação nos eventos que motivaram a investigação. Como não há mandato a cassar, adianto desde logo que o Ministério Público se manifesta pela improcedência da ação de investigação contra Walter Souza Braga Netto.

A acusação contra o candidato a Presidente da República atribui a ele abuso de poder político, indicando desvio de finalidade em reunião com embaixadores no Palácio da Alvorada, ocorrida em julho de 2022.

A inicial relata que esse evento foi mais um de mais de uma dezena de outros em que o mesmo discurso de combate ao sistema de votação e apuração digital foi desfechado. A inicial também conta que houve transmissão do encontro por rede de televisão estatal, bem como veiculação nas redes pessoais do investigado.

O êxito da ação de investigação judicial eleitoral proposta, no que imputa abuso de poder político ao investigado, depende da reunião de 4 elementos:

1. A condição de agente público do sujeito da conduta;

2. O desvio de finalidade de situação vinculada ao cargo em que o sujeito está investido;

3. A busca de vantagem para a situação eleitoral do candidato; e

4. A gravidade da conduta para afetar a legitimidade do processo eleitoral.

Todos esses elementos estão estampados nos autos.

A inicial também apresenta outra causa de pedir, a utilização indevida de meios de comunicação social – que está imbricada, na espécie, no contexto cognitivo do abuso do poder político.

O primeiro elemento para se configurar o abuso de poder político está presente de modo inequívoco.

O segundo e o terceiro elementos se interpenetram na sua conotação. O aproveitamento arbitrário da situação propiciada pelo desempenho de função pública se revela pela desnaturação de ato oficial em acontecimento fundamentalmente eleitoreiro.

Vejamos como os fatos se ajustam a essa moldura.

O Presidente da República, nessa qualidade, atuando como Chefe de Estado, convidou formalmente, os mais altos representantes diplomáticos estrangeiros acreditados no país, bem como diversas autoridades brasileiras, ao Palácio da Alvorada. Ali, ouviram comunicação sobre a falta de confiabilidade do sistema eletrônico de votação e apuração adotado pelo Tribunal Superior Eleitoral. O Presidente alertou que, sob esse sistema, se estava na iminência de se realizarem eleições viciadas e ilegítimas, maliciosamente dirigidas para beneficiar o seu principal adversário.

O discurso ganhou difusão nacional, por meio de sistema de televisionamento público federal e por meio de reprodução em redes sociais do investigado. O discurso, portanto, também se dirigiu ao conjunto dos eleitores brasileiros, e não apenas a representantes diplomáticos, que, evidentemente, não possuem capacidade eleitoral ativa.

Não se nega que o Presidente da República, no exercício da sua atribuição constitucional de “manter relações com Estados estrangeiros” (art. 84, VII), pode reunir o corpo diplomático credenciado em Brasília para relatar fatos de gravidade nacional com repercussão internacional.

Não se duvida, tampouco, de que há margem de discricionariedade política bastante ampla para o Presidente da República decidir sobre o que, a seu ver, é assunto interno suficientemente relevante e inquietante para ensejar a preocupação das potências estrangeiras e justificar a solenidade da exposição.

Ocorre que esse poder não é ilimitado. Também aqui incidem os limites constitucionais da impessoalidade e da moralidade que guiam toda a gestão dos assuntos da República. Mesmo em atos políticos como esse, há balizas que, desrespeitadas, levam à deformidade do desvio de poder, do desvio de finalidade. O desvio de finalidade não é predicado negativo apenas de atos administrativos em sentido estrito, mas também pode também depreciar atos políticos.

A reunião, portanto, comporta a análise de déficit de legitimidade por desvio de finalidade.

A conclusão a que os autos conduzem é a de que o evento, não obstante a sua primeira aparência, foi deformado em instrumento de manobra eleitoreira, traduzindo o desvio de finalidade.

O conteúdo falso dos ataques desferidos na reunião.

A reunião aconteceu exclusivamente para que fossem ouvidas palavras de desconfiança e descrédito com relação ao sistema eleitoral eletrônico gerido pelo Tribunal Superior Eleitoral, com sugestões, ainda, desmerecedoras lançadas a integrantes da Corte.

Já são conhecidas as passagens significativas do pronunciamento do Presidente da República. Elas foram – e isso é de ser acentuado – apreciadas pelo Tribunal, no julgamento da representação que a Procuradoria-Geral Eleitoral ajuizou por propaganda ilícita. O Plenário do TSE, por unanimidade, nos dois últimos dias de setembro do ano passado, afirmou que todas essas recriminações assacadas fugiam à verdade e serviam a propósitos inadmissíveis.

Diante dessa avaliação tão recente das palavras do ora investigado, não é o caso de, nesta exposição oral, em que alguma brevidade se impõe, retomar a cada uma delas. O parecer escrito as reproduz e identifica, para cada qual, o contraponto que lhes escancara a inverdade.

Basta, portanto, que se recorde que o acórdão do TSE descobriu nas acusações feitas durante a reunião:

Fatos anteriormente já desmentidos e carentes de qualquer tipo de prova idônea. Fatos insistentemente rebatidos por esta Corte Superior, sem que exista qualquer elemento indiciário novo apto a afastar as explicações já apresentadas.

O acórdão extraiu outra conclusão essencial para esta causa ao dizer:

A deslegitimação do sistema, a partir da construção de fatos falsos, forjados para conferirem estímulos artificiais de endosso a opiniões pessoais, é comportamento que já não se insere no legítimo direito à opinião, dúvida, crítica e expressão, descambando para a manipulação desinformativa, via deturpação fática, em grave comprometimento da liberdade de “informação”, e com aptidão para corroer a própria legitimidade do pleito eleitoral.

Tem-se, portanto, assentado que a reunião foi arregimentada para que a comunidade internacional, por meio de representantes diplomáticos, e os cidadãos brasileiros, por meio da divulgação por televisão e pela internet do evento, fossem expostos a alegações inverídicas, agrupadas para afetar a confiança no sistema de votação vigente.

Liberdade de expressão?

Dadas essas circunstâncias, não há como acolher o argumento de que o Presidente da República estaria exercendo o direito de liberdade de expressão, movido pelo propósito de debater melhorias no sistema eleitoral.

É bem sabido que a garantia constitucional encontra limite na verdade fenomênica. Por isso que não cabe dar socorro a assertivas propositadamente desencontradas da realidade. Se não for assim, perde sentido a elevação da liberdade de expressão e de informação ao cimo da estrutura jurídica do país.

É certo também que os consensos sobre os contornos da realidade podem sofrer aprimoramentos. As revoluções científicas consistem justamente na quebra auspiciosa de paradigmas. Mas, não é nada de sublime desse gênero o que se vê retratado nos autos.

Quem se volta contra o que se acha estabelecido como fato real, o interlocutor há de assumir o ônus de apresentar evidências que justifiquem o dissenso, não cabendo o desprezo gracioso e desmotivado dos elementos de convicção contrários. A responsabilidade do participante do debate público democrático sobe tanto mais de ponto quando o que afirma é capaz de lançar descrédito sobre instituição nuclear para a existência democrática, como é o sistema de votação para a escolha dos que representam a vontade política do titular da soberania.

Relançar aos cidadãos proposições que abalam a legitimidade do pleito eleitoral, às vésperas da sua realização, que já foram desmentidas – já haviam sido desmentidas – e sem a exposição de novas bases que as fundamentem, não é contribuir para o progresso das estruturas da democracia, mas é degradá-la ardilosamente, pela destruição da confiança de que o sistema depende. 

O que se tem pormenorizado nos autos é a ocorrência de pronunciamento, que teve em mira vasto público, e em que se repetiram assertivas insubsistentes, voltadas para incutir desassossego quanto à correspondência dos resultados oficiais do pleito com a efetiva vontade popular.

Todo o discurso buscou produzir a errada impressão de que o processo de votação é obscuro, insuscetível de confiança, aparelhado para manipulação de resultados e para forjar uma vitória do adversário do autor do pronunciamento, que seria a vítima dessas cavilações.

Um discurso dessa ordem não compõe o domínio normativo da liberdade de expressão.

A vantagem eleitoral

O discurso, ao mesmo tempo que ensejava indisposição do eleitorado para com o candidato opoente, que seria o suposto beneficiário dos esquemas espúrios imaginados, despertava apoio à posição do Presidente da República, como candidato acossado por sinistras engrenagens, típicas da espécie de política a que ele seria estranho.

A circunstância de essas palavras haverem sido vertidas com solenidade, pelo Chefe de Estado, perante a comunidade dos representantes diplomáticos estrangeiros, induzia o cidadão a conferir ainda maior verossimilhança às acusações infundadas, em prejuízo da clareza da verdade.

A reunião para propagar notícias falsas e conclusões falaciosas não respondeu, assim, a razões de Estado que justificariam a cerimônia. O intuito foi apenas e nitidamente eleitoreiro.

Está caracterizado que o candidato à reeleição se valeu da sua situação funcional de Presidente da República, para, mediante notícias que sabia ou deveria saber serem desavindas da verdade, obter a atenção e a adesão de eleitores. Está caracterizado o uso da função pública para benefício eleitoral indevido. Enfim, a desconexão do ato com algum propósito legítimo exibe o desvio de finalidade.

O segundo e o terceiro elementos característicos do abuso de poder estão demonstrados.

O quarto elemento, o da gravidade da conduta, pode ser enxergado sob dois ângulos.

A impugnação do sistema de votação e apuração empreendida pelo Presidente da República, com argumentos desautorizados pelos fatos, nas condições vistas, apresenta gravidade em si mesma.

O discurso, que reiterava outros tantos, é apto, por si, para perturbar a tranquilidade institucional que deve ambientar as eleições no sistema democrático. A desconfiança quanto à fidelidade do resultado apurado à efetiva manifestação de vontade do eleitor é causa de estremecimento do apoio popular à própria existência das eleições. A normalidade e a legitimidade das eleições ficam atingidas. O sistema representativo desacreditado solapa a base da opção fundamental do constituinte por um Estado Democrático de Direito. Críticas, mais do que temerárias, críticas sabidamente infundadas, ao funcionamento do sistema de votação, incorporam esse risco, revelando-se assim de ressaltada gravidade.

Essa avaliação tem o abono do Supremo Tribunal Federal. Na TPA 39, a gravidade ínsita a ataque infundado contra o sistema de votação foi realçada no voto do Ministro Gilmar Mendes, quando disse:

O discurso de ataque sistemático à confiabilidade das urnas eletrônicas, (...), não pode ser enquadrado como tolerável em um Estado democrático de Direito, no qual se propugna o sufrágio universal pelo voto direto e secreto como direito fundamental qualificado como cláusula pétrea, especialmente por um pretendente a cargo político (...).

Tal conduta ostenta gravidade ímpar (...) pode comprometer o pacto social em torno das eleições.

(...)

Aceitar como normal ou legítimo esse discurso de deslegitimação do resultado das urnas volta-se, analisando o retrospecto histórico da nossa República, contra a própria Constituição Federal de 1988, a qual juramos proteger.

Bastaria essa perspectiva – esse primeiro ângulo de visão – para que a gravidade do evento se desse a conhecer. Esse elemento, contudo, ganha também marcada dimensão por outro modo de ver – quando se levam em conta acontecimentos posteriores à reunião, circunstâncias que o Tribunal entendeu que compõem o âmbito de cognoscibilidade desta AIJE.

A propósito, essa decisão da Corte nada tem de revolucionária do ponto de vista processual.

É bem sabido que o juiz pode – e deve – levar em consideração fatos supervenientes ao ajuizamento da ação que interfiram no julgamento do mérito, na forma do que comanda o art. 493 do Código de Processo Civil.

Isso é assim, tendo em vista que a sentença deve refletir o estado de fato da lide no momento da entrega da prestação jurisdicional; por isso o juiz deve levar em consideração o chamado fato superveniente.

O que não se admite é o conhecimento de fatos alheios à lide como definida pelo pedido e pela causa de pedir. Foi esse o contexto que se viu presente em julgado outro, bem conhecido, relacionado com as eleições de 2014. Aqui, contudo, não se traz a estudo fato desvinculado das balizas da controvérsia como gizadas inicialmente. Nada obsta que fatos ocorridos depois da inicial possam ser contemplados, na medida em que confirmam o que o investigante tinha como de possível ocorrência. Esses fatos, se antes estavam no plano da potencialidade, passam, adiante, ao campo da atualidade, sem se desgrudarem do fato-base que animou a propositura da demanda.

Sob esse ângulo, tem-se que o chamado à desconfiança nas eleições não rendeu ao candidato a maioria dos votos, mas provocou reações de desabrida e descomedida desconfiança de parcela da população sobre a legitimidade dos resultados das urnas, como jamais se viu desde o advento da Constituição de 1988.

É notório que, depois das eleições, aconteceu uma inédita mobilização de populares que rejeitavam aberta e publicamente o resultado do pleito, recusando-lhe legitimidade. Acampamentos de pessoas pedindo medidas de ruptura da ordem constitucional, manifestações violentas de rua e bloqueio de rodovias foram promovidos por pessoas que aderiram à ideia da ilegitimidade das eleições. Estão ainda presentes e nítidas as imagens do dia 8 de janeiro último de destruição e de acinte aos Poderes constituídos.

O discurso contra a confiabilidade do sistema de votação eletrônica – mesmo que não visasse a esses resultados específicos – não poderia ter mais expressiva revelação do seu infesto potencial antidemocrático.

Igualmente sob esse segundo ângulo, se exibe a gravidade das circunstâncias – o 4º e último elemento caracterizador do abuso de poder político.

Ao ver do Ministério Público, portanto, estão reunidos todos os elementos definidores do abuso de poder político de que o candidato investigado é acusado.

A conclusão do parecer se conforta em precedente do TSE de 2021, caso Franceschini, em que se definiu que ataques ao sistema eletrônico de votação podem configurar abuso de poder político “e/ou uso indevido dos meios de comunicação quando redes sociais são usadas para esse fim” (RO-EI 0603975-98, DJe 1-.12.2021).

O precedente ressalta a outra hipótese de procedência da ação, atinente ao uso indevido dos meios de comunicação, que também concorre para o desfecho de procedência da demanda, já que o discurso encontrou divulgação em redes sociais da internet ligadas ao investigado.

O pedido de condenação do primeiro investigado à pena que ainda resta cabível de inelegibilidade merece acolhida.

Obrigado pela atenção.

 

SUSPENSÃO DO JULGAMENTO

 

O SENHOR MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES (presidente): Agradeço ao eminente Vice-Procurador-Geral Eleitoral, Professor Paulo Gustavo Gonet Branco, que falou em nome do Ministério Público.

Em virtude do horário, em face da sessão que temos eu, Ministra Cármen Lúcia e Ministro Nunes Marques, no Supremo Tribunal Federal, eu suspendo o julgamento, que prosseguirá na sessão da próxima terça-feira, às 19h, iniciando-se com o voto do relator, Ministro Benedito Gonçalves.

 

PROCLAMAÇÃO DO RESULTADO (provisório)

 

O SENHOR MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES (presidente): Após a leitura do relatório e a realização das sustentações orais, o julgamento foi suspenso.

 

EXTRATO DA ATA 

 

AIJE nº 0600814-85.2022.6.00.0000/DF. Relator: Ministro Benedito Gonçalves. Representante: Partido Democrático Trabalhista (PDT) – Nacional (Advogados: Walber de Moura Agra – OAB: 757-B/PE e outros). Representados: Jair Messias Bolsonaro e outro (Advogados: Tarcisio Vieira de Carvalho Neto – OAB: 11498/DF e outros).

Usaram da palavra, pelo representante, Partido Democrático Trabalhista (PDT) – Nacional, o Dr. Walber de Moura Agra;  pelos representados, Jair Messias Bolsonaro e Walter Souza Braga Netto, o Dr. Tarcisio Vieira de Carvalho Neto; e  em nome do Ministério Público Eleitoral, o Dr. Paulo Gustavo Gonet Branco, Vice-Procurador-Geral Eleitoral.      

Decisão: Após a leitura do relatório e a realização das sustentações orais, o julgamento do processo foi suspenso.

Composição: Ministros Alexandre de Moraes (presidente), Cármen Lúcia, Nunes Marques, Benedito Gonçalves, Raul Araújo, Floriano de Azevedo Marques e André Ramos Tavares.

Vice-Procurador-Geral Eleitoral: Paulo Gustavo Gonet Branco.

 

SESSÃO ORDINÁRIA REALIZADA EM REGIME HÍBRIDO EM 22.6.2023.

 

VOTO

 

O SENHOR MINISTRO BENEDITO GONÇALVES (relator): Obrigado, Presidente.

Cumprimento Vossa Excelência, Presidente desse Tribunal, Ministro Alexandre de Moraes; bem como nossa Vice-Presidente, Ministra Cármen Lúcia; Ministro Nunes Marques; Ministro Raul Araújo; Ministro Floriano; Ministro André; Ministério Público nessa assentada, pelo nosso Procurador-Geral Eleitoral, nosso Doutor Carlos, conhecido nosso do STJ; nossos servidores, senhores advogados, principalmente os advogados que aqui defendem os investigados e autores desta Aije.

Como Vossa Excelência, Presidente, já anunciou, dando continuidade ao julgamento. E, para esclarecer, a minuta do voto que foi distribuída contém 382 (trezentas e oitenta e duas) páginas, distribuídas antecipadamente aos Ministros. E, para facilitar o estudo, eu fiz um resumo, mas como a matéria, ela, para ser tratada, depende de uma extensão maior, eu ainda estratifiquei esse resumo, que foi entregue a Ministros, nesta Corte, para acompanhar. Faço referência às posições ali fundamentadas no voto originário. Vou fazer alguns títulos e alguns pontos e vou avançar, para que nós possamos render o julgamento.

Conforme relatado, versam os autos da AIJE – ajuizada pelo Diretório Nacional do Partido Democrático Trabalhista contra Jair Messias Bolsonaro, então candidato à reeleição para o cargo de Presidente da República, e Walter Souza Braga Netto, então candidato a Vice-Presidente da República – sobre suposta prática de abuso de poder político e de uso indevido dos meios de comunicação, decorrente de alegado desvio de finalidade eleitoreiro de reunião havida no Palácio da Alvorada no dia 18/07/2022.

Alega-se que o primeiro investigado, no exercício do cargo de Presidente da República, teria se utilizado de encontro com embaixadoras e embaixadores de países estrangeiros para atacar a integridade do processo eleitoral, especialmente disseminando “desordem informacional”, em convergência com estratégia de campanha consistente em mobilizar suas bases por meio de contínuos ataques infundados à credibilidade do processo eleitoral. Aponta-se que o evento foi transmitido pela TV Brasil e que o vídeo foi amplamente divulgado nas redes sociais do candidato à reeleição, potencializando o efeito danoso das declarações proferidas na condição de Chefe de Estado.

De início, registro que os investigados suscitaram questões preliminares em suas alegações finais, que passo a abordar.

I – Preliminares

1. Preliminar de incompetência da Justiça Eleitoral (suscitada pelos investigados)

Os investigados alegam que o art. 48 da Res.-TSE nº 23.608/2019 torna possível rediscutir, “por ocasião do julgamento”, todas as questões resolvidas em decisões interlocutórias. O dispositivo em comento prevê, como regra, que tais decisões não se sujeitam a preclusão, de modo que as partes podem requerer seu reexame “por ocasião do julgamento”. Transcrevo a íntegra do dispositivo:

“Art. 48. As decisões interlocutórias proferidas no curso da representação de que trata este capítulo não são recorríveis de imediato, não precluem e deverão ser novamente analisadas pela juíza ou pelo juiz eleitoral ou pela juíza ou pelo juiz auxiliar por ocasião do julgamento, caso assim o requeiram as partes ou o Ministério Público Eleitoral em suas alegações finais.

Parágrafo único. Modificada a decisão interlocutória pela juíza ou pelo juiz eleitoral ou pela juíza ou pelo juiz auxiliar, será reaberta a fase instrutória, mas somente serão anulados os atos que não puderem ser aproveitados, determinando-se a subsequente realização ou renovação dos que forem necessários.”

(Sem destaques no original.)

Conforme se observa, a regra pressupõe uma situação em que a decisão interlocutória proferida pelo Relator esteja sendo levada a conhecimento do Colegiado pela primeira vez no momento do julgamento final. A preclusão referida no dispositivo é a temporal, a significar que a possibilidade de exame em plenário do acerto ou desacerto das decisões do relator permanece aberta até o julgamento final, desde que a parte cumpra seu ônus de requerer o exame nas alegações finais.

O dispositivo, porém, não afasta outro tipo de preclusão, a pro judicato, que impede qualquer órgão julgador de decidir novamente as matérias que já decidiu (art. 505, CPC). Assim, se a Corte, em momento anterior, examinar o teor de uma decisão interlocutória, evidentemente fica prejudicada a aplicação do art. 48 da Res.-TSE nº 23.608/2019.

No caso dos autos, como é sabido, isso ocorreu em duas ocasiões. O Plenário do TSE já decidiu pela rejeição das preliminares que poderiam levar à extinção do processo sem resolução de mérito e das questões prejudiciais que tinham impacto na definição do curso da instrução.

Com efeito, este Relator, pautado pela racionalidade do processo e pelo respeito ao encadeamento lógico das etapas processuais, teve a iniciativa de levar as matérias imediatamente a referendo. Houve o cuidado de explicitar que o procedimento serviria justamente para resolver questões processuais pendentes antes que se iniciasse a instrução. Mencione-se, à luz da boa-fé objetiva, que os investigados em momento algum se opuseram à metodologia adotada, dela fazendo bom e oportuno uso, inclusive quando seu pedido de reconsideração foi prontamente analisado pela Corte, a despeito do não cabimento de agravo interno.

Do acórdão em que se referendou a rejeição da preliminar em comento, constaram não apenas fundamentos para afirmar a competência da Justiça Eleitoral, como também uma exposição didática da metodologia que estava sendo empregada em benefício da gestão processual:

“AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ELEIÇÕES 2022. PRESIDENTE. PRELIMINARES. REJEIÇÃO. QUESTÕES EM TESE APTAS A ACARRETAR DECISÃO TERMINATIVA. COLEGIALIDADE. RACIONALIDADE PROCESSUAL. IMEDIATA SUBMISÃO À CORTE.

ATO DE GOVERNO. ALEGADO DESVIO DE FINALIDADE EM FAVOR DE CANDIDATURA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ELEITORAL. UNIÃO. PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PÚBLICO. ILEGIMIIDADE PASSIVA. LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO. INEXISTÊNCIA. DECISÃO INTERLOCUTÓRIA REFERENDADA.

2. Concluída a fase postulatória, proferiu-se decisão de saneamento e organização do processo, com o objetivo assegurar que a fase instrutória seja iniciada em ambiente de estabilidade jurídica, resolvidas todas as questões pendentes.

3. No decisum, foram rejeitadas duas preliminares suscitadas pelos investigados.

4. Como regra geral, as questões resolvidas por decisão interlocutória, no procedimento do art. 22 da LC nº 64/90, não são recorríveis de imediato. Nessa hipótese, o reexame pelo Colegiado fica diferido para a sessão em que for julgado o mérito e somente ocorre se a parte o requerer em alegações finais (art. 19, Res.-TSE nº 23.478/2016; art. 48, Res.-TSE nº 23.608/2019).

5. A aplicação da regra às ações de investigação judicial eleitoral foi reafirmada no julgamento da AIJE nº 0601969-65 (Rel. Min. Jorge Mussi, DJE de 08/05/2020), quando o TSE declarou preclusa a possibilidade de a parte, silente nas alegações finais, rediscutir decisão em que o Relator indeferiu provas.

6. A sistemática prestigia a celeridade, mas, para que atinja seu objetivo, deve ser aplicada sempre com respeito à racionalidade processual. Desse modo, não se justifica que toda a instrução seja desenvolvida enquanto está pendente de exame pela Corte questão preliminar capaz de, em tese, levar à extinção do processo sem resolução do mérito.

7. Nessa linha, é conveniente ao bom andamento deste feito e à estabilidade do processo eleitoral que a Corte desde logo avalie se, tal como se concluiu na decisão saneadora, ação proposta é efetivamente viável.

PRELIMINAR DE INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ELEITORAL. REJEITADA.

8. A Justiça Eleitoral é competente para apurar desvios de finalidade de atos praticados por agentes públicos, inclusive por Chefe de Estado, quando da narrativa se extrair que o mandatário se valeu do cargo para produzir vantagens eleitorais para si ou terceiros. Entender o contrário seria criar uma espécie de salvo-conduto em relação a desvios eleitoreiros ocorridos, justamente, no exercício do feixe de atribuições mais sensível do Presidente da República.

9. Na hipótese dos autos, os requisitos para a definição da competência do TSE foram devidamente delimitados pela parte autora. Narra-se que o Presidente da República, utilizando-se de seu cargo, convocou reunião com embaixadores de países estrangeiros, mas, agindo com desvio de finalidade, teria passado a atacar a integridade do sistema eleitoral, em estratégia amoldada à de sua campanha, beneficiando-se, ainda, da ampla repercussão da transmissão do evento pela TV Brasil.

10. Os argumentos trazidos pelos investigados, no sentido de que atos de governo não se sujeitam a controle jurisdicional, pressupõem que inexista o desvirtuamento para fins eleitorais, matéria a ser examinada no mérito.

[...]

CONCLUSÃO.

15. Rejeitadas as preliminares suscitadas pelos investigados, conclui-se pela viabilidade da AIJE proposta.

16. Decisão interlocutória referendada.

(Sem destaques no original.)

O voto de Relatoria, ao qual a Corte aderiu de forma unânime, apresentou os seguintes fundamentos para rechaçar a alegada incompetência da Justiça Eleitoral e, assim, reafirmar que esta justiça especializada é, evidentemente, a instância própria para examinar imputações de abuso decorrentes do desvio eleitoreiro do poder político:

“2. Preliminar de incompetência da Justiça Eleitoral (suscitada pelos réus)

Os investigados argumentam que a reunião com embaixadores consistiu em ato praticado na condição de Chefe de Estado, sem qualquer relação com o pleito, no regular desempenho da função privativa de manter relações com países estrangeiros, o que torna a Justiça Eleitoral incompetente para examinar a matéria.

A se acolher a tese proposta, restaria inviabilizado todo e qualquer controle de práticas abusivas perpetradas por meio de atos privativos do Chefe de Estado, erigindo uma espécie de salvo-conduto em relação a desvios eleitoreiros ocorridos no exercício, justamente, do feixe de atribuições mais sensível do Presidente da República.

Não há dúvidas, porém, que o art. 22 da LC 64/90, ao estabelecer que cabe ao Corregedor-Geral Eleitoral instaurar investigação judicial eleitoral “para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder [...] de autoridade”, atribuiu à Justiça Eleitoral a competência para sindicar, sob o prisma da lisura do pleito, todos os atos administrativos praticados por agentes públicos no exercício de seus cargos e dentro de suas esferas de competência, inclusive os que tenham natureza político-institucional, desde que haja indícios do desvirtuamento do poder em prol de candidaturas.

Com efeito, os eleitos não titularizam o poder estatal para uso de acordo com interesses particulares, mas, sim, o ostentam para cumprir finalidades públicas. Mesmo na hipótese de atos discricionários, não se supõe que seja lícito ao mandatário empregar suas prerrogativas para produzir vantagens eleitorais, para si ou terceiros. O elemento nuclear do abuso de poder político ou de autoridade, conforme a jurisprudência deste Tribunal, é o ato do agente público que, valendo-se de condição funcional e em manifesto desvio de finalidade, desequilibra a disputa em benefício de sua candidatura ou de terceiros (RO 1723-65/DF, Rel. Min. Admar Gonzaga, DJE de 27/2/2018 e REspE 468-22/RJ, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJE de 16/6/2014, dentre outros).

Em outras palavras, é premissa primeira do abuso de poder político, apto a atrair a competência da Justiça Eleitoral, o ato praticado na condição de agente público. A este requisito se acresce a necessidade de que a petição inicial descreva o elemento desviante, ou seja, o fator que denota que a conduta se afastou do regular exercício das atribuições do cargo. E, por fim, esse elemento desviante deve possuir contornos eleitorais, uma vez que o objeto da AIJE não se confunde com o da ação de improbidade ou de outros procedimentos que possam ser ajuizados para punir irregularidades administrativas desprovidas de conotação eleitoral.

Na hipótese dos autos, os requisitos para a definição da competência do TSE foram devidamente delimitados pela parte autora, que narra que o Presidente da República, utilizando-se de seu cargo, convocou reunião com embaixadores de países estrangeiros, mas, agindo com desvio de finalidade, teria passado a atacar a integridade do sistema eleitoral, em estratégia amoldada à de sua campanha, beneficiando-se, ainda, da ampla repercussão da transmissão do evento pela TV Brasil.

Os investigados, ao arguir a incompetência da Justiça Eleitoral, não refutaram a aderência dessa causa de pedir à conduta típica do abuso de poder político. O que fazem é avançar sobre aspectos meritórios. Defendem que se está diante de ato de governo, cujo “fim político” não está sujeito a controle jurisdicional, e que se deu em cumprimento a agenda pública do Presidente. Enfatizam, ainda, que não houve pedido de votos ou ataque a oponentes. Buscam, em síntese, que se reconheça a intangibilidade dos fatos, ao argumento de que o exercício de poder político ocorreu dentro dos limites constitucionais.

Ocorre que sendo a Justiça Eleitoral a única competente para se pronunciar sobre a existência, ou não, de desvio de finalidade com conotação eleitoral e, sendo o caso, sobre sua gravidade no contexto de uma determinada eleição, tem-se inequivocamente delineada a competência deste Tribunal para resolver a controvérsia.

Portanto, rejeito a preliminar de incompetência da Justiça Eleitoral.”

Tem-se, portanto, que o TSE, por seu órgão colegiado, já assentou a competência da Justiça Eleitoral para julgar o feito presente.

Essa decisão não é afetada pelo argumento, trazido nas alegações finais, de que os depoimentos colhidos em audiência demonstrariam que a reunião de 18/07/2022 não teve caráter eleitoral. Isso porque é nítido que a prova mencionada se refere a um ponto fático controvertido e deve ser analisada no exame de mérito, ao qual se chegará exatamente porque a Justiça Eleitoral tem competência pare análise da matéria.

Conclui-se que a pretensão de revolvimento da questão é incabível neste momento, razão pela qual não conheço da preliminar.

Na hipótese de vir a ser conhecida pela maioria da Corte, nesta assentada, o caso é de rejeitá-la, conforme fundamentos já lançados.

2. Questão prejudicial de “redelimitação da demanda” (suscitada pelos investigados)

Nas alegações finais, os investigados também reavivaram sua objeção à juntada da minuta de decreto de estado de defesa apreendida pela Polícia Federal, no dia 12/01/2023, na residência do ex-Ministro da Justiça e da Segurança Pública Anderson Torres. Asseveram que foram violadas a estabilização da demanda, o princípio da congruência, o contraditório e a segurança jurídica.

Quanto ao tema, rememoro que, ao final da fase postulatória, proferiu-se decisão de saneamento e organização do processo, na qual se indicou como pontos incontroversos: a) a realização do evento em que o primeiro investigado, então Presidente da República dirigiu-se a embaixadoras e embaixadores de países estrangeiros para apresentar sua visão sobre o sistema eletrônico de votação brasileiro; b) o teor do discurso proferido; c) a transmissão do evento pela TV Brasil e pelas redes sociais do primeiro investigado.

Pontuou-se, em seguida, que as partes controvertem sobre o alegado desvio de finalidade eleitoreira e sobre a gravidade de eventual conduta irregular, tanto sob a ótica qualitativa (reprovabilidade da conduta) quanto sob a ótica quantitativa (repercussão no contexto eleitoral).

A controvérsia estava, portanto, perfeitamente delimitada quando se fixou a pertinência de fato superveniente – a apreensão da minuta de decreto pela Polícia Federal, após os atos antidemocráticos ocorridos em Brasília em 08/01/2023 – e deferiu-se a juntada do documento aos autos. Consignou-se na decisão respectiva que há inequívoca “correlação entre os fatos e documentos novos e a demanda estabilizada”, especialmente por ser ônus da autora convencer que “a reunião realizada com os embaixadores deve ser analisada como elemento da campanha eleitoral de 2022, dotado de gravidade suficiente para afetar a normalidade e a legitimidade das eleições e, assim, configurar abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação” (ID 158554507).

O decisum foi objeto de pedido de reconsideração no qual os réus formularam as alegações, ora repetidas, de que teriam sido violadas a estabilização da demanda e a consumação de decadência (ID 158557843). O pedido de reconsideração foi indeferido, oportunidade em que também se fixou orientação a ser aplicada às AIJEs das Eleições 2022 em situações semelhantes (ID 158622380).

Aplicou-se, então, a metodologia já entabulada quando da rejeição das preliminares, submetendo-se ao colegiado, de imediato, a decisão que indeferiu o pedido de reconsideração. Em 14/02/2023, a Corte, novamente por unanimidade, confirmou que os limites da controvérsia, que já estavam fixados em decisão de saneamento e organização do processo, comportavam o conhecimento de fato superveniente, consistente na apreensão de minuta de decreto de estado de defesa na residência de Anderson Torres.

Foi também corroborada a orientação que pavimentaria a determinação das diligências complementares. Transcrevo, mais uma vez, a ementa do referido acórdão (ID 158704139):

“AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ELEIÇÕES 2022. PRESIDENTE. JUNTADA DE DOCUMENTO NOVO. FATOS SUPERVENIENTES.  ADMISSIBILIDADE. DESDOBRAMENTO DE FATOS QUE COMPÕEM A CAUSA DE PEDIR. PEDIDO DE RECONSIDERAÇÃO. DECADÊNCIA. VIOLAÇÃO À ESTABILIZAÇÃO DA DEMANDA. INOCORRÊNCIA. QUESTÕES PREJUDICIAIS REJEITADAS. DECISÃO REFERENDADA.

[...]

3. A causa de pedir da AIJE é delimitada pelos contornos fáticos e jurídicos que permitam a compreensão da demanda, não se exigindo que a parte autora, ao postular em juízo, tenha pleno domínio de todos os fatos que podem influir no julgamento e os descreva em minúcias.

4. Na hipótese, a causa de pedir contempla a imputação de que o discurso proferido em 18/07/2022 se insere em uma estratégia de campanha do primeiro réu, de difundir fatos sabidamente falsos relativos ao sistema eletrônico de votação, para mobilizar seu eleitorado por força de grave “desordem informacional” atentatória à normalidade do pleito.

5. Em contrapartida, os investigados refutam qualquer relação entre o evento de 18/07/2022 e as eleições, enxergando no discurso uma legítima manifestação, em salutar ‘diálogo institucional’ com o TSE, afirmando ainda que qualquer efeito do discurso teria sido prontamente neutralizado por nota pública tribunal.

6. Diante disso, na decisão de organização e saneamento do processo, consignou-se que os fatos constitutivos (o evento, o discurso e seu conteúdo) são incontroversos e que as partes disputam a narrativa sobre o significado e o impacto eleitoral do episódio. Ressaltou-se que, em matéria de abuso de poder, o exame da gravidade da conduta, sob o ângulo qualitativo e quantitativo, reclama especial atenção para a análise de elementos contextuais.

7. O documento novo ora trazido aos autos consiste em minuta de decreto de Estado de Defesa apreendida pela Polícia Federal na residência do ex-Ministro da Justiça e da Segurança Pública, Anderson Torres, no dia 12/01/2023, durante diligência determinada pelo Ministro Alexandre de Moraes no âmbito do Inquérito nº 4879, que tramita no STF.

8. É inequívoco que o fato de o ex-Ministro da Justiça do governo do primeiro investigado ter em seu poder uma proposta de intervenção no TSE e de invalidação do resultado das eleições presidenciais possui aderência aos pontos controvertidos, em especial no que diz respeito à correlação entre o discurso e a campanha e ao aspecto quantitativo da gravidade.

9. A decadência obsta a dedução de ilícitos inteiramente novos, sendo fator de estabilidade política e jurídica. No entanto, apresentada a demanda de modo tempestivo, os fatos supervenientes que guardem relação com a causa de pedir, mesmo que não alegados pelas partes, devem ser obrigatoriamente considerados no julgamento (art. 493, CPC; art. 23, LC 64/90).

10. Desse modo, não se pode interpretar a estabilização da demanda como um recorte completo e irreversível na realidade fenomênica. Essa ideia acarreta um descolamento tal dos fatos em relação a seu contexto que chega a impedir o órgão judicante de levar em conta circunstâncias que gradativamente se tornem conhecidas ou potenciais desdobramentos das condutas em investigação.

11. Ressalte-se que, no caso dos autos, o que a autora pretende discutir são eventos que se conectam a partir do eixo central da narrativa, segundo a qual o discurso na reunião com embaixadores mirava efeitos eleitorais ilícitos. O próprio teor do discurso do Presidente, que livremente escolheu os tópicos que desejava abordar, oferece uma clara visão sobre o fluxo de eventos – passados e futuros – que podem, em tese, corroborar a imputação da petição inicial.

12. Ao lado dessas considerações gerais, deve-se ter em conta que o resultado das eleições presidenciais de 2022, embora fruto legítimo e autêntico da vontade popular manifestada nas urnas, se tornou alvo de ameaças severas. Passado o pleito, a diplomação e até a posse do novo Presidente da República, atos desabridamente antidemocráticos e insidiosas conspirações tornaram-se episódios corriqueiros. São armas lamentáveis do golpismo dos que se recusam a aceitar a prevalência da soberania popular e que apostam na ruína das instituições para criar um mundo de caos onde esperam se impor pela força.

13. Os acontecimentos se sucedem de forma vertiginosa. Mas o devido processo legal tem, entre suas virtudes, a capacidade de decantar os fatos e possibilitar seu exame analítico. É isso que deve guiar a instrução das AIJEs, pois é central à consolidação dos resultados das Eleições 2022 averiguar se esse desolador cenário é, ou não, desdobramento de condutas em apuração nas diversas ações. Esse debate não pode ser silenciado ou inibido por uma artificial separação entre as causas de pedir e a realidade fenomênica em que se inserem.

14.  Os temas das ações propostas são de conhecimento público. Não há segredo de justiça. As decisões de admissibilidade, de concessão de tutela inibitória e de saneamento, bem como outras de caráter interlocutório, têm contemplado cuidadoso delineamento das matérias em discussão.

15. Tendo em vista o prestígio à celeridade, à economia processual e à boa-fé objetiva, entendo prudente que, especificamente no que diz respeito às AIJEs relativas às eleições presidenciais de 2022, seja fixado um parâmetro seguro e objetivo que dispense, a cada fato ou documento específico, uma nova decisão interlocutória que revolva todos os fundamentos ora expostos.

16. Orientação a ser aplicada em situações semelhantes, no sentido de que a estabilização da demanda e a consumação da decadência não impedem que sejam admitidos no processo e considerados no julgamento elementos que se destinem a demonstrar desdobramentos dos fatos originariamente narrados, a gravidade (qualitativa e quantitativa) da conduta que compõe a causa de pedir ou a responsabilidade dos investigados e de pessoas do seu entorno, tais como: a) fatos supervenientes à propositura das ações ou à diplomação dos eleitos, ocorrida em 12/12/2022; b) circunstâncias relevantes ao contexto dos fatos, reveladas em outros procedimentos policiais, investigativos ou jurisdicionais ou, ainda, que sejam de conhecimento público e notório; e c) documentos juntados com base no art. 435 do CPC.

17. Mantido o indeferimento do pedido de reconsideração.

18. Decisão interlocutória referendada.”

(Sem destaques no original.)

Desse modo, não há dúvidas de que o TSE já decidiu, por seu colegiado, que a admissão do fato superveniente e do documento novo estritamente correlacionados à causa de pedir não violou a estabilização da demanda ou a decadência. A Corte também corroborou a diretriz para análise da pertinência de novas diligências.

Transcrevo passagens da fundamentação do voto de relatoria, inteiramente endossado pelo Colegiado:

“Nos termos do art. 487, II, do Código de Processo Civil, consumada a decadência, deve o órgão jurisdicional, de ofício ou a requerimento da parte, extinguir o processo com resolução do mérito.

A decadência é instituto de direito material, que corresponde ao perecimento de um direito não exercitado em um determinado prazo. Na civilística, incide sobre direitos potestativos, que correspondem ao poder de seu titular de interferir na esfera jurídica alheia por mera declaração unilateral de vontade.

No âmbito do Direito Eleitoral, ao se transpor o instituto para as ações sancionadoras, é necessário ter em vista que os direitos tutelados têm natureza difusa. Os legitimados ativos, nesses casos, não se valem da jurisdição para impor um ato de vontade unilateral, mesmo porque não são os titulares do poder de cassar mandatos ou de aplicar inelegibilidade. Agem como ‘representantes adequados’, aos quais a lei incumbiu a função de submeter ao controle jurisdicional a análise de condutas que se desviem dos parâmetros democráticos e republicanos que norteiam as eleições.

Por outro lado, é certo que os efeitos de uma decisão que conclua pela prática de ilícitos graves incidem sobre a esfera jurídica dos réus de modo imperativo, sem depender de qualquer ato de aceitação ou de cumprimento forçado. Proferida a condenação, opera-se a mudança do status jurídico dos responsáveis e beneficiários, uma vez que são disparadas as consequências legais da cassação ou da declaração de inelegibilidade, mesmo que não requeridas expressamente.

O fundamento para a propositura de uma ação eleitoral sancionadora, portanto, não é um direito cujos efeitos dependem somente da atuação do titular no tempo devido. O fundamento é, sim, a existência de circunstâncias fáticas suficientes para disparar o controle jurisdicional, sendo que a aplicação das sanções ocorre de forma imperativa quando se conclui, após a tramitação do processo em contraditório, pela configuração das práticas ilícitas.

Desse modo, ao contrário de um direito potestativo, insuscetível de discussão por quem suportará as consequências de seu exercício (ex.: o divórcio, o direito de arrependimento do consumidor, o pedido de demissão do empregado, a desfiliação partidária), a imputação de um ilícito eleitoral não é, em si, suficiente para produzir efeitos. No curso da ação, todos os elementos constitutivos, extintivos ou modificativos da base fática e jurídica estarão em análise.

Decorre disso que a causa de pedir da AIJE, da AIME e das representações especiais é delimitada pelos contornos fáticos e jurídicos que permitam a compreensão da demanda, não se exigindo que a parte autora, ao postular em juízo, tenha pleno domínio de todos os fatos que podem influir no julgamento da causa e os descreva em minúcias. O contraditório é um espaço dinâmico, dentro do qual argumentos e provas podem ser apresentados, por todas as partes, com vistas a convencer da ocorrência ou não do ilícito narrado.

Decerto, caso fosse ônus do autor apresentar de antemão todos os componentes de um ilícito eleitoral – conhecimento que, em regra, apenas os responsáveis pela prática terão – o controle jurisdicional seria inviabilizado. A petição inicial teria que evidenciar algo como um “ilícito líquido e certo” que, instantaneamente, propiciasse cabal conclusão quanto a sua existência, gravidade e responsabilidade.

Um entendimento desse tipo não encontra abrigo na jurisprudência do TSE, que, ao contrário, estatui que ‘[a] abertura de investigação judicial eleitoral demanda a indicação de provas, indícios e circunstâncias da suposta prática ilícita, não sendo exigível prova pré-constituída dos fatos alegados’ (RO nº 1588-36, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJE de 24/11/2015).

Por isso, quando se cogita da decadência da propositura de ações eleitorais sancionadoras, descabe traçar paralelos rígidos com a incidência do instituto no Direito Civil. Na verdade, o nomen iuris deve ser visto com reservas, sendo certo que o que mais interessa é que se compreenda a finalidade e a abrangência da fixação de um prazo peremptório para o ajuizamento das ações.

Com efeito, a decadência em Direito Eleitoral remete a um termo fatal, exíguo, para inaugurar controvérsias em torno das condutas que possam ter vulnerado determinado pleito. Conforme uníssona doutrina, esse é um elemento relevante para a estabilidade política, pois propicia encerrar o procedimento de escolha de mandatários, sabendo-se quais comportamentos atrairão o controle jurisdicional. Ou seja: a decadência para a propositura de ações eleitorais sancionadoras não fulmina a vontade de um sujeito, mas a sindicabilidade de condutas ilícitas.

No caso da AIJE, a data da diplomação é o limite a ser observado para que se postule à Corregedoria a investigação de práticas abusivas (REspEl nº 357-73, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJE de 03/08/2021). O marco decadencial evita que o armazenamento tático de informações e mesmo a manipulação de narrativas sobre fatos passados sirvam a estratégias de ocasião, definidas ao sabor de alianças, distensões e rupturas no curso dos mandatos e, vale dizer, do exercício da oposição. 

Identificada, portanto, a finalidade da estipulação de prazo decadencial para a propositura da AIJE, cumpre explicitar a abrangência das restrições que então decorrem para a atuação dos legitimados ativos.

Em primeiro lugar, é certo que nenhuma nova ação desse tipo poderá ser ajuizada após a data da diplomação.

Na hipótese do pleito presidencial de 2022, esse termo final recaiu em 12/12/2022. Registro que foram ajuizadas, no período, 31 AIJEs, sendo que 10 foram extintas, dada sua inviabilidade processual, e se encontram arquivadas. Seguem em curso 21 ações, das quais 5 foram ajuizadas contra a chapa eleita e 16 contra a chapa vencida no 2º turno. A presente ação foi proposta em 19/08/2022, assim, no que diz respeito a esse primeiro ponto, não há dúvidas de que a parte autora observou o prazo decadencial aplicável.

Em segundo lugar, a consumação da decadência impõe um limite específico às ações em curso: é vedado ampliar sua causa de pedir fática, já que isso representaria verdadeira burla à impossibilidade de instauração de procedimentos novos. Há, portanto, um reforço às regras processuais da estabilização da demanda, uma vez que a causa de pedir da AIJE não poderá ser alterada por vontade da autora ou consenso das partes se superado o termo final da decadência.

No entanto, conforme já se expôs em decisões neste feito (IDs 15848796 e 158554507), a estabilização da demanda não acarreta uma blindagem do debate processual contra fatos que possam influir no julgamento. Ao contrário. Há disposições legais expressas no sentido de que o magistrado leve em consideração fatos constitutivos, modificativos ou extintivos supervenientes ao ajuizamento (art. 493, CPC) e, ainda, fatos públicos e notórios e circunstâncias, ainda que não alegadas pelas partes, que preservem a lisura eleitoral (art. 23, LC nº 64/90).

Veja-se que, acima, destacou-se a diferença substancial entre um direito potestativo, autoevidente e inoponível, e a imputação de ilícito eleitoral, que somente produz seus efeitos legais se seus elementos fáticos e jurídicos forem demonstrados em juízo. Salientou-se que a decadência opera de formas distintas nas duas situações, sendo que, no caso da AIJE, obsta-se a sindicabilidade da conduta reputada abusiva. Simples constatar, da conjugação dessas duas assertivas, que uma AIJE proposta a tempo e modo dispara a apuração do abuso de poder que se extrai da narrativa apresentada, o que, considerada a finalidade do processo, comporta o exame de todos os fatos que possam influir no julgamento.

A condenação por abuso de poder, como é sabido, exige não apenas a comprovação do fato constitutivo, que compõe a causa de pedir. É indispensável analisar sua gravidade sob a ótica qualitativa – grau de reprovabilidade – e quantitativa – impacto no contexto de um pleito específico (AIJE nº 0601864-88, Rel. Min. Jorge Mussi, DJE de 25/9/2019). Também se deve avaliar se houve benefício a determinada candidatura, bem como a dimensão da responsabilidade de cada investigado, uma vez que a declaração de inelegibilidade tem natureza personalíssima.

Sendo assim, inegável que o debate na AIJE não é encapsulado em uma simples pergunta sobre a ocorrência de um fato constitutivo, a ser respondida apenas com “sim” ou “não”. Inúmeras questões concorrem para o exame da configuração do abuso de poder e para a fixação das consequências por sua prática.

Não se pode agregar a uma ação em curso uma causa de pedir inédita. Porém, sempre deverão ser examinados, inclusive de ofício, os ‘fatos simples, contíguos, instrumentais à formação da convicção necessária a julgar a demanda conformada pelas partes’ (PEREIRA, Luiz Fernando Casagrande. Demandas Eleitorais: estabilização, fatos novos e decadência. Resenha Eleitoral, Florianópolis, SC, v. 22, n. 1, pp. 17–34, 2018).

Por isso, não há como dar guarida à ideia de que a delimitação da causa de pedir provoca um recorte completo e irreversível na realidade fenomênica, gerando um descolamento tal dos fatos em relação a seu contexto que chega a impedir o órgão judicante de levar em conta circunstâncias que gradativamente se tornem conhecidas ou potenciais desdobramentos das condutas em investigação.

Na prática, diferenciar a indevida extrapolação da causa de pedir da salutar agregação de fatos e circunstâncias relevantes para o deslinde da causa é tarefa mais singela do que pode parecer à primeira vista. A jurisprudência do TSE tem se mostrado consistente nesse mister, alcançando um ponto de maturidade em que se tem contornos bem claros quanto aos efeitos da estabilização da demanda fática e jurídica.

Na sempre citada AIJE nº 1943-58 (Rel. Min. Herman Benjamin, Rel. designado Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJE de 12/09/2018), a causa de pedir fática dizia respeito ao uso de recursos oficialmente doados por partidos políticos à chapa Dilma-Temer em 2014 que, embora tivessem sido declarados à Justiça Eleitoral nos anos de 2012 e 2013, teriam fonte originária ilícita (reserva formada a partir de superfaturamento de contratos celebrados entre empreiteiras e a Petrobrás). O TSE, por maioria, recusou que a ação servisse para discutir fatos inteiramente novos, concernentes à imputação de ‘caixa 2’ (recursos de empresas doados à margem de contabilização oficial, para custeio de despesas eleitorais).

Estava-se, então, diante de dois ilícitos autônomos, com elementos próprios. As condutas eram, inclusive, dissociadas no tempo (doações recebidas e declaradas pelos partidos em 2012 e 2013 e que constituiriam uma reserva financeira, de um lado, e ‘caixa 2’ de campanha em 2014, de outro). Os fatos posteriores não se apresentavam como desdobramentos dos primeiros, tampouco serviam para adensar ou corroborar a narrativa da petição inicial. Cada um dos episódios, por si, demandaria instrução própria, a fim de se concluir pela ocorrência ou não de abuso de poder econômico. Desse modo, consumada a decadência, não era possível inserir na ação em curso a segunda causa de pedir.

O TSE, em outro caso, reconheceu que o tribunal regional violou os limites da demanda estabilizada, não sob a ótica dos fatos, mas da capitulação jurídica. Isso porque, ajuizada representação para apurar captação ilícita de sufrágio (art. 41-A, Lei nº 9.504/97), proferiu-se condenação por captação ilícita de recursos (art. 30-A, Lei nº 9.504/97), que somente foi ventilada em alegações finais. Confira-se trecho da ementa (RO-El nº 0601788-58, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJE de 19/09/2022):

ELEIÇÕES 2018. RECURSO ORDINÁRIO. REPRESENTAÇÃO ELEITORAL. CANDIDATO AO CARGO DE DEPUTADO ESTADUAL. APREENSÃO DE VULTOSA QUANTIA, EM DINHEIRO, EM VEÍCULO UTILIZADO NA CAMPANHA ELEITORAL. AGENDA MANUSCRITA E SANTINHOS. ALEGAÇÃO DE NULIDADES. [...] ALTERAÇÃO DA CAUSA DE PEDIR. ACOLHIMENTO. RECURSO ORDINÁRIO PROVIDO.

1. Na origem, o MPE ajuizou representação, embasada no art. 41–A da Lei nº 9.504/1997, por captação ilícita de sufrágio em desfavor de Carlos Avalone Junior, eleito deputado estadual de Mato Grosso no pleito de 2018, e pugnou pela procedência do pedido a fim de que fossem aplicadas as sanções previstas no mencionado dispositivo legal.

2. O TRE/MT, rejeitando as preliminares arguidas, entendeu que não houve alteração da causa de pedir e julgou procedente o pedido formulado na representação para reconhecer que o representado incidiu na prática de captação ilícita de recursos, condenando–o à penalidade de cassação de seu mandato de deputado estadual, com fundamento no § 2º do art. 30–A da Lei nº 9.504/1997. Decretou, ademais, a perda dos valores apreendidos em favor da União.

[...]

6. No caso, o MPE, verificando não haver elementos probatórios que denotassem a prática da captação ilícita de sufrágio (art. 41–A da Lei nº 9.504/1997), pugnou, em alegações finais, pela condenação pela prática do ilícito descrito no art. 30–A da Lei das Eleições.

[...]

8. Embora o Enunciado nº 62 da Súmula do TSE estabeleça que ‘[...] os limites do pedido são demarcados pelos fatos imputados na inicial, dos quais a parte se defende, e não pela capitulação legal atribuída pelo autor’, no caso, houve uma verdadeira alteração do ilícito imputado ao recorrente.

[...]

10. Modifica a causa de pedir, afrontando–se o disposto no art. 329 do CPC, o pedido do autor da representação, formulado em alegações finais, para condenar o réu com base nas acusações de captação e gastos ilícitos de recursos na campanha eleitoral, consistente na movimentação de recursos fora da conta de campanha, sem a identificação da origem, na omissão de despesa com pessoal na prestação de contas e na extrapolação do limite de gastos, condutas estas passíveis de atrair a incidência de eventual sanção prevista no art. 30–A da Lei nº 9.504/1997.

[...]

(Sem destaques no original.)

Ambos os precedentes acima referidos foram lembrados pelos investigados ao pedir que fosse reconsiderada a decisão que declarou a pertinência ao feito da minuta de decreto de Estado de Defesa cujo original foi apreendido pela Polícia Federal na residência de Anderson Torres – ex-Ministro da Justiça e Segurança Pública do governo de Jair Bolsonaro – durante diligência determinada pelo Ministro Alexandre de Moraes no âmbito do Inquérito nº 4879, que tramita no STF.

No entanto, não lhes assiste razão.

Sob a ótica da causa de pedir jurídica, não houve qualquer inovação no caso, em que se apura abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação. Portanto, o segundo precedente citado pelos investigados não guarda relação com o cerne da decisão ora questionada, sendo inservível ao pedido de reconsideração.

Sob o ponto de vista dos fatos que compõem a causa de pedir, o documento revelado em 12/01/2023 se conecta às alegações iniciais da parte autora, no sentido de que o discurso proferido por Jair Messias Bolsonaro no encontro com embaixadores em 18/07/2022 era parte da estratégia de campanha consistente em lançar graves e infundadas suspeitas sobre o sistema eletrônico de votação.

De se notar que o fato constitutivo da imputação (evento e discurso ocorridos em 18/07/2022) é incontroverso. As partes disputam a narrativa referente ao contexto em que se insere o episódio. Esses apontamentos constaram da decisão de saneamento e organização do processo.

Em primeiro lugar, referida decisão contemplou capítulo em que foram criteriosamente delimitadas as questões de fato sobre as quais recairia a prova, prestigiando-se a estabilização da demanda e a racionalidade da iniciativa probatória. Desde então, mencionei que a melhor técnica processual, refletida na doutrina e em precedente do TSE, indica a imperatividade de que sejam admitidas à discussão, na AIJE, alegações de fato que possuam correlação com a demanda estabilizada. Transcrevo trecho:

[...]

Passei, então, à delimitação da controvérsia submetida a juízo nesta AIJE. Nessa etapa, salientei que são incontroversos: a) a realização do evento em que o então Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, dirigiu-se a embaixadores de países estrangeiros para apresentar sua visão sobre o sistema eletrônico de votação brasileiro; b) o teor do discurso proferido; c) a transmissão do evento pela TV Brasil e pelas redes sociais do primeiro representado. Pontuei, em seguida, que a matéria controvertida diz respeito ao contexto desse ato, conforme se lê abaixo:

‘A controvérsia fática recai sobre as circunstâncias em que a reunião foi realizada e em que ocorreu sua divulgação nas redes.

O autor afirma que o primeiro réu, atuando com desvio de finalidade, utilizou-se do encontro com chefes de missões para atacar a integridade do processo eleitoral, especialmente disseminando “desordem informacional” relativa ao sistema eletrônico de votação e fazendo insinuações sobre a conduta de Ministros que presidiram o TSE. Além disso, argumenta que o discurso tem aderência à estratégia de campanha do candidato à reeleição para mobilizar suas bases por meio de fatos sabidamente falsos, devendo-se levar em conta que a transmissão pelas redes sociais fez com que a mensagem chegasse ao eleitorado.

De sua parte, os investigados refutam qualquer relação entre o evento e o pleito de 2022. Defendem que a reunião se ateve à sua finalidade pública, uma vez que, segundo sua narrativa, o Presidente da República, no exercício da liberdade de expressão, expôs seu ponto de vista sobre o sistema de votação para convidados que nem mesmo eram eleitores. Ressaltam que a fala fez parte de um diálogo institucional sobre tema de interesse público, devendo ser lida em cotejo com anterior evento do TSE (em que o Ministro Edson Fachin, então seu Presidente, se dirigiu a membros da comunidade internacional) e com nota em que o tribunal rebateu as afirmações feitas por Jair Bolsonaro na reunião do Palácio do Alvorada.’

(Sem destaques no original.)

Na decisão saneadora, também delimitei questões de direito e, em amplo prestígio ao contraditório, reafirmei o direito das partes de produzirem provas de fatos que possam ter influência na configuração jurídica da conduta descrita. Destaquei que, no caso do abuso de poder, o exame da gravidade da conduta, sob o ângulo qualitativo e quantitativo, reclama especial atenção para a análise de elementos contextuais:

‘5. Delimitação das questões de direito

Embora seja de rigor afirmar que o réu se defende dos fatos e não da qualificação jurídica dada a estes, é certo que as particularidades das ações eleitorais exigem que, ao ter início a fase instrutória, tenha-se plena ciência das questões de direito que serão relevantes para o deslinde do feito. Isso porque, em Direito Eleitoral, uma mesma conduta pode ser capitulada sob a ótica de ilícitos diversos, com consequências distintas.

Tais ilícitos possuem elementos típicos próprios que influem na iniciativa probatória das partes. Por exemplo, o que é suficiente para demonstrar que foi realizada propaganda irregular, punível com multa mediana, pode não bastar para a condenação por conduta vedada ou por uso indevido de meios de comunicação. Do mesmo modo, e com especial interesse para a AIJE, cada modalidade abusiva possui características próprias, que devem ser levadas em conta ao longo da instrução.

No caso vertente, as teses jurídicas deduzidas pelo autor encontram-se bem delimitadas. Imputa-se aos investigados a prática de abuso de poder político, ante o alegado desvio de finalidade no exercício de suas funções de Presidente da República e no uso de bens públicos, e de uso indevido de meios de comunicação, que teria sido perpetrado pela utilização de redes sociais, inclusive de empresa pública, para difundir conteúdo sabidamente falso acerca do sistema eletrônico de votação.

Ao longo da exposição, o autor menciona ainda a violação aos arts. 37, § 1º da Constituição, 73, I, da Lei 9.504/97 e 9º-A da Res.-TSE 23.610/2019, que descrevem condutas passíveis, em tese, de se amoldar às práticas abusivas descritas no art. 22 da LC nº 64/90.

Ao refutar a configuração dos ilícitos em comento, os investigados, além de se oporem à ocorrência do desvio de finalidade e do uso das redes para divulgar fake news, afirmam que os fatos não são graves o suficiente para afetar os bens jurídicos tutelados pela AIJE. Em particular, alegam que a publicação da nota do TSE, com ampla repercussão midiática, teria neutralizado eventuais impactos da fala dirigida pelo primeiro investigado aos embaixadores.

Assim, a gravidade da conduta, sob o ângulo qualitativo (grau de reprovabilidade) e quantitativo (repercussão no contexto do pleito específico) é ponto controvertido cuja análise deverá ser balizada pelos elementos probatórios coligidos aos autos.’

(Sem destaques no original.)

Todos esses aspectos voltaram a ser abordados na decisão ora impugnada, sendo prudente transcrever, na íntegra, os fundamentos que explicam a correlação entre a causa de pedir e os fatos supervenientes trazidos ao processo:

‘Tem-se, em síntese, que as partes controvertem sobre: a) a relação entre o evento realizado em 18/07/2022 e as eleições ocorridas no mesmo ano; b) caso estabelecida essa correlação, a gravidade da conduta, no aspecto qualitativo (o discurso em si) e quantitativo (repercussão no contexto eleitoral).

Com base na fixação da matéria fática e jurídica controvertida, já se deferiu, nos presentes autos, prova testemunhal requerida pela parte ré. Note-se que essa prova foi pleiteada, a despeito de se ter acesso à íntegra do discurso proferido por Jair Bolsonaro, porque os investigados sustentaram a relevância de expor outros fatores relativos à dinâmica do evento, tais como ‘falas e comentários dos presentes’ e, ainda, a ótica de autoridades que desempenhavam ‘relevantes funções’ no governo.

A justificativa mostrou aderência à tese defensiva que se dirige ao aspecto qualitativo da gravidade, uma vez que, segundo os investigados, as circunstâncias do evento, a serem relatadas pelas testemunhas, demonstrariam a sua regularidade, vez que estaria inserido em um ‘diálogo institucional’ entre o TSE e o Poder Executivo. Desse modo, deferi a prova, consignando que ‘[n]a presente ação, constata-se que a disputa de narrativas tem por objeto o contexto do evento (reunião com embaixadores) e, não, sua existência.’

De igual forma, constato que os fatos ora trazidos a juízo pela parte autora possuem aderência aos pontos controvertidos, em especial no que diz respeito à correlação do discurso com a eleição e ao aspecto quantitativo da gravidade.

Conforme se observa, a tese da parte autora, desde o início, é a de que o discurso realizado em 18/07/2022 não mirava apenas os embaixadores, pois estaria inserido na estratégia de campanha do primeiro investigado de “mobilizar suas bases” por meio de fatos sabidamente falsos sobre o sistema de votação. Na petição ora em análise, alega que a minuta de decreto de Estado de Defesa, ao materializar a proposta de alteração do resultado do pleito, ‘densifica os argumentos que evidenciam a ocorrência de abuso de poder político tendente promover descrédito a esta Justiça Eleitoral e ao processo eleitoral’.

Constata-se, assim, a inequívoca correlação entre os fatos e documentos novos e a demanda estabilizada, uma vez que a iniciativa da parte autora converge com seu ônus de convencer que, na linha da narrativa apresentada na petição inicial, a reunião realizada com os embaixadores deve ser analisada como elemento da campanha eleitoral de 2022, dotado de gravidade suficiente para afetar a normalidade e a legitimidade das eleições e, assim, configurar abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação.’

(Sem destaques no original.)

A decisão impugnada, portanto, se mantém por seus próprios fundamentos.

No trâmite das ações originárias que se encontram sob minha relatoria na CGE, tenho conferido máxima primazia à coerência e à não-surpresa. Cabe, então, salientar que os investigados, nesta e em outras AIJEs em trâmite, têm sustentado que estabilização da demanda, associada à consumação da decadência, torna os procedimentos impermeáveis à tentativa das partes autoras de trazer novos fatos ao debate.

É o que se passa, por exemplo, na AIJE nº 0601002-78, em que invocam a tese para impedir que seja levado em consideração comunicado da empresa Stara, de propriedade do corréu Gilson Trennepohl, contendo indícios de assédio eleitoral, pois entendem ausente sua correlação com o fato de o empresário gaúcho ter atuado para enviar tratores ao desfile do Bicentenário da Independência, em Brasília. Também na AIJE nº 0601988-32, que versa sobre atos atentatórios ao sistema eleitoral brasileiro, esforçam-se os investigados para impedir que fatos notórios, como os atos terroristas de 08/01/2023, sejam conhecidos como elementos de persuasão da parte autora.

Essa estratégia de defesa, como facilmente se observa, busca um esvaziamento da legítima vocação da AIJE para tutelar bens jurídicos de contornos muito complexos, como a isonomia, a normalidade eleitoral e a legitimidade dos resultados. O adequado controle jurisdicional na matéria impõe ao órgão julgador perquirir circunstâncias relevantes, fatos públicos e notórios, provas e demais elementos que possibilitem, criteriosamente, avaliar se ocorreu a violação à legislação eleitoral e, em caso positivo, se houve gravidade (quantitativa e qualitativa) e quem foram os responsáveis.

Essa é a essência do procedimento previsto no art. 22 da LC nº 64/90 e, se é verdade que o CPC se aplica supletiva e subsidiariamente para conferir máxima efetividade ao contraditório e a ampla defesa, também é certo que técnicas processuais de racionalização, como a estabilização da demanda, não podem ser manejadas para frustrar o objetivo do processo de promover a efetiva proteção a bens jurídicos basilares para a democracia.

Nessa reflexão, cabe constatar, não sem tristeza, que os resultados das eleições presidenciais de 2022, embora fruto legítimo e autêntico da vontade popular manifestada nas urnas, se tornaram alvo de ameaças severas. Passado o pleito, a diplomação e até a posse do novo Presidente da República, atos desabridamente antidemocráticos e insidiosas conspirações tornaram-se episódios corriqueiros. São armas lamentáveis do golpismo dos que se recusam a aceitar a prevalência da soberania popular e que apostam na ruína das instituições para criar um mundo de caos onde esperam se impor pela força.

A infeliz constatação é que, embora seja de rigor afirmar que a diplomação encerra o processo eleitoral, um clima de articulação golpista ainda ronda as Eleições 2022. Assistimos a atos de terrorismo que atingiram seu ápice nos ataques à sede dos 3 Poderes da República em 08/01/2023. Indícios de desobediência e falta de comando no seio das forças de segurança, bem como de atos e omissões graves de agentes públicos seguem se acumulando. Somam-se o plano para espionar e gravar sem autorização conversa do Presidente do TSE, a ocultação de relatórios públicos que atestavam a lisura das eleições e o patrocínio partidário de “auditoria paralela” e de outras aventuras processuais levianas, tudo para manter uma base social em permanente estado de antagonismo com a Justiça Eleitoral, sem qualquer razão plausível.

Os acontecimentos se sucedem de forma vertiginosa. Mas o devido processo legal tem, entre suas virtudes, a capacidade de decantar os fatos e possibilitar seu exame analítico. É isso que deve guiar a instrução das AIJEs, pois é central à consolidação dos resultados das Eleições 2022 averiguar se esse desolador cenário é desdobramento de condutas imputadas a Jair Messias Bolsonaro, então Presidente da República, e a seu entorno. Esse debate não pode ser silenciado ou inibido por uma artificial separação das causas de pedir nas diversas AIJEs da realidade fenomênica em que se inserem.

Menciono que os temas das ações propostas são de conhecimento público. Não há segredo de justiça. As decisões de admissibilidade, de concessão de tutela inibitória e de saneamento, bem como outras de caráter interlocutório, têm contemplado cuidadoso delineamento das matérias em discussão. Por isso, reafirmo que se mostra tarefa simples, desde que adotadas premissas técnicas adequadas, observar se, em um determinado caso, estamos diante de fatos e documentos a serem admitidos ao debate processual com base nos arts. 435 e 493 do CPC e 23 da LC nº 64/90, ou se, ao contrário, uma ação em curso vem a ser utilizada como receptáculo de demanda inteiramente nova.

Por tais motivos, tendo em vista o prestígio à celeridade, à economia processual e à boa-fé objetiva, entendo prudente que, especificamente no que diz respeito às AIJEs relativas às eleições presidenciais de 2022, seja fixado um parâmetro seguro e objetivo que dispense, a cada fato ou documento específico, uma nova decisão interlocutória que revolva todos os fundamentos ora expostos.

Com efeito, a tese jurídica apresentada pelos investigados – no sentido de que a consideração de fatos e circunstâncias que já não tenham sido descritos na petição inicial, especialmente se posteriores a 12/12/2022, e a admissibilidade de documentos correlatos violam a decadência e a estabilização da demanda – consiste em interpretação profundamente equivocada sobre os institutos mencionados. Pertinente, então, sintetizar as razões para que seja refutada, por meio de orientação a ser aplicada a situações semelhantes.

Assim, a estabilização da demanda e a consumação da decadência não impedem que sejam admitidos no processo e considerados no julgamento elementos que se destinem a demonstrar desdobramentos dos fatos originariamente narrados, a gravidade (qualitativa e quantitativa) da conduta que compõe a causa de pedir ou a responsabilidade dos investigados e de pessoas do seu entorno, tais como: a) fatos supervenientes à propositura das ações ou à diplomação dos eleitos, ocorrida em 12/12/2022; b) circunstâncias relevantes ao contexto dos fatos, reveladas em outros procedimentos policiais, investigativos ou jurisdicionais ou, ainda, que sejam de conhecimento público e notório; e c) documentos juntados com base no art. 435 do CPC.

Reafirma-se que essa orientação diz respeito à admissibilidade dos elementos citados ao debate processual, em cotejo com alegações do autor. Não se estabelece, com isso, juízo prévio sobre o peso que venham a ter na análise do mérito, ocasião na qual serão cotejadas todos os argumentos e provas produzidos pelas partes.

Ante o exposto, rejeito as questões prejudiciais formuladas pelos investigados e, por conseguinte, indefiro o pedido de reconsideração da decisão ID 158554507”.

(Destaques no original.)

Ao definir os pontos acima referidos, o TSE pôde resolver, antes do início da instrução, questões que afetavam os limites nucleares da controvérsia fática. Relembre-se que tema similar permeou o julgamento da AIJE nº 1943-58 (Rel. Min. Herman Benjamin, Rel. designado Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJE de 12/09/2018), relativa às Eleições 2014, mas somente foi examinado quando o feito havia sido levado para julgamento de mérito. O Colegiado teve que, ao mesmo tempo, examinar a matéria prejudicial e votar o mérito, caminho que trouxe algumas naturais dificuldades e que tornou a decisão menos compreensível para a sociedade em geral.

Enfrentando esse grande desafio, o TSE, à época, logrou fixar balizas essenciais a respeito dos limites objetivos da demanda. Com o aprendizado propiciado por esse julgamento precedente, pode-se, nesta AIJE relativa às Eleições 2022, aprimorar os trabalhos da relatoria. As questões pendentes, que poderiam levar a um ou a outro rumo na tramitação, foram equacionadas de imediato, mediante decisão colegiada amparada pela preclusão pro judicato.

Isso favoreceu que a instrução transcorresse de forma objetiva e organizada. As audiências puderam ser realizadas sem dúvidas quanto à utilidade das inquirições, em respeito ao tempo de todos os envolvidos e – diga-se – aos custos operacionais desses atos. As partes e o MPE puderam concentrar suas alegações em temas sabidamente relevantes para o julgamento.

A despeito de todo o exposto, a defesa persistiu na alegação de ampliação da causa de pedir, sendo notória a probabilidade de que esse ponto fosse invocado em grau de recurso com o objetivo de anular o processo. Por isso, é importante enfatizar que a admissibilidade da minuta de decreto de estado de defesa não confronta, não revoga e não contraria a jurisprudência do TSE firmada nas Eleições 2014 a respeito dos limites objetivos da demanda.

Na sempre citada AIJE nº 1943-58, relativa a 2014 (Rel. Min. Herman Benjamin, Rel. designado Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJE de 12/09/2018), a causa de pedir fática dizia respeito a doações recebidas por partidos políticos, declarados à Justiça Eleitoral nos anos de 2012 e 2013, que teriam fonte ilícita e, alegadamente, teriam permitido a esses partidos ao longo dos anos assumir um poderio econômico desproporcional, com reflexos no pleito de 2014. O TSE, por maioria, recusou que essa ação servisse para discutir fatos concernentes à imputação de uso de “caixa 2” para custeio de despesas eleitorais.

Estava-se, então, diante de dois ilícitos autônomos, com elementos próprios. Os fatos posteriores não foram apresentados como desdobramentos dos primeiros, tampouco serviam para adensar ou corroborar a narrativa da petição inicial. Consumada a decadência, o TSE entendeu que não era possível inserir na ação em curso a segunda causa de pedir, que abriria uma nova frente de investigação.

No feito ora em julgamento, conforme já repisado, basta a simples leitura da petição inicial para verificar que o autor imputou aos investigados uma estratégia político-eleitoral assentada em grave desinformação a respeito das urnas eletrônicas e da atuação do TSE. Essa estratégia teria sido posta em prática na reunião de 18/07/2022, mediante uso de bens e serviços públicos e com ampla cobertura midiática.

Ao sustentar que o fato narrado na petição inicial é grave o suficiente para caracterizar abuso, o autor diz, expressamente: “por figurar como Chefe de Estado, as falas do Senhor Jair Messias Bolsonaro têm capacidade de ocasionar uma espécie de efervescência nos seus apoiadores e na população em geral”, notadamente em “matéria de alta sensibilidade perante o eleitorado” (ID 157940943).

A linha de raciocínio foi exposta de forma cristalina e foi consignada na decisão de organização e saneamento do processo, proferida em 08/12/2022. Todos os elementos admitidos aos autos, fossem alegações ou provas, passaram por análise de pertinência com base na demanda já estabilizada.

A minuta de decreto que estava em poder do ex-Ministro da Justiça, na qual era descrito um estado de defesa “no TSE”, justificado por suposta fraude nos resultados da eleição presidencial de 2022, somente veio a ser apreendida em 12/01/2023. O autor afirmou que o episódio evidenciaria os efeitos concretos daquele estado de ânimo coletivo, de descrédito injustificado às urnas, incitado em grande parte pela estratégia de desinformação do primeiro investigado, exercitada na reunião de 18/07/2022.

O argumento é suficiente para demonstrar a correlação entre o fato superveniente e a causa de pedir, nos exatos limites da demanda, que estavam especificados mais de um mês antes.

Portanto, não se alterou a orientação traçada por este Tribunal. O que se tem são duas situações totalmente distintas. No pleito de 2014, o TSE recusou inserir, em uma AIJE em curso, uma causa de pedir inteiramente autônoma. No pleito de 2022, a Corte admitiu que possa ser discutido nesta AIJE um fato posterior ao ajuizamento da ação que foi suscitado para demonstrar a gravidade da conduta narrada na petição inicial. Se o autor tem ou não razão, é tema para examinar no mérito, e não na fase de admissibilidade da prova, que ocorre à luz das alegações das partes (in statu assertionis) relevantes para a solução da controvérsia.

Em síntese, não houve ampliação da causa de pedir. Apenas se preservou a legítima vocação da AIJE para tutelar bens jurídicos de contornos muito complexos, como a isonomia, a normalidade eleitoral e a legitimidade dos resultados. A reunião de 18/07/2022, no Palácio da Alvorada, não é uma fotografia afixada na parede, mas um fato inserido em um contexto. É dentro desse contexto, bem descrito pela petição inicial, que deve ser examinada. Esse foi o entendimento assentado em 14/02/2023, à unanimidade.

Não havendo, portanto, ensejo ao reexame da alegada violação à estabilidade da demanda, não conheço da preliminar.

Se outro for o entendimento da maioria do colegiado, nesta assentada, com os fundamentos expostos, rejeito-a.

3. Preliminar de ilegitimidade passiva ad causam do segundo investigado (suscitada pelos investigados)

As alegações finais foram utilizadas para veicular questão preliminar inédita até o momento: a ilegitimidade passiva do segundo investigado. A defesa sustenta que a ação deve ser extinta em relação a Walter Souza Braga Netto, “diante da ausência de imputação pelo Autor da respectiva participação, direta ou indireta, nos atos questionados, inviabilizando-se, assim, a aplicação da (personalíssima) sanção de inelegibilidade na espécie (por fato de terceiro), única possível de aplicação frente ao insucesso da chapa no pleito eleitoral presidencial de 2022”.

Esta AIJE foi proposta em 19/08/2022, quando a chapa investigada concorria à eleição presidencial. A cassação de registro – ou de eventual diploma, caso aquela se sagrasse vencedora – era efeito cabível para a hipótese de improcedência e, por si, justificou a inclusão do candidato a Vice-Presidente no polo passivo, independentemente de lhe ser imputada participação direta no evento.

Aplica-se à espécie, portanto, a Súmula nº 38/TSE, cujo enunciado estabelece que “[n]as ações que visem à cassação de registro, diploma ou mandato, há litisconsórcio passivo necessário entre o titular e o respectivo vice da chapa majoritária”.

Ainda que a chapa investigada tenha sido derrotada, não há perda da condição de legitimado passivo, que decorre do vínculo formado entre os candidatos para o específico pleito. O interesse processual também se conserva. Foi o que assegurou ao segundo investigado deduzir alegações que considerasse pertinentes, o que lhe permitiria exercer ampla defesa, caso apontado algum fato superveniente em que pudesse estar envolvido.

É certo que há julgados desta Corte em que não se extinguiram ações sancionatórias propostas sem a inclusão do candidato a vice no polo passivo, no caso de chapa vencida e quando a ele não se imputava a conduta ilícita. Todavia, a razão para tanto é que, em tais casos, o vício na formação do polo passivo seria incapaz de comprometer o resultado útil do processo. Desses precedentes não se extrai a conclusão de que uma ação regularmente proposta contra todos os litisconsortes necessários tenha que sofrer extinção parcial à luz de posterior análise do resultado da instrução e do insucesso eleitoral da chapa.

Por fim, tendo em vista o momento em que a alegação veio a ser formulada, bem como a forma como tangencia a análise do resultado da instrução, impende lembrar que o art. 488 do CPC instituiu a primazia do julgamento de mérito em situações como a presente, indicando que “[d]esde que possível, o juiz resolverá o mérito sempre que a decisão for favorável à parte a quem aproveitaria eventual pronunciamento nos termos do art. 485”, que se refere justamente à extinção sem resolução do mérito.

Em síntese, após percorridas todas as etapas processuais e apresentadas sucessivas petições em nome do segundo investigado, litisconsorte necessário na ação, sem que se cogitasse de sua ilegitimidade, não há amparo processual para extinguir parcialmente a ação sem resolução do mérito. Caso acolhida a versão da defesa, haverá ensejo para julgar o pedido improcedente em relação ao candidato a Vice-Presidente, e, não, para excluí-lo do polo passivo.

Com essas considerações, rejeito a preliminar.

4. Preliminar de nulidade processual decorrente da determinação de diligências complementares (suscitada pelos investigados)

Os investigados afirmam que, por este Relator, foi proferida decisão “ilegal e anti-isonômica”, em que se determinou a realização de diligências complementares.

Isso decorreria, em sua visão, dos seguintes vícios:

a) inobservância de balizas fixadas na ADI nº 1082/STF para a prática de atos instrutórios pelo Corregedor, estando ausente fundamentação que justificasse a complementação de provas para “suprir atuação deficiente do autor”;

b) violação ao contraditório substancial, decorrente da fixação de prazo de três dias para manifestação;

c) indevida “delegação de poder instrutório” a adversário político dos investigados, que se consubstanciaria na requisição de documentos à Casa Civil; e

d) afronta à segurança jurídica, tendo em vista que a regra do art. 23 da LC nº 64/1990 teria sido utilizada para determinar a realização de diligências que não guardariam qualquer relação com a causa de pedir originária, o que promoveria nova ampliação objetiva da demanda.

Conforme já mencionado, consolidou-se como orientação plenária, aplicável às AIJE de 2022, que são admissíveis ao processo, para serem considerados no julgamento, elementos que se destinem a demonstrar os desdobramentos dos fatos originariamente narrados na ação, a gravidade (qualitativa e quantitativa) da conduta que compõe a causa de pedir ou a responsabilidade dos investigados e de pessoas do seu entorno.

Essa diretriz amparou a segura aplicação do art. 23 da LC nº 64/1990 como regra de instrução, conjugada ao art. 22, VI a IX, da mesma lei. Desse modo, as diligências complementares, determinadas tanto de ofício quanto a requerimento dos réus, tiveram por base o discurso proferido pelo primeiro investigado em 18/07/2022 e as circunstâncias da realização e da divulgação do evento, dialogando-se com elementos já produzidos na primeira fase da instrução.

A determinação de diligências complementares decorre de poderes legalmente atribuídos ao relator na condução do processo. Por isso, ainda não havia sido submetida ao Plenário. Assim, assiste aos investigados a faculdade de, nas alegações finais, requerer o exame pelo colegiado, como fizeram.

Não obstante, todos os argumentos ora invocados para suscitar a nulidade da decisão constaram de agravo interno (ID 158797358), que foi conhecido como pedido de reconsideração e rejeitado monocraticamente. Por esse motivo, principio por transcrever a fundamentação utilizada para rechaçá-los (ID 158811502):

“O pedido abarca, em parte, pontos já fulminados pela preclusão temporal, lógica e consumativa. É que, conforme relatado, a admissibilidade da juntada da minuta de decreto de estado de defesa e o entendimento pela inexistência de violação à estabilização da demanda ou de alteração da causa de pedir são pontos decididos anteriormente e referendados em Plenário. Não há espaço para rediscutir esses pontos e, menos ainda, para questionar o prazo que havia sido assinalado para a manifestação dos investigados a respeito do documento.

Com efeito, os três dias assinalados – que, diga-se, são superiores ao prazo de dois dias previsto no art. 44, § 4º da Res.-TSE nº 23.608/2019 para manifestação sobre documentos juntados no curso da instrução nas representações especiais – foram devidamente utilizados pelos réus para se contrapor à força probante do documento e, ainda, para formular pedido de reconsideração. Silente a parte à época, não há ensejo, a essa altura, para reivindicar que o prazo fosse maior.

Além disso, a pretensão de que fosse observada simetria com o prazo de contestação, concedendo cinco dias para falar sobre o documento com fundamento no art. 329 do CPC, apenas denota a insistência na tese, já refutada, de que teria havido ampliação da causa de pedir.

Os réus também se insurgem contra as balizas fixadas para a aplicação dos arts. 435 e 493 do CPC em conjugação com o art. 23 da LC nº 64/1990, e que foram referendadas pela Corte. Rememoro que as diretrizes aprovadas pelo colegiado se assentam na premissa de que ‘a estabilização da demanda não acarreta uma blindagem do debate processual contra fatos que possam influir no julgamento’, uma vez que “há disposições legais expressas no sentido de que o magistrado leve em consideração fatos constitutivos, modificativos ou extintivos supervenientes ao ajuizamento (art. 493, CPC) e, ainda, fatos públicos e notórios e circunstâncias, ainda que não alegadas pelas partes, que preservem a lisura eleitoral (art. 23, LC nº 64/90). [...]

Os investigados afirmam que a orientação redunda em tratamento anti-isonômico às partes, pois, em sua visão, teria sido franqueada à autora a juntada até mesmo de “provas ainda nem produzidas, de fatos desdobráveis ad aeternum, e que não orientaram a linha defensiva vertida na contestação”. A assertiva tem conotação incompatível com o modo de condução deste processo, uma vez que todas as decisões e despachos evidenciam o extremo rigor na manutenção da ordem e da regularidade da tramitação.

A metodologia aplicada às AIJEs das Eleições 2022 envolve uma rotina de saneamento e de diálogo constante, resultando em determinações judiciais delimitadas com precisão, fundamentadas de forma exauriente e que permitem às partes compreender cada passo do trâmite processual. Nesse sentido, o que se definiu em Plenário é a adequação, em tese, da admissibilidade não apenas de fatos supervenientes que constituam desdobramentos da causa de pedir, como também elementos que demonstrem a gravidade da conduta ou a responsabilidade do investigado e de pessoas em seu entorno.

Essa fórmula diz respeito à análise da pertinência da prova à causa de pedir. Não está indicado em qualquer ponto que a partir dela se permitirá um prolongamento ad aeternum da instrução, pois não foram abandonados outros parâmetros que devem ser conjugados na organização da atividade probatória, inclusive a preclusão.

Não há também respaldo para concluir que essa fórmula privilegia a parte autora. Ao réu também importa ter a oportunidade de trazer ao debate processual fatos que digam respeito aos desdobramentos da causa de pedir, à gravidade da conduta e à responsabilidade do investigado e de pessoas em seu entorno. Tanto assim que os investigados, neste feito, requereram a juntada de parecer da PGR, produzido em março de 2023, que indicaria a ausência de indícios de prática de crime em decorrência do discurso proferido por Jair Messias Bolsonaro na reunião de 18/07/2022.

[...]

Passando-se aos argumentos propriamente relacionados ao conteúdo da decisão que determinou, de ofício, a realização de diligências complementares, constata-se que o renitente inconformismo dos agravantes com os contornos conferidos à aplicação do art. 23 da LC nº 64/1990 se somou ao desagrado com a aplicação dos incisos VI a IX do art. 22 da mesma lei, para conduzir a afirmações hiperbólicas que desenhariam um cenário de parcialidade do juízo.

Primeiramente, cabe rememorar que a atuação do Corregedor para determinar diligências de ofício ou a requerimento das partes, posteriormente à audiência de instrução é prevista expressamente no procedimento da AIJE. A decisão questionada pelos investigados foi bastante explícita a esse respeito, conforme se lê do trecho a seguir transcrito:

‘Nos termos dos incisos VI a IX do art. 22 da LC nº 64/1990, cabe ao relator da AIJE assegurar, de ofício ou a requerimento das partes, o esgotamento da instrução probatória, mediante requisições, oitivas e outras providências que atendam ao interesse público na elucidação de possíveis práticas abusivas. In verbis:

Art. 22. Omissis

[...]

VI - nos 3 (três) dias subsequentes [à inquirição de testemunhas], o Corregedor procederá a todas as diligências que determinar, ex officio ou a requerimento das partes;

VII - no prazo da alínea anterior, o Corregedor poderá ouvir terceiros, referidos pelas partes, ou testemunhas, como conhecedores dos fatos e circunstâncias que possam influir na decisão do feito;

VIII - quando qualquer documento necessário à formação da prova se achar em poder de terceiro, inclusive estabelecimento de crédito, oficial ou privado, o Corregedor poderá, ainda, no mesmo prazo, ordenar o respectivo depósito ou requisitar cópias;

IX - se o terceiro, sem justa causa, não exibir o documento, ou não comparecer a juízo, o Juiz poderá expedir contra ele mandado de prisão e instaurar processo por crime de desobediência;

(Sem destaques no original.)

Essa atividade possui caráter complementar e exige rigorosa avaliação quanto à utilidade processual das diligências, de modo a que, em prestígio à celeridade, a fase instrutória se prolongue somente pelo tempo necessário a produzir elementos aptos a elucidar pontos fáticos e jurídicos que constituam objeto de controvérsia relevante.’

Teve-se, então, o cuidado de, em conformidade à melhor técnica processual, assegurar que a regra de julgamento com base em fatos notórios e circunstâncias não alegadas pelas partes (art. 23 da LC nº 64/1990) fosse necessariamente associada a uma regra de instrução (art. 22, VI a IX, da mesma lei). Ou seja: se é possível julgar com base naqueles elementos, é obrigatório que eles sejam previamente inseridos no processo, permitindo às partes e ao MPE se manifestarem a seu respeito e, quando for cabível, requererem provas. Reforça-se, com isso, a garantia de não-surpresa, em pleno respeito ao contraditório efetivo. O ponto foi assim desenvolvido:

‘Ademais, quanto à possibilidade da atuação de ofício, deve-se ter em vista que o art. 23 da LC 64/90, impõe que sejam considerados, para o deslinde dessa ação, "fatos públicos e notórios, [...] atentando para circunstâncias ou fatos, ainda que não indicados ou alegados pelas partes, mas que preservem o interesse público de lisura eleitoral". Esse dispositivo, conforme assentado no julgamento da ADI 1082 (Rel. Min. Marco Aurélio, DJe de 30.10.2014), tem sua constitucionalidade vinculada à necessária garantia do contraditório e ao adequado exercício do dever de fundamentação, de modo que, sendo os fatos e circunstâncias relevantes trazidos aos autos pelo magistrado, é indispensável conceder às partes oportunidade para se pronunciar a respeito.

Transcrevo trecho do voto do Relator, naquele feito, que elucida a questão:

[...] para garantir a imparcialidade do Estado e o direito das partes ao devido processo legal, mais segura do que a proibição rígida de produção de provas pelo magistrado é a intransigência concernente à necessidade de fundamentação de todas as decisões judiciais, de acordo com o estado do processo, bem como a abertura de oportunidade para as partes contraditarem os elementos obtidos a partir da iniciativa estatal. São a indispensabilidade de motivação e submissão ao contraditório, nesse caso, os fatores a afastarem o risco de parcialidade e a viabilizarem o controle, a conduzir a eventual reforma ou à detecção de nulidade do ato judicial.

(Sem destaques o original)

A orientação plenária firmada em 14.02.2023, já acima transcrita, confere delimitação ainda mais precisa ao equilíbrio entre interesse público na apuração de ilícitos, imparcialidade estatal e respeito ao devido processo legal. Conforme explicado, os limites objetivos da demanda abarcam os desdobramentos dos fatos originariamente narrados, a gravidade (qualitativa e quantitativa) da conduta que compõe a causa de pedir e a responsabilidade dos investigados e de terceiros, devendo-se atentar para as “circunstâncias relevantes ao contexto dos fatos, reveladas em outros procedimentos policiais, investigativos ou jurisdicionais ou, ainda, que sejam de conhecimento público e notório” (ID 158704139).’

Os investigados enxergaram na determinação de ofício das diligências complementares uma ‘indevida correção na deficiente atuação processual do Autor’, eis que seu objeto seriam provas que não foram pretendidas pelo investigante e que aportariam aos autos em momento tardio.

Não está caracterizada, porém, atuação tardia, mas, sim, medida ajustada perfeitamente ao momento que para ela foi previsto no art. 22, VI a IX da LC nº 64/1990, ou seja, após a audiência de instrução. Tampouco há ‘correção’ da atividade da parte autora, eis que é dever do Corregedor, à luz das provas produzidas até a audiência de instrução, avaliar se há diligências necessárias para o deslinde da controvérsia. Este é o comando legal que se impõe ao Relator da AIJE, e que foi estritamente cumprido.

Nesse sentido, após a avaliação do estágio processual do feito, constatou-se haver pontos de dúvida que poderiam ser dirimidos por diligências complementares. Isso porque os termos do discurso proferido por Jair Messias Bolsonaro na reunião de 18/07/2022 com os embaixadores de países estrangeiros e a prova oral produzida em razão de requerimento da parte ré suscitaram questões de relevo para o deslinde da controvérsia.

Por exemplo, na reunião, o primeiro investigado expressamente incumbiu o então Ministro das Relações Exteriores, Carlos França, a repassar o material da apresentação aos embaixadores, enfatizando ainda que o Ministro também poderia enviar a íntegra do inquérito da Polícia Federal em que, segundo o ex-Presidente, “um hacker falou que tinha havido fraude por ocasião das eleições”. Ocorre que Carlos França, ouvido como testemunha da defesa, negou o envio de material e declarou não ter participado de forma significativa do evento. As duas outras testemunhas da defesa também negaram envolvimento substancial na preparação ou realização da reunião, embora arroladas pelos réus por deterem “particular conhecimento” sobre aspectos da dinâmica do evento.

Nesse cenário, a pertinência da requisição da prova documental aos órgãos governamentais que foram encabeçados pelas testemunhas da defesa – destinada a aferir se tiveram, ou não o envolvimento que a princípio foi sugerido tanto pela fala de Jair Bolsonaro no dia do evento quanto pela justificativa de seu arrolamento – não representa qualquer desbordo dos poderes instrutórios do Relator. Há expressa previsão legal de que o Corregedor pode requisitar documentos de ofício, e assim foi feito. Acrescente-se que a diligência não foi determinada com vista a um resultado pré-definido e pode muito bem ser concluída, como sustentam os réus, com a inexistência de documentos a respeito.

Relembre-se que a orientação plenária fixada em 14/02/2023 contempla três eixos: a) desdobramentos dos fatos originariamente narrados; b) gravidade (qualitativa e quantitativa) da conduta que compõe a causa de pedir; e c) responsabilidade dos investigados e de pessoas de seu entorno. Por isso, não se sustentam as objeções dos investigados à juntada de cópias do IA 0600371-71 ou à atenção dada às lives protagonizadas pelo primeiro investigado em 2021 e expressamente referidas no discurso proferido por Jair Messias Bolsonaro no Palácio [da Alvorada] em 18/07/2022.

Os réus se mostraram especialmente afligidos pelo fato de que a requisição de documentos dirigida à Casa Civil será cumprida por Ministro nomeado pelo atual Presidente da República, que venceu a chapa encabeçada pelo primeiro investigado, no pleito de 2022. Chegam a prever uma “elástica atuação probatória prospectiva, em sua pasta e em quaisquer outros órgãos federais”, que, no momento da consolidação, permitirá “ao adversário político a engenhosa apresentação analítica de eventuais achados fortuitos”, congregados em ‘um relatório sujeito a toda sorte de subjetivismos’. A isso denominaram ‘delegação de poder instrutório a grupo político beneficiário de eventual procedência da ação’, o que seria mais um elemento a denotar a parcialidade na condução do processo.

Sabe-se, porém, que a requisição é o meio usual pelos quais os órgãos públicos compartilham entre si documentos que estão em seu poder, impondo-se aos agentes públicos responsáveis o dever de prestar informações completas, autênticas e fidedignas. Isso independe do grupo que se encontre no exercício do poder político e é, mesmo, inerente ao princípio republicano é à impessoalidade.

Governantes, ministros, secretários e demais servidores públicos devem zelar pela integridade dos documentos sob sua guarda e cumprir de forma escorreita a determinação judicial para exibi-los, não lhes sendo lícito usar da requisição como meio para beneficiar ou prejudicar um candidato. Essa obrigação se impõe aos integrantes do atual governo federal, como também se aplicaria se o ex-Presidente tivesse sido reeleito. Descabe partir da premissa de que, ante uma requisição judicial, agentes estatais deliberadamente adulterarão ou ocultarão documentos públicos, a fim de ludibriar o juízo e produzir benefício ilegal para uma das partes, em franco atentado à dignidade da Justiça, prática de improbidade e incursão em conduta criminosa.

Ademais, qualquer relatório informativo que acompanhe os documentos eventualmente compartilhados será submetido ao crivo do contraditório. As partes e o MPE terão a faculdade de apontar o valor que, entendem, deva ser dado às informações. A disputa narrativa, inerente ao devido processo legal, será assegurada. Vieses poderão ser contestados, e, no limite, caso se entenda por indício de falsidade ou ocultação, poderão ser solicitadas as medidas processuais cabíveis, e que reforçam o controle do correto desempenho das funções estatais. Essa dinâmica, que se aplica à sucessão do poder no menor dos municípios brasileiros, se nele tramitar ação que impute ilícito ao Prefeito que não se reelegeu, igualmente rege a AIJE ajuizada no contexto da disputa do mais alto cargo do Poder Executivo brasileiro.

A requisição não se dirige a um ‘grupo político’ e tampouco transfere poder instrutório a ser exercido com ‘toda sorte de subjetivismos’. Também irrelevante que à época dos fatos o atual Ministro Chefe da Casa Civil não estivesse no governo federal e não tenha pessoal ciência do que se passou. Aquela autoridade não foi intimada como testemunha. Foi oficiada para, exercendo seu papel de coordenação dos demais Ministérios (que foi bem descrito em juízo pela testemunha Ciro Nogueira, anterior ocupante do cargo), reunir a documentação oficial – pertencente ao Estado Brasileiro, e, não, a um ou outro governo – que, acaso existente, possa elucidar as circunstâncias da preparação, da realização e da divulgação do encontro do dia 18/07/2022.

Os réus asseveraram, ainda no que diz respeito à requisição dirigida ao Ministro-Chefe da Casa Civil, que a solicitação foi “genérica e abrangente”, disparando “a consulta a documentos de diversos órgãos governamentais e a consolidação unilateral e casuística de seus (pretendidos) achados”. É afirmação que não encontra eco na determinação, objetiva, de que sejam prestadas “informações consolidadas sobre a participação de órgãos do Governo Federal na preparação, realização e difusão do encontro realizado no Palácio [da Alvorada], em 18/07/2022”. O objeto está perfeitamente delimitado e o êxito da incumbência somente depende de existir devida catalogação documental nos órgãos potencialmente envolvidos e de a diligência ser cumprida de forma eficiente.

Do mesmo modo, não há como interpretar a referência à necessária consolidação de documentos pela Casa Civil para envio à CGE como “prerrogativa de realização de verdadeira devassa, em arquivos federais”, que “abre ensejo à edição conveniente de elementos probatórios e viabiliza, inclusive, o descarte seletivo de provas desfavoráveis à sanha persecutória, com mácula indelével à imparcialidade na construção da materialidade da instrução probatória”. Simplesmente, descabe interpretar uma ordem judicial corriqueira, de compilação documental, como aval para o cometimento de ilegalidades com a gravidade descrita.

Certo é que todas essas elucubrações a respeito de supostos comportamentos ilegais são inservíveis para a finalidade de obstar a produção da prova. Em momento adequado, os réus terão oportunidade de se manifestar a respeito do resultado da diligência e, se assim entenderem, a vista do que concretamente for remetido a este juízo, e não a partir de ilações, poderão apontar deficiência, incompletude ou mesmo irregularidades graves no cumprimento da medida.

A determinação da oitiva de Anderson Torres foi classificada pelos réus como impertinente e inútil, pois a testemunha se encontra sob a custódia do Estado e amparada pelo princípio da não autoincriminação e, ainda, já teria prestado depoimento perante a Corregedoria sobre sua participação em live de 29/07/2021.

A primeira razão de insurgência se mostra inteiramente superada pelos fatos. Anderson Torres, embora sob custódia do Estado e tendo direito ao silêncio para não se autoincriminar, foi ouvido em juízo no dia 16/03/2023 e optou por responder a todas as perguntas que lhe foram dirigidas. A inquirição foi feita pelo juiz instrutor, pelos autores, pelos réus e pelo representante do MPE. O depoimento transcorreu em perfeita normalidade, observadas todas as garantias inerentes à condição da testemunha de investigado em inquérito criminal.

O segundo argumento, que sugere a repetição inútil de ato já realizado, desconsidera que a primeira oitiva de Anderson Torres na CGE ocorreu no âmbito de inquérito administrativo, sem a participação das partes que litigam nesta AIJE. A nova coleta do depoimento, em contraditório, com oportunidade para a testemunha falar livremente e corroborar declarações anteriores, retificá-las ou explicá-las, bem se sabe, não é um preciosismo, mas importante reforço na qualidade da prova.

O último aspecto a ensejar objeção pelos réus foi a advertência de que eventuais requerimentos de prova de caráter protelatório ensejariam multa por litigância de má-fé. Enxergaram na decisão “tom de verdadeira ameaça às partes” e ofensa ao legítimo exercício da advocacia.

Na verdade, na atual sistemática do CPC, a advertência prévia está longe de ser uma ameaça. Consiste em desdobramento dos princípios da cooperação e da não-surpresa e, em algumas situações, até mesmo em dever do magistrado (art. 77, IV e VI, c/c §1º; art. 78, § 1º). A descrição de conduta em tese passível de gerar sanção processual permite às partes orientar sua atuação com base em parâmetros prévios, evitando comportamentos discrepantes da boa-fé objetiva.

No caso, a advertência consistiu em indicar que as partes (não somente os réus, como também o autor) deveriam atentar para o caráter complementar das diligências a serem requeridas neste momento processual, demonstrando de forma objetiva a pertinência e a utilidade da prova, a partir da estrita vinculação aos fatos específicos que se pretende provar. Detalhou-se, ainda, que o caráter protelatório dos requerimentos poderia decorrer da formulação de requerimento abstrato ou amparado em justificativa amplíssima. Por fim, sem fixar valor prévio para eventual descumprimento, consignou-se que esta seria ‘proporcional à circunstância concreta’, caso praticado o ato protelatório.

O teor da advertência é compatível com a premissa da boa-fé objetiva e com os deveres das partes e de seus procuradores, em especial o de ‘não produzir provas e não praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou à defesa do direito’ (art. 77, III). Mais que isso, denota o rigor que se tem adotado nesta ação para assegurar que o procedimento siga fluxo regular, a salvo de turbações, pari passu com a máxima amplitude do contraditório. Não há, então, nenhuma colisão entre franquear o requerimento de prova e advertir a parte de que esta oportunidade, complementar, deve ser exercitada com especial atenção ao momento processual e de forma cuidadosa o suficiente para viabilizar o exame do requerimento de prova.

Mencione-se que, longe de produzir efeito intimidatório, a advertência parece ter contribuído para a necessária objetividade da formulação a respeito de diligências complementares de interesse dos réus. O tema será abordado no próximo tópico.

Os fundamentos declinados conduzem ao indeferimento do pedido de reconsideração, devendo ser mantidas tanto as diligências complementares determinadas de ofício quanto a advertência contra condutas protelatórias das partes, plenamente compatível com a fase atual.”

(Destaques no original.)

Acresço a esses fundamentos a observação de que, posteriormente à determinação das diligências de ofício, também foram realizadas outras, a pedido dos investigados. A defesa arrolou novas testemunhas e solicitou a requisição de procedimentos em curso. Essas provas se correlacionavam às lives de 2021, à minuta de decreto de estado de defesa e aos documentos oriundos do Inquérito Administrativo nº 0600371-71.

O resultado de toda a instrução processual somente confirma a estrita pertinência dos atos instrutórios praticados de ofício e a requerimento dos investigados. Com efeito, diante da vasta documentação e dos detalhados depoimentos que constam dos autos – todos relevantes para elucidar pontos da controvérsia –, impossível dar guarida à alegação de que qualquer prova produzida nesta AIJE tenha sido impertinente.

Ressalte-se, ademais, que nenhuma das especulações que embasaram o temor dos investigados de que haveria desvios no cumprimento da requisição dirigida à Casa Civil se confirmou. Os documentos públicos que atendiam aos parâmetros da solicitação foram fornecidos de forma adequada. A Casa Civil não emitiu sobre eles qualquer juízo de valor. Por fim, não houve apontamento, pelos investigados, de qualquer vício ou suspeita de adulteração no material fornecido.

Os investigados, inclusive, se valeram desse material em sua defesa, para argumentar que foi feita prova de que os valores empregados no evento de 18/07/2022 foram módicos e que a organização não teria destoado do normal. O investigante, a seu turno, afirmou que a quantia gasta não é parâmetro para mensurar o desvirtuamento do poder político.

Inequívoco, pois, que a prova cumpriu sua estrita finalidade de demonstrar fatos relacionados à causa de pedir, permitindo às partes construir teses e indicar o peso que, entendem, deve ser dado a esses fatos no julgamento de mérito.

Ausente, portanto, qualquer argumento que convença da ocorrência de nulidade processual, rejeito a preliminar.

5. Requerimento de reabertura da instrução (formulada pelos investigados)

Último foco de insurgência dos investigados nas alegações finais diz respeito à decisão de encerramento da instrução, em que se dispensou uma prova testemunhal indicada pelo juízo e indeferiu-se requisição de inquérito cuja existência foi noticiada pela CNN em 24/03/2023.

Essas, aliás, foram as únicas diligências indeferidas. Elas haviam sido formuladas já após outros requerimentos de prova complementar, todos integralmente deferidos. Sendo mais específico: já se havia deferido cinco novas inquirições e diversas requisições a pedido dos investigados, na fase complementar. Quando foi dada vista às partes acerca do resultado dessas provas, os réus insistiram para que a instrução prosseguisse, com a oitiva e requisição de mais um inquérito policial.

Os novos requerimentos foram indeferidos com os seguintes fundamentos:

a) desproporcionalidade da requisição de acesso a inquérito sigiloso, referido apenas de passagem em pergunta do advogado dos investigados durante a audiência, para ilustrar a afirmação de que continuavam a surgir informações sobre vulnerabilidades em sistemas da Justiça Eleitoral; e

b) desnecessidade de produção de prova oral que havia sido determinada pelo juízo e cuja relevância se esvaiu em razão da coerência de três depoimentos prestados acerca do mesmo fato.

De se notar que foi deferida a juntada da notícia da CNN comentada pelo advogado na audiência, cuja manchete é a seguinte: “Ministério Público Eleitoral denuncia quatro pessoas por hackear sistema do TSE: ataques ao sistema foram no dia das eleições municipais e prejudicaram acesso ao E-Título”. A matéria informaque “[a] ação afetou a estabilidade do aplicativo e dados sigilosos de servidores públicos foram divulgados ilegalmente”, deixando claro que “[o] ataque, no entanto, não prejudicou o processo eleitoral nem a votação dos representantes dos municípios”.

Na linha de inquirição do advogado, durante a audiência, essa notícia foi comentada com a testemunha Filipe Barros, à qual se perguntou se, em sua opinião, esse tipo de situação demonstraria que “o aprimoramento da votação eletrônica, em sentido amplo, estaria a merecer debate público”. A pergunta foi permitida, na acertada condução do juiz instrutor de intervir minimamente nas inquirições diretas feitas pelas partes.

É evidente que a notícia foi um usada na inquirição como elemento retórico, para estimular a testemunha a verbalizar uma opinião crítica ao sistema eletrônico de votação. Essa opinião, é, inclusive, de conhecimento notório, tendo em vista que o Deputado Filipe Barros foi relator da PEC nº 135/2019, que objetivava implementar o voto impresso. A resposta da testemunha não agregou qualquer esclarecimento de fato sobre o evento no Palácio do Alvorada em 2022 ou sobre as lives de 2021.

A verdade é que a matéria da CNN, de tão aleatória, sequer foi mencionada nas alegações finais para sustentar alguma conclusão de mérito em favor da defesa. E de outro modo não haveria de ser, pois trata-se de uma notícia de 2023, sobre incidente em 2020, que teve por resultado deixar instável o aplicativo e-título e divulgar dados pessoais de servidores.

Ainda assim, os investigados argumentam, nas alegações finais, que o conteúdo do inquérito requisitado “tangencia uma das principais teses de defesa, a saber, a legitimidade do debate público travado pelo investigado Jair Messias Bolsonaro acerca do sistema eletrônico de votação, sempre em prol do progressivo aprimoramento dos meios disponíveis”. Essa construção, porém, carece de organização lógica. Isso porque a investigação recebida em 2023 não poderia servir de prova da motivação de um discurso feito em 2022, no qual sequer foi comentado o fato de 2020.

Ademais, a própria notícia jornalística consigna que a denúncia feita pelo Ministério Público Eleitoral não diz respeito a risco de comprometimento da segurança do sistema eletrônico de votação. Bastou, porém, a menção a “hacker” para que o episódio fosse trazido para alegadamente ilustrar que haveria fortes razões para demandar “melhorias” no funcionamento das urnas eletrônicas.

Não é demais lembrar, então, que esta AIJE não apura a segurança do sistema de votação eletrônico, mas, sim, a conduta do primeiro investigado e as circunstâncias em que decidiu abordar o tema em uma reunião com chefes de missões diplomáticas, faltando dois dias para o início das convenções partidárias.

Reforça-se, então, a absoluta impertinência de se trazer para esta ação um inquérito criminal que não apenas é alheio aos fatos discutidos, como também só poderia ser explorado se fosse para gerar dúvida infundada sobre a segurança das urnas.

No que diz respeito à testemunha Eduardo Gomes da Silva, sua oitiva havia, de início, sido determinada pelo juízo, tendo em vista sua participação na live de 29/07/2021 e na reunião que a precedeu. Considerava-se, principalmente, que Anderson Gustavo Torres, que se encontrava respaldado pelo direito a não se incriminar, poderia deixar de responder a perguntas essenciais. No entanto, essa testemunha se mostrou colaborativa e não se recusou a falar em nenhum momento.,

De outra ponta, os dois peritos que estiveram presentes na reunião prévia à live, quando Eduardo Gomes da Silva tratou do material que seria apresentado, foram uníssonos a respeito dos fatos e prestaram depoimentos convergentes com as declarações colhidas no Inquérito Administrativo nº 0600371-71, tanto por eles quanto pelo próprio Eduardo.

Assim, a oitiva se tornou desnecessária e foi dispensada pelo juízo. Note-se que os réus também desistiram de três testemunhas que haviam arrolado, exatamente por considerar que outras pessoas ouvidas supriram a necessidade de esclarecimento de fatos. Acresça-se que Eduardo Gomes não havia sido localizado nos endereços disponíveis. Encerrar a instrução foi medida que prezou pela celeridade do processo e não acarretou qualquer prejuízo às partes, como se evidencia pela coesa prova testemunhal colhida.

Transcrevo, por fim, os fundamentos apresentados da decisão de encerramento da instrução (ID 158886314):

“[...] a presente AIJE contou com amplo prestígio à iniciativa probatória das partes, associado à minudente análise da pertinência objetiva das diligências a serem determinadas.

Com isso, foi possível conjugar contraditório e celeridade, conduzindo-se o procedimento com estrita observância ao diálogo processual, à boa-fé objetiva, ao princípio da não surpresa e ao dever de fundamentação. Em pouco mais de 3 meses, foram realizadas cinco audiências e requisitados todos os documentos, inclusive procedimentos sigilosos, relacionados aos fatos relevantes para deslinde do feito. Saliente-se que foi deferida a oitiva de nove testemunhas da defesa e, em razão da desistência dos investigados, ouvidas seis delas. Foram ouvidas ainda 3 testemunhas por determinação do juízo, sempre com a necessária delimitação dos fatos que seriam objeto do depoimento.

Aberta vista a respeito dos documentos produzidos, a parte ré juntou documentos relativos a pontos tangenciados nas audiências de 27 e 28/03/2023 e manifestou interesse em novas diligências, a saber: requisição de inquérito relativo a ataque hacker a sistemas periféricos da Justiça Eleitoral em 15/11/2020 e oitiva de Eduardo Gomes da Silva.

No que diz respeito à denúncia ofertada pelo MPE em razão do ataque de 15/11/2020, os próprios investigados admitem que se tratou de exemplo utilizado na audiência, durante a inquirição de Filipe Barros, para lhe indagar “se esse tipo de situação contribuiria, de alguma forma e em tese, para a compreensão de que a matéria atinente ao aprimoramento da votação eletrônica, em sentido amplo, estaria a merecer debate público, revestido de interesse jornalístico”, “ao que assentiu conclusivamente a testemunha”.

Tratou-se, portanto, de uma conjectura, ilustrada pela matéria divulgada em 24/03/2023 e utilizada para fazer uma pergunta à testemunha. Esta, por sua vez, apenas emitiu uma opinião, concordando com a sugestão de que “esse tipo de situação contribuiria, de alguma forma e em tese” para estimular a defesa do “aprimoramento da votação eletrônica”. O teor da notícia da CNN relatado na audiência não foi posto em dúvida pela parte autora, pelo MPE ou pelo juiz instrutor e, ainda assim, os réus diligenciaram por juntar cópia da matéria, que demonstra que a informação dos advogados foi fidedigna ao fato noticiado (ID 158881919).

Nesse cenário, o pretendido acesso a autos da referida investigação é manifestamente desproporcional ao contexto em que a notícia da CNN foi mencionada, como simples elemento ilustrativo da pergunta formulada em audiência. Assevera-se que a requisição de informações sobre investigações em curso, o que já foi deferido neste feito em mais de uma ocasião, não pode ser trivializada, exigindo sempre avaliar se o conhecimento de fatos sensíveis e diligências estratégicas é mesmo essencial para a solução da controvérsia. No caso, a resposta é negativa, eis que adentrar os detalhes da denúncia é algo que extrapola a correlação estabelecida pelos próprios investigados ao se referir à matéria da CNN.

Quanto ao manifestado interesse na oitiva de Eduardo Gomes da Silva, que havia sido arrolada pelo juízo, é de se observar que a relevância desse depoimento em juízo ficou prejudicada em razão das declarações de Anderson Gustavo Torres, Ivo Peixinho e Mateus Polastro, suficientes ao esclarecimento da reunião prévia à live de 29/07/2021. A conclusão não é diferente daquela que levou os réus a desistirem de três das testemunhas que haviam arrolado. Assim, tendo em vista que Eduardo Gomes da Silva acabou não sendo localizado, descabe persistir na prova, que a essa altura seria meramente redundante.

Por fim, os documentos juntados pelos réus, relacionados a ocorrências da audiência, não desafiam nova vista à contraparte e à PGE, pois poderão ser objeto de exame nas alegações finais e no parecer, na linha já indicada pelos próprios sujeitos processuais em suas manifestações nesta fase.

Conclui-se, assim, que o rico acervo probatório reunido nos autos, que foi formado com ampla participação das partes e do MPE, esgota as finalidades da instrução, razão pela qual cumpre encerrar a presente etapa processual.”

(Destaques no original)

Em síntese, a condução desta AIJE observou rigor metodológico, que conciliou o mais amplo respeito às faculdades processuais, a racionalidade e a celeridade. O saneamento foi uma atividade constante, que envolveu dispensar dois atos instrutórios que eram inúteis. Todos os sujeitos processuais participaram ativamente do contraditório, quer na inquirição das nove testemunhas ouvidas ao longo de cinco audiências, quer por manifestações escritas. Foi inteiramente assegurada a vista de documentos e petições, com respeito aos prazos legais e regulamentares.

O processo, é certo, não deve se prolongar ad infinitum. Suas etapas devem se estender pelo tempo necessário para viabilizar a coleta de elementos e alegações que efetivamente contribuam para o deslinde da controvérsia. É o que se fez neste caso.

Tem-se patente que a reabertura da instrução para as finalidades buscadas pelos investigados assume viés protelatório, que não merece acolhida.

Destarte, ausente ofensa à ampla defesa, indefiro o requerimento de reabertura da instrução.

II – Mérito

Superadas as questões preliminares e prejudiciais, e estando as partes devidamente representadas por seus advogados e suas advogadas, o feito se encontra apto para o imediato julgamento de mérito. Informo que, tendo em vista a complexidade e a relevância do caso e o objetivo de propiciar a melhor compreensão dos fundamentos decisórios, o voto foi estruturado em três partes:

1) premissas de julgamento, contemplando a tipificação dos ilícitos à luz dos precedentes das Eleições 2018, os aportes que propiciam o aprofundamento do tema após esses julgados e a dinâmica de proteção aos bens jurídicos eleitorais, com destaque para a metodologia aplicada às AIJEs das Eleições 2022;

2) fixação da moldura fática, organizada com base nos marcos temporais demarcados no discurso proferido pelo primeiro investigado em 18/07/2022, na reunião com os embaixadores: o momento do discurso, as lives realizadas em 2021 e as projeções para o pleito eleitoral iminente; e

3) subsunção dos fatos às premissas de julgamento, discorrendo-se sobre o standard probatório aplicável às ações eleitorais sancionadoras, para então aferir se estão presentes os elementos configuradores do abuso de poder político e do uso indevido dos meios de comunicação.

Passo à fundamentação.

1. Premissas de julgamento

1.1 Tipificação do abuso de poder político e do uso indevido de meios de comunicação: da concepção tradicional aos precedentes das Eleições 2018

O estatuto constitucional dos direitos políticos encontra-se no art. 14 da CR/88, cujo § 9º enuncia a normalidade e a legitimidade das eleições como princípios fundantes do processo eleitoral, a serem resguardados “contra a influência do poder econômico ou do abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta”.

A LC nº 64/1990, em seu art. 22, cuidou de prever a ação de investigação judicial eleitoral como procedimento para “apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político”.

Tendo em vista a abertura do tipo e a abstração dos bens jurídicos tutelados, coube à literatura e à jurisprudência, paulatinamente, construir parâmetros para aferir a ocorrência de desvios e transgressões ao exercício normal do poder, ilícitos aptos a acarretar a cassação de registro ou diploma de candidatas e candidatos beneficiários e a inelegibilidade das pessoas responsáveis pelas condutas.

O abuso de poder político se caracteriza como o ato de agente público (vinculado à Administração ou detentor de mandato eletivo) praticado “mediante desvio de finalidade e com intenção de causar interferência no processo eleitoral” (ZILIO, Rodrigo López. Direito eleitoral. 6. ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2018, p. 645). Colhe-se da jurisprudência do TSE que sua configuração é objetiva e ocorre quando “a estrutura da administração pública é utilizada em benefício de determinada candidatura” (RO nº 2650–41, rel. Min. Gilmar Mendes, DJE de 08/05/2017).

Não há um rol taxativo de condutas subsumíveis ao abuso de poder político, mas o art. 73 da Lei nº 9.504/1997, ao elencar “condutas vedadas aos agentes públicos em campanha”, exemplifica hipóteses de desvio de finalidade eleitoreiro. Assim, as condutas típicas descritas nesse artigo podem compor a causa de pedir da AIJE.

O uso indevido de meios de comunicação “caracteriza-se por se expor desproporcionalmente um candidato em detrimento dos demais, ocasionando desequilíbrio na disputa” (AgR-REspe nº 1-76/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, DJE de 15/08/2019; REspEl nº 0600729-60, Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJE de 13/10/2022).

O desequilíbrio da exposição é um parâmetro que foi construído considerando-se a mídia tradicional – rádio, televisão e imprensa escrita. Esses veículos sujeitam-se à disciplina constitucional da “Comunicação Social”, que concilia a liberdade e a responsabilidade jornalística, em um cenário na qual se pressupõe haver significativa concentração das fontes de informação (arts. 220 a 224, CR/88).

A gênese da qualificação dessa modalidade abusiva, portanto, é o paradigma da comunicação de massa (um-para-muitos), em que poucos veículos concentram o poder midiático e, com ele, particular capacidade de influência sobre a sociedade. Se o espaço e a credibilidade de um veículo de comunicação passam a servir para impulsionar uma candidatura ou uma plataforma político-eleitoral, há ensejo para apurar o abuso do poder.

A configuração de qualquer tipo de abuso exige que a conduta descrita na petição inicial seja qualificada como grave. Esse segundo componente é extraído do inciso XVI do art. 22 da LC nº 64/1990, que, alterado pela LC nº 135/2010, passou a prever que “para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam”.

A redação deixa explícito que o resultado do pleito não é, por si, o fator determinante para a condenação por abuso de poder. Desse modo, não são repreensíveis apenas os ilícitos praticados por candidato ou a candidata que tenha tido êxito eleitoral. Também candidaturas vencidas, por qualquer margem de votos, sujeitam-se à responsabilização por atos que vulnerem a isonomia, a normalidade e a legitimidade do pleito.

O dispositivo acima citado tem, porém, outra faceta. Ele demonstra que, para a configuração do abuso, não basta constatar objetivamente o uso da máquina pública ou o favorecimento midiático a uma candidatura. O abuso é um tipo aberto, mas a gravidade é seu elemento componente.

A jurisprudência possui balizas sólidas para a aferição da gravidade, desdobrando-a em dois aspectos: qualitativo (alto grau de reprovabilidade da conduta) e quantitativo (significativa repercussão em um determinado pleito). A orientação consta do acórdão proferido na AIJE nº 0601779-05, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJE de 11/03/2021:

Para se caracterizar o abuso de poder, impõe-se a comprovação, de forma segura, da gravidade dos fatos imputados, demonstrada a partir da verificação do alto grau de reprovabilidade da conduta (aspecto qualitativo) e de sua significativa repercussão a fim de influenciar o equilíbrio da disputa eleitoral (aspecto quantitativo). A mensuração dos reflexos eleitorais da conduta, não obstante deva continuar a ser ponderada pelo julgador, não constitui mais fator determinante para a ocorrência do abuso de poder, agora revelado, substancialmente, pelo desvalor do comportamento.

O peso dado a cada um desses aspectos não observa uma distribuição fixa, pois uma conduta extremamente reprovável, ainda que não tenha logrado grande repercussão, é passível de ser punida. A gravidade será sempre um fator contextualizado, ou seja, avaliado conforme as circunstâncias da prática, a posição das pessoas envolvidas e a magnitude da disputa.

Esses são, em poucas linhas, os parâmetros gerais para aferição do abuso de poder político e do uso indevido dos meios de comunicação. Porém, o Direito Eleitoral Sancionador passa, ao menos a partir de 2012, a ter que se adaptar a um novo paradigma comunicacional: a comunicação em rede (muitos-para-muitos), que traz novos componentes para essa equação.

Esse novo paradigma foi denominado por Manuel Castells como “sociedade em rede” ou “sociedade interativa”. Seu surgimento está associado à difusão da internet, no ano 2000, quando surgem “novas formas de sociabilidade e novas formas de vida urbana, adaptadas ao nosso novo meio ambiente tecnológico” (CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. 14ª reimpressão com novo prefácio. São Paulo: Paz e Terra, 2011, p. 443).

Um traço essencial desse tipo de comunicação é a proliferação de “laços fracos”, que acarretam uma significativa transformação cultural: amplificam-se o relacionamento entre desconhecidos e a circulação de informações, ao passo em que filtros sociais nas interações e custos da produção de conteúdos são reduzidos. Leia-se o trecho:

“A Rede é especialmente apropriada para a geração de laços fracos múltiplos. Os laços fracos são úteis no fornecimento de informações e na abertura de novas oportunidades a baixo custo. A vantagem da rede é que ela permite a criação de laços fracos com desconhecidos, num modelo igualitário de interação, no qual as características sociais são menos influentes na estruturação, ou mesmo no bloqueio, da comunicação. Nesse sentido, a Internet pode contribuir para a expansão dos vínculos sociais numa sociedade que parece estar passando por uma rápida individualização e um ruptura cívica [...] Existem indícios substanciosos de solidariedade recíproca na Rede, mesmo entre usuários com laços fracos entre si. De fato, a comunicação on-line incentiva discussões desinibidas, permitindo a sinceridade.”

(Obra citada, p. 444, sem destaques no original.)

No Brasil, foi a partir de 2012 que as redes sociais começam a se transformar em meios de realização de propaganda eleitoral. Nessa fase ainda incipiente, as características descritas por Castells pareciam de fato prenunciar que o debate público, inclusive a respeito de temas políticos e eleitorais, seria ampliado e democratizado, assegurando a participação de um grande número de pessoas, em diálogo horizontal.

Remonta a essa época o histórico debate travado no julgamento do Recurso na RP nº 1825-24 (Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, Rel. para o acórdão Min. Marcelo Ribeiro, publicado em sessão de 15/03/2012), quando a Ministra Cármen Lúcia, em célebre defesa à liberdade de expressão nas redes, afirmou que “o Twitter é uma conversa que, em vez de se dar numa mesa de bar tradicional, ocorre numa mesa de bar virtual [...], nós vamos impedir que as pessoas sentem-se numa mesa de bar e se manifestem?”.

A observação de Sua Excelência – que hoje novamente honra este Tribunal com sua presença – era inteiramente pertinente àquele contexto de 2012. Ainda não eram perceptíveis os efeitos deletérios das características do novo paradigma, como a difusão de notícias falsas a baixo custo e a proliferação de discurso de ódio em conversas “desinibidas” com contatos virtuais. Por isso, esses problemas não estavam, e nem poderiam estar, em discussão.

Mesmo no atual contexto, a premissa de abordagem da matéria não se perdeu: a regra é a ampla liberdade de manifestação do pensamento na internet. A legislação, aliás, conta hoje com norma expressa no sentido de que as restrições da propaganda eleitoral não se aplicam à “divulgação de posicionamento pessoal sobre questões políticas, inclusive nas redes sociais” (art. 36-A, V, Lei nº 9.504/97).

Porém, no curso da acelerada transformação social propiciada pela popularização da internet e das redes sociais, duas reformas eleitorais, em 2015 e 2017, impuseram um novo olhar sobre o fenômeno. Houve, primeiro, a redução drástica do período de campanha e do uso de meios de propaganda “de rua” (a Lei nº 13.165/2015). Dois anos depois, passou-se a permitir o impulsionamento pago de propaganda por meio de ferramentas digitais disponibilizadas pelos provedores de aplicação de internet (Lei nº 13.488/2017).

Essas modificações intensificaram a migração das campanhas para o mundo digital. E isso ocorreu em um cenário de perda da exclusividade dos tradicionais veículos de comunicação na divulgação de fatos e opiniões com grande alcance. O modelo de comunicação muitos-para-muitos aumentou o tráfego de informações a partir de fontes múltiplas. Há aspectos positivos, sem dúvida. Mas também cresceram os ruídos e a dificuldade de checagem da veracidade de dados factuais.

Recentemente, a monetização de conteúdos se expande como fonte de custeio de canais e blogs em diversas plataformas. Parte deles busca se apresentar à imagem e semelhança de empresas jornalísticas, mas não necessariamente se submetem aos padrões de isenção preconizados pela disciplina constitucional da Comunicação Social. Ao contrário: exploram essa aparência jornalística para agir com total parcialidade e sem compromisso com os fatos.

Nos casos mais extremos, pessoas físicas ou jurídicas fazem uso de sensacionalismo, agressividade e fabricação de conteúdos falsos para reverberar crenças de um público que querem fidelizar. Na lógica da monetização, esses canais descobriram ferramentas poderosas para aumentar a popularidade e o engajamento, produzindo “bolhas” capazes de assegurar a sobrevivência dessas novas mídias.

O novo cenário, inevitavelmente, produziu novas formas de praticar condutas abusivas. Isso exigiu que a jurisdição eleitoral acompanhasse a realidade fenomênica.

Aliás, cabe aqui desde logo assinalar que é salutar para a efetividade do controle judicial que tribunais avaliem como aplicar normas (preexistentes) a fatos (atuais). É a chamada subsunção dos fatos à norma. Por vezes, dela decorre a fixação de teses visando uniformizar a aplicação do Direito a esses novos fatos. Isso não se confunde com a “mudança de entendimento” ou a “viragem jurisprudencial”, em que se altera uma tese jurídica já fixada.

Quando há “viragem jurisprudencial”, a nova tese deve ser aplicada somente a fatos futuros (STF, RE nº 637.485/RJ, Rel. Min Gilmar Mendes, DJE de 21/05/2013). Mas, quando o Direito apenas tenta acompanhar a dinâmica social, descabe cogitar que os fundamentos elaborados para resolver a questão não possam ser aplicados ao pleito em que se verificou o fato apreciado. O contrário seria supor que a ineficiência do controle jurisdicional se tornaria direito daqueles que, a cada eleição, inovam nas formas de cometer práticas ilícitas.

Nesse esforço de acompanhar a velocidade vertiginosa das transformações digitais e seu impacto eleitoral, duas diretrizes fixadas pelo TSE em julgados das Eleições 2018 merecem ser destacadas.

Em primeiro lugar, o TSE, ao julgar as AIJEs nº 0601986-80 e nº 0601771-28 superou qualquer dúvida quanto à possibilidade de que a internet fosse equiparada aos tradicionais veículos de comunicação social para fins de aferição de práticas abusivas. A Corte estabeleceu que: “o uso de aplicações digitais de mensagens instantâneas, visando promover disparos em massa, contendo desinformação e inverdades em prejuízo de adversários e em benefício de candidato, pode configurar abuso de poder econômico e/ou uso indevido dos meios de comunicação social para os fins do art. 22, caput e XIV, da LC 64/90” (Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJE de 22/08/2022).

Naquele caso, examinava-se especificamente o uso, em tese, de disparos em massa de notícias falsas, feitas por uma candidatura contra a chapa adversária. O então Corregedor-Geral Eleitoral e Relator do feito, Min. Luis Felipe Salomão, propôs parâmetros para a aferição da gravidade em casos semelhantes, a saber:

“(a) teor das mensagens e, nesse contexto, se continham propaganda negativa ou informações efetivamente inverídicas; (b) de que forma o conteúdo repercutiu perante o eleitorado; (c) alcance do ilícito em termos de mensagens veiculadas; (d) grau de participação dos candidatos nos fatos; (e) se a campanha foi financiada por empresas com essa finalidade”.

São, como se constata, balizas que conferem densidade aos aspectos qualitativo e quantitativo da gravidade. Essas balizas funcionam como suporte para a análise da conduta, e não como um “checklist” estático. Por exemplo, o abuso de poder midiático não exige necessariamente que se esteja diante de ato típico de propaganda eleitoral, sendo possível aferi-lo ante a constatação de que a mensagem possui outros elementos que permitam identificar seu caráter eleitoral.

Em segundo lugar, o TSE, no RO-El nº 0603975-98, assentou a tese de que “a transmissão ao vivo de conteúdo em rede social, no dia da eleição, contendo divulgação de notícia falsa e ofensiva por parlamentar federal, em prol de seu partido e de candidato, configura abuso de poder de autoridade e uso indevido de meio de comunicação, sendo grave a afronta à legitimidade e normalidade do prélio eleitoral”. Com esse fundamento, cassou diploma de deputado federal que fizera live disseminando falso relato de apreensão de urnas fraudadas e o declarou inelegível (Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJE de 10/12/2021).

Na ocasião, foram abordados os dois ilícitos discutidos neste feito.

No que diz respeito ao uso indevido de meios de comunicação, enfatizou-se que a divulgação de notícias falsas sobre o funcionamento das urnas eletrônicas durante o horário da votação e para grande audiência preenchia os critérios qualitativo e quantitativo da gravidade, ensejando a condenação. Transcrevo trecho da ementa do acórdão sobre o ponto:

19. Os dividendos angariados pelo recorrido são incontroversos. A live ocorreu quando a votação ainda estava aberta no Paraná, ao passo que o acesso à internet ocorre de qualquer lugar por dispositivos móveis, reiterando–se que a transmissão foi assistida por mais de 70 mil pessoas, afora os compartilhamentos do vídeo.

20. O recorrido valeu–se das falsas denúncias para se promover como uma espécie de paladino da justiça, de modo a representar eleitores inadvertidamente ludibriados que nele encontraram uma voz para ecoar incertezas sobre algo que, em verdade, jamais aconteceu. Também houve autopromoção ao mencionar que era Deputado Federal e que a imunidade parlamentar lhe permitiria expor os hipotéticos fatos.

21. Gravidade configurada pela somatória de aspectos qualitativos e quantitativos (art. 22, XVI, da LC 64/90). O ataque ao sistema eletrônico de votação, noticiando–se fraudes que nunca ocorreram, tem repercussão nefasta na legitimidade do pleito, na estabilidade do Estado Democrático de Direito e na confiança dos eleitores nas urnas eletrônicas, utilizadas há 25 anos sem nenhuma prova de adulterações. Além disso, reitere-se a audiência de mais de 70 mil pessoas e, até 12/11/2018, mais de 400 mil compartilhamentos, 105 mil comentários e seis milhões de visualizações.

As circunstâncias do caso concreto foram bem sintetizadas pelo Min. Sérgio Banhos. Em suas palavras,

[...] “a utilização do cargo e o desvio de finalidade são evidentes a partir do momento em que é utilizado o canal oficial do mandatário para propagar notícia que, segundo a prova dos autos: a) apresenta aparência de credibilidade quanto à origem, por ser oriunda de um parlamentar; b) estava alinhada com a estratégia política do partido do então candidato, o PSL; c) era incompatível com a conduta esperada do agente público em face de fatos supostamente criminosos, que seria dar notícia do fato às autoridades competentes (promotor e juiz eleitoral), e/ou aos órgãos correcionais”.

(Sem destaques no original.)

Ao proferir seu voto, o Min. Alexandre de Moraes comparou o caso com os fatos em apuração nos Inquéritos nº 4.781/DF e nº 4.874/DF, nos quais “se revela a existência de uma verdadeira organização criminosa, de forte atuação digital e com núcleos de produção, publicação, financiamento e político, com a nítida finalidade de atentar contra as Instituições, a Democracia e o Estado de Direito”.

Sua Excelência observou que o deputado federal investigado era também delegado de polícia e, ainda assim, de forma inteiramente descomprometida com a verdade, usou de sua posição para, com base em simples relatórios de substituição de urnas em regular procedimento de contingência, “persuadir o eleitorado a acreditar na existência de fraude sistêmica” e a não aceitar o resultado das urnas. Destaco do voto proferido os fundamentos que mostram que a tentativa de descredibilizar o sistema de votação eletrônico e a Justiça Eleitoral não é protegida pela liberdade de expressão:

O sensacionalismo e a insensata disseminação de conteúdo inverídico objetivava incutir na população a crença errônea do comprometimento de todo o processo eleitoral, ferindo valores, princípios e garantias constitucionalmente asseguradas, notadamente a liberdade do voto e o exercício da cidadania.

A liberdade de expressão e o pluralismo de ideias são valores estruturantes do sistema democrático, não permitindo, entretanto, sua utilização como verdadeiro escudo protetivo para a prática de atividades ilícitas, discursos de ódio e incitação contra as Instituições democráticas.

A livre discussão, a ampla participação política e o princípio democrático estão interligados com a liberdade de expressão, tendo por objeto não somente a proteção de pensamentos e ideias, mas também opiniões, crenças, realização de juízo de valor e críticas a agentes públicos, no sentido de garantir a real participação dos cidadãos na vida coletiva, sempre com responsabilidade e com a possibilidade de futura responsabilização por crimes contra a honra e demais práticas ilícitas.

Dessa maneira, tanto são inconstitucionais as condutas e manifestações que tenham a nítida finalidade de controlar ou mesmo aniquilar a força do pensamento crítico, indispensável ao regime democrático quanto aquelas que pretendam enfraquecê-lo, juntamente com suas instituições republicanas; pregando a depreciação do processo democrático, com ataques à lisura do sistema de votação e à JUSTIÇA ELEITORAL, sem um mínimo de provas que lastreiem a sua manifestação.

A hipótese revela a existência de atos concretos, não meras conjecturas ou presunções, aptos a caracterizarem abuso de poder, revestindo-se de gravidade suficiente a afetar a legitimidade e normalidade do pleito. Consoante Jurisprudência desta CORTE SUPERIOR ELEITORAL, a gravidade dos fatos é abstraída da violação dos bens jurídicos tutelados pela norma: normalidade e lisura do pleito, de modo a garantir a vontade livre e consciente do eleitor (REspe 552-16, Rel. Min. ALEXANDRE DE MORAES, DJe de 5/8/2021).

O Recorrido alega que apenas se manifestou sobre fato que já era objeto de investigação no âmbito da Câmara dos Deputados. Contudo, observa-se que o Ofício 037.2018/LID/PSL enviado por ele, na qualidade de líder do PSL, à Min. ROSA WEBER (então Presidente do TSE), não tratava das inverdades alardeadas na transmissão. No documento, o Deputado solicitou tão somente providências genéricas para viabilizar o acompanhamento, em tempo real, da apuração por peritos da Polícia Federal e por determinado corpo técnico das Forças Armadas. Não há remissão a nenhum problema técnico ou fraude específica.

Assim, a gravidade dos fatos é inconteste, porque a conduta revela a vontade livre e consciente de ofender e colocar em dúvida a integridade da democracia e do sistema eleitoral, gerando ruptura no equilíbrio das eleições que estavam em pleno curso no momento da transmissão.

(Sem destaques no original.)

Ponto relevante abordado pelo Min. Alexandre de Moraes diz respeito à impossibilidade de que o exercício do cargo de deputado federal concedesse um salvo-conduto para os ataques infundados à urna eletrônica. Após expor todo o histórico de evolução do instituto da imunidade parlamentar no Brasil, Sua Excelência concluiu que essa garantia, finalística, guarda estrita relação com os debates na Casa Legislativa e com outras ações afetas ao exercício regular das funções parlamentares:

“Na presente hipótese, é fato incontroverso que as palavras, as opiniões e as expressões trazidas na petição inicial pelo Ministério Público Eleitoral foram proferidas em ambiente virtual, fora do recinto parlamentar e sem a presença dos requisitos imprescindíveis para caracterização da inviolabilidade constitucional: (a) ‘nexo de implicação recíproca’ e (b) ‘parâmetros ligados à própria finalidade da liberdade de expressão qualificada do parlamentar’.

As condutas em análise não se enquadram, nem de longe, entre as hipóteses atrativas da incidência da referida imunidade, pois é clarividente não serem manifestações que guardam conexão com o desempenho da função legislativa ou que seja proferida em razão desta.

Efetivamente, nem sequer há ‘nexo de implicação recíproca’, uma vez que as opiniões e as palavras proferidas pelo parlamentar foram externadas em local diverso da sua Casa Legislativa e sem qualquer relação com o exercício do mandato parlamentar.

O parlamentar, em publicação videofonográfica em plataforma digital (‘facebook’), por mais de uma vez, usurpou da sua imunidade parlamentar para divulgar falsamente notícias e relatos extremamente graves, atacando frontalmente a JUSTIÇA ELEITORAL, o sistema eletrônico de votação e a democracia, bem como espalhando execráveis incertezas acerca da higidez das eleições”.

Essa espécie de auto usurpação da imunidade parlamentar foi considerada pelo Min. Luís Roberto Barroso elemento decisivo para a configuração do abuso de poder político. Em sua leitura, a gravidade do fato se acentuou ante a autoridade do emissor da mensagem: um deputado federal que expressamente afirmou que poderia fazer a suposta “denúncia” por estar protegido pela imunidade parlamentar. O então Presidente do TSE destacou sobre o ponto:

“Esse é um precedente grave. O Direito, tanto o Direito Penal quanto o Direito Civil e o Direito Eleitoral tem como um dos seus principais papéis o que se chama “a função de prevenção geral”, que é, muitas vezes, a punição prevista para que as pessoas não tenham um incentivo errado de adotarem aquele comportamento. E, portanto, nós precisamos passar a mensagem clara de que não é possível, no dia das eleições, se difundir falsamente a informação de que as urnas são fraudadas, comprometendo o processo democrático, tirando a credibilidade das eleições e atacando a Justiça Eleitoral.

Portanto, é um precedente grave. Preferiria que nós não tivéssemos que estabelecê-lo, mas se nós passarmos pano na possibilidade de um agente público representativo ir às mídias sociais dizer que o modelo é fraudado, que o candidato está sendo derrotado por manipulação da Justiça Eleitoral, e ficar por isso mesmo, o sistema perde a credibilidade. E, como disse, parte da estratégia antidemocrática é tirar a credibilidade das autoridades eleitorais e do processo eleitoral.

De modo que, sem alegria, mas achando que esse é o papel que cabe à Justiça Eleitoral, firmar um exemplo do que é um comportamento que não pode ser aceito, eu estou acompanhando o relator.

Claramente, nós já estabelecemos no julgamento anterior que as mídias sociais se equiparam aos meios de comunicação social para o fim de identificação do uso indevido dos meios de comunicação social.

E aqui eu tenho também a visão de que, especialmente essa fala que destacou o Ministro Alexandre de Moraes, o abuso dos meios de comunicação social ou o uso indevido dos meios de comunicação social, não teria dúvida, tive um pouco de dúvida da questão do abuso do poder político, mas aqui, esta passagem, me fez inclinar pela posição do relator e eu vou pedir vênia ao público e aos ministros para ser textual. Disse o parlamentar cujo processo está aqui em julgamento:

‘E aqui eu não tenho papa na língua, porque eu tenho uma m[...] que chama imunidade parlamentar para falar. Vota um e aparece o nome do Haddad. Se for um fake, depois eu volto e me retrato, mas eu não vou deixar de falar.’

Portanto, aqui claramente se invoca uma condição especial do parlamentar, que é feito para proteger a sua liberdade de expressão e que é utilizado como escudo para difundir uma falsidade, uma mentira e, portanto, a imunidade parlamentar não pode acobertar a mentira deliberada.

(Sem destaques no original.)

Os julgados acima citados, relativos às Eleições 2018, conformam uma metodologia de análise de possíveis ilícitos eleitorais que exige, em grande medida, revisitar e reavaliar outros julgados que os antecederam. Afinal, decisões que tenham negado a equiparação da internet aos tradicionais meios de comunicação já não se mostram compatíveis com o atual contexto.

Hoje, redes sociais, blogs, canais e aplicativos preponderam como meio de veloz difusão das mensagens de cunho eleitoral e podem ser utilizados para perpetrar ilícitos que produzem efeitos rápidos e capilarizados. Os novos contornos do abuso de poder não atingem apenas o desvio do poder midiático. O uso da internet remodela, também, o abuso de poder político.

As redes sociais expandiram o horizonte de atuação de mandatários. Antes delas, as manifestações de ocupantes de cargos eletivos e de outros agentes públicos ficavam restritas ao ambiente do desempenho de suas funções e somente eram divulgadas em larga escala pela imprensa ou em pronunciamentos oficiais de caráter solene.

Atualmente, essas manifestações integram o cotidiano dos “seguidores”, e até de terceiros, para os quais as falas são replicadas. Isso favorece a interação de figuras políticas com suas bases, mas, tal como se ilustra pelo episódio discutido no RO-El nº 063975-98, também acentua os danos decorrentes de práticas desviantes.

Em síntese, os precedentes das Eleições 2018 permitem afirmar que o abuso de poder midiático e político pode se configurar, em tese, mediante a divulgação de informações falsas sobre o sistema eletrônico de votação feita por detentor de mandato eletivo, apta a produzir impactos sobre pleito específico. Mas existem elevadíssimas exigências para, em uma situação concreta, especialmente em uma eleição presidencial, concluir pela prática de abuso nos moldes citados.

Por isso, feito este apanhado do estado de compreensão da matéria, em seus pontos essenciais, relativamente à última Eleição Geral, passo a desenvolver reflexões sobre alguns elementos que vêm sendo agregados ao debate mais amplo sobre as fake news e que contribuem para a análise do caso ora em julgamento.

1.2 O aprofundamento da compreensão das práticas abusivas na internet após os precedentes das Eleições 2018: aportes jurídicos, empíricos e filosóficos

De partida, reconheço que há uma grande questão que povoa o legítimo debate público sobre os limites da jurisdição eleitoral no tema discutido nos autos.

A indagação pode ser assim sintetizada: existem, de fato, circunstâncias que legitimamente permitam estabelecer um nexo entre, em uma ponta, um discurso que coloca em xeque a credibilidade das urnas e, na outra, a lesão ou grave ameaça ao processo eleitoral?

Em outras palavras: é factível demonstrar um nexo entre prática discursiva (conduta) e ofensa a bens jurídicos eleitorais (efeitos ilícitos)?

Para responder a essas indagações, recorri a três vertentes: a) jurídica, da qual extraí hipóteses inequívocas de responsabilização civil, penal e eleitoral por discursos danosos, sem que isso signifique violar a premissa da liberdade de manifestação; b) empírica, para apresentar resultados de pesquisas no ramo da neurociência e das ciências sociais sobre o impacto das fake news na sociedade; e c) filosófica, a fim de destacar os essenciais contributos da filosofia da linguagem e da filosofia da mente para o tema.

Com isso, será possível avançar na compreensão de um fenômeno que indubitavelmente ultrapassa fronteiras da dogmática jurídica e demanda análise contextualizada e interdisciplinar.

1.2.1 Liberdade de expressão e possibilidades de responsabilização jurídica por discurso proferido

Já se mencionou que o livre exercício da manifestação do pensamento não perdeu preponderância no novo paradigma comunicacional. A comunicação muitos-para-muitos, além de ser uma realidade irrefreável, tem efeitos benéficos para o debate democrático. Ela permite que várias pessoas participem do fluxo de ideias e, até mesmo, ganhem projeção nas redes pelo sucesso de suas opiniões.

Inegável, portanto, que as premissas da análise de possíveis efeitos concretos e graves de manifestações do pensamento são a posição preferencial da liberdade de expressão e o elevado ônus argumentativo para a imposição de restrições ou sanções a seu exercício.

O tema foi magistralmente desenvolvido por Aline Osório em sua obra Direito eleitoral e liberdade de expressão (2. ed. Fórum: 2022). A autora reconhece que a desinformação deve ser controlada quando

“(i) é difundida de forma deliberada, artificial ou massiva; (ii) é disseminada a partir de (ou combinada com) discursos de ódio, assédio a grupos minoritários, incitação à violência e outros tipos de crimes; e (iii) se dirige a atingir a confiabilidade das eleições e a higidez do Estado democrático de direito”

(Obra citada, p. 226).

Identificada uma situação desse tipo, a autora propõe critérios para retirar conteúdos desinformativos de circulação e, eventualmente, punir aqueles que tenham sido responsáveis por sua difusão. Com base na análise do já citado precedente RO-El nº 0603975-98, sustenta que é preciso partir da premissa da posição preferencial da liberdade de expressão e, em rigoroso exercício argumentativo, avaliar a aptidão do discurso para colocar em risco os bens jurídicos eleitorais e a presença de elementos para fixar a responsabilidade dos envolvidos. Leia-se:

“Para garantir, porém, uma intervenção legítima sobre a liberdade de expressão, as decisões judiciais devem observar um ônus argumentativo reforçado para demonstrar: (i) o respeito ao princípio da reserva legal; (ii) a legitimidade dos interesses tutelados; e (iii) a observância do princípio da proporcionalidade, levando em consideração no exercício ponderativo a posição preferencial que ostentam as liberdades comunicativas e a especial proteção que merecem os discursos político-eleitorais.

[...]

Primeiro, não é todo fato sabidamente inverídico ou gravemente descontextualizado sobre o processo eleitoral que deve ser objeto da restrição, mas apenas aquele que revele aptidão para colocar em risco tal bem jurídico. Tal avaliação deve ser feita à luz não apenas do conteúdo específico, mas também das circunstâncias concretas da comunicação, incluindo: (i) seu emissor (e.g., candidatos ou agentes públicos que divulguem tais conteúdos têm maior potencial de atingir o bem jurídico tutelado do que cidadãos comuns); (ii) o grau de certeza sobre a falsidade do conteúdo (e.g., alegações que já tenham sido objeto de verificação por instituições de checagem de fatos podem presumidamente constituir “fato sabidamente inverídico”); (iii) a gravidade das alegações falsas ou descontextualizadas; (iv) a reiteração ou a presença de indícios de uma estratégia coordenada de deslegitimação do processo eleitoral; e (v) a disseminação e a repercussão das afirmações.

Segundo, embora seja possível a determinação da retirada de circulação do conteúdo capaz de comprometer a higidez das eleições (para cessação do ilícito), é importante que a responsabilização do emissor da mensagem se dê apenas quando haja comprovação de que este (i) tinha intenção de infligir dano, (ii) tinha consciência de estar divulgando fatos sabidamente inverídicos, ou (iii) atuou com manifesta negligência.”

(Obra citada, p. 226.-229, sem destaques no original.)

Como se vê, Osório indica que a “aptidão para colocar em risco” o processo eleitoral pode ser demonstrada por vários elementos conjugados: a pessoa do emissor, seu grau de certeza quanto à falsidade do conteúdo, a gravidade do teor, a existência de estratégia coordenada, a reiteração da mensagem, seu alcance e sua repercussão.

Mas, mesmo diante de critérios rigorosos, muitas pessoas recusam a ideia de que palavras podem causar danos à democracia. Isso, ao menos, por duas ordens de fatores.

O primeiro é uma tendência a negar que a prática discursiva de uma pessoa possa implicar em ações levadas a cabo por terceiros. Sob essa ótica, toda imposição de limites a discursos é vista como “censura”, um cerceamento da liberdade de expressão que seria incompatível com a democracia. Esse fator não é neutro, pois essencialmente é invocado para mitigar a relevância dos discursos de ódio e dos estímulos à instabilidade democrática sobre a vida em sociedade.

A origem dessa ideia é uma leitura pouco crítica e bastante anacrônica da jurisprudência da Suprema Corte a respeito da Primeira Emenda da Constituição Estadunidense, que proíbe leis que restrinjam a liberdade discursiva (free speach).

Com efeito, originou-se naquele tribunal a “teoria do perigo real e iminente”, que, em linhas gerais, resguarda o direito a proferir discursos inflamados que até mesmo estimulem a prática de atos ilegais contra o governo ou grupos de pessoas, salvo se identificada a “real possibilidade” de o ato ilícito estimulado vir a acontecer em momento próximo. O problema é que é quase impossível estabelecer essa vinculação quando se analisam discursos que, apesar de contrários a direitos fundamentais, dão eco a alguma visão hegemônica de um grupo dominante. A tendência, nesses casos, é exatamente menosprezar a carga de “perigo” da mensagem.

Por exemplo, foi com base nessa teoria que a Suprema Corte dos EUA absolveu um líder da Ku Klux Klan que advertiu o Presidente, o Congresso e a Suprema Corte de que “alguma vingança” poderia ocorrer caso continuassem “a suprimir [liberdades] da raça branca caucasiana”. A fala foi filmada e transmitida por uma emissora de televisão, a convite do próprio grupo. Diante de uma cruz de madeira em chamas, os membros da Klan, muitos deles armados, diziam frases como “é isso que nós iremos fazer com os negros”, “pretendemos fazer a nossa parte”. Também deram diretrizes sobre a movimentação prevista para o “4 de Julho” – o Dia da Independência dos Estados Unidos, ou seja, uma data cívica de grande apelo simbólico para o povo.

Apesar da brutalidade da cena e da mensagem, a Corte entendeu que “reunir-se com outras pessoas meramente para defender esse tipo de ação descrita” não era suficiente para ensejar punição. Com isso, declarou inconstitucional a lei estadual que previa sanções para a conduta (Brandenburg v. Ohio, 1969).

Não há como usar meias palavras para tratar do efeito jurídico e social desse julgamento. A Suprema Corte dos Estado Unidos entendeu que membros de um grupo que pregava a supremacia racial, ao dizer que queimariam pessoas negras por vingança, sem de fato estarem queimando uma pessoa negra, estavam exercendo uma liberdade constitucionalmente resguardada. Ou seja: deu primazia à proteção de uma liberdade de expressão racializada. Pouco importou que a mensagem causasse evidente medo, sofrimento, insegurança e restrição de liberdade às pessoas negras e que, no limite, terceiros se sentissem estimulados a torturar e executar pessoas negras, ações sugeridas e encenadas de forma simbólica em uma transmissão televisiva.

O segundo fator que dificulta o controle de práticas discursivas é a resistência a enxergar um discurso como um ato performativo em si. Muitos debates partem equivocadamente da premissa de que é preciso estabelecer um nexo indelével entre o estímulo ao ilícito e uma ação que o materialize, pois somente aí haveria violência, dano e responsabilidade. Sem danos materialmente visíveis e imputáveis, de forma inequívoca, ao autor do discurso, não haveria ensejo para remoção de conteúdos e punição dos responsáveis.

Esse tipo de raciocínio é facilmente superável, até mesmo no âmbito do Direito Civil. A indenização por dano moral, estético e existencial significa nada mais que o patente reconhecimento de que nem toda lesão a bens jurídicos se concretiza sob a forma material. No Direito Coletivo, a Lei nº 7.347/1985 prevê o cabimento da ação pública para promover a responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados ao meio-ambiente e a bens e direitos de valor artístico, histórico, turístico, paisagístico e ao meio-ambiente, à honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos, entre outros. São cabíveis tanto a tutela específica desses bens e direitos difusos, a fim de que sejam restituídos ao estado anterior ao dano, quanto a condenação em espécie.

Na esfera penal, a injúria, a calúnia e a difamação demonstram que até mesmo a ultima ratio pode incidir para assegurar punição proporcional à gravidade que ofensas verbais podem assumir. A Lei nº 7.716/1989, tipifica como crime resultante de preconceito de raça ou de cor não apenas praticar, mas também “induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional racial” (art. 20, caput).

A pena é majorada se o crime for cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou de publicação de qualquer natureza. Recentemente, a Lei nº 14.532/2023, além de tipificar a injúria racial como crime de racismo, estendeu a majoração da pena à publicação em redes sociais e em rede mundial de computadores (§ 2º).

A legislação penal brasileira reconhece, assim, que a amplificação da mensagem discriminatória por veículos de comunicação agrava o sofrimento da vítima e a reprovabilidade da conduta – algo nem sequer cogitado pela Suprema Corte ao absolver o líder da Klan em 1969. Reconhece mais: que a utilização da comunicação muitos-para-muitos, apta a produzir dano instantâneo e geralmente irreversível, produz efeitos equiparáveis, se não mais graves, que a difusão por meios um-para-muitos.

A política é essencialmente performada por discursos. A palavra é o instrumento de governantes e parlamentares para transformar a realidade. Se assim é no campo da licitude, o mesmo ocorre quando se resvala para os ilícitos eleitorais.

Não se nega que é legítimo acender um alerta quando se cogita inibir ou punir manifestação de candidatas e candidatos, agentes políticos, filiadas e filiados, cidadãs e cidadãos. Cabe manter a vigilância para que filtros morais ou ideológicos não sejam utilizados para calar opiniões fundamentais para expressão da pluralidade política. Mas isso não pode bloquear a análise de práticas discursivas ilícitas em matéria eleitoral.

Exatamente em razão da grande relevância da performance discursiva para o processo eleitoral e para a vida política, não é possível fechar os olhos para os efeitos antidemocráticos de discursos violentos e de mentiras que coloquem em xeque a credibilidade da Justiça Eleitoral.

Com efeito, um fato sabidamente inverídico justifica o direito de resposta de candidata, candidato, partido ou coligação por ele atingido. Da mesma maneira, há de se reconhecer que a divulgação de notícias falsas é, em tese, capaz de vulnerar bens jurídicos eleitorais de caráter difuso, desde que sejam efetivamente graves e, assim, se amoldem ao conceito de abuso.

Para entender como essa gravidade pode ser configurada, é necessário que o Direito se abra a outras ciências.

1.2.2 Alastramento do fenômeno da desinformação pela internet e seus impactos cognitivos e políticos

A neurociência é capaz de demonstrar que nosso cérebro, no novo paradigma comunicacional, já não é mais o mesmo.

Susan Greenfield, em obra publicada em 2015, apresentou evidências substanciais de como “a cultura da tela está induzindo transformações de longo prazo em fenômenos tão abrangentes e diversos como empatia, percepção, compreensão, identidade e assunção de riscos” (GREENFIELD, Susan. Transformações mentais. Rio de Janeiro: Alta Books, 2021, p. 20).

A pesquisadora explica que o cérebro humano é dotado de incrível plasticidade, ou seja, as estruturas neuronais são capazes de se adaptarem a tarefas diversas, para as quais não foram originariamente programadas. Essa é uma grande vantagem da nossa espécie, pois nos permite desenvolver novas habilidades, economizar energia com aquelas não mais necessárias e garantir a sobrevivência.

Por outro lado, a virtualização das relações, com a ascensão da internet, representa uma mudança abrupta no meio em que vivemos. O fator é comparável a uma tragédia climática, pois forçou uma adaptação brusca do cérebro. Isso acarretou impactos negativos sobre funções cognitivas, afetando habilidades que, apesar de parecerem dispensáveis no meio virtual, não podem ser descartadas na vida em sociedade.

Uma das áreas investigadas pela autora é a das redes sociais e suas implicações nas identidades e nos relacionamentos. Os estudos que apresenta são sólidos e demonstram, por exemplo, que o “advento das redes sociais para os Nativos Digitais” acarretou redução nos níveis gerais de empatia. A causa associada é a interação “higienizada e limitada” do mundo virtual, que reduz as oportunidades para as pessoas desenvolverem “as habilidades básicas de comunicação não verbal como contato visual, modulação de voz, percepção da linguagem corporal e contato físico” (GREENFIELD, obra citada, pp. 40-41).

Sua pesquisa aponta que o excesso de estímulos exteriores e a precipitação da velocidade de reação a esses estímulos torna “reações e análises [...] cada vez mais superficiais, em virtude da plasticidade do cérebro. Assim, “a própria experiência de viver e interagir em um determinado ambiente deixa sua marca no cérebro, que por sua vez constrói um circuito cerebral único e personalizado – o estado mental – que pode, em última instância, levar a novas mudanças físicas no cérebro e no corpo” (GREENFIELD, obra citada, p. 76).

A “identidade” é um “estado cerebral subjetivo” que envolve uma atividade mental muito exigente. É preciso estar consciente, ter a mente operacional, ser capaz de moldar crenças mais gerais a partir das experiências, ser capaz de agir e reagir dentro de um contexto e, ainda, estabelecer “uma narrativa coesa entre passado, presente e futuro”. O contraponto a isso são os prazeres sensoriais, que fornecem alívio ao cérebro, ao permitir à pessoa assumir uma postura passiva, de recepção de sensações, sem ativar um “senso de identidade” mais profundo (GREENFIELD, obra citada, pp. 89-92, passim.).

Ocorre que, no ambiente digital, as pessoas estão formando um outro tipo de identidade. É uma “identidade conectada”, caracterizada pela intensificação da busca por estados sensoriais. Opta-se mais por emoções – “foco em sentir algo em um dado momento, e somente nele” – e menos por pensar  – tarefa que requer pesado investimento de circuitos neuronais e tempo (GREENFIELD, obra citada, p. 101).

Foi observado que as redes sociais, ao propiciarem um estado de hiperconectividade, são aptas a desencadear a liberação de dopamina, em razão de fatores como a gratificação instantânea, e que a oferta de fragmentos de informações gera um desejo por “mais” (GREENFIELD, obra citada, referindo-se a pesquisa conduzida por Susan Weinschenk, p. 114).

Porém, os “mecanismos cerebrais básicos de vício e recompensa” também acarretam efeitos negativos, como a maior suscetibilidade à manipulação; a redução de filtros sociais e dos “constrangimentos da realidade”; a forte dependência da aprovação alheia; a “redução da capacidade de se comunicar de forma eficaz”; e, no extremo, o desengajamento moral e diluição de responsabilidade por assédio, ofensas e outros comportamentos violentos praticados em meio virtual, como cyberbullying e trollagem (GREENFIELD, obra citada, pp. 117-160, passim.).

Há ainda que se considerar a transformação específica do “cérebro leitor”, diante do novo tipo de informação escrita nas redes sociais, conforme leciona Maryanne Wolf (O cérebro no mundo digital. São Paulo: Contexto, 2019).

Segundo a autora, a leitura profunda, especialmente em livros físicos, estimula conexões entre áreas do cérebro relacionadas à visão, à linguagem, à cognição e ao afeto. Com isso, adquirimos habilidades específicas, como a capacidade de interpretação e de análise crítica.

Levamos milênios aprendendo isso, e agora o mundo hiperconectado apresenta outra demanda. Ele exige que o cérebro lide com um grande volume de informações, de forma rápida, alterando focos de atenção. A leitura se torna superficial, pois o estilo de leitura (como lemos) se alinha ao estilo da escrita (o que lemos). Isso não é uma escolha, mas uma adaptação funcional, que tem por efeitos reduzir a “paciência cognitiva” e comprometer a capacidade crítica (WOLF, obra citada, pp. 46, 91 e 109, passim.).

É certo que esse rol de transformações não afeta igualmente todas as pessoas, pois sempre haverá componentes individuais na equação. Além disso, os efeitos mais extremos se associam a perfis específicos e mesmo a distúrbios de personalidade. Os estudos apresentados importam, contudo, para entender um contexto que não pode ser ignorado pelo Direito: ao migrar para as redes, as interações humanas não apenas adotaram uma nova tecnologia e uma nova linguagem, mas passaram a ser influenciadas por esse novo meio.

O novo paradigma comunicacional desafia a sociedade como um todo. Os comportamentos, em geral, passam a ser afetados pela dinâmica de hiperestímulo a prazeres sensoriais, ligados a emoções básicas (medo, raiva, tristeza, alegria e amor). Isso se dá em detrimento de interações conscientes, reflexivas e empáticas.

É nesse cenário que o fenômeno das fake news se instalou. Ele está associado a um tipo de mentalidade, de identidade e de padrão de leitura que passou a prevalecer na era digital.

Encontra-se hoje empiricamente demonstrado que as notícias falsas produzem mais engajamento nas redes que notícias verdadeiras. Trago no voto os dados que indicam que as histórias fabricadas circulam 70% mais rápido que notícias verídicas, sendo que, no caso de conteúdos políticos, a velocidade chega a ser o triplo da usual. Esse alcance não é determinado por robôs, mas, sim, por humanos, atraídos pela “novidade” e, por isso, suscetíveis a compartilhar os conteúdos falsos (VOSOUGHI, Soroush; ROY, Deb; ARAL, Sinan. The spread of true and false news online. In: Science, 2018, v. 359, n. 6380, pp. 1146-1151).

Foi a velocidade da circulação das notícias falsas que, de início, motivou a criação de uma indústria pensada para distribuí-las. Uma pesquisadora e um pesquisador da Universidade de Cambridge foram a campo estudar o marco da explosão mundial das fake news na política. O trabalho, publicado em 2021, investigou a fabricação, por jovens da cidade de Veles, na Macedônia do Norte, de conteúdos favoráveis a Donald Trump e prejudiciais a Hillary Clinton, o que, conforme diversas análises reportadas no estudo, acabou por afetar as eleições presidenciais dos EUA em 2016 (HUGHES, Heather; WAISMEL-MANOR, Israel. The Macedonian Fake News Industry and the 2016 US Election. In: PS: Political Science & Politics, 2021, v. 54, n. 1, pp. 19-23.)

Chama a atenção que o objetivo inicial dessas pessoas era apenas “caçar cliques” para monetizar de seus sites via anúncios. Rapidamente, elas constataram que as notícias falsas sobre política eram mais bem sucedidas. Mais que isso, viram que conteúdos identificados com o espectro de um dos partidos tinham muito mais êxito que os inclinados a favor do outro. E foi somente por isso, visando ganhos econômicos, que passaram a utilizar técnicas para alcançar o público que tornaria o negócio mais rentável.

O impacto no pleito que estava em curso no outro lado do planeta foi estarrecedor: “nos três meses finais da campanha presidencial de 2016 nos EUA, as vinte notícias falsas com melhor desempenho no Facebook geraram mais engajamento (isto é, compartilhamentos, reações e comentários) que as vinte matérias de grandes veículos de imprensa [...] que mais se destacaram” (HUGHES; WAISMEL-MANOR, The Macedonian Fake News Industry and the 2016 US Election. In: PS: Political Science & Politics, 2021, v. 54, n. 1, p. 19, tradução livre).

Os jovens da Macedônia do Norte interferiram nas eleições estadunidenses de modo um tanto acidental. Mas, em outros casos, as notícias falsas, junto a outras técnicas de manipulação da opinião, passaram a ser utilizadas de forma bastante consciente para produzir resultados políticos.

Percebido o potencial das fake news para promover engajamento político não a partir de pautas propositivas, mas da mobilização de paixões, seu uso foi rapidamente incorporado a ações estratégicas de grande impacto. Foi o que ocorreu, por exemplo, no Brexit, no Reino Unido.

Esse novo modelo de marketing político foi descrito em 2019 por Giuliano Da Empoli, em sua obra Engenheiros do caos, como capaz de “transformar a própria natureza do jogo democrático”. A “engenharia do caos” tem como pilares: a) recusa à intermediação; b) priorização do engajamento (adesão imediata); e c) estímulo à lealdade a qualquer posição que “intercepte as aspirações e os medos – principalmente os medos – dos eleitores” (EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do caos. São Paulo: Vestígio, 2022, p. 20).

As fake news possuem papel central nesse modelo, que observa uma lógica “mais concentrada na intensidade da narrativa que na exatidão dos fatos” (obra citada, p. 23). Já não é mais preciso “unir as pessoas em torno de um denominador comum”, pois o jogo passa a ser “inflamar as paixões” do maior número de pessoas, para verdadeiramente viciá-las. No mundo das redes sociais, “a nova propaganda se alimenta sobretudo de emoções negativas, pois são essas que garantem maior participação, daí o sucesso das fake news e das teorias da conspiração” (Obra citada, p. 21).

Os eventos minuciosamente descritos no livro de Empoli desenham um quadro preocupante. Nota-se que os “laços fracos”, referidos por Manuel Castells no início do milênio como característica da comunicação na internet, têm sido explorados com a finalidade de gerar e manter mobilização de caráter altamente passional. Por suas características inflamáveis, essa mobilização acaba por direcionar um sentimento de inconformismo, nem sempre bem elaborado individualmente, para uma ação coletiva antissistema e antidemocrática.

Discursos xenofóbicos, por exemplo, se fortalecem com base em mentiras fabricadas para acirrar o ódio contra imigrantes, pouco importando que checagens revelem a falsidade do conteúdo. Isso foi admitido por Arthur Finkelstein, conselheiro de Viktor Orban, pouco após a eleição deste como Primeiro-Ministro da Hungria em 2010:

“Eu me desloco muito pelo mundo e vejo, [a]onde vou, um grande volume de raiva. [...] Há um só grito: eles roubam nosso trabalho, eles mudam nosso estilo de vida. Isso produzirá uma demanda por governos mais fortes e homens mais fortes, que ‘impeçam essa gente’, quem quer que seja ‘essa gente’. Eles falarão de economia, mas a essência de seu negócio é outra: é a raiva. É uma grande fonte de energia que está em pleno desenvolvimento no mundo inteiro

(FINKELSTEIN apud EMPOLI, obra citada, pp. 84-85)

Como se nota, o problema dessa “nova propaganda” não é que ela sirva a uma ou outra vertente político-partidária, escolhida por qualquer pessoa com base em informações verídicas. O problema é que há uma dinâmica que interfere na própria autonomia dos sujeitos, que se veem mobilizados de forma contínua por notícias falsas de teor agressivo, conspiracionista e/ou discriminatório, produzidas sob medida para sintonizar suas angústias e reverberar suas frustrações.

O uso disseminado das fake news como ferramenta de mobilização de paixões pode produzir desdobramentos político-eleitorais. Não importa a motivação do agente. O ponto é que está empiricamente demonstrada a maior capacidade das notícias falsas de intensificar o tráfego para sites, canais e perfis que as divulgam. Isso permite colocar em estado de latência um potencial de ação coordenada, que pode ser disparado por pessoas e entidades que saibam fazer uso dessa “engenharia do caos”.

Apresentado o contexto do alastramento da desinformação com impactos no ambiente democrático, passa-se a abordar o texto desinformativo e os sentidos nele implicados.

1.2.3 Prática discursiva na desordem informacional

Os seres humanos desenvolveram conhecimento em volume e complexidade incomparáveis a qualquer outra espécie. Estudiosos da teoria da mente, investigando as razões desse êxito, têm indicado dois fatores interligados: o desenvolvimento de habilidades cognitivas complexas e a comunicação com os demais membros da comunidade (SPERBER, Dan, et al. Epistemic vigilance. In: Mind & Language, v. 25, n. 4, 2010, pp. 359-293).

O trabalho cognitivo, tanto quanto o trabalho material, possui custos, e, por isso, as comunidades humanas se organizam de modo a estabelecer uma divisão social que reduz esses custos e otimiza seus resultados. As pessoas se especializam em uma ou algumas áreas de conhecimento. O resultado é que uma comunidade, considerada em seu conjunto, sabe, sempre, muito mais do que qualquer dos indivíduos que a compõem.

Assim, para tomar decisões seguras e eficientes, as pessoas recorrem ao conhecimento que possuem, mas, com muito mais frequência, ao conhecimento coletivamente transmitido. Isso significa que transitamos continuamente entre dois tipos de normatividade: a epistêmica e a de coordenação (SPERBER et al, obra citada).

A normatividade epistêmica diz respeito a “em que acreditamos”. Ela nos orienta a confiar no conteúdo daquilo que somos capazes de compreender e aceitar como corretos. Ela envolve aplicar conhecimentos prévios para interpretar e validar novos conhecimentos e formular testes que permitam eliminar eventuais erros cognitivos. É o nosso aprendizado autônomo, que, como sabemos, tem um alto custo, isto é, exige muita dedicação (SPERBER et al, obra citada).

Já a normatividade de coordenação diz respeito a “em quem acreditamos”. Ela nos orienta a confiar em fontes que respeitamos sobre determinado assunto. É ela que nos permite agir de forma segura e efetiva em temas nos quais não somos especialistas – como quando tomamos cuidados com a saúde que asseguram nossa sobrevivência. Selecionamos a fonte confiável com base em duas características: a) competência, isto é, ela detém informações verídicas; e b) benevolência, isto é, ela possui um genuíno interesse em informar sua audiência, pois não adianta deter a informação verídica e querer ocultar ou adulterar essa informação (SPERBER et al, obra citada).

Fácil perceber que, ao longo da vida, dependeremos fortemente de saberes que não detemos e que não conseguiremos (ou desejaremos) adquirir em tempo hábil para nos serem úteis. É impossível sabermos tudo sobre todos os assuntos. Por isso, a confiança é um elemento chave da nossa evolução (PERINI-SANTOS, Ernesto. Desinformação, negacionismo e pandemia. In: Filosofia Unisinos, v. 23, n. 1, 2022, p. 9).

No entanto, nem toda informação a que estamos expostos é verídica, e nem todas as fontes são bem-intencionadas. A boa notícia é que somos geneticamente programados para aprender a distinguir um conteúdo falso e, ainda, para perceber quando outra pessoa tenta nos enganar. Crianças começam a desenvolver essa habilidade a partir dos três anos.

Essa habilidade é chamada “vigilância epistêmica”, que consiste em uma espécie de “fact checking” genético que nos permite avaliar se os conteúdos são válidos e se as fontes são confiáveis, ou seja, se são competentes e benevolentes (SPERBER, Dan. Intuitive and Refective Beliefs. In: Mind and Language).

De sua parte, a fonte age com intencionalidade, seja para divulgar uma informação de interesse particular ou público, ou para levar alguém a agir de alguma forma. A intenção da fonte – ou seja, sua pretensão comunicativa – não é definida apenas pelo uso literal das palavras. Há outros elementos envolvidos na construção dos enunciados e, também, elementos contextuais, que, em conjunto, permitem a quem recebe uma mensagem extrair seu sentido.

Por isso, mesmo de um ponto de vista linguístico, nos atemos apenas ao texto. Nosso esforço cognitivo é voltado para entender o discurso, ou seja, uma interpretação contextualizada do que está sendo dito ou lido. É assim que nos comunicamos. O sujeito enunciante, que se comunica em um determinado contexto, não pode almejar uma completa ausência de responsabilidade pela interpretação que é feita para além da literalidade do que ele diz ou escreve.

Por exemplo, o popular “paradoxo do elefante cor-de-rosa” mostra que é inócuo instruir alguém a não pensar em algo, mesmo que seja algo improvável. A frase “não pense em um elefante cor-de-rosa” leva quem a escuta a fazer o contrário, e pensar no animal. Se o emissor nada tivesse dito, seria muito mais provável que o receptor nunca imaginasse o paquiderme colorido (WEGNER, Daniel et al. Paradoxical effects of thought suppression. In: Journal of Personality and Social Psychology, 1987, v. 53, n. 1, pp. 5–13)

Ou seja: quem diz para que outra pessoa não pense em algo inevitavelmente aborda o objeto ou evento indesejável, e isso causa um efeito paradoxal. O destinatário não tem como “obedecer” ao comando sem antes fazer a imagem mental do objeto ou evento, e, ao fazer isso, já “desobedeceu”. Por isso, em situações como essa, não há como dizer que o enunciante tinha, genuinamente, a intenção de impedir os pensamentos que instigou com a sua fala.

Estudos mais recentes demonstram que esse efeito não se produz em igual escala para qualquer tipo de pensamento. As sugestões relacionadas a emoções negativas são mais intensas e podem até mesmo levar a comportamentos obsessivos. Cria-se o chamado “pensamento intrusivo”, que leva as pessoas a ficarem remoendo ideias indesejáveis. Quando dotado de alta intensidade, esse tipo de pensamento pode efetivamente comprometer o processo de tomada de decisões (KÜHN, Simone et al. The neural representation of intrusive thoughts. In: Social Cognitive and Affective Neuroscience, v. 8, n. 6, 2013, pp. 688-93; GUSTAVSON, Daniel et al. Evidence for transdiagnostic repetitive negative thinking and its association with rumination, worry, and depression and anxiety symptoms: a commonality analysis. In: Collabra Psychol, v. 4, n. 13, 2018).

Além da intencionalidade, a fonte age para convencer que possui alguma dose de autoridade no tema. Isso é essencial para ter êxito em exercer seu papel na coordenação do conhecimento.

Raramente há o contato direto com as mais altas autoridades em um tema. O mais comum na difusão de informações relevantes para a sociedade é que as acessemos por meio de intermediários. Forma-se assim uma cadeia de transmissão de conhecimento, assentada na confiança.

Esta é exatamente a dinâmica da normatividade por coordenação. Uma médica que nos prescreve um medicamento “é um elo na cadeia de transmissão do conhecimento científico”. Sabemos, por exemplo, que ela não desenvolveu o medicamento ou testou sua eficiência – ao menos não sozinha. Sabemos que ela nos transmite orientações práticas por também confiar em outros elos da cadeia, que selecionou com base em conhecimentos prévios. E sabemos também que, nos pontos mais altos dessa cadeia, estão comunidades de especialistas que usam critérios muito rigorosos para validar um conhecimento – como os institutos de pesquisa ou a Organização Mundial de Saúde (PERINI-SANTOS, obra citada, p. 9).

Por isso, um componente muito importante da nossa cultura é a deferência às instituições. As fontes que se colocam como elos da cadeia coordenada buscarão, de algum modo, indicar que são confiáveis. Elas farão isso sustentando que reproduzem informações ou propõem ações com base em conhecimento ao qual a sociedade deve deferência, considerando-se o prestígio de uma fonte primária.

O que acontece à medida que uma fonte ganha a confiança de uma determinada audiência é que esse público tende a reduzir sua vigilância epistêmica em relação ao conteúdo divulgado por essa fonte. Ou seja, uma audiência cativa passa a aceitar como válida uma informação apenas por derivar daquela fonte e toma decisões com base nisso, sem fazer questionamentos. Feito um cálculo de custo-benefício, as pessoas consideram mais vantajoso acreditar no que diz a fonte e agir como ela sugere, do que investir em trabalho cognitivo para checar essas informações.

A essa altura, já se torna simples visualizar como as fake news afetam negativamente a cadeia de transmissão de conhecimento assentada na confiança.

Veja-se, por exemplo, o desenvolvimento da indústria de notícias falsas da Macedônia do Norte e seus efeitos nas eleições estadunidenses de 2016. Para formar uma audiência, os produtores de conteúdo investiram em elementos que pudessem qualificá-los como fonte confiável. Seguiram padrões de páginas, copiaram textos e, de início, divulgaram notícias, em sua maior parte, verídicas, ainda que optassem por manchetes sensacionalistas.

Gradativamente, a vigilância epistêmica dos seus seguidores diminuiu. As páginas intensificaram os conteúdos falsos, para que refletissem algo que, de antemão, o público fidelizado queria encontrar: a confirmação de suas crenças. Os afetos mobilizados, especialmente negativos, traduziram-se em mais compartilhamentos e acessos.  Assim, os sites da Macedônia do Norte, dissimulando tanto competência, quanto benevolência, tornaram-se influentes em enorme escala.

Diante dos estudos realizados para a elaboração deste voto, foi possível chegar a uma conclusão relevante: o que se denomina desordem informacional pode então ser compreendido como uma grave crise de confiança, em que distorções da normatividade de coordenação (que nos ensina em quem confiar) acabam por degradar a normatividade epistêmica (que nos diz em que conteúdo confiar). Isso produz impactos negativos sobre a distribuição social do trabalho cognitivo e sobre o processo de tomada de decisões válidas ou corretas.

A prática discursiva na desordem informacional provoca um curto-circuito na nossa vigilância epistêmica. Isso porque as fontes de notícias falsas, para persuadir o público de que são competentes em determinados temas, contestam continuamente as fontes de conhecimento especializado.

Não se trata, aqui, do salutar debate em torno de conhecimentos científicos ou de informações oficiais e técnicas. Trata-se de pura e simples substituição da deferência às instituições pelo repúdio a estas, subvertendo por completo, a partir de premissas conspiracionistas, a lógica da confiança que molda nossa sociedade.

Esse efeito é poderoso, porque parte de pretensões humanas bastante legítimas, que são a distribuição simétrica do conhecimento e a simplificação da linguagem. De fato, é salutar que busquemos democratizar o conhecimento, de modo a tornar o saber acessível a mais pessoas e a permitir que possam opinar livremente.

Ocorre que simplesmente não temos como saber tudo de todos os temas e, por isso, dependemos de saberes construídos pela coletividade. Quando a ânsia por não depender de especialistas e por poder opinar sobre tudo chega ao extremo de ignorar os limites da distribuição social do trabalho cognitivo, cai-se em uma armadilha.

O resultado do repúdio a fontes institucionais não é a formação de pessoas mais autônomas e críticas, que produzem seu próprio conhecimento e estão preparadas para indicar falhas em informações oficiais. Longe disso. Conforme explica Ernesto Perini-Santos, o que surge, nesse cenário, são grupos orientados pela mobilização em torno de crenças, em que cada pessoa supre com um componente passional (o pertencimento ao grupo) a falta de um suporte epistêmico (validação de conteúdo) para suas decisões.

Segundo o autor, não se trata de um fenômeno novo, visto que pode ser ilustrado pelo surgimento do movimento terraplanista, que remonta ao século XIX. Naquele momento, já estava evidente que esse tipo de crença, profundamente anticientífica, se disseminou como resposta para o desejo de autonomia epistêmica (“eu só aceito como verdadeiro aquilo que eu mesmo posso provar”) e de distribuição simétrica do conhecimento (“cada um tem direito a sua própria opinião”). Essa satisfação é, porém, ilusória, pois os terraplanistas seguem dependendo de conhecimentos que recebem de outras pessoas, trocando fontes especializadas por outras, anônimas e sem qualificação. Cito o trecho (PERINI-SANTOS, obra citada, pp. 11-13, passim):

“Aquele que é o exemplo emblemático hoje do que se pode chamar da escolha da ignorância, o terraplanismo, tem sua motivação na demanda da autonomia epistêmica (‘eu só aceito como verdadeiro aquilo que eu mesmo posso provar!’) e da distribuição simétrica do conhecimento (‘cada um tem direito a sua própria opinião’). De fato, recusa do saber elitista (no caso, a ciência newtoniana) e a autonomia da produção do conhecimento estão na origem do terraplanismo no século XIX (Garwood, 2007).

Isto é, claro, uma ilusão. Um terraplanista também depende do que recebe dos outros, ele se baseia no recorte mais ou menos aleatório de informações científicas que supostamente apoiam suas posições que alguém produziu. Em outros termos, ele pensa estar numa cultura não humana, isto é, ele pensa estar numa cultura que só contém elementos que poderiam ter sido descobertos individualmente e que todos compreendem, o que só vale para culturas não humanas. Ele está, no entanto, apenas numa cultura humana deturpada, que tem como exigência a distribuição simétrica do saber. Mais do que a autonomia epistêmica, o que este caso ilustra é o pertencimento a um grupo que produz uma teoria que parece acessível a cada um de seus membros (todos podem entender, cada um poderia participar da produção da pesquisa etc.). Um terraplanista não é aquele que produz seu próprio conhecimento, mas alguém que escolhe uma outra comunidade epistêmica, diferente daquele que reúne especialistas reconhecidos.

[...]

Por que, em particular, confiar mais nestas pessoas do que em especialistas que publicam em revistas especializadas, que são parte de equipes de instituições reconhecidas, e que tem um custo reputacional alto em defender teses injustificadas? Porque cada um pode se identificar com um anônimo sem qualificação específica. Esta é uma escolha democrática. Esta também é a escolha da ignorância.

(Sem destaques no original.)

Como se observa, a crise de confiança, em si, não é uma novidade. No entanto, os efeitos dessa crise sobre a tomada de decisões individuais e coletivas foram dramaticamente potencializados pelo uso estratégico de informações falsas como ferramenta para produção de engajamento na sociedade em rede. A internet cria um “mercado informacional desregulado”, em que os custos financeiros e reputacionais diminuem, aumentando a proliferação de conteúdos que antes eram marginais (PERINI-SANTOS, obra citada, p. 23.).

Não por acaso, a despeito das retumbantes evidências científicas contrárias à ideia de que viveríamos em um planeta achatado, o terraplanismo do século XIX vem ganhando adeptos em pleno século XXI. Comunidades se formam a partir dessa crença compartilhada, que é indissociável de teorias conspiracionistas envolvendo instituições como a NASA.

A intensidade das interações propiciadas pela comunicação muitos-para-muitos dentro desses grupos gera para seus membros o conforto do pertencimento. As “bolhas” operam como instâncias protegidas contra testes de validação dos conteúdos aceitos nessas comunidades. Fontes científicas e oficiais são repudiadas, o que inviabiliza o exercício da vigilância sistêmica. As recompensas emocionais decorrentes do engajamento virtual desestimulam o esforço cognitivo de avaliar se os demais membros do grupo são fontes confiáveis e se as informações compartilhadas são verídicas.

Se esse comportamento pode, em tese, ser considerado inofensivo no que diz respeito ao terraplanismo, o mesmo não se pode dizer em relação a outros temas. Recentemente, a pandemia da Covid-19 serviu de triste laboratório para a observação de que o negacionismo científico pode determinar o aumento de riscos coletivos e até a morte. Da mesma forma, a desinformação política deu mostras, no mundo, de seu poder de provocar o esgarçamento do tecido democrático.

Um último ponto a ressaltar no tema é que, evidentemente, não se pode tomar por premissa a má-fé na divulgação de informações falsas. Ou seja, uma fonte que não tem competência (conhecimento verídico) pode agir de forma benevolente (isto é, acreditando divulgar informações verídicas relevantes para a tomada de decisões corretas). Não é inusual que vieses, dos quais ninguém escapa, vez por outra levem as pessoas a repassar conhecimentos equivocados ou mesmo inteiramente falsos.

Será então preciso distinguir situações em que é aceitável que pessoas se comportem com uma dose de descuido no exercício da vigilância epistêmica e difundam desinformação, de outras em que isso é intolerável.

Para estabelecer essa diferença, adoto a distinção entre dois conceitos de responsabilidade moral. Uma primeira noção de responsabilidade exige demonstrar que a conduta é a manifestação dos objetivos, compromissos ou valores de uma pessoa. Somente assim ela poderia ser moralmente responsável por seus atos. Em um segundo tipo de responsabilidade, avaliam-se “práticas sociais e institucionais que distribuem deveres e ônus entre os diversos papéis e posições existentes na comunidade moral”, tornando a pessoa “responsável por suas ações [...] quando é apropriado que outras pessoas nutram certas expectativas e demandas a respeito dessas ações” (ZHENG, Robin. Attributability, accountability and implicit bias. In: Implicit bias and phylosophy, v. 2. Oxford: Oxford University Press, 2016, pp. 62-63.).

Esse segundo modelo vem a ser a accountability, que equivale a uma exigência mais elevada em torno da adoção de comportamentos socialmente adequados. Se os padrões de conduta não forem observados, a pessoa será responsabilizada. Como explica Vinícius Diniz Monteiro de Barros, não se exigirá, portanto, “que o comportamento seja reflexo da unidade moral do agente como sujeito racional para que a ele se impute a tarefa de lidar com as consequências de seus atos” (MONTEIRO DE BARROS, Vinícius Diniz. Vieses implícitos, controle interno e institucionalidade. Tese (em elaboração). Doutorado em Filosofia. FAFICH-UFMG. Belo Horizonte, 2023).

A accountability já foi assimilada ao campo da responsabilidade jurídica. Ela é pertinente para avaliar as condutas das pessoas que ocupam posições públicas, para as quais há um dever de zelo em um patamar que não se exige de outras pessoas. A categoria pode ser aproveitada para a análise de ilícitos eleitorais.

Os bens jurídicos eleitorais podem ser compreendidos como uma síntese de expectativas coletivas a respeito do comportamento de candidatas e candidatos. As prerrogativas de participação política que ostentam justificam que se submetam ao regime da accountability. Ou seja, ao se habilitarem para concorrer às eleições, essas pessoas se sujeitam a ter suas condutas rigorosamente avaliadas com base em padrões democráticos, calcados na isonomia, na normalidade eleitoral, no respeito à legitimidade dos resultados e na liberdade do voto.

Essa avaliação rigorosa não recai apenas sobre o agir em sentido estrito – como realizar uma carreata, ou custear despesas eleitorais. Ela incide também sobre a prática discursiva. Afinal, candidatas e candidatos exercem um importante papel na coordenação do conhecimento. Essas pessoas disputam a confiança de outras em temas de interesse da sociedade. Atuam, assim, como fontes de informação. Usam da comunicação para convencer eleitoras e eleitores a agir de um determinado modo: apoiar pautas, engajar-se na campanha, persuadir outras pessoas e, enfim, votar da forma sugerida.

Para atingir esse objetivo, é lícito que emitam opiniões e interpretem fatos de acordo com sua visão e inclinação políticas. Mas lhes é vedado utilizar informações falsas como ferramenta de mobilização política, como estratégia de domínio do debate público ou, no limite, para criar riscos de ruptura democrática.

A accountability tem relação muito estreita com a normalidade eleitoral. Isso porque, em boa definição, esse bem jurídico constitui “antecedente elementar da legitimidade do pleito, envolvendo um processo de assimilação e respeito de uma cultura de adesão incondicional aos valores democráticos” (ZILIO, obra citada, p. 72). Impõe-se, assim, a candidatas e candidatos aderir à “normalidade eleitoral como exigência inegociável para o exercício legítimo da liberdade de expressão” (GRESTA, Roberta Maia. Normalidade eleitoral é só para inglês (do século XIX) ver? In: Boletim ABRADEP, n. 4, jul. 2022, p. 15).

Em síntese, partindo-se da premissa que a prática discursiva produz implicações na prática social, candidatas e candidatos podem ser responsabilizados se atuarem como fonte da qual deriva a desordem informacional com impacto nas eleições. É exigível dessas pessoas uma atitude de vigilância epistêmica em relação ao conhecimento que divulgam, pois é seu dever zelar pela preservação do ambiente democrático.

1.3 A tutela dos bens jurídicos eleitorais por meio da AIJE: abordagem geral e particularidades das eleições presidenciais de 2022

A ação de investigação judicial eleitoral – AIJE – é instituída no art. 22 da LC nº 64/1990 como procedimento para a tutela da legitimidade e da normalidade do pleito, bens jurídicos severamente afetados por práticas abusivas que envolvam desvio de finalidade do poder político, uso desproporcional de recursos públicos em desconformidade com a legislação eleitoral e utilização indevida de meios de comunicação social para beneficiar determinada candidatura.

A referência ao desequilíbrio entre os concorrentes também deixa implícito o objetivo de proteção da isonomia.

A LC nº 64/1990, em seu art. 19, ainda prevê a atuação das Corregedorias para apurar transgressões que ofendam a liberdade do voto, ao passo em que o parágrafo único do dispositivo indica que essa apuração será enfocada na proteção da normalidade e na legitimidade das eleições. Nesse sentido, deve-se entender que a AIJE resguarda uma dimensão coletiva e principiológica da liberdade do voto, portanto, mais ampla que aquela referida na Lei nº 9.504/97, ao tipificar a captação ilícita de sufrágio.

Transcrevo os dispositivos da LC nº 64/1990 que elencam os bens jurídicos tutelados pela AIJE, juntamente com as modalidades abusivas que podem malferi-los:

“Art. 19. As transgressões pertinentes à origem de valores pecuniários, abuso do poder econômico ou político, em detrimento da liberdade de voto, serão apuradas mediante investigações jurisdicionais realizadas pelo Corregedor-Geral e Corregedores Regionais Eleitorais.

Parágrafo único. A apuração e a punição das transgressões mencionadas no caput deste artigo terão o objetivo de proteger a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou do abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta, indireta e fundacional da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

[...]

Art. 22. Qualquer partido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleitoral poderá representar à Justiça Eleitoral, diretamente ao Corregedor-Geral ou Regional, relatando fatos e indicando provas, indícios e circunstâncias e pedir abertura de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político, [...]”

(Sem destaques no original.)

Rodrigo López Zilio destaca que a normalidade e a legitimidade do pleito, a isonomia e a liberdade do voto são princípios do Direito Eleitoral elevados a “bens jurídicos eleitorais, na medida em que exercem a função de proteção das regras do jogo eleitoral e, por via reflexa, servem de elementos estruturais de conformação material ou de pressupostos de configuração dos ilícitos eleitorais” (ZILIO, Rodrigo López.  Decisão de cassação de mandato: um método de estruturação. 2. ed. São Paulo: JusPodivm, 2023, p. 65).

Assim, as expectativas de comportamento estabelecidas com base nesses bens jurídicos parametrizam o juízo quanto à “desproporcionalidade” de uma conduta, elemento essencial à configuração do abuso.

Os bens jurídicos referidos podem ainda ser compreendidos como direitos difusos, quando pensados da perspectiva de cidadãs e cidadãos que exercem direitos políticos no processo eleitoral, seja na posição de votantes, seja disputando um cargo. São requisitos, efetivamente, indispensáveis para a estruturação do ambiente democrático que alicerça a possibilidade de eleições hígidas, republicanas e pacíficas.

Ao longo das Eleições 2022, foi conferido destaque à função preventiva da AIJE. Teve-se em vista que a máxima efetividade da proteção jurídica buscada por essa ação reclama atuação tempestiva, destinada a prevenir ou mitigar danos ao processo eleitoral. Para essa finalidade, adotou-se a técnica de antecipação da tutela inibitória. Isso ocorreu em dez AIJEs, inclusive no feito presente, em que meu antecessor, Ministro Mauro Campbell, ordenou a remoção do vídeo da reunião realizada no Palácio da Alvorada em 18/07/2022.

Para essa finalidade, adotou-se a técnica de antecipação da tutela inibitória, modalidade de tutela específica voltada para a cessação de condutas ilícitas, independentemente de prova do dano ou da existência de culpa ou dolo. A técnica se encontra prevista no parágrafo único do art. 497 do CPC, aplicável subsidiariamente às ações eleitorais, que dispõe:

“Art. 497. Na ação que tenha por objeto a prestação de fazer ou de não fazer, o juiz, se procedente o pedido, concederá a tutela específica ou determinará providências que assegurem a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente.

Parágrafo único. Para a concessão da tutela específica destinada a inibir a prática, a reiteração ou a continuação de um ilícito, ou a sua remoção, é irrelevante a demonstração da ocorrência de dano ou da existência de culpa ou dolo.

(Sem destaques no original.)

Bem antes do Código de Processo Civil de 2015, a tutela inibitória já integrava a disciplina da AIJE. Nesse sentido, prevê o art. 22, I, b, da LC nº 64/90 que, ao receber a petição inicial, cabe ao Corregedor determinar “que se suspenda o ato que deu motivo à representação, quando for relevante o fundamento e do ato impugnado puder resultar a ineficiência da medida, caso seja julgada procedente”. Há, nessa previsão, o claro propósito de fazer cessar a conduta ilícita, prezando-se pela eficiência da tutela jurisdicional, sem prejuízo do prosseguimento do feito com vistas à cassação do registro ou do diploma e à declaração de inelegibilidade.

A inibição de condutas pode ser determinada diante de indícios substanciais da prática com potencial abusivo, não sendo preciso verificar a efetiva ocorrência de lesão grave aos bens jurídicos. Por esse motivo, a análise da gravidade, como elemento da decisão liminar em que se avalia o cabimento da suspensão de condutas que amparam a AIJE, deve ser orientada pelo objetivo de conter a propagação ou a amplificação de efeitos potencialmente danosos, adotando-se a mínima intervenção necessária para preservar a legitimidade das eleições e o equilíbrio da disputa.

Nas eleições presidenciais de 2022, foram determinadas medidas inibitórias em dez AIJEs, inclusive no feito presente, em que meu antecessor, Ministro Mauro Campbell, ordenou que o vídeo da reunião realizada no Palácio da Alvorada em 18/07/2022 fosse removido das redes sociais do primeiro investigado e do canal da EBC. 

A aferição da gravidade feita naquele momento não se confunde com a que será feito agora, no julgamento de mérito. Na atual etapa, deve-se avaliar in concreto os efeitos das condutas praticadas, a fim de estabelecer se são graves o suficiente para conduzir à inelegibilidade dos investigados, candidatos não eleitos, na medida de sua responsabilidade.

Na hipótese dos autos, ganha relevo o debate sobre as possíveis violações à isonomia e à normalidade, que possam ter se consumado a despeito da medida inibitória adotada.

No que diz respeito à isonomia, deverá ser indagado se a reunião com os Chefes de Missões Diplomáticas, realizada no Palácio da Alvorada no dia 18/07/2022, produziu vantagem eleitoral competitiva desproporcional em favor do então Presidente da República, candidato à reeleição.

Essa análise envolverá o exame: a) do alegado caráter eleitoral do evento e, b) caso confirmado o desvio de finalidade, das circunstâncias de sua preparação, realização e divulgação, envolvendo: b.1) o uso da estrutura física e operacional da Presidência da República para a preparação e realização do evento; b.2) o uso das prerrogativas de Chefe de Estado para justificar o convite a representantes diplomáticos; e b.3) a cobertura do evento pela Empresa Brasil de Comunicação (EBC).

Quanto à normalidade, será indagado se o então Presidente da República, na ocasião, disseminou desinformação contra o sistema eletrônico de votação e a Justiça Eleitoral e, em caso positivo, se foi grave ao ponto de afetar a estabilidade do ambiente democrático. Serão analisados: a) os elementos textuais; b) o contexto em que se insere o discurso; c) a mensagem comunicada; e d) os efeitos pragmáticos da comunicação, considerando-se inclusive os meios de dispersão.

Destaque-se que as supostas afrontas aos bens jurídicos eleitorais supradescritas são imputadas pessoalmente ao primeiro investigado. No caso, além das expectativas sobre como devem se comportar todas as pessoas que se candidatam a cargos eletivos, incide o dever de observância a um estatuto próprio aplicável ao candidato à reeleição.

A Constituição, ao expressamente dispor sobre a “Responsabilidade do Presidente da República”, fez uso, no seu art. 85, de norma proibitiva (“[s]ão crimes de responsabilidade [...]”). Todavia, é elementar que se faça a primeira leitura do dispositivo como um código de conduta, que produz, para toda a sociedade, expectativas legítimas quanto ao comportamento da pessoa eleita para exercer o mais alto cargo do Poder Executivo brasileiro.

Nesse sentido, a pessoa que exerce a Presidência da República é pessoalmente responsável por zelar: a) pelo “livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação”; b) pelo “exercício dos direitos políticos”; e c) pela “segurança interna do País” (art. 85, II, III e IV, da Constituição).

As normas acima transcritas constituem padrões de conduta democrática. Sua observância é irrecusável e objetivamente imposta, independentemente de haver ou não adesão moral, íntima, por parte do mandatário ou da mandatária. Esse modelo de responsabilidade dialoga com premissas já fixadas no RO-El nº 0603975-98 (Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJE de 10/12/2021), em que se deu destaque à condição de parlamentar do investigado, e é enriquecido pelos aportes que apresentei a respeito da normatividade de coordenação.

Conjugados esses parâmetros, caberá avaliar, na hipótese em exame, se o cargo de Presidente da República: a) foi utilizado para conferir credibilidade a discurso contendo grave desinformação; b) encobriu atuação essencialmente eleitoral; c) impunha comportamentos que não foram observados pelo primeiro investigado.

Conclui-se esse tópico ressaltando que a metodologia apresentada se destina a facilitar a compreensão dos fundamentos a serem expostos neste voto. A correlação entre bens jurídicos (isonomia e normalidade eleitoral) e a tipificação do abuso de poder (político ou midiático) não são estanques. Vale dizer: os bens jurídicos eleitorais são categorias abstratas, que favorecem o desenvolvimento da argumentação jurídica, mas que, de modo algum, sugerem a fragmentação ou a compartimentalização dos fatos tratados nesta AIJE.

Na verdade, a complexidade fenomênica do objeto deste feito, ao tempo em que exige uma decomposição cuidadosa para que se compreenda cada parte, também impõe que, ao final, as conclusões parciais sejam reagrupadas para pensar o todo. Daí o espaço dedicado a apresentar essas premissas de julgamento, como consolidação (provisória) de um “estado da arte” que possibilite a compreensão abrangente das “circunstâncias [...] que preservem o interesse público de lisura eleitoral”, tal como preconizado no art. 23 da LC nº 64/1990.

Adentra-se, agora, o exame dos fatos.

2. Fixação da moldura fática a partir dos marcos temporais assinalados no discurso de 18/07/2022

Conforme já reiteradamente mencionado, a causa de pedir fática da presente AIJE é a realização de reunião havida no Palácio da Alvorada no dia 18/07/2022, na qual o primeiro investigado, então Presidente da República, proferiu discurso no qual veiculou críticas ao sistema eletrônico de votação e à atuação de Ministros do TSE. A audiência presencial foi formada por embaixadores de países estrangeiros, convocados para a ocasião. O evento foi transmitido pela TV Brasil, vinculada à Empresa Brasil de Comunicação (EBC), empresa pública, e pelas redes sociais do candidato no Facebook e no Instagram.

Esses fatos são incontroversos.

Ao apresentar sua narrativa sobre os fatos constitutivos do pedido e sobre fatos supervenientes à propositura da demanda, o autor acresce os seguintes elementos:

a) o teor do discurso disseminou severa desordem informacional, sem qualquer contribuição para a melhoria do sistema de votação;

b) essa atuação converge com estratégia de campanha, de ataque à credibilidade das urnas eletrônicas e do TSE, para mobilizar bases eleitorais;

c) a reunião, portanto, teve nítida finalidade eleitoral, mirando influenciar o eleitorado e a opinião pública nacional e internacional;

d) o uso da estrutura pública e das prerrogativas do cargo de Presidente da República foi contaminado por desvio de finalidade em favor da candidatura da chapa investigada;

e) a transmissão pela TV Brasil e pelas redes potencializou o alcance da desinformação;

f) a estratégia de descredibilização das urnas eletrônicas e os ataques à Justiça Eleitoral contribuíram significativamente para estimular a não aceitação dos resultados eleitorais por parte da população;

g) a minuta de decreto de estado de defesa apreendida na residência de Anderson Gustavo Torres em 12/01/2023 é um exemplo dos impactos dessa estratégia sobre a normalidade e a legitimidade das eleições; e

h) a minuta também indica que estava sendo gestado um golpe de Estado, convergente com o discurso de 18/07/2022, no qual se insinuou que a derrota do candidato à reeleição corresponderia à prova de fraude.

Esses pontos são veementemente rechaçados pelos investigados, que sustentam, em contrapartida, que:

a) o discurso proferido em 18/07/2022 se insere em um diálogo institucional salutar, caracterizando momento em que o então Presidente da República externou opiniões, ainda que fortes, voltadas para aperfeiçoar o sistema de votação;

b) a atuação se deu na qualidade de Chefe do Estado, dentro dos limites do cargo;

c) a reunião não teve finalidade eleitoral, eis que seu público-alvo foram as embaixadoras e os embaixadores presentes, que sequer possuem capacidade eleitoral ativa;

d) não houve qualquer desvio de finalidade em favor do candidato à reeleição, pois não houve pedido de votos, entrega de material de propaganda ou comparativo entre candidaturas, e os valores dispendidos para realizar o evento foram módicos;

e) a cobertura da TV Brasil é justificada por se tratar de evento realizado pelo Presidente da República e qualquer efeito do discurso foi prontamente inibido por manifestação do próprio TSE rebatendo os pontos, dentro do diálogo institucional esperado;

f) não se pode estabelecer qualquer correlação entre o discurso proferido em 18/07/2022 e os fatos que ocorreram ao longo do período eleitoral e mesmo após a diplomação e a posse, especialmente porque praticados por terceiros, sem prévia ciência, anuência ou participação do primeiro investigado;

g) a minuta apreendida na residência de Anderson Torres não possui qualquer valor como prova, pois é apócrifa e a perícia descartou que o primeiro investigado tenha tocado no documento, além do que não se teve notícia de convocação do Conselho da República e do Conselho de Defesa Nacional para dar início à decretação de estado de defesa.

Esta, em síntese, a controvérsia fática a ser dirimida.

Considerados esses pontos, é possível, desde logo, refutar argumentos da defesa que se destinam a, de certa forma, encapsular a reunião de 18/07/2022. Nessa linha, argumentam que não houve distribuição de material de propaganda, pedido de votos ou comparação entre candidaturas. Também enfatizaram que os diplomatas estrangeiros são pessoas sem direito ao sufrágio no Brasil, que sequer em tese poderiam ser influenciadas a votar no candidato à reeleição.

Quanto ao primeiro argumento, esta Corte, por seu órgão colegiado, já reconheceu a conotação eleitoral do evento realizado no Palácio da Alvorada em 18/07/2022, ao condenar o ora primeiro investigado por propaganda irregular anterior ao registro (RPs nos 0600549-83, 0600550-68, 0600556-75 e 0600741-16, Rel. Min. Maria Claudia Bucchianeri, DJe de 01/10/2022).

Ainda que não tivesse havido esse prévio pronunciamento, nítido que a causa de pedir não envolve alegação de que houve pedido de votos dirigidos ou outra forma explícita de propaganda. O caráter eleitoreiro é apontado com base na alegada conexão entre o teor da fala do primeiro investigado e sua estratégia de campanha à reeleição.

No que diz respeito ao segundo ponto, é incontroverso que a reunião foi transmitida por emissora pública e pelas redes sociais do próprio investigado, alcançando púbico amplo. Além disso, outros fatores, como os motivos para que a plateia fosse composta por embaixadoras e embaixadores, que merecem análise cuidadosa.

Assim, o fato de não ter havido ato típico de propaganda eleitoral ou de o discurso não ser proferido para uma plateia presencial de eleitoras e eleitores não abala a causa de pedir deduzida nesta AIJE, sob qualquer ângulo.

O encapsulamento proposto como estratégia de defesa também sugere que o evento de 18/07/2022 seja analisado de forma pontual e isolada, sobretudo em relação ao discurso do primeiro investigado. Ocorre que não há como dissociar os fatos e o contexto em que ocorreram.

Toda comunicação é pragmática, pois se destina a influenciar ideias e comportamentos dos destinatários. Essa característica inafastável da interação humana não é negada pela defesa, que reiteradamente atribui ao discurso uma finalidade pragmática: defender melhorias no sistema de votação, de forma construtiva. É questão fática relevante avaliar se os investigados têm razão ou se, ao contrário, acerta o autor ao imputar à fala aptidão para gerar grave desordem informacional.

Para tanto, não é necessário fazer uma (impossível) incursão à mente do falante. A dimensão pragmática do discurso exige que seja feita uma análise contextualizada, em busca das implicações culturais e sociais dos atos de fala. Trago um exemplo simples. Se uma pessoa diz a outra, em uma sala fechada, que o ambiente está muito quente e a outra prontamente liga o ar-condicionado ou abre as janelas, tem-se uma comunicação de sentidos exitosa, com o cumprimento da função pragmática da linguagem, ainda que a primeira pessoa não tenha dito “por favor, ligue o ar-condicionado”. Note-se que o mesmo comentário feito em um outro contexto, como uma praia, talvez levasse a interlocutora a oferecer uma água-de-coco a quem diz “está muito quente”.

Em qualquer caso, vê-se que a captação dos sentidos implícitos do ato de fala é elementar à comunicação humana e que se sobrepõe naturalmente, para a imensa maioria das pessoas, ao apego literal à palavra dita. É assim que otimizamos os resultados da comunicação, em todos os campos da nossa vida.

O deslinde do julgamento que ora se inicia exige, assim, aprofundar as camadas discursivas do ato de fala praticado pelo então Presidente da República em 18/07/2022, em busca dos sentidos que foram comunicados em um contexto específico. Essa é a base fática sobre a qual deve recair a análise da gravidade qualitativa (reprovabilidade da conduta) e quantitativa (repercussão sobre a isonomia, a normalidade e a legitimidade das Eleições 2022).

No caso, as críticas dirigidas contra o sistema eletrônico de votação no citado discurso tiveram como fio condutor a reiterada referência a um inquérito no qual a Polícia Federal, supostamente, teria concluído que hackers tiveram acesso a “diversos códigos-fonte” e teriam sido capazes de “alterar nomes de candidatos, tirar voto de um, transferir para outro

Ao longo do saneamento do feito, assinalou-se que a fala do primeiro investigado em 18/07/2022 fez uso de marcadores cronológicos que conectaram passado, momento presente e projeções para o futuro:

a) no que diz respeito ao passado, o então Presidente abordou a alegada fraude nas Eleições 2018, passando pela advertência de que não poderia ter havido eleições em 2020 antes da “apuração total” do ocorrido, rememorou denúncia que teria feito em 2021, com base em inquérito da Polícia Federal, e lamentou a rejeição do voto impresso;

b) o momento presente é descrito como de continuidade da suposta vulnerabilidade do sistema de votação e de recusa do TSE em adotar medidas para assegurar transparência e confiabilidade, havendo enfática queixa em relação à recusa de propostas das Forças Armadas, tudo a justificar a suposta urgência do então Presidente da República em tratar do tema com embaixadoras e embaixadores de países estrangeiros, na iminência do período eleitoral de 2022; e, por fim,

c) olhando para o futuro próximo, o primeiro investigado disparou alertas em relação ao risco de que a democracia ruísse com a proclamação de um presidente que poderia não ser o mais votado nas urnas, e insistiu na enfática reivindicação, somente compreensível nesse arco narrativo alarmista, de que as Eleições 2022 fossem “limpas, transparentes, onde o eleito realmente reflita a vontade da sua população”.

Esses três marcos temporais serão, a seguir, dissecados, a fim de fixar com máximo detalhamento a moldura fática que resulta da instrução probatória.

Duas últimas notas sobre o exame da prova.

Primeira: esta ação não encampa a apuração de condutas criminais, eventualmente praticadas pelos investigados ou por terceiros, tais como o hacker que atacou a rede da Justiça Eleitoral em 2018 e o ex-Ministro da Justiça e da Segurança Pública, Anderson Gustavo Torres. Por isso, essas condutas, e as investigações que lhes são correlatas, serão referidas somente naquilo que possam importar para a análise dos ilícitos eleitorais (abuso de poder político e uso indevido de meios de comunicação) que alegadamente se configurariam na reunião de 18/07/2022.

Segunda: não está em discussão, neste processo, qualquer proposta de melhoria para o sistema eletrônico de votação, tampouco a valoração política dos debates travados em torno da PEC nº 135/2019, que versou sobre o voto impresso. Bem assim, a preferência do primeiro investigado, de algumas testemunhas e de qualquer cidadão ou cidadã pela impressão de comprovante de voto é inteiramente irrelevante. O que se investiga são condutas do primeiro investigado, ao tempo em que era Chefe de Estado e resolveu, na iminência do pleito no qual disputaria reeleição, performar um determinado discurso sobre a governança eleitoral brasileira, perante representantes de corpos diplomáticos estrangeiros e perante o público que assistiu a transmissão na TV Brasil e nas redes sociais.

2.1 O fato central (presente): reunião do então Presidente da República com Chefes de Missões Estrangeiras no Palácio da Alvorada em 18/07/2022

O exame dos fatos principia pelo que se chamará “momento presente” e que, como fato constitutivo central da causa de pedir, funciona como um “marco zero” da análise da prática discursiva: a reunião realizada em 18/07/2022 no Palácio da Alvorada, ao qual compareceram Chefes de Missões Diplomáticas e autoridades públicas para ouvir a explanação do primeiro investigado, na condição de Chefe de Estado, a respeito do sistema eletrônico de votação adotado no Brasil.

Serão abordadas: a) a preparação do evento e as circunstâncias de sua realização; b) a análise do discurso proferido pelo primeiro investigado; e c) a cobertura da TV Brasil, a difusão nas redes sociais e as reações imediatas diante da divulgação.

 

2.1.1 A preparação do evento e as circunstâncias de sua realização

 

Em 31/05/2022, o então Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Min. Luiz Edson Fachin, discursou na abertura do evento “Sessão Informativa para Embaixadas: o sistema eleitoral brasileiro e as Eleições de 2022”. O objetivo principal do encontro era informar aos diplomatas de países estrangeiros a respeito das eleições brasileiras, em seus múltiplos aspectos, inclusive acerca da tecnologia utilizada.

Houve exposições técnicas a cargo de servidoras e servidores. Em uma das atividades, os convidados puderam realizar uma votação simulada em urnas de seções eleitorais fictícias, registrando preferência entre 18 times de futebol. Ao início, viram a impressão da zerézima. Às 17h00, acompanharam a apuração, a totalização e a divulgação do resultado. (https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2022 /Maio/diplomatas-recebem-informacoes-sobre-sistema-eletronico-de-votacao-das-eleicoes-2022).

Tratava-se, portanto, de evento organizado dentro das funções inerentes ao órgão de cúpula da governança eleitoral do Brasil, em favor da ampla transparência do processo eleitoral brasileiro, inclusive perante a comunidade internacional. As eleições culminam na expressão da soberania de um povo, que livremente escolhe suas e seus governantes e parlamentares. Daí o evidente interesse, por parte dos países com os quais o Brasil se relaciona, em compreender o processo eleitoral, bem como por parte do TSE, de dar visibilidade a normas, procedimentos e particularidades das eleições brasileiras.

Sobre o ponto, pertinente refutar a alegação da defesa, destinada a criar falsa simetria entre esse evento ocorrido no TSE em 31/05/2022 e o que viria a ser realizado no Palácio da Alvorada em 18/07/2022.

Tanto na contestação quanto nas alegações finais, os investigados sustentaram que o, à época, Presidente do TSE convocou a reunião sem estar “legitimado constitucionalmente para tanto”. A defesa buscou com isso demonstrar que os eventos seriam “assemelhados”, mas que pesaria contra a iniciativa do TSE a nota da incompetência constitucional, enquanto o Presidente da República estaria respaldado por sua competência privativa para “manter relações com Estados estrangeiros” (art. 84, VII, da Constituição).

Sabe-se, contudo, que a competência privativa do Presidente da República se refere à representação do Brasil, por seu Chefe de Estado, nas relações entre os países propriamente ditos. Essa competência convive harmonicamente com diversas outras situações em que representantes brasileiros dialogam com representantes estrangeiros sobre temas variados, de interesse recíproco.

O Tribunal Superior Eleitoral é a instituição constitucional (art. 118, I, da Constituição) que atua como órgão de cúpula da governança eleitoral. É inerente ao desempenho de suas atribuições administrativas difundir informações oficiais a respeito do sistema eletrônico de votação, sob diversos meios. A importância do diálogo conduzido pelo TSE com autoridades eleitorais e instituições de outros países levou à edição da Res.-TSE nº 23.483/2016, que “regulamenta a atuação internacional do Tribunal Superior Eleitoral”. Nela, estão tratadas:

a) a participação em foros e organizações internacionais, destacando-se que o TSE: “é o ponto focal da participação do Brasil no Instituto Internacional para a Democracia e a Assistência Eleitoral (IDEA)” (art. 2º), é membro do Conselho Eleitoral da União das Nações Sul-Americanas (Unasul), da União Interamericana de Organismos Eleitorais (Uniore) e do Protocolo de Quito (art. 3º), participa de diversos encontros, entre eles o Encontro Interamericano de Autoridades Eleitorais, realizado anualmente pela Organização dos Estados Americanos (art. 4º), e é Membro da Associação Mundial de Organismos Eleitorais (AWEB) e integrante de seu Comitê Executivo (art. 6º);

b) a participação do TSE em Missões de Observação Eleitoral, com “o objetivo de avaliar o ambiente normativo e institucional dos órgãos da Justiça Eleitoral de modo a aferir a observância do princípio da equidade nos pleitos eleitorais, com a prevalência dos direitos e garantias fundamentais, a autonomia do organismo eleitoral, a transparência e os mecanismos de controle do financiamento eleitoral, o abuso do poder econômico, o uso da máquina do Estado, o acesso de partidos e candidatos aos meios de comunicação e a garantia de recursos jurisdicionais a todos os partidos e candidatos” (art. 8º, § 2º);

c) o voto no exterior, que exige alinhamento entre o TSE e o Ministério das Relações Exteriores (art. 10); e, por fim,

d) a acolhida de comitivas e convidados estrangeiros, a respeito da qual cumpre transcrever, na íntegra o art. 9º da citada resolução:

“Art. 9º O Tribunal Superior Eleitoral, por ocasião das eleições gerais e municipais, organizará programas para convidados de organismos eleitorais estrangeiros e de organizações internacionais, objetivando demonstrar uma visão ampla do processo eleitoral brasileiro.

§ 1º Os programas para convidados internacionais, que poderão ser elaborados em cooperação com tribunais regionais eleitorais, contemplarão palestras sobre o sistema eleitoral brasileiro e visitas a seções eleitorais.

§ 2º Dar-se-á prioridade ao recebimento de missões da América Latina e da África, em coordenação com o Ministério das Relações Exteriores.”

(Sem destaques no original.)

A reunião realizada no TSE em 31/05/2022 se inseriu em programa para convidados internacionais, previsto desde 2016 e já completamente integrado ao calendário do tribunal no contexto de preparação das eleições.

Mas, mesmo que a norma regulamentar não existisse, inegável que o órgão de cúpula da governança eleitoral tem como poderes (e deveres) implícitos a difusão de informações “sérias e verdadeiras” a respeito dos sistemas eletrônicos que desenvolve, especialmente em um cenário de grave desinformação sobre o tema. Aliás, em seu depoimento em juízo, o então Ministro das Relações Exteriores, Carlos França, indagado a respeito da atuação de sua pasta em temas eleitorais, prontamente fez referência à interação entre o TSE e a chancelaria para assegurar o exercício do voto no exterior e as missões de observação internacional. A testemunha afirmou até mesmo que foi sugestão sua ao Min. Edson Fachin convidar a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) para vir ao Brasil acompanhar o pleito de 2022 (ID 158766494, p. 28).

Simples concluir que a “Sessão Informativa para Embaixadas” e outros eventos organizados pelo TSE com o objetivo de divulgar informações técnicas e corretas a respeito do funcionamento das urnas eletrônicas não dependem de previsão expressa na Constituição. O evento de 31/05/2022 não perpetrou qualquer violação aos limites constitucionais da atuação do Presidente do TSE. Assim, deve-se refutar expressamente a ideia, ainda que sugerida entrelinhas, de que o Presidente da República teria agido, em 18/07/2022, para preservar sua competência privativa na relação com países estrangeiros.

Assentada a legitimidade da realização do evento de 31/05/2022, destaco trecho do discurso do Min. Edson Fachin proferido na ocasião, quando abordada a confiabilidade do sistema de votação eletrônica brasileiro. O então Presidente do TSE prestou informações gerais sobre o sistema de votação, deixando os aspectos técnicos, naturalmente, reservados para a exposição do titular da STI/TSE. Sua Excelência também alertou os presentes quanto ao “vírus da desinformação”, que se alastrava de forma ameaçadora, incitando injustificado descrédito às urnas eletrônicas e ao próprio TSE:

“Entretanto, para além da COVID-19, cumpre constatar o infeliz espraiamento de outra forma de vírus, com efeitos deletérios sobre a saúde, não das pessoas diretamente, mas da vida democrática nacional.

Estou me referindo ao vírus da desinformação sobre o sistema eleitoral brasileiro, que, de maneira infundada e perversa, procura incessantemente denunciar riscos inexistentes e falhas imaginárias. Este Tribunal Superior Eleitoral, e toda a Justiça Eleitoral, tem de trabalhar diuturnamente para desmentir boatos sobre o funcionamento do sistema eletrônico de votação e preservar a confiança que nele deposita a grande maioria da população.

Na Sessão Informativa da jornada de hoje, procuraremos, entre outros temas, oferecer às Senhoras e Senhores um resumo de todas as camadas de segurança e de auditoria com que conta a nossa urna eletrônica. Como verão, nosso sistema eletrônico de votação é totalmente auditável, com várias entidades fiscalizadoras, incluindo a Polícia Federal, o Ministério Público Federal, a Ordem dos Advogados do Brasil e os partidos políticos.

Convido a corpo diplomático sediado em Brasília a buscar informações sérias e verdadeiras sobre a tecnologia eleitoral brasileira, não somente aqui no TSE, mas junto a especialistas nacionais e internacionais, de modo a contribuir para que a comunidade internacional esteja alerta contra acusações levianas.

A integridade e fidedignidade das eleições brasileiras tem de ser demonstrada não por frases desconexas ou declarações vazias, mas por relatórios fundamentados de especialistas na matéria.

Por essa razão, o TSE instituiu a Comissão de Transparência Eleitoral e o Observatório de Transparência Eleitoral, iniciativas que reúnem dezenas de entidades fiscalizadores e de centros de pesquisa em tecnologia, que buscam aprimorar e trazer segurança às nossas eleições.

Por essa razão convidamos, de forma inédita, e em diálogo com o Ministério das Relações Exteriores, vários organismos e centros internacionais para constituírem missões de observação eleitoral no Brasil; confirmaram presença: a Organização dos Estados Americanos (OEA), o Parlamento do Mercosul, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), a União Interamericana de Organismos Eleitorais (UNIORE), a Fundação Internacional para Sistemas Eleitorais (IFES) e a Rede Mundial de Justiça Eleitoral, além da 4 manifestação de elevado interesse do Carter Center. Muitas dessas missões contarão com engenheiros e técnicos de informática, cujos trabalhos estarão voltados especificamente para o funcionamento da urna eletrônica, a exemplo do que fez a OEA em 2018 e em 2020, cujos relatórios atestam a integridade e segurança da urna eletrônica. Teremos, ademais, corpos técnicos especializados, observadores e peritos na área, de diversas parte do mundo, convidados pelo TSE, incluindo observadores nacionais e internacionais.

Não é necessário alertar as Senhoras e os Senhores de que os desafios enfrentados pela Justiça Eleitoral brasileira não são, desafortunadamente, eventos isolados. Creio que todos aqui acompanham os perigosos sinais de ameaça à democracia em diversas partes do mundo, como pode ser atestado pelos indicadores preocupantes das últimas edições da Freedom House, do Idea Internacional e da Economist Intelligence Unit. A crise de legitimidade das democracias parlamentares, fenômeno real, pode conduzir a bandeiras populistas, quando não autoritárias, que prometem consertar um sistema que, como nos ensina a História, terminam por piorá-lo. O desafio da nossa geração é canalizar as demandas por reformas para o campo do diálogo e das instituições democráticas, onde podem prosperar com tranquilidade.

Na América Latina, em particular, os arremessos populistas incluem, em vários de seus países, investidas contra o sistema eleitoral, incluindo propostas disparatadas de reforma dos institutos eleitorais; acusações levianas de fraude, que conduzem a semanas de instabilidade política no período pós-eleitoral; e ameaças contra a integridade física e moral de autoridades. O enredo é sempre o mesmo: buscar a conturbação e incutir a desconfiança entre os espíritos mais desavisados, para minar a legitimidade dos eleitos e da própria vida democrática. Atacar o sistema eleitoral dessa maneira é atacar a própria democracia.

 Mas a maturidade e estabilidade das instituições brasileiras não permitir[ão] que esses barulhos perturbem a vida democrática. [...]

[...]

É com grande satisfação que este Tribunal compartilha com os Governos estrangeiros, representados pelo corpo diplomático que aqui nos honra com sua presença, todas as informações disponíveis na Justiça Eleitoral. O nosso compromisso de transparência extrapola nossas fronteiras e abrange todas as nações interessadas.

Tenho a convicção de que a comunidade internacional acompanha com atenção o processo eleitoral brasileiro de 2022 e contribuirá para o amadurecimento e aprimoramento de nossa democracia.

Tenham todos uma bela jornada.”

(FACHIN, Luiz Edson. Discurso de abertura da Sessão Informativa Para Embaixada, proferido em 31 maio 2022. íntegra disponível em: https://www.tse.jus.br/ comunicacao/noticias
/2022/Maio/presidente-do-tse-destaca-importancia-do-dialogo-com-a-comunidade-internacional ; sem destaques no original.)

É fato notório que o discurso acima transcrito teve significativa repercussão em veículos de imprensa, com ênfase a alguns dos trechos destacados, e, com isso, logrou ser mais uma oportunidade para a Justiça Eleitoral conclamar a sociedade a buscar informações confiáveis sobre as urnas eletrônicas. Não obstante, a mensagem despertou no primeiro investigado uma “reação”: também ele, na qualidade de Presidente da República e Chefe de Estado, faria um evento direcionado à comunidade internacional.

Está demonstrado nos autos que a reunião de 18/07/2022, no Palácio da Alvorada, foi planejada como resposta à Sessão Informativa para Embaixadores, realizada pelo TSE.

A própria contestação traça esse contexto, que denomina como “debate público completo” sobre o sistema eletrônico de votação, encadeando três episódios: a) “poucos dias antes, em 31/05/2022, o Presidente do C. TSE convocou reunião com a comunidade internacional”; b) o primeiro investigado expôs seu ponto de vista, em 18/07/2022; e c)  o TSE divulgou uma “nota pública reativa de esclarecimento”, em 19/07/2022, na qual rebateu “20 (vinte) pontos apresentados pelo investigado” (ID 157977291, p. 21).

A prova testemunhal confirmou essa dinâmica. Carlos Alberto França, então Ministro das Relações Exteriores, afirmou categoricamente que a ideia da reunião de 18/07/2022 partiu da Presidência da República – e, não, de seu Ministério – e que tinha por objetivo permitir ao Presidente, que “é quem conduz a política externa”, apresentar seu ponto de vista sobre o sistema de votação. Disse, ainda, que isso ocorreu após um “briefing” no TSE, e que foi por isso que se julgou ser papel da Presidência da República “também se manifestar diretamente”. Leia-se (ID 158766494):

“O SENHOR EMBAIXADOR CARLOS ALBERTO FRANÇA (Ministro das Relações Exteriores): Bom, essa... esse encontro ocorre... é... por iniciativa da... organizado pelo Cerimonial da Presidência da República... ah... num contato que aconteceu depois que houve aqui, houve uma espécie de briefing, ou uma reunião de coordenação aqui, no Tribunal Superior Eleitoral, né, e julgou-se então que era papel da Presidência da República também se manifestar diretamente aos chefes de missão aqui acreditados, dentro da linha de que o presidente da República é o que... enfim... conduz a política externa em relação com os Estados estrangeiros.

O DOUTOR MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (Juiz Auxiliar da Presidência do TSE): E... Ministro... o... o... o Senhor disse que houve essa decisão de se fazer essa reunião. Essa decisão partiu diretamente da Presidência da República?

O SENHOR EMBAIXADOR CARLOS ALBERTO FRANÇA (Ministro das Relações Exteriores): Essa decisão foi uma decisão da Presidência da República.”

Apesar do que foi deliberado pelo então Presidente da República, Carlos França deixou nítido que, em sua compreensão, eleições e política externa não são temas relacionados. A testemunha chegou a mostrar estranhamento ao ser perguntado se algum embaixador ou alguma embaixadora teria levado à chancelaria questionamentos sobre o sistema eletrônico. Ao negar o fato, disse que “talvez não coubesse a uma embaixada nos inquirir”, exatamente por ser tratar de um “assunto interno:

“O DOUTOR WALBER DE MOURA AGRA (advogado): No nosso sistema, integridade, é um dos melhores sistemas do mundo. No ano de 2022, ou no período em que o Senhor está no Itamarati, houve algum documento escrito de embaixada estrangeira – documento escrito de embaixada ou qualquer hierarquia das relações exteriores – que questionasse o sistema eleitoral brasileiro, Excelência?

O SENHOR EMBAIXADOR CARLOS ALBERTO FRANÇA (Ministro das Relações Exteriores): Não que eu tenha conhecimento, Doutor Walber, mas seria... é... também... é... algo de assun... de... de... de assunto interno aqui... é... que talvez não coubesse a uma embaixada nos inquirir, não é? Porque, normalmente, os requerimentos têm que tratar de uma embaixada junto com a chancelaria brasileira sobre assuntos de política externa.”

Carlos França disse que, em sua leitura, o objetivo do evento era “manifestar a posição do Executivo em relação à busca [...] desses critérios de transparência”. Ele afirmou, ainda de forma mais explícita, que essa era uma ideia do próprio Presidente da República. E destacou que o tema estava palpitante em função de se tratar de um momento pré-eleitoral:

“O SENHOR EMBAIXADOR CARLOS ALBERTO FRANÇA (Ministro das Relações Exteriores): [...] houve, na verdade, assim, eu penso, uma ideia do presidente de se dirigir aos chefes de missão, no sentido um pouco de esclarecimento, ou de dizer qual era... ah... ah... a busca que se tinha naquele momento... é..., talvez de transmitir, Excelência, um... um debate que era muito presente na sociedade brasileira naquele momento. Ah... um debate que não era exclusivo do Executivo; um debate sobre o aperfeiçoamento do sistema eleitoral brasileiro, sobre a transparência... é..., que acontecia vamos... vamos... Se eu me recordo bem, em 2019 havia uma PEC no Congresso Nacional, havia um debate sobre a questão do voto auditável. Ah... esse debate, ele depois se transfere ao Judiciário – havia uma... uma... uma... um debate todo.

Assim, e o Executivo, ele participa desse debate também. E penso que... é... a intenção do presidente da República em... em chamar aquela reunião, convocar aquela reunião, ou propor aquela reunião, era um pouco manifestar a... a posição do Executivo em relação à busca... é... dessa.... desses critérios de transparência... ah... enfim, de conformidade. A ideia de que, enfim, o voto do eleitor tinha que ser respeitado. Um pouco... um pouco, eu acho, dentro do âmbito do que se quer a democracia vibrante de um país grande como é o... o Brasil, né?

[...]

Mas... é... como eu falei, eu acho que é dentro desse espírito desse debate que há na sociedade brasileira, ou havia naquele momento pré-eleitoral, é que se convocou aquela reunião. Eu acho que era um debate que, como eu falei, já existia no Legislativo... é..., era objeto no próprio Judiciário. [...]”

O ineditismo da reunião ficou assinalado nas respostas do ex-Chanceler. Carlos França afirmou que “não é função do Itamarati, nem mesmo constitucional, de que nós nos ocupemos de temas eleitorais”. Disse, também, que, desconhece evento semelhante ao do dia 18/07/2021, em que um Presidente da República tenha se dirigido a diplomatas para tratar de sistema de votação. No final da inquirição, foi ainda mais específico e informou que conversas sobre sistemas eleitorais dos países ocorrem “num nível hierárquico muito mais baixo”, nunca envolvendo “presidente, primeiro-ministro ou chanceler”:

“O DOUTOR MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (Juiz Auxiliar da Presidência do TSE): [...] Dentre essas funções, de que foi incumbido como chanceler, estava a de tratar também sobre as eleições brasileiras com os embaixadores de países estrangeiros?

O SENHOR EMBAIXADOR CARLOS ALBERTO FRANÇA (Ministro das Relações Exteriores): Excelência, não é função do Itamarati, nem mesmo constitucional, de que nós nos ocupemos de temas eleitorais.

[...]

O DOUTOR MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (Juiz Auxiliar da Presidência do TSE): É... com relação aos fatos, especificamente antes do dia 18 de julho de 2022, já tinha sido algum... realizado algum evento com os embaixadores de países estrangeiros para tratar especificamente do sistema de votação brasileiro com ou sem a presença do presidente da República? É... eu... eu digo assim, não uma questão pontual, com um embaixador ou outro, mas uma reunião coletiva, com vários embaixadores convidados?

O SENHOR EMBAIXADOR CARLOS ALBERTO FRANÇA (Ministro das Relações Exteriores): Não. Não que eu tenha conhecimento.

[...]

O DOUTOR MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (Juiz Auxiliar da Presidência do TSE): É... é... perfeito. Ah... só complementando, na pergunta específica é se havia alguma orientação ao corpo diplomático para buscar essas informações sobre sistemas eleitorais dos países estrangeiros junto ao seu representante maior? No caso, o presidente, o primeiro-ministro, ou algo nesse sentido?

O SENHOR EMBAIXADOR CARLOS ALBERTO FRANÇA (Ministro das Relações Exteriores): Não. Com certeza, não.

O DOUTOR MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (Juiz Auxiliar da Presidência do TSE): Sempre é feito de forma protocolar, dentro da escala hierárquica do Ministério

O SENHOR EMBAIXADOR CARLOS ALBERTO FRANÇA (Ministro das Relações Exteriores): É verdade. Pode ser que haja... é... algum... algo.... alguma coisa no sentido de se buscar alguma coisa comparativa. Assim: – Olha, me... me informa como é que funciona o sistema eleitoral indiano, como funciona o sistema eleitoral boliviano. Mas isso é uma informação que... que ocorre num nível hierárquico muito mais baixo. Nunca... nunca juntam um presidente, primeiro-ministro ou chanceler mesmo, né?”

A peculiaridade do evento está também no seguinte contraste: de um lado, tem-se um motivo pontual, e um tanto pessoal, que impeliu o primeiro investigado a decidir fazer uma espécie de “evento-resposta” ao do TSE; de outro, uma grande estrutura foi mobilizada, em curto espaço de tempo, para atender a essa finalidade.

No que diz respeito à concepção do encontro, as três testemunhas ouvidas a respeito da reunião de 18/07/2022 (Carlos França, Ciro Nogueira e Flávio Viana Rocha) apresentaram relatos basicamente de meros espectadores. Embora tenham sido arroladas pela defesa com a justificativa de que, diante de suas relevantes funções desempenhadas, conheceriam aspectos particulares da dinâmica da reunião disseram, em uníssono, que não auxiliaram o ex-Presidente na preparação do material, que não foram chamados a discutir a abordagem e que desconheciam o teor da apresentação.

Ao descrever a participação da chancelaria na preparação do evento, Carlos França indicou que lhe coube sugerir o perfil do público-alvo presente, mas enfatizou que a decisão de fazer a reunião, em si, já estava tomada. Seu papel, conforme explicou, foi apenas recomendar critérios para elaborar a lista de representantes, com base em um “corte hierárquico” compatível com a presença do Presidente da República. O chanceler não soube dizer se houve ajustes por parte do cerimonial – unidade à qual coube fechar a lista e remeter os convites.

A testemunha relatou que não teve envolvimento com a produção dos slides exibidos na apresentação de Jair Messias Bolsonaro. O Itamarati foi acionado apenas para fornecer equipamento e tradutor para a tradução simultânea. Conclui o trecho dizendo “nós não tivemos acesso a esse material, e nós não fomos acionados para revisar esse material [...], não houve participação do Itamarati na substância desse evento”:

“O DOUTOR MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (Juiz Auxiliar da Presidência do TSE): Ministro... é.... então... é... só pra que... pra que fique um pouco claro... mais claro, né, do que o Senhor já... Vossa Excelência já explicou... é... o... coube à chancelaria essa... esse contato com as embaixadas?

O SENHOR EMBAIXADOR CARLOS ALBERTO FRANÇA (Ministro das Relações Exteriores): Não. É... é... o... o... o que eu fiz foi... é... auxiliar a Presidência da República naquilo que me cabe... é... na minha pasta... é... a orientação, uma vez tomada a decisão de fazer o evento, que nós julgávamos que deveria ser o público-alvo.

O DOUTOR MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (Juiz Auxiliar da Presidência do TSE): A escolha?

O SENHOR EMBAIXADOR CARLOS ALBERTO FRANÇA (Ministro das Relações Exteriores): A escolha. Exatamente. Eu disse: – Olha, esse é um evento que vai ter o presidente da República, então nós vamos fazer uma seleção das embaixadas que tem aqui... [...] nós tínhamos, vamos dizer assim, um corte hierárquico bastante claro.

[...]

O DOUTOR MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (Juiz Auxiliar da Presidência do TSE): Hum-hum. Tá. Nessa... é... é... o Senhor já explicou, já foi claro, mas, durante o evento, nessa preparação, a chancelaria, coube a ela também uma preparação de slides sobre esse sistema eleitoral, ou foi feito por outra...

O SENHOR EMBAIXADOR CARLOS ALBERTO FRANÇA (Ministro das Relações Exteriores): Não, Excelência. Essa matéria eleitoral não é matéria de competência do Ministério das Relações Exteriores. [...] Eu ajudo na logística, por exemplo, colocando tradução simultâneao equipamento e o próprio tradutor são... são... ah... contratados pelo Itamarati. A apresentação, depois, de discursos do presidente ou de ministros, aí, para que nós possamos divulgar essas ações de... de governo no exterior quando são... é... nós entendemos que é de conveniência da política externa, não é?

[...]

O DOUTOR WALBER DE MOURA AGRA (advogado): Vossa Excelência falou a respeito dos slides – se é que ficou claro para mim, me desculpe se eu estiver errado, e me corrija, por favor –, que os slides não foi feito... não foram feitos pelo Itamarati. Mas, é normal que slides não tenham sido... em outras línguas estrangeiras – inglês –, não seja corrigido pelo Itamarati?

O SENHOR EMBAIXADOR CARLOS ALBERTO FRANÇA (Ministro das Relações Exteriores): É... não. Nós... nós não tivemos acesso a esse material, e nós não fomos acionados para revisar esse material. Não... não houve participação do Itamarati na substância desse evento.

Por sua vez, o ex-Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, Flávio Augusto Viana Rocha, de início exaltou a importância estratégica da unidade que comandava. Todavia, diante de todas as perguntas sobre a reunião de 18/07/2022, descreveu uma atuação periférica. Disse não ter informação sobre a confecção dos slides exibidos pelo então Presidente e, de resto, sobre nenhum diálogo a respeito da temática eleitoral (ID 158766496):

“O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): [...] Como que o Senhor pode resumir o seu papel no governo do ex-Presidente Jair Messias Bolsonaro? A principal atividade, né?

O SENHOR FLÁVIO AUGUSTO VIANA ROCHA (testemunha): A missão precípua da Secretaria de Assuntos Estratégicos é pensar o Brasil no futuro, pensar o futuro do Brasil, coordenando as ações e o pensamento estratégico de todos os Ministérios, de toda a Administração Pública Federal, justamente evitando o imediatismo do dia a dia. Essa era a função precípua da SAE.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Entendi. Nesse período em que o Senhor atuou nessa Secretaria, a própria Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos esteve envolvida em discussões, no Poder Executivo, sobre o sistema eletrônico de votação?

O SENHOR FLÁVIO AUGUSTO VIANA ROCHA (testemunha): Não, Senhor.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): A Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos alguma vez teve a iniciativa de levar ao presidente da República dúvida sobre a confiabilidade das urnas eletrônicas ou da atuação da Justiça Eleitoral?

O SENHOR FLÁVIO AUGUSTO VIANA ROCHA (testemunha): Não, Senhor.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Contrario sensu, a Secretaria alguma vez recebeu do presidente da República dúvida sobre a confiabilidade das urnas ou da atuação da Justiça Eleitoral?

O SENHOR FLÁVIO AUGUSTO VIANA ROCHA (testemunha): Também não, Senhor.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Entre suas funções, como Secretário Especial de Assuntos Estratégicos, estava a de tratar das eleições brasileiras com os embaixadores dos países estrangeiros?

O SENHOR FLÁVIO AUGUSTO VIANA ROCHA (testemunha): Não, Senhor.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Não? No período em que o Senhor exerceu essa atividade, alguma vez recebeu, via Ministério das Relações Exteriores, questionamentos ou dúvidas de embaixadores ou representantes estrangeiros sobre o funcionamento e confiabilidade das urnas e também sobre a atuação da Justiça Eleitoral?

O SENHOR FLÁVIO AUGUSTO VIANA ROCHA (testemunha): Não, Senhor.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): O Senhor participou, e qual foi, se participou, o seu papel, ou o papel da Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos no evento do dia 18 de julho de 2022, em que o ex-presidente se reuniu com os embaixadores de países estrangeiros para tratar do sistema de votação brasileiro?

O SENHOR FLÁVIO AUGUSTO VIANA ROCHA (testemunha): Participei, sim, Senhor. E o papel da SAE, no caso, ele se deveu... a participação da SAE se deveu a um encargo, eu não vou chamar de colateral, mas é um encargo adicional que a SAE tem, ou tinha, né, no governo do Presidente Bolsonaro, de ser... ter subordinada à SAE a chamada Assessoria Internacional do presidente. Então, qualquer tema que fizesse parte da agenda do presidente e tivesse o caráter internacional, um grupo de diplomatas a mim subordinados, subordinados à SAE, chamado Assessoria Internacional, fazia ali a formatação ou, caso necessário, alguma assessoria de último momento, como, por exemplo, organizava administrativamente, principalmente, os briefings para qualquer viagem, para qualquer telefonema, para qualquer evento que envolvesse a área internacional. [...] Daí, como era um evento que tratava de representantes estrangeiros, a Assessoria Internacional da SAE compôs ali o time de apoio... o caso dessa aí foi basicamente de apoio logístico-administrativo.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Entendi. A Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos prestou esse apoio direto ao presidente, no evento, especificamente, com sugestões de conteúdo para o discurso ou suporte de preparação de slides?

O SENHOR FLÁVIO AUGUSTO VIANA ROCHA (testemunha): Não, Senhor. Não, não houve esse nível de assessoria em relação ao evento em questão.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Os requeridos, ao requererem a oitiva de Vossa Excelência como testemunha, justificaram que, diante dessas relevantes funções desempenhadas, haveria aspectos da dinâmica do evento e que seriam de seu particular conhecimento. O Senhor consegue se lembrar de algum fato específico ou relevante à controvérsia que possa ter escapado ao registro do evento em vídeo?

O SENHOR FLÁVIO AUGUSTO VIANA ROCHA (testemunha): Não lembro, Excelência.

Nem mesmo o Senador Ciro Nogueira Lima Filho, que exerceu o relevante cargo de Ministro-Chefe da Casa Civil, relatou envolvimento substancial no evento. Na verdade, o ex-Ministro fez declarações que se distanciam da abordagem de Jair Messias Bolsonaro sobre o tema das urnas eletrônicas. De saída, expressou confiança no sistema eletrônico de votação e reconheceu a atuação da Justiça Eleitoral para seu contínuo aperfeiçoamento(ID 158766496):

“O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): No período que o Senhor atuou exclusivamente como Ministro da Casa Civil, a sua atuação esteve envolvida em discussões, no Poder Executivo, sobre sistema eletrônico de votação?

O SENHOR CIRO NOGUEIRA LIMA FILHO (testemunha): Essas discussões, no que diz respeito às urnas eletrônicas, Excelência, é uma discussão já pública, que tem ocorrido. Eu mesmo sou uma pessoa que sou defensor do nosso sistema de apuração de urnas, que eu acho plenamente confiável. Agora, sempre defendi que nenhum sistema é inviolável, tanto que a própria Justiça Eleitoral, no meu ponto de vista, sempre vai aprimorando os mecanismos para torná-lo cada vez mais seguro. Acho que essa discussão é uma discussão que nós perdemos muito tempo com ela; poderia ter sido conduzida de uma outra forma, mas o que se buscava, no meu ponto de vista, pelo presidente da República, era termos um... e isso ele ressaltou na própria reunião, nos trechos que eu me lembro e até pela degravação diz, que o que ele buscava era ter um sistema eleitoral confiável para todos os cidadãos.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Nesse sentido, a Casa Civil alguma vez teve a iniciativa de levar ao presidente da República alguma dúvida sobre a confiabilidade das urnas ou da atuação da Justiça Eleitoral?

O SENHOR CIRO NOGUEIRA LIMA FILHO (testemunha): Não, pelo contrário. Eu sempre, nas minhas discussões sobre esse tema, dizia que nós confiávamos no sistema.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): E em sentido contrário, a Casa Civil alguma vez recebeu do presidente da República dúvidas sobre essa confiabilidade das urnas ou da atuação da Justiça?

O SENHOR CIRO NOGUEIRA LIMA FILHO (testemunha): Não, nunca foi trazido isso à Casa Civil, esse tema.”

A testemunha deixou evidente que esteve alheia ao planejamento da reunião de 18/07/2022. O ex-Chefe da Casa Civil informou que não foi consultado sobre nenhum aspecto relevante da reunião com embaixadoras e embaixadores. Não teria tido, pelo que relata, oportunidade para informar ao então Presidente da República que era desfavorável ao plano. No entanto, em juízo, não se furtou a registrar sua impressão sobre o encontro que qualificou como: superdimensionado e evitável. Confira-se o contexto em que foi manifestada essa avaliação:

“O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Também como Ministro Chefe da Casa Civil, no dia 18 de julho, quando houve essa reunião do ex-Presidente Jair Bolsonaro e os embaixadores estrangeiros, o Senhor foi incumbido de tratar algum tema dessa reunião sobre sistema de votação?

O SENHOR CIRO NOGUEIRA LIMA FILHO (testemunha): Não.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): O Senhor só participou da reunião?

O SENHOR CIRO NOGUEIRA LIMA FILHO (testemunha): Exatamente. Assisti e não me manifestei, apenas assisti à reunião.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Houve algum apoio da Casa Civil direto ao presidente da República, como sugestão de conteúdo para discurso, ou preparação de slides?

O SENHOR CIRO NOGUEIRA LIMA FILHO (testemunha): Não.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): Os requeridos, quando requereram a oitiva de Vossa Excelência como testemunha, justificaram, diante de suas relevantes funções “desempenhadas”, que teriam aspectos da dinâmica do evento, que seriam do seu particular conhecimento. E o Senhor consegue, nesse sentido, se lembrar de algum fato específico, relevante para a controvérsia, que possa ter escapado ao registro desse evento em vídeo?

O SENHOR CIRO NOGUEIRA LIMA FILHO (testemunha): Olha, Excelência, acho que foi uma reunião, acho que bem tranquila; acho que ela foi superdimensionada. Foi uma reunião em que as pessoas que foram convidadas não eram eleitoras em nosso país, então não teriam influência na questão eleitoral no Brasil. É uma reunião que foram convidados, pelo que eu sei, foram convidados até os presidentes de TSE, Supremo, STJ, TST, TCU. Então, eu acho que houve um... foi um pouco superdimensionados os seus efeitos.

[...]

O DOUTOR WALBER DE MOURA AGRA (advogado): Vossa Excelência falou que não houve nenhum tipo de abuso no discurso do excelentíssimo ex-presidente República. Mas, nos autos, nós vamos ver, por exemplo, em 8 minutos ponto 12, que ele falou que não é possível acompanhar a apuração de votos; nós vamos ver, em 4 minutos e 53 segundos, que ele afirma, peremptoriamente, que um hacker teve acesso a milhares de códigos fontes; nós vamos ver, em 15 minutos e 07 e, depois, em 16 minutos e 59, que o Ministro Barroso tinha sido indicado para conceder favores ao presidente da República; em 12 minutos ponto 36, nós vamos ver que ele também fala que o Ministro Edson Fachin estaria responsável por favorecer a candidatura do Presidente Lula; em 10 minutos ponto 5, em 11 minutos ponto 42, ele fala que as eleições de 2014 tinham sido fraudadas. Será que isto dá ensejo a falar que foi uma reunião normal, como Vossa Excelência pontuou anteriormente?

O SENHOR CIRO NOGUEIRA LIMA FILHO (testemunha): Eu não disse que foi uma reunião normal, mas eu não vejo nisso nenhum tipo de agressão ao sistema eleitoral, não. Acho que foi uma reunião, do meu ponto de vista, que poderia ter sido evitada – eu concordo –, eu não era favorável a ela. Mas não vi nela nenhum tipo de agressão, apenas uma preocupação de nós termos um processo eleitoral em que seja respeitada a vontade do cidadão ao conferir o seu voto.

[...]

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): [...] Senador, o Senhor acabou de dizer que não era favorável a essa reunião. O Senhor chegou a aconselhar o presidente a não realizá-la?

O SENHOR CIRO NOGUEIRA LIMA FILHO (testemunha): Não, não aconselhei. Eu não fui consultado sobre ela.

O SENHOR JUIZ MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (juiz instrutor): E também sobre o seu posicionamento, diz que foi superdimensionada essa reunião. O Senhor chegou a aconselhar a não transmissão dessa reunião?

O SENHOR CIRO NOGUEIRA LIMA FILHO (testemunha): Não, também não fui consultado, Excelência.

Os documentos juntados aos autos não infirmam os relatos das testemunhas. Como se verá, a maior parte da documentação oficial refere-se à atuação do cerimonial da presidência na organização material do evento. Não foram localizados os slides ou qualquer comunicação que indicasse o envolvimento das unidades destacadas pela defesa – Casa Civil, Ministério das Relações Exteriores e Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos – ou outras na preparação do conteúdo que seria exibido pelo Presidente da República para embaixadoras e embaixadores.

Convergem, ainda, sobre os pontos: a) a contestação, que consigna que o primeiro investigado “promoveu exposição simples e espontânea, com os elementos disponíveis, a ponto de injustamente ridicularizado por simples erro de grafia” (ID 157977291, p. 18), e b) o depoimento de Carlos França, que afirma que a chancelaria não realizou revisão do material a ser divulgado em inglês (ID 158766494, p. 31).

Desse modo, a prova produzida aponta para a conclusão de que Jair Messias Bolsonaro foi integral e pessoalmente responsável pela concepção intelectual do evento objeto desta ação. Isso abrange desde a ideia de que a temática se inseria na competência da Presidência da República para conduzir “relações exteriores” (percepção distinta da que externou o chanceler ao conceituar a matéria como “tema interno”), até a definição do conteúdo dos slides e a tônica da exposição (que parecem ter sido lamentadas pelo ex-Ministro Chefe da Casa Civil).

Quanto à estrutura utilizada, o Chanceler Carlos França, na posição de espectador privilegiado, destacou a magnitude do evento e o fato de ter sido transmitido pela televisão, o que deu “solenidade” à reunião. Em sua percepção, tudo se conduziu de forma republicana:

“O DOUTOR MARCO ANTÔNIO MARTIM VARGAS (Juiz Auxiliar da Presidência do TSE): Tá. Ministro... é... é... a parte ré, né, no caso os representados, quando requereram a oitiva de Vossa Excelência, como testemunha... é... é..., justificou que, diante das suas relevantes funções desempenhadas, haveria um... haveria as... aspectos da dinâmica do evento que seriam do seu particular conhecimento, né? É... Vossa Excelência consegue lembrar de algum fato específico, relevante à controvérsia, que possa ter escapado ao registro desse... dessa... desse vídeo?

O SENHOR EMBAIXADOR CARLOS ALBERTO FRANÇA (Ministro das Relações Exteriores): Eu... eu... eu... eu enxergo aquele evento no Palácio da Alvorada, Excelência, um... muito... com... como um evento que nós fizemos, enfim, no Itamarati ou no Palácio do Planalto, um evento público, um evento que, de novo, foram convidadas também altas autoridades da República. Ele era... o evento, eu acho que foi televisionado pela... pela TV estatal – como são também os eventos do Palácio do Planalto. Eu me lembro de TVs ali, não me lembro de estar a EBC, possivelmente estava a EBC. Então, é um evento que tinha esse... esse caráter... é... é... no sentido... com os requisitos da publicidade, né? Ah... não havia, penso uma dinâmica que fosse estranha a um... a um evento em que um presidente, um chefe de Estado, se dirige ao corpo diplomático. Ele tinha esse foco... ah... internacional. Mas eu me recordo também que havia muitos outros ministros de Estado lá. Eu me recordo do Ministro da Defesa, me recordo do Ministro da Transparência. Às vezes a memória nos trai, né, mas eu acho que havia outros também ali. É... e eu acho que esse era o caráter público que se deu essa solenidade. Não era uma reunião fechada, não era uma reunião onde se discutiu, vamos dizer assim, é... trocas de... de opiniões ou de conceitos de valor sobre... sobre o sistema eleitoral brasileiro. E eu... e eu o vi da maneira mais republicana possível.”

Prosseguindo, passo a analisar a vasta documentação, fornecida pela Casa Civil em atendimento à requisição, que permite ter uma visão da magnitude do evento e da celeridade com que foram adotadas as providências para a realização do encontro do dia 18/07/2022. A documentação compilada é oriunda da Casa Civil, do Gabinete de Segurança Institucional, do Ministério das Relações Exteriores e do Gabinete da Presidência da República (IDs 158839073 a 158851459). Destacam-se:

a) Ofício-Circular nº 83/2022/GPPR-CERIMONIAL/GPPR, por meio do qual as unidades envolvidas foram comunicadas de que o Presidente da República receberia os Chefes de Missão Diplomática no Palácio da Alvorada: o documento foi expedido em 13/07/2022, uma quarta-feira, deixando apenas mais dois dias úteis para a preparação do evento, que ocorreria na segunda-feira seguinte (ID 158839080);

b) nota fiscal relativa ao “planejamento e apoio logístico ao evento”, envolvendo sonorização, cenografia, gerador, painel de LED, coordenador de eventos e operador de equipamento audiovisual, no valor total de R$ 12.214,12 (ID 158839076);

c) informação sobre a contratação de dois intérpretes pelo Ministério das Relações Exteriores (ID 158839082);

d) ofícios diversos dirigidos a subunidades, para adoção de providências relacionadas à prestação de serviços e disponibilização de equipamentos próprios à estrutura do evento (IDs 158839073 a 158839093);

e) 98 convites expedidos entre 13 e 17/07/2022 a embaixadoras e embaixadores convidados para o evento (juntados, na sequência, das certidões de IDs 158839098, 158839187, 158839225 e 158839236);

f) 21 convites dirigidos a Presidentes do STF, dos Tribunais Superiores (entre os quais o Min. Edson Fachin), das Casas Legislativas Federais e do Conselho Federal da OAB; a Ministros de Estado, ao PGR e ao AGU (juntados na sequência da certidão ID 158839191);

g) 84 e-mails oriundos das Embaixadas, em resposta ao convite (em sua maioria, confirmando a presença) ou realizando outras comunicações (juntados na sequência das certidões de ID 158839283 e 158839414);

g) lista que aparenta conter as presenças estrangeiras confirmadas, somando 92 embaixadoras e embaixadores e encarregadas e encarregados de negócios (ID 158851445);

h) “lista para a segurança”, contendo um total de 141 pessoas, sendo 21 autoridades brasileiras, 110 representantes diplomáticos e oito pessoas referidas como “apoio livre”: essa lista aparenta ser uma versão completa com todas as possíveis presenças, e não apenas as confirmadas (ID 158851449).

A prova documental acima referida demonstra, em síntese, que a estrutura e os serviços do Poder Executivo da União foram rapidamente mobilizados para viabilizar a reunião. Entre os dias 13 e 17/07/2022 (dos quais apenas três eram úteis), o Cerimonial da Presidência disparou quase uma centena de convites dirigidos a Chefes de Missões Diplomáticas e outros 21 a demais autoridades brasileiras. Outras unidades se encarregaram de fornecer intérpretes de inglês e de libras, apoio logístico, lanche, equipamento de som e imagem, além do indispensável aparato de segurança envolvido.

Evidentemente, a nota fiscal relativa ao planejamento e à logística, no valor de R$ 12.214,12, não é capaz de refletir a inteireza dos recursos públicos empregados, sob a forma de bens e serviços, na realização do encontro.

Além disso, a verdadeira magnitude do evento nem mesmo se estima em dinheiro. Seu maior destaque está na “solenidade” que chamou a atenção até mesmo do Ministro das Relações Exteriores, conforme consta de seu depoimento. Afinal, o Chefe de Estado receberia mais de 100 convidados, entre Ministros de Estado e Chefes de Missões Diplomáticas, em sua residência oficial.

Observação a ser feita é que o convite escrito não indicava o tema da reunião. O Chefe de Cerimonial apenas consignou: “fui incumbido de convidar Vossa Excelência para encontro do senhor Presidente da República com Chefes de Missão Diplomática, a realizar-se às 16h do dia 18 de julho de 2022, segunda-feira, no Palácio da Alvorada”.

Fato é que, ao chegar ao Palácio da Alvorada, cientes ou não do que seria tratado, os representantes diplomáticos assistiram, por pouco mais de uma hora, a uma apresentação do então Presidente da República, em que se mesclaram: elogios do mandatário a si próprio e a seu governo; relatos a respeito de um inquérito sobre um ataque hacker às redes do TSE; críticas à atuação de servidores públicos; ilações a respeito de Ministros; supostas conspirações para que seu principal adversário viesse a ser eleito; exaltação às Forças Armadas; defesa de proposta de impressão do voto, recusada pela Câmara dos Deputados quase um ano antes; e alerta quanto à inocuidade das missões de observação internacional.

O improvável fio condutor de todos esses tópicos foi a afirmação de que houve manipulação de votos nas Eleições 2018 e que era iminente o risco, nas Eleições 2022, que a fraude se repetisse, quiçá levando a que o candidato verdadeiramente mais votado não fosse proclamado eleito.

Finda a exposição e, conforme relato das testemunhas Carlos França e Ciro Nogueira, passados aproximadamente 20 minutos de cumprimentos e conversas ligeiras, o solene evento foi encerrado, sem perguntas do público ou reuniões reservadas.

Ainda segundo o então chanceler brasileiro, nenhum material foi remetido aos presentes e nenhuma embaixada contactou o Ministério das Relações Exteriores para tratativas sobre o assunto. A prova documental requisitada à Casa Civil tampouco contempla informação a respeito.

Desenhados os bastidores da preparação do encontro de 18/07/2022, chega o momento de escrutinar o teor da apresentação.

 

2.1.2 Análise contextualizada (pragmática) do discurso proferido por Jair Messias Bolsonaro do Palácio da Alvorada em 18/07/2022

 

Conforme já assinalado, é incontroverso que Jair Messias Bolsonaro, na reunião de 18/07/2022, concentrou sua fala em questionamentos à segurança do sistema eletrônico de votação em comentários sobre a atuação de Ministros do TSE, externando preocupação quanto à transparência e à confiabilidade das eleições. Divergem as partes quanto a ter-se tratado de dúvidas legítimas (manifestadas no âmbito da liberdade de expressão), ou de desordem informacional (assentada em afirmações factualmente falsas a respeito das urnas).

Os investigados, em sua contestação, alegam que a iniciativa consubstanciou “um convite ao diálogo público continuado para o aprimoramento permanente e progressivo do sistema eleitoral e das instituições republicanas”, e que “uma leitura imparcial e serena” do discurso revelaria “falas permeadas de conteúdos técnicos, que buscam debater um tema importante (transparência do processo eleitoral)” (ID 157977291).

O discurso de Jair Messias Bolsonaro em 18/07/2022, porém, foi uma reação à Sessão Informativa para Embaixadas, realizado pelo TSE. As circunstâncias denotam que o primeiro investigado se sentiu pessoalmente confrontado pelo alerta do Min. Edson Fachin contra o “vírus da desinformação”. Essa reação escalou em tensão e hostilidade, sendo marcada por uma antagonização com Ministros do TSE e pelo surpreendente esforço de desencorajar a vinda de missões de observação eleitoral.

Na apresentação, o primeiro investigado amalgamou diversos elementos para descrever a atuação supostamente ineficiente e suspeita da governança eleitoral brasileira: alegada manipulação de votos nas Eleições 2018; insinuações sobre investigação relativa a um ataque hacker à rede do TSE ocorrido em 2018; rejeição da PEC nº 135/2019, que propunha o voto impresso, em 2021; recusa a sugestões das Forças Armadas na Comissão de Transparência do TSE em 2022; alegada utilização das missões internacionais para conferir “ares de legitimidade” a resultados produzidos por um sistema que o orador dizia ser inauditável.

A cada alerta, repetia seu desejo de que as Eleições 2022 fossem “limpas, transparentes, onde o eleito realmente reflita a vontade da sua população”. Um desejo que, no prognóstico do primeiro investigado, era indicado como pouco provável.

Para veicular sua mensagem, o primeiro investigado fez uso de estratégias comunicacionais que podem ser facilmente percebidas, uma vez que, a essa altura do voto, já foram apresentados os conceitos de normatividade de coordenação (indica em quem confiar) e de normatividade epistêmica (indica em que confiar).

No âmbito da normatividade de coordenação, diversas partes do discurso revelam que o então Presidente da República investiu energia em convencer que seu relato merecia mais confiança do que informações oficiais do TSE.

De um lado, o primeiro investigado se apresenta como líder popular que, correndo até mesmo riscos pessoais, vinha conduzindo uma jornada heroica pela defesa da democracia brasileira. Nessa performance, se mostra disposto, de forma altruísta, a levar ao conhecimento da comunidade internacional os enormes riscos que rondariam as Eleições 2022.

Descreve-se, assim, como conhecedor “do sistema” e “da política brasileira”, dizendo que percorreu o país, em campanha, desde a reeleição de Dilma Rousseff, em 2014, até juntar “multidões”. Evoca o atentado que sofreu em 2018, imputando-o a uma genérica “esquerda”. Afirma que há “interesses outros” ainda “presentes”, relativos ao episódio que colocou sua vida em risco. Invoca, por diversas vezes, valores fundamentais da democracia – em especial a liberdade, a transparência da eleição e os resultados autênticos –, como motivação na luta contra forças que, assegura, teriam agido e poderiam voltar a agir para manipular votos.

De outro lado, o TSE é desenhado pelo primeiro investigado como instituição opaca, cooptada por magistrados e servidores com grande poder de interferência sobre o cômputo de votos e disposição para exercer esse poder em benefício do principal adversário do candidato à reeleição presidencial.

O primeiro investigado, então, assevera que o tribunal teria sido pouco colaborativo com a Polícia Federal para apurar uma invasão hacker divulgada na imprensa após o primeiro turno das Eleições 2018. Afirma que o ataque não foi detectado pelo TSE, tecendo ilações sobre conivência e até participação de servidores. Dispara comentários insidiosos a respeito dos Ministros do TSE, insinuando que manteriam o sistema inauditável por conta de uma alegada preferência por outro candidato.

Mais um significativo componente retórico explorado no âmbito da normatividade de coordenação é o uso da primeira pessoa do plural para se referir às Forças Armadas.

No ponto possivelmente de maior tensionamento do discurso, o então Presidente, em leitura distorcida de sua competência privativa para “exercer o comando supremo das Forças Armadas” (art. 84, XIII, da Constituição), enxerga-se como militar em exercício, à frente das tropas. As passagens deixam entrever um preocupante descaso em relação a uma conquista democrática, de incomensurável importância simbólica no pós-ditadura, que é a sujeição do poderio militar brasileiro a uma máxima autoridade civil democraticamente eleita.

O discurso, em diversos momentos, insinua uma perturbadora interpretação das ideias de “autoridade suprema do Presidente da República”, “defesa da Pátria” e “garantia da lei e da ordem” (art. 142 da Constituição). Na visão do primeiro investigado, o convite feito às Forças Armadas, para acompanhar os testes públicos de segurança no TSE, significava a própria sujeição do tribunal às demandas dos militares.

Nenhum argumento técnico, nenhuma superação de fase procedimental, nenhuma decisão negocial do TSE, nada na visão do hoje ex-Presidente – poderia ser apresentado como objeção ao acolhimento daquelas demandas. Na mensagem divulgada, a recusa em concordar com o que diziam os militares sobre o sistema eletrônico de votação equivalia, por si, à prova da “farsa” eleitoral.

O primeiro investigado, por mais de uma vez, enfatizou que os militares seriam técnicos extremamente competentes, em contraste com os servidores do TSE. As Forças Armadas não seriam apenas mais confiáveis no tema da segurança das eleições, como também vocacionadas a combater os inimigos (imaginários) que tramariam fraudes. E, se tanto fosse necessário, agiriam lideradas por seu “comandante supremo”, pelo bem da nação, “dentro das quatro linhas da Constituição” – ou, quem sabe, por extrema necessidade, fora delas.

Essas construções cumprem uma função pragmática: reforçar a credibilidade das acusações que fará a respeito do severo comprometimento da segurança do sistema eletrônico de votação.

Jair Messias Bolsonaro, para comunicar sua mensagem, também buscou reforço na normatividade epistêmica: afirmou que um inquérito em curso na Polícia Federal conteria evidências de manipulação de votos no pleito de 2018. Trata-se do IPL nº 1361/2018, atualmente Inquérito nº 5007377-27, em trâmite perante a 10ª Vara Criminal Federal de São Paulo (SP), que se encontra juntado aos autos e, por solicitação da própria autoridade judiciária que o preside, gravado com sigilo (certidão juntada no ID 158850900, à qual seguem os documentos remetidos pela Justiça Federal).

O documento escolhido é estratégico: foi produzido pela Polícia Federal – que seria um “terceiro desinteressado” na disputa encetada pelo então Presidente da República contra o TSE; uma espécie de “fiel da balança” que, por meio do documento, atestaria a competência do orador no tema “sistema eletrônico de votação”. Assim, ao anunciar que tem esse documento em seu poder, o ex-Presidente passa a performar para a audiência a “revelação” de um fato grave, de um risco iminente, a demandar esforços para impedir o comprometimento das Eleições 2022.

A “revelação”, contudo, não era inédita. O inquérito já havia sido referido em live realizada pelo primeiro investigado e pelo Deputado Filipe Barros em 04/08/2021, quando haviam anunciado que apresentariam “provas” da suposta fraude nas Eleições 2018. No dia seguinte a essa live, 05/08/2021, o TSE divulgou nota à imprensa, assegurando que “[o] acesso indevido, objeto de investigação, não representou qualquer risco à integridade das eleições de 2018” (https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2021/Agosto/nota-a-imprensa).

Irredutível, o primeiro investigado ainda faria outra live, em 12/08/2021, chegando a informar que a manipulação teria feito desaparecer 12 milhões de votos seus naquele pleito. Na mesma data, o TSE esclareceu, no site “Fato ou Boato”, que a informação era falsa (https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2021/Agosto/fato-ou-boato-hacker-nao-desviou-votos-da-urna-eletronica-nas-eleicoes-presidenciais-de-2018).

As duas lives serão objeto de análise neste voto, quando forem tratados os fatos pretéritos evocados no discurso de 18/07/2022. Para o momento, importa observar que o primeiro investigado não mencionou os esclarecimentos prestados pelo TSE em 2021 na fala que dirigiu a embaixadoras e embaixadores em 2022, sequer para apontar razões pelas quais não poderiam merecer crédito.

Não é possível saber exatamente quais documentos integrantes do IPL nº 1361/2018 foram consultados pelo primeiro investigado. No entanto, sua fala deixa evidente que eram de seu conhecimento, ao menos: a) a Portaria de instauração; b) o pedido da então Presidenta do TSE, Ministra Rosa Weber, para que a Polícia Federal investigasse o fato; c) a Informação STI/TSE nº 32, firmada pelo, à época, Secretário de Tecnologia da Informação; d) os prints que o hacker teria enviado ao site TecMundo e que foram por este remetidos ao TSE; e e) informações sobre solicitações de logs.

Esses documentos foram direta ou indiretamente referidos pelo primeiro investigado, na apresentação que fez para os Chefes de Missão Diplomática no Brasil, de forma inteiramente distorcida. Afirmou, assim, que o TSE teria sido negligente e desidioso diante de uma vulnerabilidade de natureza gravíssima, apta a permitir que votos fossem adulterados no momento da totalização. Disse, mais, que haveria “interesses” de Ministros do TSE em manipular o resultado do pleito.

Essa narrativa não tem qualquer respaldo documental. Para tanto demonstrar, saliento os seguintes aspectos extraídos do atual Inquérito nº 5007377-27 (antigo IPL nº 1361/2018), tomando o cuidado, aqui, de não expor elementos sensíveis da investigação em curso perante o juízo da 10º Vara Criminal Federal de São Paulo (SP), que segue em sigilo:

a) a instauração do IPL nº 1361/2018, por Portaria datada de 08/11/2018, assinala, de forma inconteste, que a apuração foi iniciada após o próprio TSE encaminhar “a notícia de suposta invasão a sistemas e bancos de dados do TSE, com acesso e divulgação de dados sigilosos daquele Tribunal”, aos moldes de ataques dirigidos contra instituições públicas e privadas, não havendo qualquer referência a suspeita de fraude eleitoral (ID 158852105, p. 11);

b) a requisição da Ministra Rosa Weber, então Presidente do TSE, encaminhada pelo Ofício n° 5825/GAB-SPR, ocorreu em 06/11/2018, mesma data em que o repórter do site TecMundo informou ao TSE que teria recebido “documentos e imagens de uma suposta invasão ao sistema GEDAI e outras informações sigilosas referentes aos processos do TSE”, demonstrando a atuação diligente (ID 158852105, pp. 13 e 14);

c) a Informação STI/TSE nº 32 não menciona em ponto algum a possibilidade de que tenha havido adulteração de votos na urna eletrônica ou interferência no sistema de totalização (ID 158852105, pp. 109-110);

d) os prints remetidos pelo TecMundo ao TSE não contêm nenhuma demonstração de interferência em votos das Eleições 2018 ou em qualquer outra (ID 158852105, pp. 111-124);

e) o print de um e-mail dirigido ao juiz eleitoral da 34ª Zona Eleitoral do Rio de Janeiro menciona “senhas personalizadas para oficialização de usuários e sistemas, de modo que esses se tornem aptos a receber dados oficiais”, para providências de praxe nos Sistemas de Candidatura e de Horário Eleitoral na eleição suplementar do Município de Aperibé/RJ (mandato 2017-2020), em nenhum momento indicando que o magistrado pudesse, com as senhas, editar o programa do Sistema de Totalização – o que, evidentemente, não está entre as funções de magistradas e magistrados eleitorais (ID 158852105, p. 122);

f) o TSE forneceu de imediato à Polícia Federal elementos para a apuração do ocorrido, inclusive relatórios do rastreamento pelo qual identificou em detalhes o caminho usado para um ataque hacker à rede do tribunal, ocorrido em abril daquele ano e debelado em poucos dias, sendo que, do material encaminhado para análise do Serviço de Repressão a Crimes Cibernéticos, derivou uma série de diligências para apuração da materialidade do delito e identificação da autoria (ID 158852105, pp. 26-27 e 32);

g) O TSE instaurou sindicância interna para apuração administrativa dos fatos, em especial a origem do acesso indevido à rede do tribunal, datando de 14/11/2018 a primeira reunião, quando se deliberou, entre outros pontos, sobre a formalização de comunicação à Polícia Federal para viabilizar “troca de informações e auxílio mútuo” nas investigações (ID 158852105, pp. 133-135).

Simples perceber que, nos documentos reiteradamente citados pelo primeiro investigado, não há nenhum indicativo de manipulação de votos.

Não há, ainda, qualquer menção a envio de senha a um magistrado que permitisse editar linhas de programação de sistemas desenvolvidos no âmbito no TSE e, com isso, preparar a urna ou o sistema de totalização para “transferir votos” de um candidato para outro.

Não há, enfim, nenhuma menção à ocorrência ou à suspeita de fraude nas eleições presidenciais de 2018.

Os investigados, durante a instrução probatória, solicitaram que fossem requisitadas cópias integrais do atual Inquérito nº 507377-27, o que foi prontamente atendido. O exame desse material mostra que a investigação em curso teve êxito em produzir diversos elementos relevantes, o que ocorreu antes da reunião realizada em julho de 2022.

Logo, caso houvesse genuína preocupação com o teor informativo de seu discurso, caberia ao primeiro investigado se inteirar, por vias regulares, do estágio da investigação, levando-o em conta, juntamente com os esclarecimentos já prestados pelo TSE. Como se verá, a conduta do primeiro investigado foi o avesso dessa expectativa, passando ao largo do papel institucional do Presidente da República.

O fato, jamais levado a conhecimento das embaixadoras e dos embaixadores, é que a Polícia Federal, com base no detalhado relatório dos ataques detectados pela STI/TSE em abril de 2022 e no material preservado que foi encaminhado prontamente para a investigação, empreendeu uma bem-sucedida apuração do incidente, estando documentados a forma como o ataque ocorreu, sua motivação (financeira), a autoria do ataque, os partícipes e os beneficiários.

Foi possível, ainda, traçar a correlação do hackeamento da rede do TSE, em 2018, com outros que tiveram por alvo algumas instituições e bancos de dados públicos federais e estaduais em período próximo. Os peritos da Polícia Federal cruzaram os dados repassados pelo TSE com os de outras investigações e concluíram que o ataque tinha relação com atividades ilícitas deflagradas em 2017.

Essas atividades não tinham qualquer propósito político e consistiam em invadir sistemas de instituições públicas com finalidade de replicar os bancos de dados localizados para comercializá-los. As diligências cumpridas à época acabaram revelando indícios de outras condutas criminosas, como formação de quadrilha e lavagem de dinheiro, e, até mesmo, atingindo o mais espúrio dos níveis, apreensão de farto material de pornografia infantil em computadores de um comparsa do hacker que viria a atacar a rede do TSE. A perícia realizada na ocasião constatou que, entre 2015 e 2017, período quase integralmente anterior à sua maioridade, o autor dos ataques movimentou em sua conta bancária R$ 716.921,82.

O Tribunal Superior Eleitoral, portanto, foi selecionado pelo hacker com fins inteiramente desconectados do propósito de interferir nas eleições – finalidade que, ademais, nunca esteve a seu alcance. Essa informação não consiste em uma guinada da investigação: desde o início, a linha apresentada pelo TSE e apurada pela Polícia Federal estava centrada na invasão da rede do tribunal, sem nenhuma possibilidade de afetar resultados eleitorais.

Destaco, respeitado o sigilo de elementos essenciais da investigação ainda em curso e o nome de instituições alvo dos ataques, que:

a) em 21/05/2020, peritos do Serviço de Repressão a Crimes Cibernéticos da Polícia Federal apresentaram “Relatório de análise de alta tecnologia”, no qual já estava identificado o suspeito de ataque à rede do TSE, o mesmo que havia invadido sistemas informatizados de outro órgão público de relevo entre final de 2018 e o início de 2019 (ID 158852107, pp. 28 a 34);

b) o hacker, ainda menor de idade em 2017, já tinha invadido o banco de dados sigiloso de instituição pública de grande reputação, detentora de dados sensíveis, tendo por objetivo “a venda de serviços de pesquisa pessoal”, fato que foi objeto de ação penal julgada parcialmente procedente e que levou à condenação criminal do cúmplice do hacker (ID 158852108, pp. 1-5);

c) em 03/03/2022, o relatório parcial produzido no inquérito correlaciona o fato a diversas invasões a sistemas e bancos de dados geridos por outros órgãos públicos, sempre com enfoque na comercialização de informações sigilosas desses órgãos (ID 158852108, p. 63);

d) os documentos que aportaram da investigação relativa ao ataque de 2017 abarcam perícia que atesta que o “fruto financeiro da [...] conduta ilícita” do hacker, consistente em venda de dados sigilosos de sistemas informatizados, movimentou R$716.921,82 nos anos de 2015 a 2017, e envolveu transferências a seus genitores, apontados como beneficiários do esquema criminoso, mas absolvidos por falta de provas da ciência da atividade criminosa (ID 158852112, pp. 108-109);

e) extenso laudo pericial examina em minúcias como foi executado o ataque à rede do TSE, discorrendo sobre dados e máquinas possivelmente afetados, fornecendo respostas técnicas aos quesitos formulados, não versando, em ponto algum, sobre “manipulação de votos” ou outras fraudes nas Eleições 2018 (ID 158852114, conclusão às pp.114-120).

A investigação já apresentou resultados substanciais e ainda prossegue. Prossegue, repita-se, em sigilo.

O comportamento recalcitrante do então Presidente da República em relação ao tema é surpreendente. Ele havia, junto a Filipe Barros, trazido a público, em 04/08/2021, a existência do IPL nº 1361/2018, quando o disponibilizou nas suas redes sociais em meio a grande alarde sobre fraudes imaginárias. As acusações foram prontamente desmentidas e a investigação caminhou com atenção a seu real objeto. Mas quase um ano depois, em 18/07/2022, o primeiro investigado seguiu asseverando, falsamente, que o inquérito tratava de manipulação de votos nas Eleições 2018 e que as investigações não avançaram por culpa do TSE.

Ao abordar o inquérito na reunião com Chefes de Missões Diplomáticas, o primeiro investigado não apenas fabricou uma informação com absoluto descompromisso com o teor do documento. Também desafiou a determinação de autoridades policiais e judiciais. Isso porque, àquela altura dos acontecimentos, não havia qualquer margem para que o Presidente da República ignorasse o prejuízo ocasionado pela ampla publicização dos documentos oriundos do inquérito e de informações distorcidas a seu respeito.

Com efeito, já em 05/08/2021, dia seguinte à live acima mencionada, o Deputado Paulo Eduardo Martins, integrante da Comissão Especial da PEC nº 135/2019, remeteu ofício ao Diretor-Geral da Polícia Federal, solicitando “informações sobre grau e prazo de sigilo dos autos do Inquérito IPC nº 1361/2018 SR-PF-DF” (ID 158852108, p. 54). A resposta remetida foi taxativa no sentido de que o sigilo seria mantido até a deliberação da autoridade judicial competente, à vista do relatório final (ID 158852108, pp. 60-61):

“Senhor Deputado Federal,

A par de cumprimentá-la cordialmente, sirvo-me do presente para, em atenção ao quanto solicitado por meio do ofício n° 049/21-Pres, informar a Vossa Excelência que o IP 1361/2018-SR/PF/DF encontra-se com sigilo decretado por esta Autoridade Policial para fins de resguardar a linha de investigação atualmente perseguida, sendo certo que eventual publicidade poderá acarretar prejuízo às apurações.

Acrescento que o sigilo decretado perdurará até o término das investigações, oportunidade em que o feito – acompanhado do competente relatório final - será remetido ao Juízo da 12ª Vara Federal, o qual, após a manifestação do Ministério Público Federal (órgão titular da opinio delicti), adotará as providências no interesse da Justiça.”

(Sem destaques no original.)

Não é só.

Em 29/11/2021, foi instaurado, no STF, o Inquérito nº 4878/DF, cujo objeto é o vazamento de informações sigilosas na live de 04/08/2021. A apuração prévia resultou no indiciamento de Mauro Cesar Barbosa Cid pela prática do crime previsto no artigo 325, §2°, c/c 327, §2°, do Código Penal. O ajudante de ordens do primeiro investigado, na condição de funcionário público, “por determinação do Sr. Presidente da República, [...] promoveu a divulgação do conteúdo da investigação na rede mundial dos computadores, utilizando seu irmão para disponibilizar um link de acesso que foi publicado na conta pessoal de JAIR MESSIAS BOLSONARO”. A autoridade policial identificou “atuação direta, voluntária e consciente” do primeiro investigado e do Deputado Filipe Barros na prática do mesmo crime, mas deixou de indiciá-los em razão de possuírem foro por prerrogativa de função (ID 158764868, pp. 290-294).

Assim, em julho de 2022, era inequívoca a reserva que recaía sobre o conteúdo do IPL nº 1361/2018. Afinal, o Chefe Militar da Ajudância de Ordem da Presidência da República, Mauro Cid, havia sido indiciado pelo cumprimento da ordem possivelmente ilegal que o então Presidente da República lhe havia dado.

Por isso, sob a ótica da boa-fé objetiva, é surpreendente que o primeiro réu não tenha hesitado em voltar a falar daquela investigação, dessa vez para a comunidade internacional.

É inexplicável, considerando-se o papel institucional de Chefe de Estado, a oferta, a mais de uma centena de embaixadoras e embaixadores, de cópias de uma investigação em curso a respeito de um ataque cibernético às redes do TSE.

É, por fim, absolutamente estranho ao funcionamento harmônico dos Poderes da República que tenha feito isso justamente para instigar a desconfiança no órgão de governança eleitoral do país – na hipótese, vítima, como tantas outras instituições, de atividades de hackers.

Destacados esses aspectos, apresento a transcrição integral do discurso que compõe o objeto desta ação, em tabela que permitirá ressaltar aspectos da prática discursiva do primeiro investigado, aplicando as premissas de julgamento já apresentadas. Essa medida se destina a propiciar a decodificação da mensagem transmitida por Jair Messias Bolsonaro em 18/07/2022 a embaixadoras e embaixadores que estiveram no Palácio da Alvorada e ao público que acompanhou a transmissão do evento.

Saliento que o texto transcrito foi coletado do link indicado na inicial (https://www.poder360.com.br/eleicoes/leia-a-integra-do-que-disse-bolsonaro-aembaixadores/ >), e revisado com base no vídeo juntado no ID 157957944. Mencione-se que alguns poucos trechos do vídeo estão corrompidos, mas sem prejuízo à prova, tendo em vista que a transcrição constante do link referido não foi objeto de qualquer oposição dos investigados.

Eis o teor da fala, acompanhada da análise do discurso:

 

Transcrição: discurso de Jair Messias Bolsonaro em 18/07/2022

Análise contextualizada do discurso (pragmática)

Bolsonaro: – O Brasil é um país fantástico. 8 milhões e meio de km², riquíssimo em biodiversidade, minerais, terras agricultáveis, áreas para turismo, água potável, uma coisa enorme chamada Amazônia. Ou seja, o Brasil, pela sua extensão territorial, pelas suas riquezas, está integrado no mundo todo. O Brasil faz negócios com praticamente o mundo todo, tem adotado uma posição de equilíbrio em conflitos, buscamos a paz, trabalhamos por isso, preservamos a nossa democracia. Até o momento, uma só palavra minha houve fora do que eu chamo de quatro linhas da nossa Constituição. Nós respeitamos as leis.

A fala se inicia com uma exaltação às riquezas naturais e às relações internacionais do país. Jair Messias Bolsonaro se utiliza do plural para indicar, em nome da nação, o objetivo de buscar a paz e de preservar a democracia.

Segue-se um alerta: o mandatário diz que, “até o momento”, tem se manifestado dentro das “quatro linhas da nossa Constituição”.

O uso da expressão “quatro linhas da Constituição” pelo ex-Presidente durante o seu mandato foi notório. As “quatro linhas” não eram explicitadas. Mas eram associadas às suas próprias ações. Também era sugerido que quem estivesse “fora” dessas quatro linhas seria por ele trazido “para dentro”.

A menção não é casual, pois toda a fala, como se verá, é guiada para apontar desvios na atuação da Justiça Eleitoral.

Além disso, a condicionante temporal, “até o momento”, insinua que esse comportamento poderia ser alterado e em quais condições.

Me elegi Presidente da República gastando menos de US$ 1 milhão. Repito, gastando menos que US$ 1 milhão e dentro de um leito de hospital, após sofrer um atentado de uma facada de um elemento de esquerda e cujo inquérito não foi concluído, apesar dos enormes indícios de interesses outros se fazerem presentes. Mas essa é uma questão interna nossa, gostaria de ver esse inquérito concluído para chegar nos mandantes da tentativa de homicídio.

Jair Messias Bolsonaro traz à lembrança das embaixadoras e dos embaixadores que foi vitimado por uma facada durante a campanha nas Eleições 2018.

O mandatário identifica o agressor como “um elemento de esquerda”. Diz que o inquérito relativo ao crime não foi concluído e assegura que há “indícios de interesses outros”.

Com isso, adentra a polarização política Direita vs. Esquerda, fazendo sugestão conspiracionista de que o ataque envolveria “interesses outros”, de uma “esquerda” genérica (da qual o agressor é um “elemento”).

O trecho cumpre importante função pragmática ao disparar um estado de alerta sobre uma ameaça que ronda não apenas a democracia, mas a própria vida do então Presidente, envolvendo interesses ainda não revelados, mas, conforme dito, “presentes”.

Sou capitão do exército brasileiro, fiquei 15 anos no exército, fui vereador no Rio de Janeiro por dois anos e 28 anos dentro da Câmara dos Deputados. Conheço muito bem o nosso sistema. Conheço muito bem a política brasileira. Fiz uma campanha sem recurso, mas que começou quatro anos antes do pleito, depois da reeleição da senhora Dilma Rousseff. E, andando pelo Brasil sozinho, três anos sozinho andando pelo Brasil, juntando multidões, fiz a minha campanha.

Nessa passagem, o primeiro investigado expõe as credenciais pessoais que o legitimam a tratar do tema objeto do discurso. Apresenta-se como conhecedor do “sistema” e da “política brasileira”. Faz menção ao pleito de 2018, admitindo que, logo após a reeleição de Dilma Roussef (em 2014), iniciou sua campanha para as Eleições 2018 (“quatro anos antes do pleito”). Afirma que por três anos percorreu o país em campanha, “juntando multidões”.

O relato cumpre a função pragmática de respaldar a autoridade do emissor do discurso, tanto como líder do povo brasileiro quanto como alguém que “conhece” o sistema e a política. Em outras palavras, o ex-Presidente explora a normatividade de coordenação (indica em quem confiar a respeito do tema que será tratado).

Além disso, o trecho tem inequívoco teor autopromocional, que se destina a incutir na plateia (presencial e remota) que se trata de pessoa bem preparada para o cargo que, em breve, voltaria a disputar.

Tudo que vou falar aqui está documentado, nada da minha cabeça. O que eu mais quero para o meu Brasil é que a sua liberdade continue a valer também, obviamente, depois das eleições. O que eu mais quero, por ocasião das eleições, é a transparência. Porque nós queremos que o ganhador seja aquele que realmente seja votado.

Neste ponto, é introduzida a referência aos “documentos” que supostamente embasariam alegações sobre fraudes. É explorada, portanto, a normatividade epistêmica (indica em que confiar: nos documentos citados). Ou seja, o então Presidente assegura que há base factual para suas afirmações.

Essa referência a documentos é imediatamente conectada a desejos pessoais de que valores democráticos se concretizem: “o que eu mais quero” é que o Brasil siga livre após as eleições; “o que eu mais quero, por ocasião das eleições, é a transparência”; “nós queremos” que seja proclamado eleito quem efetivamente foi o mais votado.

A ênfase traz um sentido implícito, pois naturalmente provoca indagações: se esses valores são tão óbvios e inerentes para uma democracia, por que o Presidente tanto se preocupa com sua concretização? Quem se oporia a isso? Quem estaria atuando para cercear a liberdade, prejudicar a transparência e proclamar como eleito alguém que não foi o mais votado?

O arco de sentido será preenchido ao longo do discurso: o teor dos documentos, segundo o ex-Presidente, indica que os resultados das Eleições 2018 foram manipulados e que não é possível assegurar que em 2022 a Justiça Eleitoral proclamará eleito o verdadeiro vencedor.

Ao transformar a liberdade, a transparência e a autenticidade da eleição em “desejos” expressados pelo Chefe de Estado perante a comunidade internacional, Jair Messias Bolsonaro comunica a ideia de que algo ou alguém atua em sentido contrário. A técnica introjeta na audiência um pensamento intrusivo: está em curso uma ameaça à legitimidade das Eleições 2022 e o Presidente luta para combater essa ameaça.

Nós temos um sistema eleitoral que apenas 2 países no mundo usam. No passado, alguns países tentaram usar, começaram até a usar esse sistema e rapidamente foi abandonado. Repito, o que nós queremos são eleições limpas, transparentes, onde o eleito realmente reflita a vontade da sua população.

Um primeiro fator de descredibilidade do sistema eletrônico de votação é apontado: somente dois países no mundo o usariam. Isso explora a sensação de que o Brasil estaria atrasado ou desalinhado do resto do mundo no que diz respeito à tecnologia usada nas eleições.

Logo após, o então Presidente reitera o “desejo” por eleições legítimas, reforçando o pensamento intrusivo de que as eleições, como são feitas no Brasil, não são limpas e transparentes e podem ser manipuladas para alterar o resultado. Isso será feito diversas vezes ao longo do discurso.

Teria muita coisa a falar aqui, mas eu quero me basear exclusivamente em um inquérito da Polícia Federal que foi aberto após o 2º turno das eleições de 2018, onde um hacker falou que houve que tinha havido fraude por ocasião das eleições. Falou que ele tinha invadido, o grupo dele, o TSE, o Tribunal Superior Eleitoral. E, obviamente, quando se fala em manipulação de números após eleições, quem manipula é quem ganhou. Então seria eu o manipulador. E a Polícia Federal começou, então, a apurar. Se houve ou não manipulação e de quem seria a responsabilidade.

O então Presidente identifica o “documento” que embasará sua fala como sendo “um inquérito da Polícia Federal que foi aberto após o 2º turno das eleições de 2018, onde um hacker falou que houve que tinha havido fraude por ocasião das eleições”.

O primeiro investigado, portanto, afirma de forma explícita que estaria em posse de documento no qual um hacker afirma que houve fraude nas Eleições 2018. Usa a expressão “manipulação de números”, associada ao que teria sido admitido pelo hacker. Nenhum esclarecimento já feito pela Justiça Eleitoral a respeito é contraposto a essa suposta declaração do hacker.

O então Presidente enuncia, portanto, que em 2018 houve uma fraude eleitoral, tentada ou consumada, associada à manipulação de resultados. Afirma, também, que a Polícia Federal teria iniciado investigação para saber se a manipulação (supostamente declarada pelo hacker) ocorreu ou não e quem seria responsável por ela.

A audiência recebe, assim, informação do Chefe de Estado de que a Polícia Federal estaria investigando uma denúncia de fraude relativa à adulteração de votos no pleito de 2018. Essa informação é falsa.

Então, tudo começa nesse nessa denúncia que foi de conhecimento do Tribunal Superior Eleitoral, onde o hacker diz claramente que ele teve acesso a tudo dentro do TSE. Disse mais: obteve acesso aos milhares de códigos-fonte, que teve acesso à senha de um ministro do TSE, bem como de outras autoridades, várias senhas ele conseguiu. E obviamente a senhora Ministra do TSE na época, que também é do Supremo Tribunal Federal, Rosa Weber, fez com que o inquérito fosse instalado.

O primeiro investigado menciona que a origem do inquérito é a investigação solicitada pela Ministra Rosa Weber, Presidente do TSE à época das Eleições 2018, após um hacker revelar que teve acesso à rede do Tribunal. Fica nítido assim que se trata do IPL nº 1361/2018 (atualmente Inquérito nº 5007377-27, em trâmite perante a 10ª Vara Criminal Federal de São Paulo – SP).

Conforme já esclarecido, esse inquérito não versa sobre apuração de denúncia de fraude voltada para a adulteração de votos no pleito de 2018.

Assim, a informação passada pelo então Presidente da República em seu discurso segundos antes é duplamente falsa: não houve denúncia de fraude nos moldes afirmados e o documento de que ele dispõe não comprova investigação nesse sentido.

Segunda página. Então, temos aqui a instauração do inquérito. Segundo o TSE, os hackers ficaram por 8 meses dentro dos computadores do TSE. Com códigos-fontes, com senhas e muito à vontade dentro do Tribunal Superior Eleitoral. E diz, ao longo do inquérito, que eles poderiam alterar nomes de candidatos, tirar voto de um, transferir para outro. Ou seja, um sistema, segundo documentos do próprio Tribunal Superior Eleitoral e conclusão da Polícia Federal, um processo aberto a muitas maneiras de se alterar o processo de votação.

Jair Messias Bolsonaro afirma explicitamente que consta do inquérito que o grupo de hackers poderia manipular votos nas eleições (“tirar voto de um, transferir para outro”) e que haveria reconhecimento oficial, tanto do TSE quanto da Polícia Federal, de que o sistema eletrônico de votação é “um processo aberto a muitas maneiras de se alterar o processo de votação”.

As afirmações são inteiramente falsas, pois o inquérito nada diz sobre manipulação de votos. Tampouco o TSE e a Polícia Federal teriam afirmado que resultados podem ser adulterados.

O então Presidente afirma que tinha o inquérito em seu poder. E o documento não conferia qualquer respaldo para as afirmações feitas. A Portaria de instauração indica que o ilícito a ser apurado é a “suposta invasão a sistemas e bancos de dados do TSE, com acesso e divulgação de dados sigilosos daquele Tribunal”. A Informação STI/TSE nº 32 não menciona em momento algum a possibilidade de transferir votos de um candidato a outro.

O trecho do discurso, portanto, demonstra como o primeiro investigado explora a normatividade de coordenação para degradar a normatividade epistêmica: o emissor se vale de suas credenciais (experiência relatada e cargo ocupado) para tentar convencer o público a acreditar em um teor inventado, que atribui a documentos reais em seu poder.

Então, de imediato, a Polícia Federal pediu o tal de logs, né, que é a impressão digital do que acontece dentro do sistema informatizado. O que é natural também é o órgão invadido fornecer os logs independente de pedidos. A Polícia Federal pediu os logs, que podiam ser entregues no mesmo dia ou no dia seguinte, mas, sete meses depois, segundo documentos comigo, o TSE informou que os logs haviam sido apagados.

Nessa passagem, a imprecisão e a descontextualização são utilizadas com um objetivo bastante evidente: sugerir que o TSE, diante do ataque cibernético, assumiu postura desidiosa e negligente. Os pontos enfatizados desconsideram que, em abril de 2021, o TSE conduziu apuração interna que foi utilizada como subsídio essencial para a investigação da Polícia Federal.

Porém, independente de um esclarecimento de detalhes da interlocução entre o TSE e a PF, o que chama atenção é a obstinação do Chefe de Estado em estimular uma percepção negativa do corpo técnico do TSE, inclusive deixando de expor, propositalmente, explicações prestadas pelo órgão.

E, uma coisa muito importante, esse inquérito, aberto no mês seguinte do segundo turno (sic) eleições de 2018, até hoje não foi concluído ainda. Diz aqui o próprio TSE e conclusões da própria Polícia Federal: ‘O atacante invasor conseguiu copiar toda a base de dados’. Repito, conseguiu a senha de um ministro do Tribunal Superior Eleitoral. Também a senha do coordenador de Infraestrutura, Cristiano Andrade, que é a pessoa de confiança do chefe de TI chamado Giuseppe.

O trecho trata de forma distorcida o relatório produzido pela própria STI/TSE ao descrever que havia atuado para conter o ataque hacker em abril de 2018. A STI cotejou seus achados com as declarações do hacker que estamparam matéria do site TecMundo em 07/11/2018 (ID 158852105, pp. 37-47).

O relatório não diz que “o atacante invasor conseguiu copiar toda a base de dados”. O relato é minucioso e sua compreensão evidentemente exige conhecimento técnico especializado, o que é compatível com a natureza do documento e sua finalidade de subsidiar investigação por especialistas.

Quando de posse desse relatório, o então Presidente afirma que “toda a base de dados foi copiada” (e, pior, que isso permitiria “manipular números”), aciona a autoridade da qual artificialmente se investiu (uma vez que não possui conhecimentos especializados para interpretar as informações e, ainda, não se socorre dos esclarecimentos do TSE). A pretexto de tornar a informação técnica acessível, a distorce, produzindo informação falsa.

Além disso, o relatório, inicial, não mais refletia o estágio da investigação à época da reunião no Palácio da Alvorada. Conforme visto, em março de 2022, a Polícia Federal já havia apresentado o relatório parcial. Bem antes disso, já havia identificado o autor do ataque e sua motivação financeira, a de comercialização de dados.

Não obstante, o então Presidente, de forma leviana, deixou de apresentar fatos e persistiu em divulgar factoides.

Então, prosseguindo, o invasor teve acesso a toda a... no TSE toda a base de dados por 8 meses. É uma coisa que, com todo o respeito, eu sou o presidente da República do Brasil, eu fico envergonhado de falar isso aí. O que é comum, né, acontecer em alguns países do mundo, é o chefe do Executivo conspirar para conseguir uma reeleição. Estamos fazendo exatamente o contrário, porque temos pela frente três meses até as eleições.

O então Presidente qualifica a atuação dos técnicos do TSE como vergonhosa. Trata-se de mais um reforço da pretensão de se colocar como autoridade no tema, em detrimento do órgão especializado em organizar eleições, cujos esclarecimentos não são mencionados em nenhum momento.

Na sequência ao apontamento de falhas vergonhosas, o mandatário declara, perante os embaixadores, que “é comum [...] em alguns países do mundo [...] o chefe do Executivo conspirar para conseguir uma reeleição”. A ideia da manutenção de poder por meio de golpe é, portanto, verbalizada, e até tratada como “comum”.

Segue-se a tentativa de cancelar o sentido implicado por aquela frase, quando ele diz que “estamos fazendo exatamente o contrário”, ou seja, que ele não estaria planejando uma ação nos moldes citados. Isso, porém, é próprio à construção do pensamento intrusivo, uma vez que o enunciado “não pensem que eu conspiraria para me manter no poder” (aos moldes do viés “não pense em um elefante cor-de-rosa”) presta-se a plantar a ideia supostamente recusada.

Na verdade, a frase em si seria indizível por um Presidente eleito democraticamente e que de fato tivesse como premissa irrecusável a transmissão de poder por meio da eleição iminente.

Por fim, Jair Messias Bolsonaro, no contexto em que afirma que há evidências de uma fraude nas Eleições 2018, ressalta que ainda faltavam “três meses” até o pleito. Não verbaliza, diretamente, o que haveria de ser feito nesses três meses. Adiante, no discurso, ele tratará das sugestões das Forças Armadas, dizendo que há tempo hábil para implementá-las e que elas resolveriam quase todos os problemas.

Desse modo, ficará implícito que a condicionante para não se ter que recorrer a uma “conspiração” é o acatamento das sugestões das Forças Armadas.

Mais na frente, tudo que eu falo aqui ou é conclusão da PF ou é diretamente informações prestadas pelo TSE. Prossegue: O senhor secretário atesta, categoricamente, que o invasor obteve domínio sobre usuários e senhas, que permite a alteração de dados de partidos e candidatos. Até mesmo a sua exclusão, no contexto do processo eleitoral’. Ou seja, esse grupo de invasores puderam até mesmo excluir nomes e, mais, trocar votos entre candidatos. E o que aconteceu depois de tudo isso?

O primeiro investigado volta a acionar a normatividade de coordenação, ao assegurar que tudo o que ele diz está documentado no inquérito e corresponde a conclusões da Polícia Federal ou mesmo do TSE.

Em seguida, cita parcialmente um trecho da Informação STI/TSE nº 32, que se refere ao e-mail remetido ao juízo eleitoral responsável por uma eleição municipal suplementar, no qual constavam senhas de oficialização dos sistemas de Candidaturas e do Horário Eleitoral daquele pleito (ID 158852105, p. 122). As senhas, em tese, permitiriam que, nesses dois sistemas, se alterassem ou excluíssem partidos ou candidatos, desde que, claro, houvesse também acesso ao sistema em si. Evidente também que, se isso ocorresse, a consequência seria percebida de imediato, pois, por exemplo, um candidato registrado não apareceria no CAND ou no HE, o que não ocorreu.

Porém, mais uma vez retirando de contexto um documento técnico, destinado a leitura por especialistas, o então Presidente fabrica uma complementação inexistente e inteiramente diversa do que diz o relatório e afirma, como fato consumado, que “esse grupo de invasores puderam (sic) até mesmo [...] trocar votos entre candidatos”.

Tem-se, portanto, pela segunda vez no discurso, a expressa declaração de que houve “troca de votos entre candidatos” nas Eleições 2018, o que é falso. O conteúdo fabricado foi obsessivamente explorado como uma espécie de “confissão” do TSE a respeito da manipulação de votos dados nas urnas em 2018.

Eu tive acesso a esse inquérito no ano passado, divulguei, é um inquérito que não tem qualquer classificação sigilosa e, ao divulgar, o Ministro Alexandre de Moraes abre o inquérito para me investigar sobre vazamento. Em depoimento, o delegado encarregado do inquérito foi bem claro, o inquérito não tinha qualquer classificação sigilosa. Foi instada a Corregedoria da Polícia Federal, que disse a mesma coisa. E como envolvia um outro deputado, que teve acesso a esse documento, também, a Procuradoria da Câmara dos Deputados, que o inquérito não tinha qualquer classificação sigilosa.

O orador evoca a divulgação do inquérito em 2021, o que ocorreu na live de 4 de agosto daquele ano, que foi transmitida ao vivo pelo programa da Jovem Pan Pingos nos Is. Filipe Barros, deputado federal que relatava a PEC nº 135/2019 e solicitou à Polícia Federal que fornecesse cópia do inquérito, participou ativamente da live, que foi anunciada com a promessa de revelação das “provas” de fraude nas Eleições 2018. Há, pois, inequívoca evocação do evento pretérito, quando teria se iniciado o esforço de tornar pública a “verdade”, perfazendo seu elo com o momento presente, em que o primeiro investigado seguiria em sua cruzada, agora perante a comunidade internacional, para comunicar o suposto achado do IPL nº 1361/2018/DF.

No trecho, o ex-Presidente também deixa clara sua ciência de que a divulgação ensejou uma apuração criminal por suposto vazamento de sigilo. Apresenta as manifestações que pesariam a seu favor, ocultando as demais informações que indicam que haveria reserva na divulgação do conteúdo, inclusive em razão da finalidade do compartilhamento. Também oculta que o relatório da Polícia Federal concluiu pelo indiciamento de Mauro Cid e que o próprio Jair Bolsonaro não foi indiciado porque se entendeu necessária autorização do STF, em razão do foro por prerrogativa de função.

No ponto, portanto, comunica-se a ideia de que o então Presidente estaria sendo injustamente perseguido por ter exposto a “verdade” e que não haveria nenhuma dúvida sobre seu direito de divulgar amplamente o inquérito a que teve acesso, mesmo sem ser parlamentar que compunha a Comissão Especial que o solicitara. A fala cumpre também a função pragmática de um “ato de defesa” contra as imputações que considera injustas.

O que nós entendemos aqui no Brasil é que, quando se fala em eleições, elas têm que ser totalmente transparentes, coisa que não aconteceu em 2018. Também, a Polícia Federal, depois que demorou 7 meses para o TSE informar que os logs já haviam sido apagados, repito, eles poderiam ser fornecidos de forma espontânea ou através do requerimento, no mesmo dia, ou no dia seguinte.

A primeira frase desse trecho deixa explícito que a razão para tanto se falar no “desejo” de transparência das Eleições 2022 é o fato de que as Eleições 2018 não teriam sido transparentes. Pela terceira vez, há imputação direta inequívoca de que houve mácula ao pleito anterior.

A frase seguinte indica que a Polícia Federal compartilharia o ponto de vista do então Presidente, insinuando-se que o comportamento dos técnicos do TSE teria levantado algum tipo de suspeita.

Então, 7 meses depois, o TSE informou que os logs tinham sido apagados. E a Polícia Federal concluiu pela total falta de colaboração do TSE para com a apuração, do que os hackers tinham feito ou não por ocasião das eleições de 2018. E repito, até hoje esse inquérito não foi concluído. Entendo que não poderíamos ter tido eleições em 2020 sem apuração total do que aconteceu lá dentro. Porque o sistema é completamente vulnerável, segundo o próprio TSE e obviamente a conclusão da Polícia Federal.

Seguindo no esforço de colocar o TSE e a Polícia Federal em polos antagônicos, o então Presidente faz uma declaração falsa no sentido de que “a Polícia Federal concluiu pela total falta de colaboração do TSE para com a apuração, do que os hackers tinham feito ou não por ocasião das eleições de 2018”. Não há nenhuma afirmação nesse sentido no material acessado pelo primeiro investigado.

O ex-Presidente menciona o fato de que o inquérito não foi concluído, o que é verdade, mas usa o dado para finalidade totalmente distorcida: afirmar que a realização das Eleições 2020 dependia da “apuração total do que aconteceu lá dentro”. Essa correlação fabricada tem por premissa, falsa, que o inquérito apuraria fraude por manipulação de votos.

A afirmação também desconsidera que, a essa altura, já havia sido produzido relatório parcial identificando o autor do hackeamento, sua atuação em ataques a outros órgãos e sua motivação financeira de venda de dados sigilosos. O então Presidente seguia se apoiando nos documentos iniciais da apuração e nas informações que fabricou com base neles, para reforçar a mensagem de que o TSE assumiu comportamento suspeito, de conivência com o ataque.

A partir daí, são apresentadas mais duas informações falsas: a de que “o sistema é completamente vulnerável” (no contexto da fala: sistemas das urnas, ou de totalização, a permitir manipulação de votos) e a de que a Polícia Federal e o TSE teriam firmado conclusão nesse sentido (afirmação inteiramente incompatível com todas as informações publicadas pelo TSE e com a linha de investigação e achados do inquérito).

Só 2 países do mundo usam esse sistema eleitoral nosso. Vários outros países ou não usam ou começaram a usá-lo ou chegaram à conclusão de que não era um sistema confiável porque ele é inauditável. É impossível fazer uma auditoria em eleições aqui no Brasil.

E agora a fotografia de alguns países, com toda certeza tem gente aqui da Inglaterra, França, Irlanda, Austrália, Alemanha, Hong Kong, Coréia do Sul, Japão. Olha que o pessoal está acompanhando uma apuração. No Brasil, não tem como acompanhar a apuração. Eu não sei o que vêm fazer observadores de fora aqui. Vão fazer o quê? Vão observar o que? Se o sistema é falho, segundo o próprio TSE, é inauditável também, segundo uma auditoria externa pedido (sic) por um partido político, no caso, o PSDB, em 2014. E, com todo respeito, 8 meses passeando dentro dos computadores do TSE esse grupo de hackers, será que o TSE não sabia?

Mas vamos continuar, mais outros países: Taiwan, Rússia, Suíça, Noruega, Itália, Israel. O pessoal tem o que observar. Aqui no Brasil, os observadores que porventura vierem para cá, eu queria saber o que eles vão observar aqui. Pode passar.

O então Presidente apresenta mais uma informação falsa: a de que o sistema eletrônico de votação brasileiro é “inauditável”. E reafirma que é “impossível fazer uma auditoria em eleições aqui no Brasil”. Segundos depois, volta a afirmar, falsamente, que “o sistema é falho e, segundo o próprio TSE, é inauditável também”.

Essas declarações colidem frontalmente com todas as campanhas de informação, notas públicas e demais comunicações do TSE voltadas para esclarecer a sociedade a respeito da auditoria dos sistemas eleitorais. A fala do Presidente não se trata de uma opinião, mas de frontal tentativa de indicar que o TSE não é uma fonte confiável de informações a respeito da segurança do sistema.

Jair Messias Bolsonaro questiona a finalidade das Missões de Observação Eleitoral, ao argumento de que, se não é possível auditar as urnas, nada há para observar. Relembre-se que a reunião do dia 18/07/2022 foi pensada como uma espécie de resposta à iniciativa do Min. Edson Fachin, então Presidente do TSE, que, no final de maio de 2022, havia se reunido com os observadores internacionais e que, em sua gestão, priorizou o diálogo internacional. O Chefe de Estado brasileiro, portanto, comunicava a sua plateia, em sentido contrário, que a observação internacional seria inócua, servindo apenas como uma espécie de teatro diante de um sistema inauditável.

Ainda é mencionada, fora de qualquer contexto, a auditoria solicitada pelo PSDB em 2014.

O ex-Presidente conclui “com todo o respeito”, insinuando conivência do TSE com o ataque hacker, indagando, à forma de mais um pensamento intrusivo a serviço de teoria conspiratória, se seria possível o TSE “não saber” que o grupo de hackers estava “passeando” pela rede do tribunal.

Relembre-se que Jair Bolsonaro disse isso embora estivesse de posse do relatório inicial da STI (cujo conteúdo foi parcialmente abordado minutos antes) que detalhava as medidas tomadas em abril de 2022 para rastrear a invasão, conter danos e identificar os equipamentos acessados, o que serviu de substancial suporte para a investigação da Polícia Federal.

Todo o trecho se insere na disputa travada no âmbito da normatividade de coordenação, cumprindo a função pragmática de comunicar a mensagem “não confie no que diz o TSE, confiem em mim”.

Aqui que eu falei, então. Em 2014, a conclusão foi de que... e houve... houve uma dúvida naquela época: quem ganhou as eleições? Daria um capítulo, mas eu não vou entrar nesse capítulo aqui. Já está bem bastante curioso o que aconteceu em 2014. A Polícia Federal nesses momentos recomendou o voto impresso. Manteria o sistema eleitoral nosso, mas teria uma impressora do lado da urna. Onde não haveria contato manual por parte do eleitor e, após a confirmação do voto, esse papel cairia dentro de uma urna e essa urna seria então utilizada mais na frente para uma contagem física, caso houvesse dúvidas sobre quem ganhou as eleições.

Então, documentação do próprio TSE também conclui aqui que não há como fazer uma correspondência entre um eleitor específico e seu voto. Ninguém quer descobrir o voto daquela pessoa para quem ela escreveu ali ou para quem ela queria votar, não é isso. Esse sistema aqui é impossível fazer qualquer relação ou correlação entre o eleitor e o seu voto.

Aqui, mais uma vez, o outro parecer da Polícia Federal, em 2018, recomendando que fossem envidados todos os esforços para que possa existir o voto impresso para fins de auditoria, também ignorados. Por 4 vezes, o parlamento brasileiro, com a minha participação em todas elas, nós (sic) aprovamos o voto impresso ao lado da urna eletrônica, sem o contato manual do eleitor com o voto, e o Supremo Tribunal Federal disse que era inconstitucional. Inconstitucional no quê?  

O então Presidente volta a se referir às Eleições 2014, na qual Dilma Rousseff foi reeleita Presidenta, afirmando expressamente que “houve uma dúvida [...] a respeito de quem ganhou as eleições”. Embora situe a dúvida “naquela época”, fica evidente que a insinuação de adulteração dos resultados se conecta, no discurso, a todas as afirmações sobre a manipulação de votos em 2018.

Não são apresentados detalhes sobre as conclusões da auditoria realizada em 2014 e Jair Bolsonaro, mencionando que haveria uma recomendação do “voto impresso” pela Polícia Federal, passa a detalhar a forma como se daria a implantação da proposta.

Jair Messias Bolsonaro insinua que recomendações reiteradas da Polícia Federal pela adoção do voto impresso foram “ignoradas”. Enfatiza que o Congresso chegou a aprovar a adoção do voto impresso, momento em que destaca sua atuação como parlamentar para esse resultado, e critica a decisão do STF que declarou inconstitucional a adoção do modelo aprovado por lei ordinária.

À época, a PEC nº 135/2019 havia sido rejeitada pela Câmara dos Deputados em 10/08/2021 e não poderia voltar a ser debatida na legislatura. Cabe lembrar também que o discurso foi proferido dois meses e meio antes da eleição, momento no qual seria impossível, jurídica ou tecnicamente, implementar a alteração.

Desse modo, o Chefe de Estado sustentava, diante da comunidade internacional, que a única forma de trazer a almejada transparência para as Eleições 2022, eliminando a manipulação de votos supostamente ocorrida em pleitos anteriores, era uma proposta já recusada pelo Poder Legislativo. Insinua, com isso, um cenário desolador para a eleição vindoura, que desenha a manipulação de votos como uma hipótese altamente plausível.

E daí entra na frente aqui isso, mais uma personalidade. Deixo claro, quando se fala em Ministro Fachin, ele foi o responsável por tornar Lula elegível.

Numa interpretação de um dispositivo constitucional, o Lula estava preso, e o Supremo entendeu que a prisão só poderia acontecer em última instância, na 4ª instância. Então, ele foi condenado em 1ª instância, 2ª instância, 3ª instância, todos os placares por unanimidade e estava cumprindo pena de prisão. Com a reinterpretação do Supremo Tribunal Federal, ele foi para rua. Mas como ele, Lula, estava em liberdade, mas as condenações estavam valendo, o próprio Ministro Fachin, relator de um processo, resolveu tornar o Lula elegível. Então, por 3 a 2, o Supremo Tribunal Federal não inocentou. Simplesmente, anulou os julgamentos, voltando para a 1ª instância o senhor Luiz Inácio Lula da Silva. Ao voltar para a 1ª instância, ele conseguiu, ele reconquistou a possibilidade de ser elegível.

Adentra-se a fase do discurso em que, na disputa travada no âmbito da normatividade de coordenação, o então Presidente da República passa a tentar convencer a audiência de que Ministros do TSE não podem ser considerados fontes confiáveis a respeito do tema da segurança das urnas, uma vez que, segundo alega, teriam interesse em assegurar a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva e meios para praticar fraudes necessárias para tanto.

O primeiro mencionado é o Min. Edson Fachin, então Presidente do TSE. Ele é descrito simplesmente como “responsável por tornar Lula elegível”.

O então candidato à reeleição, na condição de Chefe de Estado, profere uma crítica direta à atuação do STF nos processos que levaram seu principal adversário a poder disputar as Eleições 2022. Há ênfase em dizer que Lula não foi “inocentado”, mas, sim, que houve anulação de julgamentos que o condenaram. O jogo de palavras não é neutro, pois há um evidente desvalor moral na condição de “não inocente” (ou, como dito em outras declarações públicas, de “descondenado”), que, no contexto, suprimiria de seu oponente a idoneidade para o cargo em disputa.

Embora não tenha havido pedido de votos ou comparação direta entre atributos morais de candidatos (por exemplo: “Lula não é inocente, mas eu sou”), é evidente que as declarações remetem ao contexto das Eleições 2022 (em que Lula estava “elegível”) e cumprem a função pragmática de deslegitimar a candidatura do principal adversário, por meio de fala dirigida à comunidade internacional e apta a alcançar o eleitorado pela TV Brasil e pelas redes sociais do investigado.

Daí, em setembro de 2021, o Ministro Barroso, por portaria, resolve convidar algumas instituições, entre elas as Forças Armadas, a participarem de uma comissão de transparência eleitoral. As Forças Armadas não se meteram nesse processo. Foram convidados. Ao serem convidadas, nós temos um comando de defesa cibernética, como acredito que todos os chefes, todos os países, o têm também, e, como foram convidados, começaram a trabalhar para apresentar soluções, sugestões, para que o ocorrido nas eleições de 2018 não viesse a ocorrer novamente.

Retrocedendo no tempo, Jair Messias Bolsonaro menciona o convite feito pelo então Presidente do TSE em 2021, para que as Forças Armadas participassem da Comissão de Transparência Eleitoral. Esse convite é visto como apto a legitimar a postura de tensionamento e antagonização assumida nos trabalhos da comissão e em outras ocasiões públicas: os militares “não se meteram nesse processo”, “foram convidados” – diz o orador.

O Chefe de Estado, desconsiderando o objeto próprio da Comissão de Transparência, suas regras de funcionamento, a evidente liderança do TSE e o espírito colaborativo dos trabalhos, declara que a atuação das Forças Armadas seria direcionada “para que o ocorrido nas eleições de 2018 não viesse a ocorrer novamente”. O Presidente usa pela primeira vez a primeira pessoa do plural, “nós temos um comando de defesa cibernética”, indicando sua unidade de desígnios com a “missão” inventada para as Forças Armadas.

No contexto já repisado, o trecho cumpre a função pragmática de comunicar que as Forças Armadas estavam prontas a atuar como órgão de inteligência para impedir que a manipulação de votos ocorrida em 2018 voltasse a se repetir em 2022, a despeito de suposta conivência, imperícia e comportamento suspeito do TSE.

Continua, continua então, o senhor Barroso me atacando. Deixo bem claro, por que que o senhor Barroso foi escolhido pelo governo do PT para ser ministro do Supremo Tribunal Federal? Porque ele trabalhou para que o terrorista Cesare Battisti ficasse no Brasil. E, no último dia do presidente Lula em 2010, Battisti ganhou a condição de refugiado no Brasil, graças ao trabalho dele, o Barroso, que era advogado naquela época, e o terrorista Cesare Battisti permaneceu no Brasil. Graças a isso, certamente, ele ganhou confiança do Partido dos Trabalhadores e foi indicado para o Supremo Tribunal Federal.

A exemplo do que fez em relação ao Min. Edson Fachin, o primeiro investigado passa a elaborar uma teoria conspiracionista a respeito do Min. Luís Roberto Barroso, anterior Presidente do TSE.

Partindo de um fato verídico, que é a atuação do então advogado na defesa de Cesare Battisti em processo de extradição, o primeiro investigado extrapola para uma narrativa inteiramente fabricada e grave.

Sem rodeios, o então Chefe de Estado afirma para representantes da comunidade internacional que interessava ao PT manter um “terrorista” no Brasil e que a nomeação para o STF foi o prêmio dado ao advogado que teria viabilizado isso.

O objetivo de comprometer a idoneidade do magistrado e, com isso, sua atuação no TSE, é evidente.

Também é comunicada, na fala, a associação entre o PT, partido de seu principal adversário nas Eleições 2022, e terrorismo.

Então, essa, volta, essa acusação que eu vazei dados, o inquérito, que é ostensivo, não tem qualquer classificação sigilosa. É uma acusação simplesmente infundada. Carece de base, de amparo legal. É uma acusação mentirosa, nada existe no inquérito. O inquérito, como diz, como o próprio depoimento do delegado encarregado do mesmo, da corregedoria da PF e da Procuradoria da Câmara dizendo que o inquérito não tinha qualquer classificação sigilosa. E se tivesse, estava errado. Porque, quando se fala em eleições, se vem à nossa cabeça transparência.

E o senhor Barroso, também com o seu Fachin, começaram a andar pelo mundo me criticando, como se eu estivesse preparando um golpe por ocasião das eleições. É exatamente o contrário o que está acontecendo. O Barroso, nos Estados Unidos, faz uma palestra ‘Como se livrar de um presidente’. Ele é, era, do Tribunal Superior Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal. A gente não tem notícias de pessoas que ocupam essa Corte, nos países que tenham, que fiquem falando, dando entrevista, dando palestras e colocando a sua opinião pessoal sobre este ou aquele governo. Lamentável a ação do Ministro Barroso pelo mundo, porque isso atrapalha o Brasil.

Jair Messias Bolsonaro volta a mencionar o IPL nº 1361/2018/DF e a se defender da imputação de vazamento de dados sigilosos.

Diz, então, que, mesmo se houvesse o sigilo declarado pelos órgãos competentes, isso estaria “errado”. O adjetivo, seguido da explicação “porque quando se fala em eleições, se vem à nossa cabeça transparência”, transmite a mensagem de que não divulgar o inquérito contribuiria para a falta de transparência do pleito. Essa é mais uma afirmação falsa que objetiva tanto acionar o sentimento de que há uma ameaça rondando as Eleições 2022 quanto descrever o primeiro investigado como alguém que age para impedi-la de se concretizar.

O orador afirma que sua atuação é “o contrário” de preparar “um golpe por ocasião das eleições”. E afirma que os dois Ministros do TSE já por ele referidos como inidôneos, “começaram a andar pelo mundo” para difundir a ideia de que o golpe estaria sendo tramado.

É ainda feita uma menção descontextualizada a uma palestra do Min. Barroso, atribuindo-lhe título falso. O Presidente da República diz que a atuação do Ministro “atrapalha o Brasil”.

No mesmo dia da reunião, o gabinete do magistrado divulgou nota esclarecendo que o título da palestra era “Populismo Autoritário, Resistência Democrática e Papel das Supremas Cortes” (https://portal.stf.jus.br/
noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=490664&ori=1).

Repito: vocês nunca ouviram uma só palavra minha de censurar a mídia. De derrubar página de alguém que me critique, de prender deputado, nunca mandei prender nenhum deputado. Quem prendeu foi o outro colega deles, Alexandre de Moraes.

O Min. Alexandre de Moraes, que estava em vias de assumir a Presidência do TSE, é referido, pela primeira vez no discurso. Exaltando a si próprio como um democrata, em contraponto ao magistrado, Jair Messias Bolsonaro se apresenta como defensor da liberdade de expressão, enquanto o Min. Alexandre de Moraes, “outro colega deles” (ou seja, colega dos Min. Edson Fachin e Luís Roberto Barroso) “prendeu” deputado.

A fala cumpre a função pragmática de tentar apontar o futuro Presidente do TSE como alguém contrário à liberdade de imprensa e de manifestação.

E depois também:

[Exibição de vídeo com pergunta de jornalista ao Ministro Luís Roberto Barroso]

“Jornalista: – Boa noite, Ministro. Com as informações que a gente tem até agora, dá para saber se a gente vai ter resultado hoje ainda ou só amanhã? E a outra coisa é: quem é que faz a manutenção do supercomputador que o senhor mencionou é a própria equipe do TSE ou uma empresa terceirizada? Obrigado.

Ministro Luís Roberto Barroso: – Eu vou pedir ao nosso secretário de Tecnologia da Informação. Giuseppe, se você puder comparecer ali ao microfone e explicar. Quer dizer, houve um problema de infraestrutura que a Oracle estava atendendo, mas eu não gostaria de dar uma explicação equivocada. Portanto, Giuseppe, por favor.

Secretário de Tecnologia da Informação – Boa noite. Esse computador ele é instalado por meio de um serviço, ele faz justamente esse papel da nuvem computacional. Ou seja, é um supercomputador, que ele é contratado por uma empresa, no caso a empresa é a Oracle, ela instala esse computador e mantém ele em funcionamento. É um serviço, justamente, e não é uma aquisição. Portanto, a manutenção, a conservação, o suporte, o bom funcionamento do equipamento é de responsabilidade da empresa sim.

Ministro Luís Roberto Barroso: – Não é propriamente uma terceirização, é uma contratação de um serviço, como explicou o nosso secretário, ok?”

Bolsonaro: – Bem, não é o Tribunal Superior Eleitoral quem conta os votos, é uma empresa terceirizada. Eu acho que nem precisava continuar essa explanação aqui. Nós queremos obviamente, estamos lutando para apresentar uma saída para isso tudo. Nós queremos confiança e transparência no sistema eleitoral brasileiro.

A exibição do vídeo contendo trecho da entrevista coletiva concedida pelo Min. Luís Roberto Barroso durante as Eleições 2020 demonstra, de forma nítida, a estratégia discursiva de Jair Messias Bolsonaro: fabricar conteúdos e difundir informações falsas, a partir preferencialmente de uma informação verdadeira, de teor técnico (que, a pretexto de ser “explicada” pelo primeiro investigado, é, na verdade, distorcida por ele).

No vídeo, a imprensa indaga ao então Presidente do TSE se a manutenção do supercomputador que viabiliza a divulgação de resultados é feita pelo próprio tribunal ou por uma “empresa terceirizada”. O Min. Luís Roberto Barroso solicita uma explanação técnica ao então Secretário de Tecnologia da Informação, que explica, em linhas gerais, que o TSE contratou a empresa Oracle para prestar um serviço de “nuvem computacional” e diz que “a manutenção, a conservação, o suporte, o bom funcionamento do equipamento, é de responsabilidade da empresa, sim”. Com seu didatismo, o Min. Luís Roberto Barroso, entendendo a dúvida da repórter, complementa que o modelo não é de terceirização, em que o maquinário seria do TSE, mas de contratação de serviço (nuvem computacional).

Vê-se que não há nenhuma referência a uma empresa encarregada de “contar votos”.

A despeito disso, o então Presidente da República não hesita em concluir que o vídeo prova que “uma empresa terceirizada” é “quem conta os votos”. O fato fabricado chega a ser apresentado como uma derradeira informação sobre a falta de confiabilidade do sistema eletrônico de votação brasileiro (“nem precisava continuar essa explanação aqui”, diz o orador).

A manipulação do episódio ocorrido no contexto da entrevista coletiva – que, na realidade, apenas postergou a divulgação de resultados das Eleições 2020 por algumas horas – escala. O então Chefe de Estado o utiliza para reafirmar para a plateia que está “lutando para apresentar uma saída para isso tudo”.

No contexto do discurso, não há dúvidas que a mensagem comunicada é que teria havido fraude por manipulação de votos também nas Eleições 2020 (relembre-se: o orador já havia dito que esse pleito nem poderia ter ocorrido antes que fosse concluído o IPL nº 1361/2018). Tudo se soma para reforçar a ideia de que o então Presidente da República estaria empenhado em evitar que isso se repetisse nas Eleições 2022.

Aqui uma reunião do Ministro Fachin com alguns dos senhores ou representantes, alertando-os contra acusações levianas. O que eu estou falando aqui não tem nada de leviano. Esse inquérito tenho cópia comigo e quem porventura quiser ter acesso dele eu forneço a cópia. E repito: não tem qualquer classificação sigilosa o que está dentro dele.

E aqui eu já falei: ‘Fachin assina acordo do TSE com entidade estrangeira para observação das eleições’. Eu peço aos senhores: o que essas pessoas vêm fazer no Brasil? Vêm observar o quê? Que o voto é totalmente informatizado. Vêm dar ares de legalidade. Vêm dizer que tudo ocorreu numa normalidade.

Jair Messias Bolsonaro se refere, nesse trecho, à reunião de 31/05/2022, em que o então Presidente do TSE, Min. Edson Fachin, alertou embaixadores contra “acusações levianas” relativas às urnas eletrônicas e sugeriu que buscassem “informações sérias e verdadeiras”.

Conforme já explicado, foi esse encontro que motivou o primeiro investigado a convocar a reunião com embaixadores no dia 18/07/2022, como uma espécie de resposta.

Nesse contexto, Jair Bolsonaro, assumindo que o alerta feito pelo então Presidente do TSE se voltava também contra declarações que vinham sendo feitas pelo mandatário, retruca: “o que eu estou falando não tem nada de leviano”. Porém, o respaldo invocado, mais uma vez, é o IPL nº 13621/2018, que, conforme visto, não embasa as afirmações sobre manipulação de votos ou sobre qualquer outra fraude em eleições pretéritas.

Ou seja, o primeiro investigado estava ciente de que o órgão de governança eleitoral do país não respaldava as imputações de fraude ao sistema eletrônico que ele vinha propalando. Ainda assim, sustentou falsamente perante representantes da comunidade internacional que tinha em sua posse um documento da Polícia Federal que corroborava suas declarações, de modo que não deveria ser levado em conta o que disse o Min. Edson Fachin.

O então Presidente da República dispara diante dos diplomatas um outro alerta: as missões de observação somente serviriam para “dar ares de legalidade” e “dizer que tudo ocorreu numa normalidade”, ou seja, para maquiar a fraude.

Essa prática discursiva de esgarçamento institucional, assentada na degradação da normatividade epistêmica pela normatividade de coordenação, veio a ser referida pela defesa dos investigados, nesta ação, como “diálogo fértil e desinibido”, no esforço de normalizar as declarações feitas pelo primeiro investigado.

Eu teria dezenas e dezenas de vídeos para passar para os senhores por ocasião das eleições de 2018 onde o eleitor ia votar e simplesmente não conseguia votar. Ou quando ele apertava o número 1 e depois ia apertar o número 7, aparecia o 3 e o voto ia para outro candidato. O contrário ninguém reclamou. Temos quase 100 vídeos de pessoas reclamando que foram votar em mim e, na verdade, o voto foi para outra pessoa, nenhum vídeo de alguém que foi votar no outro candidato e porventura apareceu meu nome.

Nesse trecho, o primeiro investigado, sem rodeios, afirma que tem em seu poder provas (“dezenas e dezenas de vídeos”) de fraude nas Eleições 2018. Ele declara perante embaixadoras e embaixadores, na condição de Chefe de Estado, que houve situações em que a pessoa “apertava o número 1 e depois ia apertar o número 7, aparecia o 3 e o voto ia para outro candidato”. Ele afirma logo depois que tem quase 100 vídeos de pessoas reclamando e alegou: “foram votar em mim e, na verdade, o voto foi pra outra pessoa”.

Há, portanto, uma imputação explícita de que o sistema eletrônico de votação foi manipulado para adulterar votos. Mais que isso, a manipulação somente ocorreria em uma direção: votos para o “17” seriam transformados em votos para o “13”.

Conforme se sabe, em 2018 Jair Bolsonaro concorreu pelo PSL com o número 17, enquanto Fernando Haddad, seu principal adversário, concorreu pela coligação encabeçada pelo PT, com o número 13. A mensagem comunicada aos embaixadores é a de que as urnas eletrônicas estariam programadas pelo TSE para “autocompletar” a votação com o número 3 assim que fosse digitado o algarismo 1, computando um voto em favor de Fernando Haddad e impedindo eleitoras e eleitores de registrar sua escolha por votar em Jair Bolsonaro.

Não apenas se trata de uma informação inteiramente falsa, fabricada no contexto de estímulo a um estado de paranoia coletiva resultante do contínuo esforço de descredibilização das urnas eletrônicas, como também se trata da mesma informação falsa divulgada por Fernando Francischini em live realizada em 2018 e que levou à cassação de seu diploma de deputado federal. O parlamentar condenado disse na ocasião, para seu público, que urnas foram apreendidas ao se constatar que nelas a pessoa “vota um e aparece o nome do Haddad” (ou seja, ao digitar o algarismo 1, a urna autocompletaria o voto com o algarismo 3, perfazendo o “13”).

A função pragmática desse trecho não é outra senão estatuir que as Eleições 2018 teriam sido fraudadas para direcionar votos de Jair Bolsonaro para Fernando Haddad e que haveria farta prova dessa ocorrência.

Nós queremos é corrigir falhas. Nós queremos transparência. Nós queremos a democracia de verdade.

Após a deliberada e falsa afirmação de que houve fraude nas Eleições 2018, Jair Messias Bolsonaro afirma mais uma vez que seu desejo é atuar para que o mesmo não se repita nas Eleições 2022. O desejo por “democracia de verdade” é comunicado como uma meta que será conquistada quando não mais for possível manipular votos.

Agora, eu estou sendo acusado o tempo todo, Barroso, Fachin, Alexandre de Moraes, como a pessoa que quer dar o golpe. Eu estou questionando antes, porque temos tempo ainda de resolver esse problema. Com a própria participação das Forças Armadas, que foram convidadas pelo Tribunal Superior Eleitoral.

Descrito o catastrófico cenário da hipotética fraude nas Eleições 2018, o discursante volta a se apresentar como a autoridade disposta a resolver o problema e que, injustamente, é tratada pelos três Ministros do TSE como “a pessoa que quer dar um golpe”.

Para sustentar que não pretende “dar o golpe”, ele diz que está “questionando antes” e que “temos tempo ainda de resolver esse problema”.

Considerando-se que faltavam apenas dois meses e meio para o pleito de 2022 e que a PEC nº 135/2019 já havia sido rejeitada em agosto de 2021, o então Presidente passa a abordar uma espécie de estratégia alternativa para o imaginário problema da fraude eleitoral: a atuação salvadora das Forças Armadas.

Os senhores devem estranhar: o que as Forças Armadas estão fazendo no processo eleitoral? Nós fomos convidados. E eu sou o chefe supremo das Forças Armadas. Nós jamais, com esse convite, iríamos participar apenas para dar ares de legalidade. O comando de defesa cibernética, os senhores têm o equivalente nos países de vocês, é algo extremamente sério. Pessoas extremamente, mais que habilitadas, confiáveis.

 

A partir desse ponto, o então Presidente da República passa a se referir às Forças Armadas na primeira pessoa do plural.

O conceito de “comandante supremo” é manuseado não para afirmar a submissão do poder militar ao governo civil, mas, sim, para inserir o primeiro investigado na estrutura militar. A construção gramatical promove a simbiose entre a Presidência da República, o Exército, a Marinha e a Aeronáutica.

O convite dirigido às Forças Armadas para integrar a Comissão de Transparência Eleitoral se transforma, no discurso, em convite dirigido ao próprio candidato à reeleição: “nós fomos convidados”, diz o orador. E, uma vez aceito o convite, a simbiose imaginada por ele assume um papel salvador: “jamais [...] iríamos participar apenas para dar ares de legalidade”.

O sentido implícito, facilmente extraído do contexto do discurso, é o de que as Forças Armadas, lideradas por seu comandante supremo (o Presidente da República), não endossariam a estratégia de mascarar fraudes eleitorais por meio da Comissão de Transparência, intento atribuído a Ministros que presidiram o TSE.

Passa esse aí. Aqui.

Depois de convidar as Forças Armadas, o trabalho das Forças Armadas junto com o comando de defesa cibernética, que é algo louvável, confiável e verdadeiro, o Ministro Fachin disse que as sugestões apresentadas pelas Forças Armadas serão avaliadas depois de 2022. Todas as sugestões apresentadas pelas Forças Armadas podem ser cumpridas até 2 de outubro e, se tiver qualquer despesa extra, o Poder Executivo arranja recurso para tal. Que sempre ouvimos, em especial da esquerda, que democracia não tem preço.

O discurso prossegue comparando as Forças Armadas e seu comando de defesa cibernética, que Jair Messias Bolsonaro valida como “louvável, confiável e verdadeiro”, com os técnicos do TSE, que, segundo diz, não teriam sido capazes, até aqui, de impedir a manipulação de votos e podem até mesmo ter contribuído para que a fraude ocorresse e não fosse debelada.

Arvorando-se em autoridade sobre o desenvolvimento de urnas, o então Presidente assegura à plateia que as sugestões feitas pelas Forças Armadas podem ser incorporadas em dois meses. Ainda empenha, de forma personalista, o compromisso do Poder Executivo de custear “qualquer despesa extra” decorrente das sugestões.

Por fim, sugere que “a esquerda” não poderia se opor a isso, já que sempre propala que “democracia não tem preço”.

Jair Bolsonaro passa a antagonizar, diretamente, com o então Presidente do TSE, que já havia se manifestado a respeito das sugestões das Forças Armadas. Essa antagonização é comunicada ao público sem que tenha sido abordado qualquer argumento técnico em favor da proposta dos militares. O orador apenas diz que as sugestões das Forças Armadas poderiam ser acolhidas na totalidade.

Além disso, oculta da plateia a informação de que boa parte das sugestões foi aceita. Também distorce ofício enviado em 17/06/2022 pelo TSE ao então Ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, pois o que se diz no documento é que “embora algumas sugestões não tenham sido acolhidas para esse ciclo eleitoral, serão consideradas para uma nova análise objetivando os próximos pleitos” (Ofício GAB-SPR/GAB-PRES nº 2847/2022), o que nitidamente assinala que a rejeição não é definitiva e que o diálogo poderia seguir aberto.

Aqui. Por que uma declaração como essa? Será que ele [Ministro Edson Fachin] já está antevendo que o candidato dele, que ele tornou elegível, vai ganhar as eleições? E do lado de cá teria uma reação? Resultado de eleições se cumpre. Agora, estamos tentando antecipar um problema que interessa para todo mundo. O mundo todo quer estabilidade democrática no Brasil.

Ao exibir alguma declaração do Min. Edson Fachin na tela, cujo teor não é informado, Jair Messias Bolsonaro insinua que ela teria sido prestada antevendo uma reação do candidato à reeleição, em caso de derrota. O então Presidente da República reafirma que o Min. Fachin “tornou [Lula] elegível” e se refere ao adversário como “candidato dele” (ou seja: Lula seria “o candidato” do Presidente do TSE).

A afirmação de que “resultado de eleições se cumpre” é implicitamente associada à condicionante das eleições hígidas (diversamente do que aconteceu, segundo a narrativa apresentada, nas Eleições 2018). Isso é percebido pelo uso do “agora” como conjunção adversativa: “agora, estamos tentando antecipar um problema”, ou seja, para “cumprir” (respeitar) o resultado das eleições, é imperioso que “o problema” (fraude) seja corrigido.

Os senhores todos querem continuar representando os seus países. Porque o Brasil é um país que interessa para todo mundo. Nós alimentamos mais de 1 bilhão de pessoas pelo mundo com o nosso o agronegócio.

Repito: Temos negócio com o mundo todo, é um país fantástico. Teria muito a falar sobre o Brasil, como os senhores bem acompanham o que vem acontecendo aqui em nossa pátria. E nós, se o povo resolver voltar ao que era antes, paciência.

Agora, num sistema eleitoral como esse, que apenas 2 países o adotam, outros estudaram e abandonaram, outros fizeram uma ou outra eleição e desistiram. Nós não queremos isso para o Brasil. Nós não queremos que, após as eleições, um lado ou outro questione os resultados das eleições.

Jair Messias Bolsonaro busca convencer que tudo o que diz no discurso converge com interesses das nações estrangeiras, pois envolve a continuidade de negócios com os demais países.

É construído um contraste entre o governo do candidato à reeleição, apresentado como próspero, e “o que era antes”, ou seja, governos anteriores. É perceptível que eventual eleição de Lula em 2022 é comunicada como um retrocesso: “se o povo resolver voltar ao que era antes, paciência”.

O “agora” volta a ser usado como conjunção adversativa: “agora, num sistema eleitoral como esse [...]” a insinuar que uma eleição de Lula, com o atual sistema, não refletiria uma escolha livre para “voltar ao que era antes”, mas, sim, conforme já explicado no discurso, evidenciaria a manipulação de votos.

O trecho é arrematado com o reforço ao pensamento intrusivo de que pode ocorrer uma fraude nas Eleições 2022, se nada for feito: “nós não queremos que, após as eleições, um lado ou outro questione os resultados das eleições”.

Fica sugerida a indagação: e se, então, Lula for eleito e o candidato à reeleição derrotado conclua que isso não reflete o que o “povo” quis, estaria justificada a não aceitação dos resultados?

Como os senhores viram no começo aqui, em vídeos passando meus, eu ando o Brasil todo. Sou muito bem recebido em qualquer lugar. Ando no meio do povo. O outro lado não. Sequer toma café ou almoça no restaurante do hotel. Come no seu quarto. Porque não tem aceitação.

Agora, pessoas que devem favores a ele não querem um sistema eleitoral transparente. Pregam o tempo todo que imediatamente após anunciar o resultado das eleições, os respectivos chefes de estado dos senhores devem reconhecer imediatamente o resultado das eleições.

O trecho estabelece um nítido comparativo entre o candidato à reeleição e “o outro lado”. É patente a conotação eleitoral deste trecho, pois o “outro lado”, que não poderia andar pelo Brasil, que não seria bem recebido e que não anda no meio do povo, tudo isso por não ter “aceitação”, inequivocamente se refere a um ou mais adversários no pleito iminente.

Fica evidente que esse adversário é Lula, pois é usada a expressão “pessoas que devem favores a ele não querem um sistema eleitoral transparente”. A expressão é facilmente decodificável no contexto do discurso: seriam os Ministros que presidiram o TSE, que deveriam “favores” a Lula pura e simplesmente por conta de haverem sido nomeados para o STF. É atribuída aos Ministros uma estratégia de pedir aos países estrangeiros que aceitem o resultado tão logo proclamado, para, conforme já dito, “dar ares de legalidade” ao processo eleitoral.

A mensagem que o primeiro investigado comunica é que os Ministros Edson Fachin e Luís Roberto Barroso são contra a “transparência” do sistema, porque a opacidade beneficiaria Lula ao permitir a prática de fraude consubstanciada em “transferência de votos” para um candidato sem “aceitação”, o que seria escamoteado pelos cumprimentos de outros Chefes de Estado ao falso vencedor. Verdadeira teoria conspiratória destinada a incitar a desconfiança em qualquer resultado diverso da reeleição de Jair Messias Bolsonaro em 2022.

Depois das Forças Armadas serem convidadas para participar da Comissão da Transparência Eleitoral, o Fachin, quem tornou o Lula elegível, disse que quem trata das eleições do Brasil são ‘forças desarmadas’. Então, por que nos convidaram? Achavam que iam dominar as Forças Armadas? Será que se esqueceram que eu sou o chefe supremo das Forças Armadas? Será que se esqueceram da responsabilidade das nossas Forças Armadas, que goza de um conceito excepcional perante a opinião pública. Jamais as Forças Armadas participariam de uma farsa. Jamais seriam moldura de uma fotografia.

Em momento de tensão crescente, Jair Messias Bolsonaro dirige indiretamente questões ao Min. Edson Fachin, mais uma vez referido como aquele que “tornou Lula elegível”. O então Presidente da República contesta o uso da expressão “forças desarmadas” pelo Presidente do TSE à época.

A declaração feita pelo Ministro em 12/05/2022, conforme é público e notório, foi: “quem trata de eleições são as forças desarmadas. Portanto, as eleições dizem respeito à população que, de maneira livre e consciente, escolhe seus representantes [...]. Diálogo, sim. Colaboração, sim. Mas, na Justiça Eleitoral, quem dá a palavra final é a Justiça Eleitoral”.

Ao redarguir essa manifestação, o então Presidente da República, mais uma vez usando a primeira pessoa do plural para se referir às Forças Armadas, diz: “então, por que nos convidaram?”

Sem aceitar a premissa de que o convite se deu para colaborar em uma Comissão, e não para assumir o controle e a palavra final sobre o sistema de votação, o primeiro investigado eleva o tom, sugerindo que o TSE estaria agindo para sobrepujar as Forças Armadas, obrigando-as a participar “de uma farsa”, intento que não teria êxito porque o “chefe supremo” daquelas Forças – o Presidente da República – não permitiria.

O trecho exemplifica o uso da denominada “falácia do espantalho”, na qual um interlocutor distorce inteiramente as premissas postas pelo outro e passa a esgrimir intensamente contra essas premissas distorcidas (o espantalho). Assim, enquanto o Min. Edson Fachin ressalta que a Justiça Eleitoral é o órgão constitucionalmente imbuído de realizar eleições e seguirá exercendo essa competência sem ceder a pressões indevidas, Jair Bolsonaro retruca que as Forças Armadas não aceitarão participar de uma farsa, como se, acaso, esse fosse o sentido do que disse o Presidente do TSE.

E olha uma coisa inacreditável. O que que o Fachin diz, o homem que tornou Lula elegível, sempre foi advogado do MST, um grupo terrorista que até pouco tempo era bastante ativo no Brasil: ‘A auditoria não é instrumento para rejeitar resultado das eleições’. Para que serve a auditoria? Eu tenho vergonha de estar falando isso para vocês. Eu tenho vergonha. Agora, eu sou obrigado a conversar com os senhores. Agradeço a presença aqui penhoradamente. Porque sei que os senhores todos querem a estabilidade democrática em nosso país. E ela só será conseguida com eleições transparentes, confiáveis. Continue.

Seguindo em seu empenho para “derrubar” a autoridade do então Presidente do TSE, o primeiro investigado diz que o Min. Fachin foi “advogado do MST”, o que, conforme é público e notório, se trata de uma informação falsa.

Para intensificar o impacto do que disse, Jair Bolsonaro descreve o MST como “grupo terrorista”, querendo dizer, portanto, que o Presidente do TSE advogava para um grupo terrorista.

Na sequência, o ex-Presidente da República menciona, de forma distorcida e descontextualizada, manifestação do Min. Edson Fachin, datada de 01/07/2022, na sessão de encerramento do semestre no TSE.

A fala, pública e notória, é a seguinte: “A Justiça eleitoral franqueia todos os meios legítimos de auditoria. Auditar traduz a ideia de conferir procedimentos e instrumentos usados na produção do resultado eleitoral. Auditar, portanto, não se trata de veicular uma proposição aberta direcionada aprioristicamente a rejeitar o resultado das urnas que, porventura, retrate que a vontade do povo é oposta aos interesses pessoais de um ou outro candidato”.

Evidentemente, não era exigível que Jair Messias Bolsonaro guardasse de memória as palavras exatas com as quais o Min. Edson Fachin repeliu que a discussão sobre auditoria nas urnas fosse usada como pretexto para manobras político-eleitorais de recusa a resultados legítimos. Mas era, sim, imperativo que não usasse de trecho solto para deturpar inteiramente o sentido da mensagem. Porém, Jair Messias Bolsonaro violou essa expectativa e buscou convencer a plateia que o então Presidente do TSE teria declarado que não anularia um resultado mesmo se uma auditoria revelasse fraude nas urnas. Algo completamente diverso do que foi dito de fato.

Por mais uma vez, o orador difundiu o pensamento intrusivo de que é preciso reagir contra o TSE para se ter eleições transparentes e confiáveis e, com isso, estabilidade democrática.

O Ministro Alexandre de Moraes: ‘Manda prender quem disseminar fake news nas eleições de 2022’. Que que é fake news? É o que eles acham que é fake news. Como já aconteceu comigo: botaram numa página minha no Facebook uma a matéria de uma revista falando sobre Aids e vírus, Covid, e ele achou que aquilo é fake news e está aí processando. Eu não sei onde ele acha que ele pode parar.

Nós temos a paz, tranquilidade, o respeito que não tem da outra parte para conosco. Eu não sei o que faz uma pessoa agir dessa maneira.

Quem escolhe as pessoas para dizer o que esse ou aquele candidato bota em sua página, se é fake news ou não, é o próprio TSE. Que desmonetiza a página, que derruba outras, que sugere prisões, que cassa parlamentar por coisas que não têm tipificação na lei. Como cassaram um deputado por fake news. Que cria a jurisprudência de interesse deles mesmos para prejudicar o nosso lado, como no próximo aqui, vamos ver aqui.

Jair Messias Bolsonaro volta a se referir ao Min. Alexandre de Moraes e estatuir que o conceito de fake news seria subjetivamente determinado pelos Ministros do TSE (“o que eles acham que é fake news”). O então mandatário cita como exemplo de casuísmo o fato de estar sendo investigado no STF por haver associado “AIDS e [...] Covid”.

Conforme é público e notório, em 21/10/2021, em sua live, o então Presidente da República expressamente declarou que os “totalmente vacinados contra a Covid-19” estariam “desenvolvendo a Síndrome de Imunodeficiência Adquirida [Aids] muito mais rápido que o previsto”, o que constaria de “relatórios do governo do Reino Unido”. Além de a live ter sido voluntariamente retirada do ar pelas plataformas em que foi transmitida, em razão de seu conteúdo falso, a Polícia Federal conclui que a conduta caracterizou delito de “atentado contra a paz pública”. No discurso para os embaixadores, o ex-Presidente tentou se desimplicar de suas próprias declarações, dizendo que terceiros “botaram numa página minha no Facebook uma matéria de uma revista”.

O caso é referido para ilustrar que a “outra parte” não o respeita. Essa “outra parte”, no contexto, é o próprio TSE, e o então Presidente da República passa a descrever medidas que teriam sido tomadas “para prejudicar o nosso lado”. Dentre elas, está a desmonetização de canais (determinada no Inquérito nº 0600371-71, para estancar o financiamento de páginas que replicaram, entre outros conteúdos falsos, as lives de Jair Bolsonaro de julho e agosto de 2021, em que foi divulgada desinformação sobre as urnas eletrônicas) e a condenação de Fernando Francischini (evocada como cassação de “parlamentar por coisas que não têm tipificação na lei”).

Observa-se que o então Presidente da República dirige-se a Chefes de Missão Diplomática para sustentar que o STF e o TSE atuam parcialmente quando proferem decisões contrárias a interesse do “seu lado” – que, ao menos nos exemplos citados, seria o de usar as redes sociais, sem quaisquer barreiras, para divulgar conteúdos falsos a respeito de grave crise sanitária mundial e da governança eleitoral.

[Exibição de vídeo.]

‘Atentar contra as eleições e a democracia’: quem faz isso é o próprio TSE ao esconder, ao tentar esconder, o inquérito de 2018.

Não pode um magistrado ameaçar quem quer que seja. Quando ele diz que existe gabinete do ódio, que seria algo do meu governo, diz que tem um ministro que falou, mas não diz o nome do ministro, não apresenta uma só matéria que poderia ter sido produzido no tal do gabinete do ódio.

O que que ele quer com isso? Para que acirrar os ânimos entre o Poder Judiciário e o Poder Executivo? E não é o comportamento de um magistrado a ameaça. Se diz que houve, existe, gabinete do ódio, eu repito, apresenta uma só matéria que poderia ser produzida por um gabinete vinculado a mim na presidência da República.

Na sessão do TSE de 02/06/2022, o Min. Edson Fachin declarou que “atentar contra a Justiça Eleitoral é, a rigor, atentar contra a própria democracia”. Perante embaixadoras e embaixadores, Jair Messias Bolsonaro redarguiu a assertiva e afirmou que o TSE atenta contra as eleições e a democracia “ao tentar esconder o inquérito de 2018”.

Nota-se mais uma vez a falsa associação entre o IPL nº 1361/2018 e uma inexistente fraude eleitoral, que o TSE tentaria ocultar ao “esconder” o próprio inquérito.

Na sequência, a narrativa se envereda por descrever o então Presidente da República como alvo de “ameaça”. Comunica o declarante à plateia que o “gabinete do ódio” seria uma invencionice destinada a “acirrar os ânimos entre o Poder Judiciário e o Poder Executivo”.

É lamentável esse comportamento ameaçando, quer amedrontar quem? Quer fazer valer esse processo eleitoral onde próprio TSE diz que ele é vulnerável. Onde a própria Polícia Federal disse, com documentação do próprio TSE, que aquilo é mais que um queijo suíço, é uma peneira. Por que eles convidam as Forças Armadas e depois não querem mais as nossas sugestões?

Retomando a afirmação de que as eleições brasileiras não são confiáveis, Jair Messias Bolsonaro questiona o TSE por querer “fazer valer esse processo eleitoral”. O orador explora metáforas para dizer que há uma gigantesca quantidade de “furos” na segurança das urnas (“mais que um queijo suíço, é uma peneira”) reconhecida pela Polícia Federal (em virtude do IPL nº 1361/2018).

Arremata sugerindo que é contraditório o TSE ter feito o convite às Forças Armadas e, depois, não acolher sugestões (às quais se refere com o pronome possessivo “nossas”, remetendo à simbiose entre a Presidência da República e as Forças Armadas).

O último slide, né. No O Estado de S.Paulo: ‘Ministros do Supremo Tribunal Federal formam célula política para combater o governo Bolsonaro’. Quem diz não sou eu. É a própria imprensa, que sempre esteve ao lado deles, acaba deixando transparecer uma verdade cristalina. As ações contra o nosso governo são inúmeras. Eu recebo uma interferência por semana no meu governo. Você dá prazo para explicar por 48 horas por que que eu não fiz isso, por que não fiz aquilo. E é ajuizada por parlamentares de esquerda, da extrema-esquerda brasileira, tentando o tempo todo desestabilizar o governo.

Explorando uma nova faceta da normatividade de coordenação, Jair Messias Bolsonaro “valida” uma publicação da grande imprensa, constante de uma coluna de opinião, apenas porque o conteúdo lhe seria favorável (a mídia, em si, continuaria estando “ao lado deles”, ou seja, de seus adversários políticos).

O Chefe de Estado se queixa aos embaixadores pelo que considera “interferências” em seu governo. Evocando a polarização política, diz que há uma estratégia de “parlamentares de esquerda, da extrema-esquerda brasileira” para desestabilizar seu governo.

Embora esse trecho possa ser entendido como uma opinião sobre fatos, é certo que os comentários não podem ser dissociados do contexto eleitoral em que formulados. Cumpriram função pragmática de angariar empatia, ao comunicar aos diplomatas que seus adversários – a “esquerda” e a “extrema-esquerda” – vêm tentando minar seu governo.

Então, a presença dos senhores aqui, que eu agradeço mais uma vez, com qual intenção nossa? Nosso objetivo é transparência e confiança nas eleições. Quem ganhar, o outro lado tem que se conformar, estamos a 3 meses das eleições.

As propostas sugeridas pelas Forças Armadas praticamente estancam a possibilidade de manipulação de números, como sugere o próprio TSE, por ocasião das eleições de 2018. Eu não quero falar do que eu acho que aconteceu. Eu estou simplesmente em cima dos fatos. Estou me comportando aqui como o outro magistrado deveria se comportar.

O desejo por transparência e confiança nas eleições é repetido de forma quase monótona. Há uma função pragmática nisso: tornar a mensagem muito familiar, ao ponto de naturalizá-la, reduzindo a resistência à implantação do pensamento intrusivo subjacente às palavras ditas, ou seja, a ideia de que algo precisa ser feito para que as eleições venham a ser confiáveis, pois no passado não foram.

Volta a ser afirmado, de forma direta, que o TSE teria reconhecido a possibilidade de os resultados das Eleições 2018 terem sido manipulados. A informação é falsa, mas Jair Messias Bolsonaro insiste em lhe emprestar credibilidade, assegurando que ela corresponde aos fatos (no contexto, aqueles que constariam do IPL nº 1361/2018).

Com esse inquérito, como eu convidei o presidente do TSE a comparecer a esse evento, não veio. Convidei o presidente de todos os poderes, né? Presente aqui o presidente do STM, Superior Tribunal Militar. Não compareceram, tudo bem. Agora, isso que está acontecendo é de interesse de todo o povo brasileiro. A desconfiança do sistema eleitoral tem se avolumado. Nós não podemos enfrentar umas eleições sob o manto da desconfiança. Nós queremos ter a certeza de quem, eleitor, para quem o eleitor votou, o voto vai exatamente para aquela pessoa.

O então Presidente da República insinua que o então Presidente do TSE teria deixado de comparecer à reunião com os embaixadores, para a qual fora convidado, por se intimidar diante da existência do inquérito. O momento equivale, de certa forma, à celebração de uma “vitória” pelo candidato à reeleição, como a dizer que, chamado ao confronto, o TSE teve que recuar, pois não teria como contrapor-se ao teor do inquérito.

Na sequência, há uma mensagem especialmente relevante para o público brasileiro que acompanhava a transmissão. Primeiro, uma mensagem de que estava crescendo, na sociedade, a desconfiança no sistema eleitoral. Esse suposto sentimento popular captado pelo líder da nação o leva a proferir palavras de ordem, dirigida ao povo: “nós não podemos enfrentar umas eleições sob o manto da desconfiança; nós queremos ter a certeza de [...] para quem o eleitor votou, o voto vai exatamente para aquela pessoa”, ou seja, “nós” precisamos agir de alguma forma para garantir que a manipulação de votos não ocorra.

O conteúdo concreto da ação a ser tomada não é esclarecido, o que convém à função pragmática de manter apoiadoras e apoiadores mobilizados de forma permanente, em torno do sentimento de que a democracia corre risco.

O próprio TSE diz que em 2018 números podem ter sido alterados. Os hackers tiveram acesso a uma dezena de senhas por oito meses. Eles não perceberam? Não perceberam? Oito meses. Sete meses depois que a Polícia Federal pede os logs, que são as impressões digitais da cena, né, do fato. Sete meses depois os logs foram apagados. Poderiam ser entregues os logs no mesmo dia por iniciativa do próprio TSE, nem precisava ser provocado pela Polícia Federal. E sete meses depois, foram apagados. O próprio Ministro Barroso chama o chefe da tecnologia da informação e ele responde: os votos são contados por uma empresa terceirizada. Que empresa é essa? Temos um nome? Sim, temos um nome. Mas cadê a confiança? Eleições são questões de segurança nacional. Nós não queremos instabilidade no Brasil.

Novamente, o então Presidente da República profere afirmação falsa no sentido de que o TSE admitiu a possibilidade de os resultados das Eleições 2018 terem sido “alterados”, ou seja, a possibilidade de uma fraude exitosa.

Repisa as afirmações distorcidas sobre a ação dos técnicos do TSE ao constatarem o ataque hacker, insinuando conivência com o ocorrido e conduta destinada a impedir a apuração.

Repete também outra afirmação falsa, de que o Secretário de Informática do TSE teria dito que “os votos são contados por uma empresa terceirizada”.

Um novo elemento inserido na fala pode ser conectado à justificativa da forma como as Forças Armadas estariam atuando na Comissão de Transparência: “eleições são questões de segurança nacional”, diz o orador. O “nós” reaparece, podendo se referir à simbiose Presidência/Forças Armadas, à identificação Presidente/povo ou a ambas: “nós não queremos instabilidade no Brasil”.

O trecho comunica que o Presidente da República avalia que há um risco de manipulação de resultados das Eleições 2022, ensejando as ações que se façam necessárias para preservar a segurança nacional e impedir a dita instabilidade política.

O Brasil está voando. Nos comportamos muito bem durante a pandemia. Nos comunicamos e fazemos negócio com o mundo todo. Nos mantivemos em posição de equilíbrio em situações complexas pelo mundo. Nós garantimos a segurança alimentar para mais de 20% da população mundial. Também a segurança energética. O Brasil desponta como um exemplo para o mundo.

Segue-se um trecho autoelogioso do primeiro investigado ao próprio governo. Faltando pouco menos de um mês para o início da propaganda eleitoral, o candidato à reeleição exaltava seus feitos, em uma transmissão ao vivo para sua base de apoio cativa.

O que que nós queremos? Paz, tranquilidade. Agora, por que um grupo de três pessoas, apenas três pessoas, querem trazer instabilidade para o nosso país? Não aceitam nada, as sugestões das Forças Armadas, que foram convidadas, são perfeitas. Chega à perfeição absoluta? Talvez não. Que nenhum sistema informatizado pode dar garantia de 100% de segurança. As Forças Armadas, a qual (sic) sou comandante, ninguém mais do que nós, como sempre, queremos estabilidade em nosso país.

Após reafirmar seu desejo por “paz” e “tranquilidade”, Jair Messias Bolsonaro recorre ao “agora”, como conjunção adversativa, para indicar que esse desejo está sendo frustrado ou ameaçado por “um grupo de três pessoas, apenas três pessoas”, que “querem trazer instabilidade para o nosso país”.

O contexto do discurso não deixa dúvidas que as “três pessoas, apenas três pessoas” são os três Ministros do TSE referidos ao longo da fala.

A “instabilidade” seria por eles provocada porque “não aceitam [...] as sugestões das Forças Armadas”. Em contraponto, a simbiose Presidência da República/Forças Armadas se apresenta como defensora da estabilidade: “ninguém mais do que nós, como sempre, queremos estabilidade em nosso país.”

E por que agem de maneira diferente? E nós vemos claramente, o Ministro Fachin foi quem tornou o Lula elegível e agora é presidente do TSE. O Ministro Barroso foi advogado do terrorista Battisti, que recebeu aqui o acolhimento do presidente Lula em dezembro de 2010. O Ministro Alexandre de Moraes advogou no passado a grupos que, se eu fosse advogado, não advogaria.

É um direito dele advogar para quem quer que seja, mas eu não faria esse trabalho. Tem posição que de um comportamento que não se adequa ao sistema democrático, uma ameaça. ‘Vou cassar o registro, vou prender. Quem duvidar eu prendo’.

Olha, quem está duvidando do que está acontecendo não sou eu, é o próprio Tribunal Superior Eleitoral, que ele agora não quer deixar que se aperfeiçoe, que ele realmente mostre, no dia dois de outubro do corrente ano, os números reais das eleições pelo Brasil.

Ao avançar para o final, o discurso desenha nitidamente os polos antagônicos na disputa pela normatividade de coordenação: de um lado, o então Presidente da República coloca si próprio e as Forças Armadas como defensores das eleições transparentes; do outro lado (dos que “agem de maneira diferente”) estão os Ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes.

Jair Messias Bolsonaro desafia o Min. Alexandre de Moraes, que viria a presidir o TSE nas Eleições 2022, a mostrar “no dia dois de outubro do corrente ano, os números reais da eleições pelo Brasil”. O desafio traz implícito, no contexto do discurso em que feitas reiteradas imputações de fraude em eleições anteriores, a afirmação de que, até o momento, esses “números reais” não foram mostrados.

Então, o que eu tinha a falar aos senhores era isso. Eu vou pedir ao Ministro Carlos França que o extrato disso chegue na embaixada dos senhores aqui. Quem quiser o processo na íntegra, eu entrego também. Porque ele não tem qualquer grau de sigilo.

Repito: me sinto até envergonhado desse momento, dado o que está acontecendo em nosso país.

Bota para rodar sem som aí. Bota só sem som, só as imagem (sic) aí.

Em um esboço de encerramento, o Chefe de Estado anuncia que o Ministro das Relações Exteriores, Carlos França, seria acionado para remeter às embaixadas “um extrato” da apresentação. E estimula os presentes a lhe solicitarem o envio do IPL nº 1361/2018, como se, por não ser sigiloso, seu compartilhamento com representações de outros países fosse algo trivial.

O ex-Presidente insinua que está “envergonhado” diante do que “está acontecendo em nosso país”. Essa seria, em sua fala, a preocupação genuína para convocar a reunião.

Isso que vocês ouviram aqui acontece no Brasil todo, como eu disse, o povo gosta da gente. Não pago um centavo para ninguém participar de absolutamente nada. É um povo que, cristão no Brasil, é um povo ordeiro, trabalhador, tem seus problemas, mas acima de tudo quer paz. Quer a segurança. E tem encontrado em mim isso daí. Diferentemente, do que algumas notícias de jornais transmitem, o que é natural, infelizmente, no mundo todo. Temos boa imprensa no Brasil também, mas o que mais ressalta aos olhos são as acusações.

A fala não se encerra. Jair Messias Bolsonaro volta a tecer considerações elogiosas sobre seu governo, defendendo sua aceitação popular, justificada porque o então Presidente corresponderia aos anseios de um “povo ordeiro, trabalhador” e que “acima de tudo quer paz” e “segurança”.

O orador comunica ao público que, apesar de parte da imprensa não endossar essa visão, ela é verdadeira.

A menção à ampla aceitação do eleitorado cumpre a função pragmática de indicar que sua derrota nas urnas é um resultado improvável, caso as eleições sejam hígidas.

Então, a gente lamenta o que vem acontecendo, vou convidar integrantes da Câmara, do Senado, do Supremo Tribunal de Justiça, do Tribunal de Contas da União,