Brasão da República
TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL

Corregedoria-Geral da Justiça Eleitoral

 

AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL (11527)  Nº 0600814-85.2022.6.00.0000 (PJe) - BRASÍLIA - DISTRITO FEDERAL

RELATOR: MINISTRO BENEDITO GONÇALVES

REPRESENTANTE: PARTIDO DEMOCRÁTICO TRABALHISTA (PDT) - NACIONAL
ADVOGADO: ANA CAROLINE ALVES LEITAO - OAB/PE49456-A
ADVOGADO: MARA DE FATIMA HOFANS - OAB/RJ68152-A
ADVOGADO: MARCOS RIBEIRO DE RIBEIRO - OAB/RJ62818
ADVOGADO: ALISSON EMMANUEL DE OLIVEIRA LUCENA - OAB/PE37719-A
ADVOGADO: EZIKELLY SILVA BARROS - OAB/DF31903
ADVOGADO: WALBER DE MOURA AGRA - OAB/PE757-A
REPRESENTADO: JAIR MESSIAS BOLSONARO
ADVOGADO: ADEMAR APARECIDO DA COSTA FILHO - OAB/SP256786-A
ADVOGADO: MARINA FURLAN RIBEIRO BARBOSA NETTO - OAB/DF70829-A
ADVOGADO: MARINA ALMEIDA MORAIS - OAB/GO46407-A
ADVOGADO: EDUARDO AUGUSTO VIEIRA DE CARVALHO - OAB/DF17115-A
ADVOGADO: TARCISIO VIEIRA DE CARVALHO NETO - OAB/DF11498-A
REPRESENTADO: WALTER SOUZA BRAGA NETTO
ADVOGADO: ADEMAR APARECIDO DA COSTA FILHO - OAB/SP256786-A
ADVOGADO: MARINA FURLAN RIBEIRO BARBOSA NETTO - OAB/DF70829-A
ADVOGADO: MARINA ALMEIDA MORAIS - OAB/GO46407-A
ADVOGADO: EDUARDO AUGUSTO VIEIRA DE CARVALHO - OAB/DF17115-A
ADVOGADO: TARCISIO VIEIRA DE CARVALHO NETO - OAB/DF11498-A

 

                          

DECISÃO INTERLOCUTÓRIA

 

Por meio de petição protocolizada em 13/01/2023, a parte autora promove a juntada de documento novo, consistente em imagens de minuta de decreto de Estado de Defesa, cujo original foi apreendido pela Polícia Federal na residência de Anderson Torres – ex-Ministro da Justiça e Segurança Pública do governo de Jair Bolsonaro – durante diligência determinada pelo Ministro Alexandre de Moraes no âmbito do Inquérito nº 4879, que tramita no STF.

Argumenta que o documento constitui um “embrião gestado com pretensão a golpe de Estado”, sendo apto a “densificar os argumentos que evidenciam a ocorrência de abuso de poder político tendente promover descrédito a esta Justiça Eleitoral e ao processo eleitoral, com vistas a alterar o resultado do pleito”.

Pugna pela requisição, ao Relator do citado Inquérito, de “cópias oficiais dos documentos pertinentes à busca e apreensão em apreço, especificamente os que dizem respeito à minuta do decreto descrito em linhas anteriores” (ID 158553894).

As imagens da minuta de decreto, em três laudas, constam do ID 158553895.

O art. 435 do Código de Processo Civil estabelece que “[é] lícito às partes, em qualquer tempo, juntar aos autos documentos novos, quando destinados a fazer prova de fatos ocorridos depois dos articulados [...]”.

Na hipótese, os documentos que a parte autora pretende juntar aos autos referem-se a fatos ocorridos em 12/01/2023 (diligência na residência de Anderson Torres e apreensão da minuta de decreto de Estado de Defesa), ainda que descortinem outros episódios havidos durante o processo eleitoral de 2022.

A fim de avaliar a pertinência dos novos requerimentos de prova, rememora-se a decisão proferida no presente feito em 08/12/2022, em que se adotou o máximo rigor técnico para promover o saneamento e a organização do processo, assegurando que a fase instrutória pudesse se iniciar sem atropelos.

Em primeiro lugar, referida decisão contempla capítulo em que foram criteriosamente delimitadas as questões de fato sobre as quais recairia a prova, prestigiando-se a estabilização da demanda e a racionalidade da iniciativa probatória. Desde então, mencionei que a melhor técnica processual, refletida na doutrina e em precedente do TSE, indica a imperatividade de que sejam admitidas à discussão, na AIJE, alegações de fato que possuam correlação com a demanda estabilizada. Transcrevo o trecho:

4. Delimitação das questões de fato

A estabilização da demanda é regra prevista no art. 329, II, do CPC segundo a qual a causa de pedir e o pedido não podem mais ser modificados após o saneamento, verbis:

Art. 329. O autor poderá:

I - até a citação, aditar ou alterar o pedido ou a causa de pedir, independentemente de consentimento do réu;

II - até o saneamento do processo, aditar ou alterar o pedido e a causa de pedir, com consentimento do réu, assegurado o contraditório mediante a possibilidade de manifestação deste no prazo mínimo de 15 (quinze) dias, facultado o requerimento de prova suplementar.

(sem destaques no original)

A aplicação desse instituto no âmbito eleitoral foi consagrada no julgamento das ações contra a chapa Dilma-Temer. Na ocasião, o TSE, por maioria, negou a possibilidade de ampliação do objeto da demanda após o prazo decadencial da propositura da AIJE e da AIME, consignando que “[o]s princípios constitucionais do contraditório exigem a delimitação da causa de pedir, tanto no processo civil comum como no processo eleitoral, para que as partes e também o Julgador tenham pleno conhecimento da lide e do efeito jurídico que deve ser objeto da decisão” (AIJE 1943-58, Rel. Min. Herman Benjamin, Rel. designado Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJE de 12/09/2018).

Por outro lado, cabe pontuar que, mesmo no processo civil, “o objetivo do art. 329, II, foi apenas o de traçar um limite à livre alterabilidade do pedido pelas partes, fora do controle do juiz” (THEODORO JÚNIOR, Humberto. Estabilização da demanda no Novo Código de Processo Civil. Revista de Processo, v. 40, n. 244, p. 195–205, jun., 2015, p. 201). Ou seja: há alterações legalmente possíveis, e até imperativas.

Exemplo relevante é o art. 493, do CPC, que prevê que, “[s]e, depois da propositura da ação, algum fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito influir no julgamento do mérito, caberá ao juiz tomá-lo em consideração, de ofício ou a requerimento da parte, no momento de proferir a decisão”. Decerto, a segurança jurídica propugnada pelo art. 329, II, do CPC não impede a discussão de fatos que tenham relação direta com a causa de pedir já estabilizada. A vedação apenas incide no caso de ser deduzida causa de pedir inteiramente autônoma

Essa, aliás, é a distinção essencial que, no caso da AIJE 1943-58, obstou que a ação fosse ampliada para discutir fatos totalmente diversos daqueles que subsidiavam a propositura da ação e que somente foram veiculados após o decurso do prazo decadencial para a propositura da AIME.

Em síntese, a delimitação das questões de fato visa apresentar os contornos gerais da matéria controvertida sobre a qual recairá a prova. Trata-se de uma definição do tema e dos principais pontos controvertidos, que norteará a instrução e que balizará o exame da pertinência ao objeto da ação. Não decorre dessa medida a blindagem do debate processual contra alegações e documentos que possam influir no julgamento da causa. Com esse norte, analisa-se a controvérsia até aqui delineada.”

 

Passei, então, à delimitação da controvérsia submetida a juízo na presente AIJE. Nessa etapa, salientei que são incontroversos: a) a realização do evento em que o então Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, dirigiu-se a embaixadores de países estrangeiros para apresentar sua visão sobre o sistema eletrônico de votação brasileiro; b) o teor do discurso proferido; c) a transmissão do evento pela TV Brasil e pelas redes sociais do primeiro representado. Pontuei, em seguida, que a matéria controvertida diz respeito ao contexto desse ato, conforme se lê abaixo:

“A controvérsia fática recai sobre as circunstâncias em que a reunião foi realizada e em que ocorreu sua divulgação nas redes.

O autor afirma que o primeiro réu, atuando com desvio de finalidade, utilizou-se do encontro com chefes de missões para atacar a integridade do processo eleitoral, especialmente disseminando “desordem informacional” relativa ao sistema eletrônico de votação e fazendo insinuações sobre a conduta de Ministros que presidiram o TSE. Além disso, argumenta que o discurso tem aderência à estratégia de campanha do candidato à reeleição para mobilizar suas bases por meio de fatos sabidamente falsos, devendo-se levar em conta que a transmissão pelas redes sociais fez com que a mensagem chegasse ao eleitorado.

De sua parte, os investigados refutam qualquer relação entre o evento e o pleito de 2022. Defendem que a reunião se ateve à sua finalidade pública, uma vez que, segundo sua narrativa, o Presidente da República, no exercício da liberdade de expressão, expôs seu ponto de vista sobre o sistema de votação para convidados que nem mesmo eram eleitores. Ressaltam que a fala fez parte de um diálogo institucional sobre tema de interesse público, devendo ser lida em cotejo com anterior evento do TSE (em que o Ministro Edson Fachin, então seu Presidente, se dirigiu a membros da comunidade internacional) e com nota em que o tribunal rebateu as afirmações feitas por Jair Bolsonaro na reunião do Palácio do Alvorada.”

(sem destaques no original)

 

A decisão saneadora também contemplou capítulo sobre a delimitação das questões de direito, no qual, em amplo prestígio ao contraditório, reafirmei o direito das partes de produzir provas de fatos que possam ter influência na configuração jurídica da conduta descrita. Destaquei que, no caso do abuso de poder, o exame da gravidade da conduta, sob o ângulo qualitativo e quantitativo, reclama especial atenção para a análise de elementos contextuais:

“5. Delimitação das questões de direito

Embora seja de rigor afirmar que o réu se defende dos fatos e não da qualificação jurídica dada a estes, é certo que as particularidades das ações eleitorais exigem que, ao ter início a fase instrutória, tenha-se plena ciência das questões de direito que serão relevantes para o deslinde do feito. Isso porque, em Direito Eleitoral, uma mesma conduta pode ser capitulada sob a ótica de ilícitos diversos, com consequências distintas.

Tais ilícitos possuem elementos típicos próprios que influem na iniciativa probatória das partes. Por exemplo, o que é suficiente para demonstrar que foi realizada propaganda irregular, punível com multa mediana, pode não bastar para a condenação por conduta vedada ou por uso indevido de meios de comunicação. Do mesmo modo, e com especial interesse para a AIJE, cada modalidade abusiva possui características próprias, que devem ser levadas em conta ao longo da instrução.

No caso vertente, as teses jurídicas deduzidas pelo autor encontram-se bem delimitadas. Imputa-se aos investigados a prática de abuso de poder político, ante o alegado desvio de finalidade no exercício de suas funções de Presidente da República e no uso de bens públicos, e de uso indevido de meios de comunicação, que teria sido perpetrado pela utilização de redes sociais, inclusive de empresa pública, para difundir conteúdo sabidamente falso acerca do sistema eletrônico de votação.

Ao longo da exposição, o autor menciona ainda a violação aos arts. 37, § 1º da Constituição, 73, I, da Lei 9.504/97 e 9º-A da Res.-TSE 23.610/2019, que descrevem condutas passíveis, em tese, de se amoldar às práticas abusivas descritas no art. 22 da LC 64/90.

Ao refutar a configuração dos ilícitos em comento, os investigados, além de se oporem à ocorrência do desvio de finalidade e do uso das redes para divulgar fake news, afirmam que os fatos não são graves o suficiente para afetar os bens jurídicos tutelados pela AIJE. Em particular, alegam que a publicação da nota do TSE, com ampla repercussão midiática, teria neutralizado eventuais impactos da fala dirigida pelo primeiro investigado aos embaixadores.

Assim, a gravidade da conduta, sob o ângulo qualitativo (grau de reprovabilidade) e quantitativo (repercussão no contexto do pleito específico) é ponto controvertido cuja análise deverá ser balizada pelos elementos probatórios coligidos aos autos.

(Sem destaques no original)

 

Tem-se, em síntese, que as partes controvertem sobre: a) a relação entre o evento realizado em 18/07/2022 e as eleições ocorridas no mesmo ano; b) caso estabelecida essa correlação, a gravidade da conduta, no aspecto qualitativo (o discurso em si) e quantitativo (repercussão no contexto eleitoral).

Com base na fixação da matéria fática e jurídica controvertida, já se deferiu, nos presentes autos, prova testemunhal requerida pela parte ré. Note-se que essa prova foi pleiteada, a despeito de se ter acesso à íntegra do discurso proferido por Jair Bolsonaro, porque os investigados sustentaram a relevância de expor outros fatores relativos à dinâmica do evento, tais como “falas e comentários dos presentes” e, ainda, a ótica de autoridades que desempenhavam “relevantes funções” no governo.

A justificativa mostrou aderência à tese defensiva que se dirige ao aspecto qualitativo da gravidade, uma vez que, segundo os investigados, as circunstâncias do evento, a serem relatadas pelas testemunhas, demonstrariam a sua regularidade, vez que estaria inserido em um “diálogo institucional” entre o TSE e o Poder Executivo. Desse modo, deferi a prova, consignando que “[n]a presente ação, constata-se que a disputa de narrativas tem por objeto o contexto do evento (reunião com embaixadores) e, não, sua existência.

De igual forma, constato que os fatos ora trazidos a juízo pela parte autora possuem aderência aos pontos controvertidos, em especial no que diz respeito à correlação do discurso com a eleição e ao aspecto quantitativo da gravidade.

Conforme se observa, a tese da parte autora, desde o início, é a de que o discurso realizado em 18/07/2022 não mirava apenas os embaixadores, pois estaria inserido na estratégia de campanha do primeiro investigado de “mobilizar suas bases” por meio de fatos sabidamente falsos sobre o sistema de votação. Na petição ora em análise, alega que a minuta de decreto de Estado de Defesa, ao materializar a proposta de alteração do resultado do pleito, “densifica os argumentos que evidenciam a ocorrência de abuso de poder político tendente promover descrédito a esta Justiça Eleitoral e ao processo eleitoral”.

Constata-se, assim, a inequívoca correlação entre os fatos e documentos novos e a demanda estabilizada, uma vez que a iniciativa da parte autora converge com seu ônus de convencer que, na linha da narrativa apresentada na petição inicial, a reunião realizada com os embaixadores deve ser analisada como elemento da campanha eleitoral de 2022, dotado de gravidade suficiente para afetar a normalidade e a legitimidade das eleições e, assim, configurar abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação.

Ante o exposto:

a) admito a juntada do documento ID 158553895 e determino a abertura de vista aos réus, pelo prazo de três dias, para que se manifestem sobre seu teor;

b) determino a expedição de ofício ao Ministro Alexandre de Moraes, Relator do Inquérito nº4897/DF, no STF, solicitando a Sua Excelência o envio de cópia oficial da minuta de decreto de Estado de Defesa apreendida pela Polícia Federal na residência de Anderson Torres em 12/01/2023, bem como de outros documentos e informações resultantes da busca e apreensão que digam respeito ao processo eleitoral de 2022, em especial voltados para a deslegitimação dos resultados.

Determino à Secretaria Judiciária, no cumprimento do item “b” supra, que instrua o ofício com cópia dos documentos IDs 158553894 e 158553895.

Esclareço que após a juntada dos documentos requisitados será aberta nova vista às partes, bem como avaliada a necessidade de diligências complementares.

Publique-se. Intimem-se.

Brasília (DF), 16 de janeiro de 2023.

 

 

MINISTRO BENEDITO GONÇALVES

Corregedor-Geral da Justiça Eleitoral