index: AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL ELEITORAL (12626)-0600001-08.2021.6.14.0096-[Cargo - Vereador, Corrupção ou Fraude, Ação de Impugnação de Mandato Eletivo]-PARÁ-BELÉM

Brasão da República
TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL

 

AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL ELEITORAL (12626)  Nº 0600001-08.2021.6.14.0096 (PJe) - BELÉM - PARÁ

RELATOR: MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES
AGRAVANTE: JOSE LUIZ PANTOJA MORAES

Advogados do(a) AGRAVANTE: ERIKA AUZIER DA SILVA - PA22036-A, DANILO COUTO MARQUES - PA23405-A
AGRAVADA: GIZELLE SOARES DE FREITAS

Advogados do(a) AGRAVADA: BRUNO COLARES SOARES FIGUEIREDO ALVES - SP294272-A, RAIMUNDO CEZAR BRITTO ARAGAO - SE1190-S, MARLUCE MACIEL BRITTO ARAGAO - DF32148-S, DIEGO MACIEL BRITTO ARAGAO - DF32510-A, YASMIM YOGO FERREIRA - DF44864-A, ROBERTO LEONEL BOMFIM - DF50136-A, PAULO FRANCISCO SOARES FREIRE - DF50755-A, PRISCILA DE BARROS FERNANDES DOS SANTOS - DF34540-A, RAQUEL JALES BARTHOLO DE OLIVEIRA - DF54440-A, LARISSA CHAUL DE CARVALHO OLIVEIRA - DF25969-A, CATHERINE FONSECA COUTINHO - DF58616-A, MARIA DA GLORIA FERREIRA TROGO - SP428924-A, ROBERTO PARAHYBA DE ARRUDA PINTO - SP101983-A, DEBORAH CAVALCANTE DUARTE DA COSTA - SP449680-A, CECILIA COSTA DE SOUZA - SP441844-A

 

DECISÃO

 

Trata-se de Agravo interposto por José Luiz Pantoja Moraes, eleito ao cargo de Vereador em 2020, contra decisão do Presidente do Tribunal Regional Eleitoral do Pará (TRE/PA) pela qual negado seguimento ao Recurso Especial, por incidência da Súmula 28 do TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL (TSE) e ausência de violação de dispositivo legal (ID 157397766).

 

Na origem, o Tribunal Regional Eleitoral do Pará, por maioria, reformou a sentença para cassar o mandato do Recorrente, ante o reconhecimento de fraude à cota de gênero, em razão do registro do candidato Paulo Fernando Silva França Júnior, pelo Partido Avante, como se fosse do gênero feminino (ID 157397743).

 

No Recurso Especial (ID 157397759), amparado na violação dos arts. 1º, parágrafo único, e 14, caput, da Constituição Federal; 17, § 6º, e 36, caput, da Res.-TSE 23.609/2019; 11, § 3º, da Lei 9.504/1997 e 369 do Código de Processo Civil, bem como em dissídio jurisprudencial, o Recorrente alega que: (i) o lançamento de um candidato homem como mulher não se deu por fraude, mas por erro no preenchimento do Requerimento de Registro de Candidatura (RRC) e do Demonstrativo de Regularidade de Atos Partidários (Drap); (ii) o Poder Judiciário deveria ter intimado o Partido político para sanar o equívoco, nos autos, do Drap (art. 17, § 2º, da Res.-TSE 23.609/2019), tal qual ocorrido no RRC; (iii) houve a intimação para sanar a falha, nos autos, do RRC, momento em que o juízo zonal também determinou a anotação do fato no Drap do Avante, providência descumprida pelo cartório eleitoral; (iv) não ficou configurada a má-fé; (v) a recusa do Juízo em intimar a Agremiação nos autos do Drap, bem como dos serventuários quanto à determinação judicial proferida no RRC, não pode prejudicar o Partido nem o candidato.

 

Em suas razões (ID 157397772), o Agravante sustenta ter comprovado a violação dos dispositivos indicados e a divergência jurisprudencial.

 

O Vice-Procurador-Geral Eleitoral opina pelo desprovimento do Agravo (ID 157527347).

 

Nos autos da Tutela Cautelar Antecedente 0600138-40.2022.6.00.0000, deferi liminar – ad referendum do Plenário – para atribuir efeito suspensivo ativo ao Agravo e “determinar a manutenção do Requerente no cargo de vereador, no município de Belém, até ulterior decisão do Plenário do TSE, mantidos os demais efeitos da decisão condenatória”.

 

A decisão ensejou a interposição de Agravo Regimental o qual se encontra pendente de apreciação.

 

É o breve relato. Decido.

 

Inicialmente, o Recurso Especial é deficiente em confrontar o caso concreto com os arestos que, pretensamente, serviriam a demonstrar a divergência jurisprudencial, uma vez que não houve a realização adequada de cotejo analítico ou a demonstração de similitude fática entre os julgados paradigmas. Nesse sentido: “Incabível o conhecimento de dissídio jurisprudencial quando amparado em mera transcrição de ementas de julgado, sem que demonstrada a similitude fática entre as hipóteses confrontadas” AgR-REspe 390-15 (de minha relatoria, DJe de 16/3/2021).

 

No caso, há somente a transcrição de ementas e fragmentos de decisões, bem como a elaboração de um singelo quadro com anotações e conclusões formuladas pelo próprio Recorrente, as quais não permitem atestar fidedignamente a similitude fática entre os casos confrontados.

 

A comparação demanda a reprodução de trechos do voto condutor e do paradigma, nos quais se apresentem minimamente os pontos de identificação entre as situações contrastadas. Como se sabe, “o conhecimento do recurso especial pelo dissídio pretoriano requer a demonstração do dissenso por meio da transcrição dos trechos do acórdão recorrido e dos paradigmas trazidos a confronto, mencionadas as circunstâncias que identifiquem ou assemelhem os casos cotejados” AI 45568 (Rel. Min. OG FERNANDES, DJe de 18/11/2019).

 

Incidência da Súmula 28 do TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL nessa parte.

 

A jurisprudência do TSE se firmou no sentido de que “a prova de fraude no preenchimento da cota de gênero deve ser robusta e levar em conta a soma das circunstâncias fáticas do caso a denotar o incontroverso objetivo de burlar o mínimo de isonomia entre homens e mulheres que o legislador pretendeu assegurar” REspe 0600461-12 (Rel. Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, DJe de 5/8/2020). No mesmo sentido: RO 0600007-47, minha relatoria, DJe de 3/12/2020).

 

A fraude à cota de gênero de candidaturas femininas representa afronta aos princípios da igualdade, da cidadania e do pluralismo político, na medida em que a ratio do art. 10, § 3º, da Lei 9.504/1997 é ampliar a participação das mulheres no processo político-eleitoral. Nesse sentido: AgR-REspe 1-90, de minha relatoria, DJe de 4/2/2022.

 

Na hipótese dos autos, o Recorrente teve seu diploma de Vereador cassado em virtude do reconhecimento de fraude à cota de gênero, consubstanciada no descumprimento do percentual previsto no art. 10, § 3º, da Lei 9.504/1997 por parte do Partido pelo qual filiado.

 

Consta do acórdão recorrido que o Avante inscreveu o candidato Paulo Fernando Silva França Júnior no gênero incorreto, tanto no Requerimento de Registro de Candidatura (RRC) como no Demonstrativo de Regularidade de Atos Partidários (Drap). Tal fato teria repercutido no atendimento, num primeiro momento, da cota de gênero pelo Drap, o qual foi deferido sem qualquer impugnação por parte de eventuais interessados. 

 

A cronologia dos acontecimentos encontra-se muito bem delimitada no acórdão recorrido (ID 157397745):

[...] o partido Avante, por ocasião do registro de candidatura, lançou o gênero do candidato Paulo Fernando Silva França Júnior como feminino.

A Justiça Eleitoral notou o equívoco e intimou o partido para regularizar a situação no requerimento de registro de candidatura – RRCI (RCand nº 0600159-60.2020.6.14.0076), em 1º de outubro de 2020 (ID 11264202).

Em 3 de outubro de 2020, o partido peticionou nos autos (ID 11902653) e alegou “ter havido um equívoco de digitação no momento do registro, razão pela qual requer sejam feitas as devidas alterações no sistema”(sic).

Tal providência (intimação do partido), entretanto, não foi realizada no Demonstrativo de Regularidade dos Atos Partidários (DRAP nº 0600139-69.2020.6.14.0076) e, em 19 de outubro de 2020, a magistrada proferiu sentença de deferimento do registro de candidatura do partido (ID 15111404).

[...]

Note-se que, no processo de registro do candidato, o partido assumiu a falha e solicitou correção da situação e a magistrada determinou na sentença que fosse anotado nos autos do DRAP a mudança de gênero do candidato.

Caso a determinação da magistrada tivesse sido cumprida, o partido teria tido a oportunidade de corrigir o vício antes da prolação da sentença no DRAP, o que inocorreu.

 

Nesse cenário, o Partido deveria ter regularizado o gênero incorretamente lançado nos autos do Drap, em evidente prestígio à boa-fé, princípio intrínseco à campanha eleitoral. Conforme consta do acórdão, portanto “[a] conduta de ocultar do processo principal informação decisiva acerca da regularidade do Declarativo implica clara intenção de fraudar a Justiça Eleitoral” (ID 157397748).

 

Não obstante a singularidade da situação, a moldura delineada revela, ainda, que “a agremiação escolheu corrigir o equívoco somente no formulário onde não estaria impactada a porcentagem”, já que, no Drap, permaneceu voluntariamente incorreta até seu efetivo deferimento. Caso fosse sanado o erro, o Demonstrativo seria inegavelmente indeferido, em razão de o Partido ter sabidamente descumprido a cota de gênero prevista pelo art. 10, § 3º, Lei 9.504/1997.

 

Além disso, o Avante não pode alegar o desconhecimento do fato, uma vez que deu causa à falha no lançamento de gênero incorreto de forma a se beneficiar da própria torpeza ao exigir a intimação prévia para saneamento da falha, quando dela já detinha pleno conhecimento. Ou seja, o Partido sabia que tinha lançado “22 (vinte e dois) candidatos homens e 08 (oito) candidatas mulheres, perfazendo um percentual de 73,33% de candidatos homens e de 26,66% de candidatas mulheres”.

 

No caso, fica evidente que a conduta perpetrada pelo Partido afronta a boa-fé objetiva, na qual se exige “do agente a prática do ato jurídico sempre pautado em condutas normativamente corretas e coerentes, identificados com a ideia de lealdade e lisura” (THEODORO JÚNIOR, Humberto et al. Novo CPC: Fundamentos e Sistematização. Rio de Janeiro: Forense, 2015). 

 

O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL já se manifestou no sentido de que a boa-fé processual é um corolário do princípio constitucional do devido processo legal, quando do julgamento do RE 464.963, Rel. Min. GILMAR MENDES, DJ de 14/2/2006, no qual constou:

O princípio do devido processo legal, que lastreia todo o leque de garantias constitucionais voltadas para a efetividade dos processos jurisdicionais e administrativos, assegura que todo julgamento seja realizado com a observância das regras procedimentais previamente estabelecidas, e, além disso, representa uma exigência de fair trial, no sentido de garantir a participação equânime, justa, leal, enfim, sempre imbuída pela boa-fé e pela ética dos sujeitos processuais. A máxima do fair trial é uma das faces do princípio do devido processo legal positivado na Constituição de 1988, a qual assegura um modelo garantista de jurisdição, voltado para a proteção efetiva dos direitos individuais e coletivos, e que depende, para seu pleno funcionamento, da boa-fé e lealdade dos sujeitos que dele participam, condição indispensável para a correção e legitimidade do conjunto de atos, relações e processos jurisdicionais e administrativos. Nesse sentido, tal princípio possui um âmbito de proteção alargado, que exige o fair trial não apenas dentre aqueles que fazem parte da relação processual, ou que atuam diretamente no processo, mas de todo o aparato jurisdicional, o que abrange todos os sujeitos, instituições e órgãos, públicos e privados, que exercem, direta ou indiretamente, funções qualificadas constitucionalmente como essenciais à Justiça.

 

Do princípio da boa-fé processual decorre a obrigação de que as partes do processo, públicas ou privadas, atuem em conjunto, de forma cooperativa, com padrões de comportamento que gerem confiança legítima entre as partes, na busca da devida prestação jurisdicional.

 

Vale o destaque de que tal importantíssimo princípio veio acentuado no Código de Processo Civil de 2015, em seus artigos 5º e 6º, com a seguinte redação:

Art. 5º: Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé.

Art. 6º: Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.

 

Para Luiz Guilherme Marinoni, trata-se da proibição de agir de má-fé, ou seja, veda-se “práticas processuais eivadas de má intenção, vedando o abuso de posições jurídicas, por quaisquer das partes” (MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz ; MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo Civil Comentado. 1. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015).

 

Como já assentado, houve manifesta violação, por parte do Partido, do princípio da boa-fé objetiva processual, na medida em que “ciente de seu erro e de suas consequências, realiza manobra que permite fraudar a cota no processo do DRAP enquanto garante que o candidato PAULO FRANÇA concorrerá com seu gênero corrigido através do documento no RRC, deixando tal decisiva informação fora da análise do DRAP”.

 

De fato, conforme pontuado pela Procuradoria-Geral Eleitoral, “a declaração falsa do gênero de um dos candidatos foi feita no intuito de induzir a erro o Juízo Eleitoral, para viabilizar o deferimento do DRAP do Avante para Vereador de Belém. [...] A legitimidade do mandato, outrossim, decorre não apenas do simples alcance de determinado número de votos, mas da legitimidade das eleições, isto é, da observância das regras democráticas no pleito. Nessa linha, não cabe invocar o princípio do in dubio pro suffraggium para legitimar burla intencional à cota de gênero” (ID 157527347).

 

Nesse contexto, a adoção de compreensão diversa da Corte Regional sobre a configuração do elemento volitivo demandaria nova incursão no conjunto fático-probatório, procedimento inviável em sede especial, por incidência da Súmula 24 do TSE.

 

Ante o exposto, NEGO SEGUIMENTO ao Agravo, com base no art. 36, § 6º, do RITSE.

 

Julgo ainda PREJUDICADO o Agravo Regimental interposto nos autos da Tutela Cautelar Antecedente 0600138-40.2022.6.00.0000, cassando, por conseguinte, a liminar anteriormente deferida. 

 

Traslade-se cópia dos autos à Ação Cautelar.

 

Publique-se. Intime-se. 

 

Brasília, 28 de junho de 2022.

 

 

Ministro ALEXANDRE DE MORAES
Relator