index: RECURSO ORDINÁRIO ELEITORAL (11550)-0600511-16.2022.6.20.0000-[Inelegibilidade - Condenação Criminal por órgão colegiado ou Transitada em Julgado, Registro de Candidatura - RRC - Candidato, Cargo - Deputado Estadual]-RIO GRANDE DO NORTE-NATAL

Brasão da República
TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL

 

RECURSO ORDINÁRIO ELEITORAL (11550) Nº 0600511-16.2022.6.20.0000 (PJe) – NATAL – RIO GRANDE DO NORTE


RELATOR: MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI

RECORRENTE: MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL

RECORRIDO: WENDEL FAGNER CORTEZ DE ALMEIDA

ADVOGADO: DONNIE ALLISON DOS SANTOS MORAIS (OAB/RN 7215-A)

DECISÃO

Trata-se de recurso ordinário eleitoral interposto pelo Ministério Público Eleitoral contra acórdão do Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Norte – TRE/RN que deferiu pedido de registro de candidatura de Wendel Fagner Cortez de Almeida ao cargo de Deputado Estadual nas Eleições 2022.

 

O acórdão regional recebeu a seguinte ementa:

“ELEIÇÕES 2022. REGISTRO DE CANDIDATURA. DEPUTADO ESTADUAL. CAUSA DE INELEGIBILIDADE EM RAZÃO DE CONDENAÇÃO POR CRIME HEDIONDO. POSSE DE MUNIÇÃO DE USO RESTRITO. NATUREZA HEDIONDA NÃO CARACTERIZADA. TUTELA CAUTELAR NÃO CONCEDIDA. DEFERIMENTO DO REGISTRO DE CANDIDATURA.
- Embora o preceito primário do artigo 16 da Lei nº 10.826/2003 contemple várias condutas, as quais estão descritas no caput e seus parágrafos, observando-se, entra elas, a posse e o porte de arma de fogo, acessório ou munição, tanto de uso restrito quanto de uso proibido, é fato que, após a alteração introduzida pela Lei n. 13.964/2019 (Pacote Anticrime), o texto legal do artigo 1º, parágrafo único, inciso II, da Lei nº 8.072/90 (Lei de Crimes Hediondos) passou a considerar como equiparado a hediondo apenas o crime de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso proibido.
- Diante da inovação legislativa trazida pela Lei 13.964/2019, e consoante entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça, somente é crime hediondo a posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso proibido, de modo que não se enquadra o requerente na hipótese de inelegibilidade prevista no artigo 1º, I, “e”, 7, da Lei Complementar n. 64/1990, vez que o crime pelo qual foi condenado, qual seja, posse de munição de uso restrito, não ostenta caráter hediondo.
- O fato de o requerente se encontrar atualmente privado de liberdade em decorrência do cumprimento de ordem de prisão temporária não configura impedimento ao deferimento do pedido de registro de candidatura, vez que a prisão de natureza cautelar, como é caso da prisão temporária e da preventiva, tem por objetivo, unicamente, resguardar o trâmite do processo penal, e, por não decorrer de uma sentença penal condenatória transitada em julgado, não implica a suspensão dos direitos políticos.
- Preenchimento dos requisitos legais.
- Não constatada a existência de inelegibilidade ou outro óbice à candidatura requerida, deve ser indeferida a tutela cautelar pleiteada, por restar evidenciada a ausência de plausibilidade do direito.
- Deferimento do pedido de registro de candidatura.” (ID 158110732).

Nas razões do recurso, o Ministério Público Eleitoral alega, em síntese, que o candidato incide na causa de inelegibilidade prevista no art. 1º, I, e, 7, da Lei Complementar 64/1990, em decorrência de condenação, em decisão transitada em julgado, pela prática do crime tipificado no art. 16 da Lei 10.826/2003, que passou a ser considerado hediondo após a alteração introduzida pela Lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime) ao texto legal do art. 1º, parágrafo único, II, da Lei 8.072/1990 (Lei de Crimes Hediondos).

 

Aponta para a necessidade de se proceder à interpretação teleológica da regra, diante da precariedade técnica do legislador ao efetuar a modificação legislativa em questão.

 

Argumenta que o fato de a condenação de Wendel Fagner pelo crime tipificado no art. 16 da Lei 10.826/2003 ter ocorrido antes da entrada em vigor da lei que o classificou como hediondo não é obstáculo ao reconhecimento da inelegibilidade do candidato, tendo em vista entendimento deste Tribunal Superior no sentido de que novas hipóteses de inelegibilidade podem alcançar fatos ou condenação anteriores, sem que isso implique qualquer violação do estatuto constitucional pátrio.

 

Salienta que o candidato “atualmente encontra-se privado de liberdade em razão de mandado de prisão temporária expedido pelo UJUDOCrim, em decorrência de sua possível participação em três homicídios” (pág. 12 do ID 158110734).

 

Ao final, pugna pelo conhecimento e provimento do recurso ordinário, para que seja indeferido o registro de candidatura de Wendel Fagner.

 

Contrarrazões apresentadas (ID 158110738), nas quais o candidato afirma que “a condenação se refere claramente à posse de munição e acessórios de uso restrito, nada se referenciando ao crime de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso proibido, conforme expresso na norma dos crimes hediondos” (pág. 5; grifos no original).

 

Sustenta, ainda, que “a conduta que se amolda ao crime hediondo é aquela prevista no parágrafo 2º do artigo 16 do estatuto do desarmamento, da modalidade de crime que envolve arma de fogo de uso PROIBIDO, não se adequando ao tipo aquelas de uso RESTRITO” (pág. 9).

 

A Procuradoria-Geral Eleitoral manifesta-se pelo provimento do recurso ordinário, em parecer assim sintetizado:

“Eleições 2022. Deputado Estadual. Recurso ordinário. Registro de candidatura. Inelegibilidade. Condenação transitada em julgado por crime que à época era qualificado como hediondo. Permanência do efeito secundário da condenação decorrente da legislação eleitoral da inelegibilidade. Parecer pelo provimento do recurso.” (ID 158131807).

Na sequência, o candidato peticiona, alegando que a tese defendida na manifestação ministerial, relativa aos efeitos secundários da condenação, não deve ser conhecida, uma vez que não aventada no recurso ordinário.

 

Afirma, também, que referido argumento não se sustenta, “sobretudo porque o preceito do art. 11, § 10, da Lei 9.504/97 indica que as causas de inelegibilidade devem ser aferidas no momento do registro de candidatura (eleição 2022)” (pág. 6 do ID 158146651).

 

É o relatório. Decido.

 

O recurso ordinário é tempestivo. O acórdão foi publicado em sessão no dia 12/9/2022, segunda-feira (ID 158110733), e o recurso ordinário, interposto em 13/9/2022, terça-feira (ID 158110734). Além disso, estão presentes o interesse e a legitimidade.

 

Bem examinados os autos, verifico que o recurso merece provimento.

 

No caso, conforme delineado no acórdão impugnado, Wendel Fagner Cortez de Almeida formulou requerimento de registro de candidatura ao cargo de Deputado Estadual nas Eleições 2022.

 

A Procuradoria Regional Eleitoral no Rio Grande do Norte, em parecer, manifestou-se pelo indeferimento do pedido, por entender que Wendel estaria inelegível em razão de condenação nos autos da Ação Penal 0101109-68.2013.8.20.0002 a 3 anos e 3 meses de reclusão, pela prática do crime tipificado no art. 16 da Lei 10.826/2003, cuja sentença transitou em julgado em 28/5/2019, tendo sido declarada a extinção da punibilidade do candidato em 4/6/2021, dado o cumprimento da pena que lhe foi imposta.

 

Ato contínuo, o Tribunal a quo deferiu o pedido de registro de Wendel Fagner Cortez de Almeida ao cargo de Deputado Estadual nas Eleições 2022, assentando que o candidato não se enquadra na hipótese de inelegibilidade prevista no art. 1º, I, e, 7, da Lei Complementar 64/1990, uma vez que o crime pelo qual foi condenado – posse de munição de uso restrito – não ostentaria caráter hediondo.

 

Para tanto, anotou que a alteração introduzida pela Lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime) no texto legal do art. 1º, parágrafo único, II, da Lei 8.072/1990 (Lei de Crimes Hediondos) passou a considerar como crime equiparado a hediondo apenas a posse ou o porte ilegal de arma de fogo de uso proibido, conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça - STJ, “de modo que não se enquadra o requerente na hipótese de inelegibilidade prevista no artigo 1º, I, “e”, 7, da Lei Complementar n.º 64/1990, uma vez que o crime pelo qual foi condenado, qual seja, posse de munição de uso restrito, não ostenta caráter hediondo” (pág. 4 do ID 158110729).

 

Por pertinente, confira-se o seguinte trecho do acórdão regional:

“No caso em comento, a controvérsia trazida à apreciação reside em saber se a condenação do requerente pelo crime previsto no artigo 16 da Lei nº 10.826/2003, nos autos da Ação Penal n.º 0101109-68.2013.820.0002, atrai a incidência da causa de inelegibilidade prevista no artigo 1º, inciso I, alínea e, item 7, da Lei Complementar n.º 64/90, que assim dispõe:

"Art. 1º.

e) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena, pelos crimes:

7. de tráfico de entorpecentes e drogas afins, racismo, tortura, terrorismo e hediondos; (Incluído pela Lei Complementar nº 135, de 2010)".

De fato, conforme atesta a certidão de objeto e pé de ID 10746306, referente à Ação Penal n.º 0101109-68.2013.820.0002 (processo de Execução criminal nº 0100390-16.2018.20.0001), WENDEL FAGNER CORTEZ DE ALMEIDA foi condenado, por sentença judicial transitada em julgado, pela prática de crime capitulado no artigo 16 da Lei nº 10.826/2003, tendo sido declarada a extinção da sua punibilidade, por cumprimento da pena, na data de 04/06/2021.
Da leitura da sentença proferida na ação penal em questão (ID 10753857), verifica-se que o requerente foi condenado exclusivamente em razão da posse de munições de uso restrito, conduta que se subsome, entre outras, ao tipo penal previsto no artigo 16 do Estatuto do Desarmamento.
Com efeito, embora o preceito primário do artigo 16 da Lei n.º 10.826/2003 contemple várias condutas, as quais estão descritas no caput e seus parágrafos, observando-se entre elas, a posse e o porte de arma de fogo, acessório ou munição, tanto de uso restrito quanto de uso proibido, é fato que, após a alteração introduzida pela Lei n.º 13.964/2019 (Pacote Anticrime), o texto legal do artigo 1º, parágrafo único, inciso II, da Lei nº 8.072/90 (Lei de Crimes Hediondos) passou a considerar como equiparado a hediondo apenas o crime de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso proibido. Confira:

"Art. 1º São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, consumados ou tentados:

(…)

Parágrafo único. Consideram-se também hediondos, tentados ou consumados:

(…)

II - o crime de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso proibido, previsto no art. 16 da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003; (Grifo acrescido)".

No tocante ao ponto, vale ressaltar que, com a edição da Lei n.º 13.964/2019, o Superior Tribunal de Justiça decidiu pela superação do entendimento anterior, firmando-se no sentido de que apenas a conduta delitiva relacionada à posse e porte de arma de fogo de uso proibido integra o rol dos crimes hediondos, conforme se observa do teor dos seguintes julgados:

AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO PENAL. PORTE DE ARMA DE FOGO COM NUMERAÇÃO SUPRIMIDA (ART. 16, PARÁGRAFO ÚNICO, IV, LEI N. 10.826/2003). CONDUTA PRATICADA APÓS A VIGÊNCIA DA LEI N.º 13.497/2017 E ANTES DA VIGÊNCIA DA LEI N.º 13.964/2019. NATUREZA HEDIONDA AFASTADA. AGRAVO REGIMENTAL PROVIDO.

1. A jurisprudência desta Corte Superior havia se firmado no sentido de que a Lei de Crimes Hediondos não traz qualquer limitação quanto a sua aplicação tão somente ao caput do art. 16, da Lei nº 10.826/2003, ou seja, quando a arma, acessório ou munição for de uso proibido ou restrito, concluindo-se assim que as condutas previstas no parágrafo único, vigente à época dos fatos, devem ser igualmente taxadas de hediondas.

2. Esta Sexta Turma, em julgamentos recentes, nos HC n. 575.933/SP e 525.249/RS, julgados em 15/12/2020 (DJe 18/12/2020), de relatoria da Ministra Laurita Vaz, decidiu que o entendimento anterior deve ser superado (overruling), pois a Lei n. 13.964/2019, ao modificar a redação do art. 16 da Lei n.º 10.826/2003, com a imposição de penas diferenciadas para o posse ou porte de arma de fogo de uso restrito e de uso proibido, atribuiu reprovação criminal diversa a depender da classificação do armamento.

3. Firmou-se, assim, o entendimento de que deve ser considerado equiparado a hediondo apenas o crime de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso proibido, previsto no art. 16 da Lei n. 10.826/2003, afastando-se o caráter hediondo do delito de porte ou posse de arma de fogo de uso permitido com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado.

4. Agravo regimental provido para determinar que seja afastado o caráter hediondo do delito previsto art. 16, parágrafo único, IV, da Lei 10.826/2003, determinando-se a realização de novo cálculo das penas do agravante.

(AgRg no HC n. 625.762/SP, relator Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 9/2/2021, DJe de 18/2/2021.) (Grifo acrescido)

 

HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO PENAL. ART. 16, PARÁGRAFO ÚNICO, INCISO IV, DA LEI N.º 10.826/2003. CONDUTA PRATICADA APÓS A VIGÊNCIA DA LEI N.º 13.497/2017 E ANTES DA VIGÊNCIA DA LEI N.º 13.964/2019. PORTE DE ARMA DE FOGO DE USO PERMITIDO COM NUMERAÇÃO SUPRIMIDA. NATUREZA HEDIONDA AFASTADA. ORDEM CONCEDIDA.

1. Os Legisladores, ao elaborarem a Lei n. 13.497/2017 - que alterou a Lei de Crimes Hediondos - quiseram conferir tratamento mais gravoso apenas ao crime de posse ou porte de arma de fogo, de acessório ou de munição de uso proibido ou restrito, não abrangendo o crime de posse ou porte de arma de fogo, de acessório ou de munição de uso permitido.

2. Ao pleitear a exclusão do projeto de lei dos crimes de comércio ilegal e de tráfico internacional de armas de fogo, o Relator na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, então Senador Edison Lobão, propôs "que apenas os crimes que envolvam a utilização de armas de fogo de uso restrito, ou seja, aquelas de uso reservado pelos agentes de segurança pública e Forças Armadas, sejam incluídos no rol dos crimes hediondos". O Relator na Câmara dos Deputados, Deputado Lincoln Portela, destacou que "aquele que adquire ou possui, clandestinamente, um fuzil, que pode chegar a custar R$ 50.000, (cinquenta mil reais), o equivalente a uns dez quilos de cocaína, tem perfil diferenciado daquele que, nas mesmas condições, tem arma de comércio permitido".

3. É certo que a Lei n. 13.964/2019 alterou a redação da Lei de Crimes Hediondos, de modo que, atualmente, se considera equiparado a hediondo o crime de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso proibido, previsto no art. 16 da Lei n.º 10.826/2003.

4. Embora o crime ora em análise tenha sido praticado antes da vigência da Lei n.º 13.964/2019, cabe destacar que a alteração na redação da Lei de Crimes Hediondos apenas reforça o entendimento ora afirmado, no sentido da natureza não hedionda do porte ou posse de arma de fogo de uso permitido com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado.

5. No Relatório apresentado pelo Grupo de Trabalho destinado a analisar e debater as mudanças promovidas na Legislação Penal e Processual Penal pelos Projetos de Lei n.º 10.372/2018, n.º 10.373/2018, e n.º 882/2019 - GTPENAL, da Câmara dos Deputados, coordenado pela Deputada Federal Margarete Coelho, foi afirmada a especial gravidade da conduta de posse ou porte de arma de fogo de uso restrito ou proibido, de modo que se deve "coibir mais severamente os criminosos que adquirem ou "alugam" armamento pesado [...], ampliando consideravelmente o mercado do tráfico de armas".

Outrossim, ao alterar a redação do art. 16 da Lei n.º 10.826/2003, com a imposição de penas diferenciadas para o posse ou porte de arma de fogo de uso restrito e de uso proibido, a Lei n. 13.964/2019 atribuiu reprovação criminal diversa a depender da classificação do armamento.

6. Esta Corte Superior, até o momento atual, afirmou que os Legisladores atribuiram reprovação criminal equivalente às condutas descritas no caput do art. 16 da Lei n.º 10.826/2003 e ao porte ou posse de arma de fogo de uso permitido com numeração suprimida, equiparando a gravidade da ação e do resultado. Todavia, diante dos fundamentos ora apresentados, tal entendimento deve ser superado (overruling).

7. Corrobora a necessidade de superação a constatação de que, diante de texto legal obscuro - como é o parágrafo único do art. 1.º da Lei de Crimes Hediondos, na parte em que dispõe sobre a hediondez do crime de posse ou porte ilegal de arma de fogo - e de temas com repercussões relevantes, na execução penal, cabe ao Julgador adotar postura redutora de danos, em consonância com o princípio da humanidade.

8. Ordem de habeas corpus concedida para afastar a natureza hedionda do crime de porte ou posse de arma de fogo de uso permitido com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado.

(HC n. 575.933/SP, relatora Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 15/12/2020, DJe de 18/12/2020.) (Grifo acrescido)

Portanto, ante o contexto exposto, resta claro que, diante da inovação legislativa mencionada, somente é crime hediondo a posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso proibido, de modo que não se enquadra o requerente na hipótese de inelegibilidade prevista no artigo 1º, I, “e”, 7, da Lei Complementar n.º 64/1990, vez que o crime pelo qual foi condenado, qual seja, posse de munição de uso restrito, não ostenta caráter hediondo.
Destarte, cumpre ainda esclarecer que, não obstante o requerente se encontre atualmente privado de liberdade em decorrência do cumprimento de ordem de prisão temporária, conforme noticiado no ID 10751824, tal fato não configura impedimento ao deferimento do presente pedido de registro de candidatura, vez que a prisão de natureza cautelar, como é caso da prisão temporária e da preventiva, tem por objetivo, unicamente, resguardar o trâmite do processo penal, e, por não decorrer de uma sentença penal condenatória transitada em julgado, não implica a suspensão dos direitos políticos.
Nesse passo, não constatada a existência de inelegibilidade ou outro óbice à candidatura tratada nos autos, indefiro o pedido de tutela cautelar formulado pelo órgão ministerial (ID 10751196), por restar evidenciada a ausência de plausibilidade do direito.
Ante o exposto, DEFIRO o pedido de registro de candidatura de WENDEL FAGNER CORTEZ DE ALMEIDA, para concorrer ao cargo de Deputado Estadual, sob o número 22762, pelo Partido Liberal – PL, com a seguinte opção de nome para urna: WENDEL LAGARTIXA.” (ID 158110733).

Ao consultar o site do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte – TJRN se revela que o candidato foi, de fato, condenado por posse ilegal de acessórios e munições de uso restrito. O respectivo acórdão condenatório apontou a existência de “conjunto belicoso composto de: 01 colete balístico, 02 placas de colete balístico, 02 munições de calibre .40, 01 cartucho calibre .12, 30 munições de calibre .380, 03 carregadores de calibre .380 e 01 carregador calibre .40, todos com prolongador”, nos termos da seguinte ementa:

“PROCESSUAL PENAL E PENAL. APCRIM. POSSE ILEGAL DE ACESSÓRIOS E MUNIÇÕES DE USO RESTRITO (ART. 16, CAPUT DO ESTATUTO DO DESARMAMENTO). APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA, PELA INEXISTÊNCIA DE DOLO E RISCO À INCOLUMIDADE PÚBLICA. APREENSÃO DE VARIADOS ARTEFATOS BÉLICOS, EM CONTEXTO FÁTICO ONDE SE INVESTIGA DELITO DE HOMICÍDIO. CIRCUNSTÂNCIA A IMPOSSIBILITAR A BAGATELA. CRIME DE PERIGO ABSTRATO E DE MERA CONDUTA. TESE ABSOLUTÓRIA IMPROCEDENTE. DECISUM MANTIDO. PRECEDENTES DO STJ. CONHECIMENTO E DESPROVIMENTO.”
(http://esaj.tjrn.jus.br/cposg/pcpoResultadoConsProcesso2Grau.jsp#).

Esclareço que certidão emanada pela 14ª Vara Criminal da Comarca de Natal/RN, acostada aos presentes autos (ID 158110682), aponta para a existência da Execução Penal 0100390-16.2018.8.20.0000, decorrente da mencionada condenação, na qual foi declarada a extinção da punibilidade do recorrido em 4/6/2021, em razão do cumprimento da pena que lhe foi imposta.

 

Para melhor compreensão da controvérsia, cumpre replicar pertinente dispositivo da Lei Complementar 64/1990 (Lei de Inelegibilidades):

“Art. 1º São inelegíveis:
I - para qualquer cargo:
[...]
e) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena, pelos crimes: 
[...].
7. de tráfico de entorpecentes e drogas afins, racismo, tortura, terrorismo e hediondos; (Incluído pela Lei Complementar nº 135, de 2010).” (grifei).

Conforme  relatado, a condenação do candidato se deu com base no art. 16 da Lei 10.826/2003, que possui a seguinte redação:

“Art. 16. Possuir, deter, portar, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob sua guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição de uso restrito, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.
§ 1º Nas mesmas penas incorre quem:     
I – suprimir ou alterar marca, numeração ou qualquer sinal de identificação de arma de fogo ou artefato;
II – modificar as características de arma de fogo, de forma a torná-la equivalente a arma de fogo de uso proibido ou restrito ou para fins de dificultar ou de qualquer modo induzir a erro autoridade policial, perito ou juiz;
III – possuir, detiver, fabricar ou empregar artefato explosivo ou incendiário, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar;
IV – portar, possuir, adquirir, transportar ou fornecer arma de fogo com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado;
V – vender, entregar ou fornecer, ainda que gratuitamente, arma de fogo, acessório, munição ou explosivo a criança ou adolescente; e
VI – produzir, recarregar ou reciclar, sem autorização legal, ou adulterar, de qualquer forma, munição ou explosivo.
§ 2º Se as condutas descritas no caput e no § 1º deste artigo envolverem arma de fogo de uso proibido, a pena é de reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos.”

Por oportuno, anoto que a Lei 13.964/2019 alterou a Lei de Crimes Hediondos, para conferir tratamento mais gravoso ao crime de posse ou porte de arma de fogo de uso proibido previsto no art. 16 da Lei 10.826/2003, nesses termos:

“Art. 1º São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, consumados ou tentados:
[...]
Parágrafo único. Consideram-se também hediondos, tentados ou consumados:
[...]
II - o crime de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso proibido, previsto no art. 16 da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003;
[...]”.

Da análise dos dispositivos legais acima apontados, facilmente se percebe certa impropriedade na redação da Lei 13.964/2019 ao usar o termo “uso proibido”, quando o tipo incriminador se refere à arma de fogo, acessório ou munição de “uso restrito”.

 

É bem verdade que a exegese literal do dispositivo legal supracitado pode conduzir o intérprete à equivocada conclusão de que não estaria incluído na alteração o crime de posse ou porte de arma de fogo de uso “restrito”, ou mesmo os elementos acessório e munição, em razão da ausência de menção expressa.

 

A solução passa pela interpretação teleológica da regra em questão, com o fim de verificar a vontade do legislador, que, na espécie, foi de considerar hediondas todas as condutas do art. 16 da Lei 10.826/2003, não se restringindo à arma de fogo de uso proibido. Tanto é que o Superior Tribunal de Justiça – STJ, ao deliberar sobre o tema, esclareceu que os Legisladores quiseram conferir tratamento mais gravoso apenas ao crime de posse ou porte de arma de fogo, de acessório ou de munição de uso restrito. Confira-se:

HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO PENAL. ART. 16, PARÁGRAFO ÚNICO, INCISO IV, DA LEI N.º 10.826/2003. CONDUTA PRATICADA APÓS A VIGÊNCIA DA LEI N.º 13.497/2017 E ANTES DA VIGÊNCIA DA LEI N.º 13.964/2019. PORTE DE ARMA DE FOGO DE USO PERMITIDO COM NUMERAÇÃO SUPRIMIDA. NATUREZA HEDIONDA AFASTADA. ORDEM CONCEDIDA.
1. Os Legisladores, ao elaborarem a Lei n. 13.497/2017 - que alterou a Lei de Crimes Hediondos - quiseram conferir tratamento mais gravoso apenas ao crime de posse ou porte de arma de fogo, de acessório ou de munição de uso proibido ou restrito, não abrangendo o crime de posse ou porte de arma de fogo, de acessório ou de munição de uso permitido.
2. Ao pleitear a exclusão do projeto de lei dos crimes de comércio ilegal e de tráfico internacional de armas de fogo, o Relator na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, então Senador Edison Lobão, propôs "que apenas os crimes que envolvam a utilização de armas de fogo de uso restrito, ou seja, aquelas Documento: 2019467 - Inteiro Teor do Acórdão - Site certificado - DJe: 18/02/2021 Página 7de 4 Superior Tribunal de Justiça de uso reservado pelos agentes de segurança pública e Forças Armadas, sejam incluídos no rol dos crimes hediondos". O Relator na Câmara dos Deputados, Deputado Lincoln Portela, destacou que "aquele que adquire ou possui, clandestinamente, um fuzil, que pode chegar a custar R$ 50.000, (cinquenta mil reais), o equivalente a uns dez quilos de cocaína, tem perfil diferenciado daquele que, nas mesmas condições, tem arma de comércio permitido".
3. É certo que a Lei n. 13.964/2019 alterou a redação da Lei de Crimes Hediondos, de modo que, atualmente, se considera equiparado a hediondo o crime de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso proibido, previsto no art. 16 da Lei n.º 10.826/2003.
[...]
5. No Relatório apresentado pelo Grupo de Trabalho destinado a analisar e debater as mudanças promovidas na Legislação Penal e Processual Penal pelos Projetos de Lei n.º 10.372/2018, n.º 10.373/2018, e n.º 882/2019 - GTPENAL, da Câmara dos Deputados, coordenado pela Deputada Federal Margarete Coelho, foi afirmada a especial gravidade da conduta de posse ou porte de arma de fogo de uso restrito ou proibido, de modo que se deve "coibir mais severamente os criminosos que adquirem ou "alugam" armamento pesado [...], ampliando consideravelmente o mercado do tráfico de armas".
Outrossim, ao alterar a redação do art. 16 da Lei n.º 10.826/2003, com a imposição de penas diferenciadas para o posse ou porte de arma de fogo de uso restrito e de uso proibido, a Lei n. 13.964/2019 atribuiu reprovação criminal diversa a depender da classificação do armamento.
6. Esta Corte Superior, até o momento, afirmava que os Legisladores atribuíram reprovação criminal equivalente às condutas descritas no caput do art. 16 da Lei n.º 10.826/2003 e ao porte ou posse de arma de fogo de uso permitido com numeração suprimida, equiparando a gravidade da ação e do resultado. Todavia, diante dos fundamentos ora apresentados, tal entendimento deve ser superado (overruling).
[...]
8. Ordem de habeas corpus concedida para afastar a natureza hedionda do crime de porte ou posse de arma de fogo de uso permitido com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado.”
(STJ, HC 575.933/SP, Rel. Min. Laurita Vaz).

Esclareço que os precedentes citados no acórdão regional – AgRg-HC 625.762/SP e HC 575.933/SP – limitavam-se a perquirir a extensão da alteração legislativa, para fins de afastar a natureza hedionda do crime de porte ou posse de arma de fogo de uso permitido com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado”, em nada guardando relação com a discussão proposta nos autos.

 

Com tais considerações, verifico que a interpretação mais consentânea com o objetivo da norma inserta na Lei 13.964/2019, que alterou a Lei de Crimes Hediondos, é a de que a posse ou porte de arma de fogo, acessório ou munição, tanto de uso proibido quanto restrito, possui natureza de crime hediondo.

 

Dessa forma, ainda que o art. 1º, parágrafo único, II, da Lei 8.072/1990 faça menção apenas à expressão “posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso proibido”, a jurisprudência do STJ aponta, com inegável clareza, para a inclusão tácita do termo “uso restrito” e dos elementos acessório e munição.

 

Dito isso, a conclusão a que se chega é a de que o crime pelo qual Wendel Fagner Cortez de Almeida foi condenado – posse de munição de uso restrito – é classificado como hediondo. Não tendo ainda transcorrido o prazo de 8 anos desde a extinção da punibilidade pelo cumprimento da pena, que se deu em 4/6/2021, imperioso se faz o reconhecimento da sua inelegibilidade, com base no art. 1º, I, e, 7, da Lei Complementar 64/1990.

 

Finalmente, cumpre apontar que o recorrido, conforme indicado no acórdão regional (pág. 4 do ID 158110730), encontra-se “atualmente privado de liberdade em decorrência do cumprimento de ordem de prisão temporária”, por possível participação em três homicídios. Ademais, consulta ao site do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte – TJRN revela que o candidato possui processos ativos por homicídio simples (001964-78.2012.8.20.0162), quadrilha ou bando (0002894-98.2012.8.20.0129), homicídio qualificado (0101715-28.2018.8.20.0162), entre outros. Fato esse que, a despeito de não configurar inelegibilidade, é elemento revelador de periculosidade social.

 

Diante do exposto, dou provimento ao recurso ordinário, nos termos do art. 36, § 7º, do RITSE, para indeferir o registro de candidatura de Wendel Fagner Cortez de Almeida.

 

Publique-se no mural eletrônico (art. 38, caput, da Res.-TSE 23.609/2019).

 

Brasília, 20 de outubro de 2022. 

 

Ministro RICARDO LEWANDOWSKI 
Relator