TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL

ACÓRDÃO

CONSULTA Nº 0600306-47.2019.6.00.0000 – BRASÍLIA – DISTRITO FEDERAL

Relator: Ministro Luís Roberto Barroso 

Consulente: Benedita Souza da Silva Sampaio

Advogados: Irapuã Santana do Nascimento da Silva – OAB: 341538/SP e outra

 

Direito Eleitoral. Consulta. Reserva de candidaturas, tempo de antena e recursos para candidatas e candidatos negros. Conhecimento. Quesitos 1, 2 e 4 respondidos afirmativamente.

1. Consulta a respeito da possibilidade de: (i) garantir às candidatas negras percentual dos recursos financeiros e do tempo em rádio e TV destinados às candidaturas femininas no montante de 50%, dada a distribuição demográfica brasileira; (ii) instituir reserva de 30% das candidaturas de cada partido a pessoas negras, nos termos da cota de gênero prevista na Lei nº 9.504/1997; (iii) determinar o custeio proporcional das campanhas dos candidatos negros, destinando-se a estes no mínimo 30% do total do FEFC; e (iv) assegurar tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão proporcional às candidaturas de pessoas negras, respeitando-se o mínimo de 30%.

I. Conhecimento da consulta

2. A consulente é autoridade com jurisdição federal e as indagações formuladas tratam de matéria afeta à legislação eleitoral e são dotadas de abstração e objetividade. Ademais, esta Corte já fixou que cabe à Justiça Eleitoral apreciar, no exercício de sua função consultiva, temáticas que digam respeito à garantia de igualdade material entre as candidaturas. Consulta conhecida.

II. Racismo, desigualdade racial e participação política

3. O racismo no Brasil é estrutural. Isso significa que, mais do que um problema individual, o racismo está inserido nas estruturas políticas, sociais e econômicas e no funcionamento das instituições, o que permite a reprodução e perpetuação da desigualdade de oportunidades da população negra.

4. A desigualdade racial é escancarada por diversas estatísticas, que demonstram que, em todos os campos, desde o acesso à educação até a segurança pública, negros são desfavorecidos e marginalizados. O Atlas da Violência de 2019 demonstrou que 75,5% de todas as pessoas assassinadas no Brasil eram negras. Esse dado é cruelmente ilustrado pelas mortes das crianças João Pedro Mattos, Ágatha Félix e Kauê Ribeiro dos Santos, que demonstram a importância do movimento social “Vidas negras importam”.

5. Como fenômeno intrinsecamente relacionado às relações de poder e dominação, o racismo se manifesta especialmente no âmbito político-eleitoral. Nas eleições gerais de 2018, embora 47,6% dos candidatos que concorreram fossem negros, entre os eleitos, estes representaram apenas 27,9%. Um dos principais fatores que afetam a viabilidade das candidaturas é o financiamento das campanhas. Quanto ao tema, verifica-se que, em 2018, houve efetivo incremento nos valores absolutos e relativos das receitas das candidatas mulheres por força das decisões do STF e do TSE. Enquanto em 2014 a receita média de campanha das mulheres representava cerca de 27,8% da dos homens, em 2018, tal receita representou 62,4%. No entanto, ao se analisar a intersecção entre gênero e raça, verifica-se que a política produziu efeitos secundários indesejáveis. Estudo da FGV Direito relativo à eleição para Câmara dos Deputados apontou que mulheres brancas candidatas receberam percentual de recursos advindos dos partidos (18,1%) proporcional às candidaturas (também de 18,1%). No entanto, candidatos negros continuaram a ser subfinanciados pelos partidos. Embora mulheres negras representassem 12,9% das candidaturas, receberam apenas 6,7% dos recursos. Também os homens negros receberam dos partidos recursos (16,6%) desproporcionais em relação às candidaturas (26%). Apenas os homens brancos foram sobrefinanciados (58,5%) comparativamente ao percentual de candidatos (43,1%).

III. Igualdade, diversidade e representatividade

6. No mundo contemporâneo, a igualdade se expressa particularmente em três dimensões: a igualdade formal, que funciona como proteção contra a existência de privilégios e tratamentos discriminatórios; a igualdade material, que corresponde às demandas por redistribuição de poder, riqueza e bem-estar social; e a igualdade como reconhecimento, significando o respeito devido às minorias, sua identidade e suas diferenças. A ordem constitucional não apenas rejeita todas as formas de preconceito e discriminação, mas também impõe ao Estado o dever de atuar positivamente no combate a esse tipo de desvio e na redução das desigualdades de fato.

7. Sob o prisma da igualdade, há um dever de integração dos negros em espaços de poder, noção que é potencializada no caso dos parlamentos. É que a representação de todos os diferentes grupos sociais no parlamento é essencial para o adequado funcionamento da democracia e para o aumento da legitimidade das decisões tomadas. Quando a representação política é excludente, afeta-se a capacidade de as decisões e políticas públicas refletirem as vontades e necessidades das minorias sub-representadas. Para além do impacto na agenda pública, o aumento da representatividade política negra tem o efeito positivo de desconstruir o papel de subalternidade atribuído ao negro no imaginário social e de naturalizar a negritude em espaços de poder.

8. O imperativo constitucional da igualdade e a noção de democracia participativa plural justificam a criação de ações afirmativas voltadas à população negra. No entanto, o campo de atuação para a efetivação do princípio da igualdade e o combate ao racismo não se limita às ações afirmativas. Se o racismo no Brasil é estrutural, é necessário atuar sobre o funcionamento das normas e instituições sociais, de modo a impedir que elas reproduzam e aprofundem a desigualdade racial. Um desses campos é a identificação de casos de discriminação indireta, em que normas pretensamente neutras produzem efeitos práticos sistematicamente prejudiciais a grupos marginalizados, de modo a violar o princípio da igualdade em sua vertente material.

IV. Apreciação das indagações formuladas na consulta

Quesito (i): Repartição entre as mulheres dos recursos financeiros e tempo de rádio e TV

9. O STF, na ADI nº 5.617, e o TSE, na Cta nº 0600252-18/DF, deram um passo decisivo no sentido do incremento da efetividade das cotas de gênero ao equiparar o percentual de candidaturas femininas ao mínimo de recursos do Fundo Partidário e do FEFC a lhes serem destinados, bem como do tempo de rádio e TV, respeitando-se, em todo caso, o mínimo legal de 30%. Em 2018, o número de candidatas eleitas para a Câmara dos Deputados cresceu 51% em relação à eleição de 2014, enquanto que, nas assembleias legislativas, o crescimento foi de 41,2%.

10. A despeito desses importantes avanços, os dados citados demonstraram que a não consideração das mulheres negras como categoria que demanda atenção específica na aplicação da cota de gênero produziu impacto desproporcional sobre as candidatas negras, caracterizando hipótese de discriminação indireta. É que, a despeito de se tratar de norma geral e abstrata destinada a beneficiar todas as mulheres na disputa política, diante do racismo estrutural presente nas estruturas partidárias, seu efeito prático foi o de manter o subfinanciamento das candidaturas das mulheres negras e, logo, sua sub-representação.

11. A acomodação razoável para mitigar os efeitos adversos verificados não é a repartição dos recursos entre mulheres brancas e negras à razão de 50%, mas sim a aplicação da mesma lógica adotada nas decisões do STF e do TSE no sentido de que a repartição deve se dar na exata proporção das candidaturas de mulheres brancas e negras.

Quesitos (ii), (iii) e (iv): Criação de reserva de candidaturas para pessoas negras com destinação proporcional dos recursos públicos e direito de antena

12. Compete prioritariamente ao Congresso Nacional estabelecer política de ação afirmativa apta a ampliar a participação política de minorias não brancas, atendendo ao anseio popular e à demanda constitucional por igualdade. À mingua de uma norma específica que institua ação afirmativa nessa seara, o Poder Judiciário não deve ser protagonista da sua formulação. Isso, porém, não quer dizer que não haja papel algum a desempenhar. É legítima a atuação do Poder Judiciário para assegurar direitos fundamentais de grupos historicamente vulneráveis, como mulheres, negros ou homossexuais, contra discriminações, diretas ou indiretas. Assim, o TSE pode e deve atuar para impedir que a ação afirmativa instituída pela Lei nº 9.504/1997 produza discriminações injustificadas e perpetue a desigualdade racial.

13. Verifica-se que o funcionamento da reserva de gênero importou em uma forma adicional de discriminação indireta em desfavor das candidaturas de homens negros. Como os recursos públicos para as campanhas são limitados, ao destinar às candidaturas de mulheres recursos proporcionais aos patamares percentuais de suas candidaturas, esses recursos são naturalmente desviados das candidaturas dos homens. Ocorre, porém, que, devido ao racismo estrutural e à marginalização histórica, são as candidaturas dos homens negros que tendem a ser desproporcionalmente afetadas com a diminuição dos recursos disponíveis. Para mitigar tal efeito adverso, deve-se determinar o custeio proporcional das campanhas dos candidatos negros e assegurar tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão proporcional às candidaturas de pessoas negras, na exata proporção do número de candidaturas.

V. Parâmetros para cálculo e fiscalização da destinação de recursos a candidaturas de pessoas negras

14. O volume de recursos destinados a candidaturas de pessoas negras deve ser calculado a partir do percentual dessas candidaturas dentro de cada gênero, e não de forma global. Isto é, primeiramente, deve-se distribuir as candidaturas em dois grupos – homens e mulheres. Na sequência, deve-se estabelecer o percentual de candidaturas de mulheres negras em relação ao total de candidaturas femininas, bem como o percentual de candidaturas de homens negros em relação ao total de candidaturas masculinas. Do total de recursos destinados a cada gênero é que se separará a fatia mínima de recursos a ser destinada a pessoas negras desse gênero.

15. Ademais, devem-se observar as particularidades do regime do FEFC e do Fundo Partidário, ajustando-se as regras já aplicadas para cálculo e fiscalização de recursos destinados às mulheres.

16. A aplicação de recursos do FEFC em candidaturas femininas é calculada e fiscalizada em âmbito nacional. Assim, o cálculo do montante mínimo do FEFC a ser aplicado pelo partido, em todo o país, em candidaturas de mulheres negras e homens negros será realizado a partir da aferição do percentual de mulheres negras, dentro do total de candidaturas femininas, e de homens negros, dentro do total de candidaturas masculinas. A fiscalização da aplicação dos percentuais mínimos será realizada pelo TSE apenas no exame das prestações de contas do diretório nacional.

17. A aplicação de recursos do Fundo Partidário em candidaturas femininas é calculada e fiscalizada em cada esfera partidária. Portanto, havendo aplicação de recursos do Fundo Partidário em campanhas, o órgão partidário doador, de qualquer esfera, deverá destinar os recursos proporcionalmente ao efetivo percentual de (i) candidaturas femininas, observado, dentro deste grupo, o volume mínimo a ser aplicado a candidaturas de mulheres negras; e de (ii) candidaturas de homens negros. Nesse caso, a proporcionalidade será aferida com base nas candidaturas apresentadas no âmbito territorial do órgão partidário doador. A fiscalização da aplicação do percentual mínimo será realizada no exame das prestações de contas de campanha de cada órgão partidário que tenha feito a doação.

VI. Conclusão

18. Primeiro quesito respondido afirmativamente nos seguintes termos: os recursos públicos do Fundo Partidário e do FEFC e o tempo de rádio e TV destinados às candidaturas de mulheres, pela aplicação das decisões judiciais do STF na ADI nº 5617/DF e do TSE na Consulta nº 0600252-18/DF, devem ser repartidos entre mulheres negras e brancas na exata proporção das candidaturas apresentadas pelas agremiações.

19. Segundo quesito é respondido negativamente, não sendo adequado o estabelecimento, pelo TSE, de política de reserva de candidaturas para pessoas negras no patamar de 30%. Terceiro e quarto quesitos respondidos afirmativamente, nos seguintes termos: os recursos públicos do Fundo Partidário e do FEFC e o tempo de rádio e TV devem ser destinados ao custeio das candidaturas de homens negros na exata proporção das candidaturas apresentadas pelas agremiações.

20. Aplicação do entendimento a partir das Eleições 2022, vencido, neste ponto, o relator. Impossibilidade de alteração das regras de distribuição de recursos aplicáveis às Eleições 2020, uma vez já apresentados pelos partidos políticos os critérios para a distribuição do FEFC e, também, iniciado o período de convenções partidárias.

 

Acordam os ministros do Tribunal Superior Eleitoral, por maioria, em responder afirmativamente quanto ao primeiro, ao terceiro e ao quarto quesitos, e negativamente quanto ao segundo, nos termos e fundamentos constantes do voto do relator. Também por maioria, em decidir pela aplicabilidade da decisão a partir das eleições de 2022, mediante a edição de resolução do Tribunal, nos termos do voto do Ministro Og Fernandes. 

 

Brasília, 25 de agosto de 2020.

 

MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO – RELATOR

 

 RELATÓRIO

     

O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO: Senhores Ministros, trata-se de consulta formulada pela Deputada Federal Benedita Souza da Silva Sampaio, com apoio da organização Educafro, sobre se: (i) os recursos financeiros e o tempo de rádio e TV destinados às candidaturas de mulheres, em razão das cotas de gênero, devem ser repartidos entre mulheres negras e brancas, de acordo com o percentual de 50% para cada grupo, dada a distribuição demográfica brasileira; e (ii) deve haver reserva de 30% das candidaturas de cada partido a pessoas negras, nos mesmos termos da cota de gênero prevista no art. 10, § 3º, da Lei nº 9.504/1997, com a consequente destinação proporcional do Fundo Especial de Financiamento de Campanha e do tempo de propaganda eleitoral gratuita na rádio e na televisão para candidaturas de pessoas negras (ID 11856638).

2. Preliminarmente, a consulente requereu a distribuição do feito à minha relatoria, por sua relação com a Consulta nº 0600587-37.2018.6.00.0000, que não foi conhecida em razão do início do período eleitoral (ID 11856588). Na sequência, traz dados minuciosos, a partir de estudos do professor Irapuã Santana, que demonstram a desproporção no número de candidatos negros em relação à população do país, notadamente em disputas de cargos federais considerados de maior proeminência. Segundo alega, esses dados se justificam pelo elevado custo das campanhas, pelo acesso desigual aos recursos econômicos por parte da população negra, bem como pelo racismo estrutural existente em nossa sociedade.

3. O STF, na ADI nº 5617/DF, de relatoria do Min. Edson Fachin, e o TSE, na Consulta nº 0600252-18/DF, de relatoria da Min. Rosa Weber, firmaram o entendimento de que a distribuição de recursos do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), bem como do tempo de propaganda gratuita na rádio e na TV, deve ser feita na exata proporção das candidaturas de ambos os sexos, respeitado o patamar mínimo de 30% de candidatas mulheres previsto no art. 10, § 3º, da Lei n° 9.504/1997. Sustenta a consulente que tais precedentes dão ensejo à discussão sobre como esses recursos devem ser repartidos entre as candidatas mulheres, bem como à possível extensão da cota para os candidatos negros, “haja vista a identidade do pano de fundo envolvendo os casos: a proteção e promoção das minorias subrepresentadas [sic] politicamente”. A consulente discorre, ainda, sobre a importância da representatividade, trazendo à baila a obra de Hannah Pitkin e Teresa Sacchet, bem como sobre as dimensões da igualdade, a partir do julgamento, pelo STF, da ADC nº 41/DF, de minha relatoria, relativa à constitucionalidade da instituição de reserva de vagas oferecidas em concursos públicos para ingresso no serviço público federal. Segundo alega, o fundamento constitucional da presente consulta é a “dimensão da igualdade como reconhecimento”.

4. A respeito da repartição entre as candidatas mulheres dos recursos financeiros e do direito de antena oriundos da cota de gênero, argumenta que as mulheres negras, embora correspondam a 50% das mulheres brasileiras, têm condições socioeconômicas de acesso ao mercado de trabalho e de educação menos privilegiadas que as mulheres brancas. Desse modo, alega que “é uma medida lógica a distribuição das cotas pecuniária e de tempo de propaganda proporcionalmente à razão existente de mulheres negras, conforme o IBGE”.

5. Já em relação à reserva de candidaturas para pessoas negras, alega que, apesar de ausente “norma eleitoral específica que estabeleça um incentivo estatal” equiparável ao art. 10º, § 3º, da Lei nº 9.504/1997, seria possível fixar as ações afirmativas por meio de reinterpretação do Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/2010), considerando-o como norma dotada de autoexecutoriedade, notadamente diante do disposto nos arts. 2º, 4º, II, III, V, VII, parágrafo único, e 391. Para justificar referida medida, expõe dados que apontam os “obstáculos de ordem hercúlea para a população negra”, dentre os quais: a média salarial, o índice de analfabetismo; a escolaridade; o número de vítimas de homicídio; e a composição da população carcerária. Argumenta, ainda, que é preciso garantir maior participação política da população negra para que seja possível criar políticas públicas voltadas para seus interesses, de modo a permitir a reversão dos índices negativos apresentados:

“Não é exagero afirmar que a população negra luta ainda para ter acesso a bens básicos da vida, como manter-se viva, livre e completando o ensino superior. Consequentemente, é preciso perguntar que espécie de democracia é possível construir, enquanto a sociedade não pode aproveitar inteiramente sua capacidade de representação, quando não há uma estrutura plenamente formulada a ponto de asfixiar possíveis lideranças que possam olhar pelo seu ‘povo’?
Como essa discrepância pode influenciar nas políticas públicas focadas em favor de parcela tão significativa da população, que forma a maioria nacional?
Daí a importância de se alargar o espectro de incentivos de participação eleitoral, prevendo a inclusão da comunidade negra, a fim de que seja possível reverter os índices apresentados no bojo da presente consulta, concretizando a vontade da Constituição e do legislador ao instituir o Estatuto da Igualdade Racial como diploma normativo de observância obrigatória nacional”.

6. Por fim, submete as seguintes indagações ao Tribunal Superior Eleitoral:

“a) As formas de distribuição dos recursos financeiros e tempo em rádio e TV, já concedido às mulheres na Consulta 0600252-18.2018.6.00.0000, deverão ser na ordem de 50% para as mulheres brancas e outros 50% para as mulheres negras, conforme a distribuição demográfica brasileira? Motivo? Vários! Entre eles: Deputados e Senadores com seus sobrenomes consolidados estão trazendo suas mulheres, filhas e outras da família com o mesmo sobrenome para terem acesso a este dinheiro, exclusivo para mulheres. Sendo membros das famílias destes tradicionais Deputados e Senadores, este dinheiro corre o perigo de ser desviado, não chegando às mulheres negras que estão fora deste círculo de poder.
b) É possível haver reserva de vagas nos partidos políticos para candidatos negros, nos mesmos termos do que ocorreu com as mulheres? Motivo? Vários! Entre eles: conforme mostrado no texto acima, mesmo tendo um número razoável de candidatos homens negros, por causa da discriminação institucional, poucos candidatos negros são de fato, eleitos.
c) É possível aplicar o entendimento dos precedentes supra para determinar o custeio proporcional das campanhas dos candidatos negros, destinando 30% como percentual mínimo, para a distribuição do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, previsto nos artigos 16-C e 16-D, da Lei das Eleições, conforme esta Corte entendeu para a promoção da participação feminina?
d) É possível aplicar o precedente, também quanto à distribuição do tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão para os NEGROS, prevista nos artigos 47 e seguintes, da Lei das Eleições, devendo-se equiparar o mínimo de tempo destinado a cada partido, conforme esta Corte entendeu para a promoção da participação feminina?”.

7. A Assessoria Consultiva – ASSEC opinou no sentido de responder negativamente aos questionamentos, “ante a necessidade de observância do devido processo legislativo” (ID 21912388). Isso porque “o exercício do poder normativo pelo TSE na direção de criar novas cotas em razão da raça configuraria inovação na legislação eleitoral, de modo a transgredir o processo legislativo pátrio”.

8. O Ministro Edson Fachin submeteu, então, à Presidente, Ministra Rosa Weber, a dúvida relativa à distribuição do feito, nos termos do art. 9º, “e”, do Regimento Interno do TSE (ID 22530638)2. A Ministra Presidente determinou a redistribuição dos autos à minha relatoria, por dependência, nos termos do art. 286, II, do CPC3. Isso porque os questionamentos nela apresentados reiteram aqueles da Consulta nº 0600587-37.2018.6.00.0000, também submetida pela deputada federal Benedita Souza da Silva Sampaio em conjunto com outros parlamentares e que não foi conhecida em razão do início do período eleitoral.

9. A Procuradoria-Geral Eleitoral manifestou-se pelo conhecimento da consulta e pela resposta negativa aos questionamentos da consulente, em parecer assim ementado (ID 25568638):

“Consulta. Candidatos negros. Distribuição de recursos financeiros. Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC). Tempo em rádio e televisão. Reserva de vagas nos partidos políticos. Ausência de previsão legal. Possibilidade no âmbito da autonomia partidária.
1. O legislador adotou medidas com reserva de quantitativos mínimos de recursos financeiros e de candidaturas para mulheres, mas não o fez para negros.
2. Embora seja louvável a pretensão de serem adotadas medidas ampliativas de representação política da população negra, a obrigatoriedade de o Estado discriminar positivamente candidaturas com recorte de etnia e cor da pele, impondo aos partidos políticos o dever de recrutar candidaturas no grupo vulnerável dos negros, carece de fonte legislativa que a imponha.
3. A legislação impõe que o Poder Público, aí incluída a Justiça Eleitoral, adote medidas para superação da desigualdade, mas não chega ao ponto de impor aos Partidos Políticos a reserva de vagas e financiamento a integrantes da população negra.
4. Ao mesmo tempo que a legislação não impõe a reserva de vagas e recursos financeiros, ela seguramente consente com a sua prática dentro da constitucional autonomia partidária.
5. Em outras palavras, é possível, sim, que partidos políticos deliberem por reservar vagas nos partidos políticos para candidatos negros; por destinar a campanhas dos candidatos negros 30% o Fundo Especial de Financiamento de Campanha; por distribuir o tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão para candidatos da população negra.
Parecer pela resposta negativa a todos os quesitos da consulta, por ausência de previsão legal, mantendo-se legítima, contudo, a opção de determinada agremiação partidária, no exercício de sua autonomia, por fixar critérios de reserva de vagas e recursos financeiros para candidatas e candidatos negros”.

10. Por petição (ID 34678938), o Movimento Negro Unificado postula sua habilitação como amicus curiae. Ademais, o Senador Paulo Paim manifestou-se favoravelmente à inclusão em pauta e ao deferimento da presente consulta. Por fim, o Instituto da Advocacia Negra Brasileira apresentou, por e-mail, parecer técnico no qual opina pela resposta positiva às indagações formuladas.

11. É o relatório.

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1 Lei no 12.288/2010, Art. 2º  É dever do Estado e da sociedade garantir a igualdade de oportunidades, reconhecendo a todo cidadão brasileiro, independentemente da etnia ou da cor da pele, o direito à participação na comunidade, especialmente nas atividades políticas, econômicas, empresariais, educacionais, culturais e esportivas, defendendo sua dignidade e seus valores religiosos e culturais. Art. 4º  A participação da população negra, em condição de igualdade de oportunidade, na vida econômica, social, política e cultural do País será promovida, prioritariamente, por meio de: (…) II - adoção de medidas, programas e políticas de ação afirmativa; III - modificação das estruturas institucionais do Estado para o adequado enfrentamento e a superação das desigualdades étnicas decorrentes do preconceito e da discriminação étnica; (…) V - eliminação dos obstáculos históricos, socioculturais e institucionais que impedem a representação da diversidade étnica nas esferas pública e privada; (…) VII - implementação de programas de ação afirmativa destinados ao enfrentamento das desigualdades étnicas no tocante à educação, cultura, esporte e lazer, saúde, segurança, trabalho, moradia, meios de comunicação de massa, financiamentos públicos, acesso à terra, à Justiça, e outros. Parágrafo único.  Os programas de ação afirmativa constituir-se-ão em políticas públicas destinadas a reparar as distorções e desigualdades sociais e demais práticas discriminatórias adotadas, nas esferas pública e privada, durante o processo de formação social do País.

2 Art. 9º Compete ao presidente do Tribunal: (...) e) distribuir os processos aos membros do Tribunal, e cumprir e fazer cumprir as suas decisões;

3 Art. 286. Serão distribuídas por dependência as causas de qualquer natureza: (...) II - quando, tendo sido extinto o processo sem resolução de mérito, for reiterado o pedido, ainda que em litisconsórcio com outros autores ou que sejam parcialmente alterados os réus da demanda; 

 

VOTO

 

O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO (relator): Senhores Ministros, o Brasil é um país racista. Somos uma sociedade racista. E cada um de nós reproduz o racismo em alguma medida – ainda que de forma não intencional, pela mera fruição ou aceitação dos privilégios e das vantagens que decorrem de um sistema profundamente desigual. Não é confortável reconhecer esse fato, mas é preciso fazê-lo. Essa afirmação pode, inclusive, soar desagradável para alguns, mas, justamente por isso, é preciso pronunciá-la. A superação do racismo passa, necessariamente, pelo seu reconhecimento e pela mudança individual de postura de cada um de nós, brancos. Mas muito mais do que isso: é preciso perceber que o racismo também é reproduzido e perpetuado pelo modo de funcionamento das nossas instituições (políticas, econômicas e sociais) e, assim, criar políticas públicas voltadas para combatê-lo onde quer que ele se encontre.

2. No entanto, a realização desse objetivo evidencia um paradoxo: as pessoas negras são atualmente sub-representadas nos poderes eleitos, aos quais compete prioritariamente formular tais políticas públicas. Por isso, a representação política é uma das preocupações prioritárias da pauta antirracista. É certo que, à mingua de uma norma específica que institua ação afirmativa nessa seara, o Poder Judiciário não deve ser protagonista da sua formulação. Porém, o Poder Judiciário – e o Tribunal Superior Eleitoral, em particular – pode e deve exercer o relevante papel de impedir que as políticas e ações afirmativas já existentes (como as cotas de gênero na política) produzam como efeito secundário indesejável a perpetuação da desigualdade racial nos espaços públicos eletivos. É esse o pano de fundo da presente consulta.

I. Conhecimento da consulta

3. O art. 23, XII, do Código Eleitoral4 estabelece que compete privativamente ao TSE responder, sobre matéria eleitoral, às consultas que lhe forem feitas em tese por autoridade com jurisdição federal ou órgão nacional de partido político. Diante disso, o conhecimento de consultas ao TSE pressupõe: (i) legitimidade do consulente (autoridade com jurisdição federal ou órgão nacional de partido político); (ii) abstração (não se relacionar a nenhum caso concreto); (iii) pertinência temática (tratar de direito eleitoral); e (iv) objetividade (a pergunta deve ser formulada de forma a não comportar múltiplas respostas).

4. No caso, a consulente, Deputada Federal Benedita Souza Silva Sampaio, é autoridade com jurisdição federal. Além disso, as indagações formuladas, relativas à repartição entre as candidatas mulheres dos recursos financeiros e do direito de antena oriundos da cota de gênero, bem como à reserva de 30% das candidaturas de cada partido e à distribuição proporcional dos recursos do Fundo Partidário, do Fundo Especial de Financiamento de Campanha e do tempo de rádio e TV às pessoas negras, versam sobre matéria afeta à legislação eleitoral e são dotadas de abstração e objetividade.

5. Relembro, ademais, que, na Consulta nº 0600252-18/DF, de Relatoria da Ministra Rosa Weber, j. em 22.05.2018, esta Corte fixou que cabe à Justiça Eleitoral apreciar, no exercício de sua função consultiva, temáticas que digam respeito à garantia de igualdade material entre as candidaturas, naquela hipótese, as femininas e masculinas. Isso porque essa “estruturação de novos paradigmas políticos, jurídicos e culturais intrapartidários” tem reflexo direto no processo eleitoral, não se tratando, portanto, de “típica matéria interna corporis dos partidos”. Assim, deve ser conhecida a consulta.

6. Antes de passar à análise do mérito, registro que a consulta eleitoral não comporta, em princípio, intervenção de amici curiae, tendo em vista que não possui índole jurisdicional e por haver previsão expressa nesse sentido na Res.-TSE nº 23.478/20165. Por esse motivo, deixo de admitir como amicus curiae o Movimento Negro Unificado. Registro, contudo, que considerei todas as manifestações apresentadas, em homenagem ao princípio democrático e dada a relevância da matéria submetida a esta Corte.

II. Racismo, Desigualdade Racial e Participação Política

7. A consulente, apoiada pela organização Educafro, evidencia a desigualdade racial persistente no país: seja no acesso à educação, no mercado de trabalho, na segurança pública ou na política. Essa análise é corroborada por dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE referentes ao ano de 2018, que apontam que a taxa de analfabetismo de pretos e pardos (9,1%) é maior que o dobro da de brancos (3,9%)6; enquanto que o rendimento médio domiciliar per capita dos negros (R$ 934,00) corresponde a cerca da metade daquele dos brancos (R$ 1.846,00). Na perspectiva da segurança pública, o Atlas da Violência de 2019, organizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, demonstra que 75,5% de todas as pessoas assassinadas no Brasil eram negras e que 61% das vítimas de feminicídio eram mulheres negras7. Esses dados são cruelmente ilustrados pelas mortes das crianças João Pedro Mattos, Ágatha Félix e Kauê Ribeiro dos Santos, e da vereadora Marielle Franco, entre tantos outros, que demonstram a importância do movimento social “Vidas negras importam” (Black lives matter), que ganhou ainda maior visibilidade no último mês após o assassinato de George Floyd nos Estados Unidos.

8. Percebe-se, a partir dessas estatísticas, que o racismo no Brasil é estrutural8. Conforme explica o Professor Silvio de Almeida, isso significa que, mais do que um problema individual ou um fator institucional, o racismo “é um elemento que integra a organização econômica e política da sociedade”9. Ligado ao colonialismo e à escravização em sua origem, o racismo criou raízes profundas na sociedade brasileira e continua evidente não só em situações de discriminação direta ou intencional10, mas também na desigualdade de oportunidades da população negra e na permanência de estereótipos culturais, disfarçados pela noção de neutralidade racial11.

9. Portanto, trata-se aqui do racismo que é incorporado nas estruturas políticas, sociais e econômicas e no funcionamento das instituições. Essa forma de racismo se reflete na institucionalização, naturalização e legitimação de um sistema e modo de funcionamento social que reproduz as desigualdades raciais e afeta, em múltiplos setores, as condições de vida, as oportunidades, a percepção de mundo e a percepção de si que pessoas, negras e brancas, adquirirão ao longo de suas vidas.

10. Como fenômeno intrinsecamente relacionado às relações de poder e dominação, esse racismo não deixa de se manifestar no âmbito político-eleitoral. Nesse ponto, observa-se que, nas eleições gerais de 2018, 52,4% dos candidatos que concorreram eram brancos e 47,6% eram negros (35,7% pardos e 10,86% pretos). No entanto, a despeito do número de candidaturas, entre os eleitos, 71,92% eram brancos e somente 27,86% eram negros (pretos ou pardos)12. Do total de cerca de 13 mil candidatos negros, a maioria concorria por uma vaga nas Assembleias Legislativas e “apenas cerca de 3% decidiram disputar cargos majoritários de presidente (0,07%), governador (1,1%) e senador (1,9%)”13.

11. Nas eleições municipais de 2016, o cenário das candidaturas não era muito diverso: 51,45% dos candidatos eram brancos, 39,12% eram pardos e 8,64% pretos. Embora distante de corresponder à proporção da população brasileira, em que 55,8% se autodeclaram pretos ou pardos, nessas eleições, 40,40% de todos os candidatos eleitos eram negros. Quando consideradas especificamente as candidaturas à chefia do executivo municipal, constata-se, porém, que 45% dos 5.568 municípios brasileiros tinham apenas candidatos brancos e que, entre os prefeitos eleitos, apenas 29% eram negros14.

12. A consulente correlaciona a diferença entre a representatividade de negros em eleições gerais (2018) e municipais (2016), bem como o reduzido número de candidatos negros que concorrem e são eleitos a cargos majoritários, a um fator de grande relevância: os custos das candidaturas. Esses custos são, em regra, superiores nas eleições gerais e para cargos de chefia do Poder Executivo e discrepam da renda média da população negra. Nesse sentido, destaca o pesquisador Osmar Teixeira que, nos pleitos estaduais, os candidatos negros têm patrimônio equivalente a um quarto daquele dos candidatos brancos de mesma escolaridade15.  Ainda segundo o estudioso, as discrepâncias de patrimônio se agravam de maneira relevante quando se trata de mulheres negras16.

13. Nesse contexto, o financiamento das campanhas assume papel central na viabilidade das candidaturas. Importante estudo da FGV Direito São Paulo em parceria com a CEPESP analisou as campanhas eleitorais, o financiamento e a diversidade de gênero nas eleições de 201817. O estudo identificou que a distribuição proporcional de 30% dos recursos do FEFC e do Fundo Partidário às candidaturas femininas promoveu um efetivo incremento nos valores absolutos e relativos das receitas das candidatas mulheres comparativamente às eleições de 2014, nas quais estas eram o grupo mais subfinanciado. Por exemplo, enquanto em 2014 a receita média de campanha das mulheres representava cerca de 27,8% da dos homens, em 2018 tal receita representou 62,4%18. Ademais, verificou que a taxa de sucesso na eleição aumenta na medida em que aumentam os recursos investidos nas campanhas: “o acesso a recursos financeiros continuou bastante correlacionado com a quantidade de votos e, consequentemente, com a possibilidade de eleição, em 2018”.

14. Referido estudo explorou, ainda, a questão da intersecção entre gênero e raça no financiamento eleitoral dos candidatos a deputado federal. Nessa análise, identificou que houve uma mudança significativa no financiamento de candidaturas femininas a partir das eleições de 2018. Enquanto em 2014 as candidatas mulheres, tanto brancas como negras, eram o grupo mais subfinanciado, tal realidade mudou em 2018, quando as mulheres passaram a receber recursos oriundos dos partidos de forma proporcional às candidaturas em razão das decisões do STF e do TSE, e foi proibido o financiamento empresarial.

15. Nesse novo contexto, o relatório da FGV Direito SP demonstrou que as mulheres brancas candidatas a deputada federal passaram a receber percentual de recursos advindos dos partidos (18,1%) proporcional ao percentual de candidaturas (também 18,1%). No entanto, as candidaturas das mulheres negras continuaram a ser subfinanciadas pelos partidos: embora representassem 12,9% das candidaturas, receberam apenas 6,7% dos recursos. Também os homens negros receberam dos partidos recursos (16,6%) desproporcionais em relação às candidaturas (26%). Apenas os homens brancos foram sobrefinanciados (58,5%) comparativamente ao percentual de candidatos (43,1%).

16. Adicionalmente, o estudo verificou que, nas eleições de 2018, as doações de pessoas físicas para candidatos a deputado federal foram majoritariamente destinadas às candidaturas de homens brancos (72,5%), com uma pequena parcela destinada a homens negros (15,7%) e mulheres brancas (9,6%) e ínfima parcela para as mulheres negras (2,1%)19. Como resultado, o estudo da FGV Direito SP concluiu que, para as eleições de 2018, a raça dos candidatos passou a ser aspecto preponderante em relação ao gênero na determinação do acesso ao financiamento oriundo dos partidos, tendo em vista que a receita média dos homens negros (16,6%) foi menor do que a das mulheres brancas (18,1%).

17. No mesmo sentido, levantamento do jornal O Globo demonstrou que, nas Eleições 2018, “as candidaturas de pessoas negras ao Congresso foram minoria entre as que receberam mais recursos dos principais partidos políticos do Brasil”. Isso independentemente da posição das agremiações no espectro ideológico. Assim, “dos 586 candidatos que obtiveram os maiores repasses designados por diretórios nacionais das 11 maiores siglas, apenas 24% haviam se autodeclarado negros (pretos e pardos), enquanto 74,9% disseram ser brancos20. Na ocasião, o Congresso contava com exatamente 23,9% de parlamentares que se autodeclararam negros. Na mesma linha, nas eleições de 2016, em análise realizada em 18 de setembro do ano eleitoral, o Estadão verificou que a campanha de candidatos brancos à prefeitura arrecadou 65% a mais do que a de um pardo ou negro21.

18. Nota-se, portanto, que as candidaturas negras contam, em regra, com menor apoio das estruturas partidárias. Tanto é assim que, mesmo vencido o desafio das eleições, o cenário de desigualdade se repete na organização do Parlamento: no final de 2019, verificou-se que, entre 30 postos de líderes na Câmara, somente quatro, todos homens, autodeclararam-se pardos22. No Senado, de 22 posições de liderança, apenas seis líderes se autodeclararam negros. Também na relatoria da Câmara é possível verificar desigualdade: “brancos, que são 75% dos deputados, foram responsáveis por 87% dos relatórios de 2019”. Ademais, “dos 4.125 pareceres apresentados, apenas 65 foram assinados por congressistas que se declaram pretos, enquanto 423 são de deputados pardos23.

19. Do mesmo modo, para as autoras do estudo “Mulheres e Negros na Política”, que avaliou o desempenho eleitoral desses grupos em 2010, a conclusão é de que o problema da sub-representação política perpassa a distribuição desigual de recursos, além da dificuldade de acesso e participação nas instâncias partidárias de deliberação24. Nesse sentido, ainda, a Missão de Observação Eleitoral da Organização dos Estados Americanos, referente às Eleições 2018 no Brasil, identificou que “a inclusão de candidatos negros e indígenas dentro dos partidos ainda é baixa e que, mesmo quando estão presentes nas organizações políticas, têm menos acesso a recursos e mais dificuldades para aceder aos cargos eletivos”.

III. Igualdade, Diversidade e Representatividade

20. A realidade delineada é inaceitável diante de um contexto constitucional em que a igualdade constitui um direito fundamental e integra o núcleo essencial da ideia de democracia. Da dignidade humana resulta que todas as pessoas são fins em si mesmas, possuem o mesmo valor e merecem, por essa razão, igual respeito e consideração25. A igualdade veda a hierarquização dos indivíduos e as desequiparações infundadas, mas impõe a neutralização das injustiças históricas, econômicas e sociais, bem como o respeito à diferença. Como já tive a oportunidade de destacar em inúmeras ocasiões, no mundo contemporâneo, a igualdade se expressa particularmente em três dimensões: a igualdade formal, que funciona como proteção contra a existência de privilégios e tratamentos discriminatórios; a igualdade material, que corresponde às demandas por redistribuição de poder, riqueza e bem-estar social; e a igualdade como reconhecimento, significando o respeito devido às minorias, sua identidade e suas diferenças, sejam raciais, religiosas, sexuais ou quaisquer outras. A igualdade efetiva requer igualdade perante a lei, redistribuição e reconhecimento.

21. A Constituição de 1988 contempla essas três dimensões da igualdade. A igualdade formal vem prevista no art. 5º, caput: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Já a igualdade como redistribuição decorre de objetivos da República, como “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (art. 3º, I) e “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (art. 3º, III). Por fim, a igualdade como reconhecimento tem lastro nos objetivos fundamentais do país de “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º, IV), bem como no repúdio ao racismo (art. 5º, XLII)26. Tal conjunto normativo é explícito e inequívoco: a ordem constitucional não apenas rejeita todas as formas de preconceito e discriminação, mas também impõe ao Estado o dever de atuar positivamente no combate a esse tipo de desvio e na redução das desigualdades de fato27.

22. Desse modo, uma perspectiva de “neutralidade racial”, ou colorblindness, que desconsidera as diferenças sociais entre negros e brancos, opera como uma forma de discriminação negativa indireta28. O princípio da isonomia impõe, nesse contexto, uma discriminação positiva, em que o fundamento da desequiparação, bem como os fins por ela visados sejam constitucionalmente legítimos. Tanto é assim que a própria Constituição institui distinções com base em múltiplos fatores, que incluem sexo, renda, situação funcional e nacionalidade, dentre outros. Não por outro motivo, a própria Constituição admite o emprego de políticas de ações afirmativas, ao instituí-las diretamente em relação às pessoas portadoras de deficiência, determinando que a lei deverá reservar a elas percentual dos cargos e empregos públicos (CF/1988, art. 37, VIII).

23. Nota-se, portanto, que há, sob o prisma da efetivação de uma justiça corretiva e redistributiva, um dever de integração dos negros em espaços de poder, noção que é reforçada pela perspectiva integrativa da diversidade. Esta é conceituada pelo professor Adilson Moreira como “a ideia de que instituições públicas e privadas devem espelhar o pluralismo que existe no corpo social”. Nesse sentido, ao reconhecer que “experiências culturais distintas produzem percepções sociais diferentes”, compreende-se que a composição de um corpo deliberativo plural contempla interesses mais diversos do que uma composição homogênea e garante um funcionamento mais democrático, por exemplo, do Parlamento29. Nesse ponto, Maíra Kubick aponta que a pluralidade pode impactar positivamente a própria credibilidade das instituições políticas, reconhecidamente desgastadas perante a população30. O Professor Adilson Moreira destaca, no entanto, que não se trata de garantir mera representação, mas sim uma participação efetiva, como verdadeira “condição para realização de uma democracia participativa”31.

24. Esse dever de inclusão de mulheres e homens negros em espaços de poder é potencializado no caso dos parlamentos. É que a representação de todos os diferentes grupos sociais no parlamento é essencial para o adequado funcionamento da democracia e para o aumento da legitimidade democrática das decisões tomadas. A democracia é autogoverno e, como tal, pressupõe que as pessoas sejam autoras das decisões capazes de afetar suas próprias vidas. No entanto, quando a representação política é excludente, afeta-se a capacidade de as decisões e políticas públicas refletirem as vontades e necessidades das minorias sub-representadas. Por isso, para impulsionar a aprovação de políticas públicas antirracistas é preciso combater a sub-representação política da população negra.

25. Há, ainda, diversas outras consequências positivas do aumento da representatividade política negra: para além da abertura de espaços de reivindicação política, do impacto na agenda pública e da aprovação de ações e projetos de lei que correspondam aos interesses do grupo representado (representação substantiva), tem-se a desconstrução do papel de subalternidade atribuído ao negro no imaginário social e a naturalização da negritude em espaços de poder (representação simbólica)32. Nesse sentido, especialistas como Osmar Teixeira e Carmela Zigoni apontam que a solução para a sub-representação negra na política – especificamente em cargos legislativos eleitos pelo sistema proporcional – passa pelo estabelecimento de ações afirmativas.

26. De fato, o imperativo constitucional da igualdade e a própria noção de uma democracia participativa plural justificam a criação de ações afirmativas voltadas à população negra, ou mais precisamente às minorias não brancas, que sejam aptas a garantir a efetiva participação político-eleitoral destas. No entanto, o campo de atuação para a efetivação do princípio da igualdade – formal, material e como reconhecimento – e para o combate ao racismo não se limita à instituição de ações afirmativas. Se reconhecemos que o racismo no Brasil é estrutural, é possível e necessário atuar sobre o funcionamento das normas e instituições sociais, de modo a impedir que elas reproduzam e aprofundem a desigualdade racial33.

27. Um desses campos de atuação é justamente a identificação de casos de discriminação indireta, relacionados à teoria do impacto desproporcional (disparate impact)34. Muitas vezes, normas pretensamente neutras (i.e., compatíveis com a igualdade formal) produzem efeitos práticos sistematicamente prejudiciais a grupos marginalizados, de modo a violar o princípio da igualdade em sua vertente material. A teoria já foi aplicada pelo Supremo Tribunal Federal em algumas ocasiões, como no julgamento da ADI nº 1.946 (Rel. Min. Sydney Sanches), em que se conferiu interpretação conforme ao art. 14 da Emenda Constitucional nº 20/1998, que instituiu um valor máximo para o pagamento de benefícios pelo INSS, para excluir de seu âmbito de incidência o salário-maternidade. Isso porque, caso o empregador fosse obrigado a arcar com a diferença entre o teto previdenciário e o salário da trabalhadora gestante, haveria um desestímulo à contratação de mulheres, produzindo um impacto desproporcional e discriminatório sobre elas.

28. A implementação de ações destinadas a combater o racismo é uma responsabilidade social que abarca inclusive e principalmente aqueles que se privilegiam do sistema35. Tal perspectiva é densificada pela Lei nº 12.288/2010, que Institui o Estatuto da Igualdade Racial e prevê expressamente que “é dever do Estado e da sociedade garantir a igualdade de oportunidades, reconhecendo a todo cidadão brasileiro, independentemente da etnia ou da cor da pele, o direito à participação na comunidade, especialmente nas atividades políticas [...]” (art. 2º). Essa participação, “em condição de igualdade de oportunidade, na vida econômica, social, política e cultural do País será promovida, prioritariamente, por meio de”, entre outros, “adoção de medidas, programas e políticas de ação afirmativa” e “ajustes normativos para aperfeiçoar o combate à discriminação étnica e às desigualdades étnicas em todas as suas manifestações individuais, institucionais e estruturais” (art. 4º, II e IV).

IV. Apreciação das indagações formuladas na consulta

29. Como relatado, a consulente formulou quatro indagações, nos seguintes termos: a) “As formas de distribuição dos recursos financeiros e tempo em rádio e TV, já concedido às mulheres na Consulta 0600252-18.2018.6.00.0000, deverão ser na ordem de 50% para as mulheres brancas e outros 50% para as mulheres negras, conforme a distribuição demográfica brasileira?”; b) “É possível haver reserva de vagas nos partidos políticos para candidatos negros, nos mesmos termos do que ocorreu com as mulheres?”; c) “É possível aplicar o entendimento dos precedentes supra para determinar o custeio proporcional das campanhas dos candidatos negros, destinando 30% como percentual mínimo, para a distribuição do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, previsto nos artigos 16-C e 16-D, da Lei das Eleições, conforme esta Corte entendeu para a promoção da participação feminina?”; e d) “É possível aplicar o precedente, também quanto à distribuição do tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão para os NEGROS, prevista nos artigos 47 e seguintes, da Lei das Eleições, devendo-se equiparar o mínimo de tempo destinado a cada partido, conforme esta Corte entendeu para a promoção da participação feminina?”.

30. Tais indagações podem ser agregadas em dois pontos principais. Primeiro, saber se os recursos financeiros e o tempo de rádio e TV destinados às candidaturas de mulheres, em razão da cota de gênero, devem ser repartidos entre mulheres negras e brancas, de acordo com o percentual de 50% para cada grupo, dada a distribuição demográfica brasileira. Segundo, saber se deve haver reserva de 30% das candidaturas de cada partido a pessoas negras, nos mesmos termos da cota de gênero prevista no art. 10, § 3º, da Lei nº 9.504/1997, com a consequente destinação proporcional do Fundo Especial de Financiamento de Campanha e do tempo de propaganda eleitoral gratuita na rádio e na televisão para candidaturas de pessoas negras, respeitando-se o mínimo de 30%. Passo a analisar tais questionamentos.

a)     Repartição entre as mulheres dos recursos financeiros e tempo de rádio e TV

31. A consulente questiona a forma de distribuição, entre as candidatas mulheres, dos recursos financeiros e o tempo de rádio e TV destinados às candidaturas de mulheres. O Supremo Tribunal Federal, na ADI nº 5.617, sob a relatoria do Min. Edson Fachin, j. em 15.03.2018, e o Tribunal Superior Eleitoral, na Consulta nº 0600252-18/DF, sob a relatoria da Min. Rosa Weber, j. em 22.05.2018, deram um passo decisivo no sentido do incremento da efetividade das cotas de gênero ao equiparar o percentual de candidaturas femininas ao mínimo de recursos do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha a lhes serem destinados, bem como do tempo de rádio e TV, respeitando-se, em todo caso, o mínimo legal de 30%. Dentre os fundamentos utilizados, destaca-se que “a igualdade entre homens e mulheres exige não apenas que as mulheres tenham garantidas iguais oportunidades, mas também que sejam elas empoderadas por um ambiente que as permita alcançar a igualdade de resultado” e que “a participação das mulheres nos espaços políticos é um imperativo do Estado, uma vez que a ampliação da participação pública feminina permite equacionar as medidas destinadas ao atendimento das demandas sociais das mulheres”.

32. Tais decisões do STF e do TSE consolidaram a diretriz de que a previsão legal de reserva de vagas de candidatura somente pode reduzir a desigualdade de gênero na política se associada a medidas que possibilitem às candidaturas femininas serem competitivas. Na prática, verificou-se que referidas decisões representaram significativo avanço na representação feminina no parlamento, já nas Eleições 2018. Conforme referido pela Ministra Rosa Weber, em seu voto na Consulta nº 0603816-39/DF, a partir dos reflexos daqueles julgamentos, “o Brasil passou da 151ª para a 134ª posição no ranking mundial de representação feminina no parlamento”. Notou, ainda, que, embora as mulheres tenham representado apenas 16,2% do total de eleitos em 2018, o número de candidatas eleitas para a Câmara dos Deputados cresceu 51% em relação à eleição de 2014, enquanto, nas assembleias legislativas, o crescimento foi de 41,2%.

33. A despeito dessas importantes vitórias, percebe-se a partir dos dados citados anteriormente, em especial do estudo da FGV Direito SP, que a concretização da cota de gênero e da distribuição proporcional de recursos às candidatas mulheres produziu como efeito secundário indesejável a manutenção do subfinanciamento das candidaturas das mulheres negras e, consequentemente, da sua sub-representação. É que, a despeito de se tratar de norma geral e abstrata destinada a beneficiar todas as mulheres na disputa política, diante do racismo estrutural presente (também) nas estruturas partidárias, seu efeito prático foi o de excluir as mulheres negras da fruição dos benefícios da política. Em outras palavras, foram as mulheres brancas as que se beneficiaram prioritariamente do aumento da competitividade das suas campanhas. Por isso, a menos que se considere as mulheres negras como categoria que demanda atenção específica, a tendência é a repetição dos padrões que privilegiam candidaturas de mulheres brancas, de modo que as ações destinadas a garantir o direito “das mulheres” atingiriam somente algumas mulheres.

34. Com efeito, desde o final do século XX, tem-se atentado para a desconstrução da ideia de “mulher” como sujeito universal36, a partir do reconhecimento de que diferença de gênero é “particularizada por outros fatores sociais da diferença, como orientação sexual, raça, identidade, origem, região de nascimento e moradia, classe, dentre outros37. Nesse ponto, cabe lembrar o poderoso discurso, proferido em 1851, de Sojourner Truth, mulher negra nascida escravizada que se tornou mundialmente reconhecida por sua defesa da abolição e do direito das mulheres38. Nele, quando confrontada com referências à fragilidade da mulher que se baseavam apenas na vivência das mulheres brancas, Truth questionou repetidamente “E não sou eu uma mulher?”:

“Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que merecem o melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E não sou uma mulher? Olhem para mim? Olhem para meus braços! Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros, e homem algum poderia estar à minha frente. E não sou uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem – desde que eu tivesse oportunidade para isso – e suportar o açoite também! E não sou uma mulher? Eu pari treze filhos e vi a maioria deles ser vendida para a escravidão, e quando eu clamei com a minha dor de mãe, ninguém a não ser Jesus me ouviu! E não sou uma mulher?”.

35. Esse discurso pode ser considerado uma formulação embrionária do conceito de interseccionalidade, desenvolvido pela Professora Kimberlé Crenshaw para descrever a necessidade de absorver por uma lente diversa a intersecção entre formas diversas de desigualdade e discriminação, que operam de forma conjunta e frequentemente potencializam umas às outras39. O termo pode ser usado, por exemplo, para refletir sobre a situação da mulher negra, que vivencia tanto a discriminação de raça quanto a discriminação de gênero. Daí a necessidade de inserir um recorte racial nas políticas e questões voltadas a combater a desigualdade de gênero. Sueli Carneiro sintetiza a questão ao pontuar que “esse novo olhar feminista e antirracista, ao integrar em si tanto as tradições de luta do movimento negro como a tradição de luta do movimento de mulheres, afirma essa nova identidade política decorrente da condição específica do ser mulher negra”40.

36. Como bem evidenciaram os dados trazidos na Consulta, “a experiência de ser uma mulher negra é diferente da de ser uma mulher branca”41. Na política em particular, as dificuldades de obter recursos e apoio do partido, que se verifica tanto em relação às mulheres, quanto em relação aos negros, agravam-se quando a candidatura é de uma mulher negra. Acrescente-se a esse cenário, ainda, a violência política contra a mulher negra, representada, em sua faceta mais extrema, pelo assassinato da Vereadora Marielle Franco, no exercício do cargo de vereadora do Rio de Janeiro, para o qual foi eleita com a 5ª maior votação do município. Segundo a vereadora, a presença de mais mulheres negras eleitas é um imperativo, decorrente do modo peculiar com que estas vivenciam as cidades, o qual lhes garante maior atenção a políticas públicas específicas para a população mais vulnerável42. Seu legado foi, dentre outros, o fenômeno conhecido como “Sementes de Marielle”, que inspira mulheres negras a se engajarem politicamente.

37. É possível dizer, portanto, que as cotas de gênero instituídas pelo art. 10, § 3º, da Lei nº 9.504/1997, tal como interpretadas pelo STF, na ADI nº 5.617, e pelo TSE, na Consulta nº 0600252-18/DF, produziram um impacto desproporcional sobre as candidaturas das mulheres negras, caracterizando hipótese de discriminação indireta. De acordo com Wallace Corbo, a discriminação indireta consiste na “existência de um ato público ou privado que emprega critérios de classificação aparentemente neutros”, mas “produz determinados efeitos adversos negativos contra uma pessoa ou grupo constitucionalmente protegido, notadamente com relação à aquisição ou gozo de direitos ou benefícios”43.

38. Na situação em análise, veja-se que o critério de distribuição de recursos de candidatura é, à primeira vista, neutro, já que destinado a ser repartido, indistintamente, a todas as mulheres. Na prática, porém, a concretização dessa política produziu discriminação indireta das mulheres negras, que tiveram reduzida possibilidade efetiva de gozar do benefício em razão da ausência de garantias institucionais na estruturação dos partidos políticos para que mulheres negras concorram ao pleito em igualdade de condições.

39. Tal efeito adverso pode ser demonstrado pela própria análise estatística. Conforme já explicitado, estudos demonstraram que, a partir da implementação da distribuição proporcional dos recursos às candidaturas femininas em 2018, as mulheres brancas candidatas a deputada federal receberam percentual de recursos advindos dos partidos (18,1%) exatamente proporcional ao percentual de candidaturas (também de 18,1%). Porém – e aqui se evidencia o impacto desproporcional da medida: as mulheres negras candidatas a deputado federal receberam percentual de recursos de campanha (6,7%) equivalente a quase metade do percentual de candidaturas (de 12,9%).

40. Outros dados reforçam esse cenário. Verifica-se que, embora o número de candidatas que se autodeclararam pretas ou pardas tenha crescido 70% nas eleições de 2018 em relação à 201444, e o número de eleitas tenha aumentado 38% no mesmo período, as mulheres negras ocuparam apenas 4% das vagas em disputa. Em uma análise guiada pela intersecção de raça e gênero, o índice de êxito eleitoral de mulheres negras no parlamento foi o mais baixo de todos: apenas 1,7% das candidatas foram eleitas45. Também o estudo da FGV Direito SP demonstrou que, embora em 2018 se tenha atingido o ápice da representação política feminina quando as mulheres conquistaram 15% das cadeiras da Câmara dos Deputados (totalizando 77 vagas), permaneceu a desigualdade de raça. Desse total de vagas obtidas, 94% foram conquistadas por mulheres brancas (63 vagas). Nas vagas restantes, 13 mulheres negras foram eleitas deputadas, representando 2,5% da Câmara, e Joênia Wapichana foi a primeira mulher indígena eleita deputada federal.

41. Uma vez evidenciada a discriminação indireta às mulheres negras e estando as cotas de gênero devidamente justificadas pela exigência de empoderamento feminino, cabe analisar qual seria a solução para mitigar os efeitos adversos verificados. Nesse ponto, a consulente indaga se os recursos deveriam ser repartidos entre mulheres brancas e negras à razão de 50%, que corresponde à distribuição demográfica brasileira. Entendo, porém, que, na ausência de norma legal que estabeleça percentual mínimo de candidaturas para mulheres negras, a acomodação razoável para mitigar a realidade de discriminação deve ser extraída da própria lógica que ditou as decisões do TSE, na Consulta nº 0600252-18/DF, e do STF, na ADI nº 5.617.

42. Nesses casos, por força do princípio da igualdade, reconheceu-se “como sendo a única interpretação constitucional admissível aquela que determina aos partidos políticos a distribuição dos recursos públicos destinados a campanha eleitoral na exata proporção das candidaturas de ambos os sexos”. Do mesmo modo, entendo que se deve destinar às candidatas negras recursos (financeiros e de acesso à tv e à rádio) na exata proporção do número de candidaturas efetivamente apresentadas pela agremiação. Trata-se de ajuste adequado e necessário para afastar a situação discriminatória e o ônus desproporcional que pesa sobre as candidatas negras, influenciando a viabilidade e competitividade de suas campanhas.

43. Portanto, respondo a primeira indagação da consulente de forma afirmativa, no sentido de estabelecer que os recursos públicos do Fundo Partidário e do FEFC e o tempo de rádio e TV destinados às candidaturas de mulheres, em razão das cotas de gênero, devem ser repartidos entre mulheres negras e brancas. Estabeleço, porém, que tal repartição deve se dar na exata proporção das candidaturas de mulheres brancas e negras.

b) Criação de reserva de candidaturas para pessoas negras com destinação proporcional dos recursos públicos e direito de antena

44. Em relação ao segundo questionamento, verifico que envolveria a criação, por meio de Consulta, de reserva de candidaturas para pessoas negras, sugerido pela consulente no patamar de 30%. Tanto a Assessoria Consultiva (ASSEC) deste Tribunal quanto a Procuradoria-Geral Eleitoral manifestaram-se pela resposta negativa a essa indagação. A ASSEC concluiu que “o exercício do poder normativo pelo TSE na direção de criar novas cotas em razão da raça configuraria inovação na legislação eleitoral, de modo a transgredir o processo legislativo pátrio”. No mesmo sentido, entendeu o Ministério Público Eleitoral que “a legislação impõe que o Poder Público, aí incluída a Justiça Eleitoral, adote medidas para superação da desigualdade, mas não chega ao ponto de impor aos Partidos Políticos a reserva de vagas e financiamento a integrantes da população negra”. Assim, enquanto o dever de apresentação de candidaturas femininas é imposto em lei aos partidos políticos, não há semelhante “recorte da etnia ou da cor da pele”, o que impossibilitaria o acolhimento da consulta.

45. Sobre a questão, considero que compete prioritariamente ao Congresso Nacional estabelecer uma política de ação afirmativa apta a ampliar a participação política de minorias não brancas, atendendo ao anseio popular e à demanda constitucional por igualdade.  Como tenho afirmado, a política é gênero de primeira necessidade em uma sociedade democrática e o Legislativo é o locus por excelência da elaboração normativa. Na ausência de uma norma específica que institua ação afirmativa para pessoas negras no acesso a participação política, determinando, e.g., o tamanho da cota e suas condições específicas, o Poder Judiciário não deve – em princípio – ser protagonista da sua formulação.

46. Ademais, deve-se registrar que levantamento estatístico realizado pela Secretaria de Modernização e Gestão Estratégica e Ambiental deste Tribunal indica que, à exceção do partido NOVO, todos os demais partidos registrados no TSE em 2016 lançaram mais de 30% de candidaturas negras, chegando o PCB a lançar 66,67%:

 

Quantitativo de candidaturas de candidatos pretos e pardos segundo partido - Eleições 2016

Partido

Pretos e Pardos

Total de candidatos no partido

Qtd.

%

PCB

162

66,67%

243

PC do B

7.662

62,64%

12.231

PPL

2.340

62,60%

3.738

PTC

5.255

59,48%

8.835

PMN

4.408

59,05%

7.465

PRTB

3.834

57,73%

6.641

PSOL

3.173

57,61%

5.508

PSTU

185

57,10%

324

PMB

2.631

56,99%

4.617

PT do B

4.260

56,39%

7.555

PSDC

4.227

55,57%

7.607

PSL

5.849

55,56%

10.528

PROS

6.048

54,56%

11.085

PTN

5.320

54,34%

9.791

PRP

4.666

54,21%

8.607

PHS

6.437

53,63%

12.003

PRB

9.580

53,12%

18.033

PEN

5.350

51,92%

10.304

PSC

8.447

51,26%

16.479

SD

7.554

50,40%

14.989

PT

11.793

48,59%

24.271

PR

10.820

47,65%

22.707

PCO

40

47,06%

85

REDE

1.828

46,98%

3.891

PPS

7.835

46,55%

16.832

PSD

13.631

46,33%

29.421

PSB

12.476

46,21%

26.999

PDT

11.661

44,54%

26.182

PV

7.479

44,11%

16.955

DEM

9.608

43,77%

21.953

PTB

9.381

41,44%

22.636

PP

11.429

40,77%

28.031

PSDB

14.420

40,34%

35.748

PMDB

17.515

39,37%

44.489

NOVO

14

9,72%

144

Total

237.318

47,76%

496.927

Fonte: Página de estatísticas de candidaturas (http://www.tse.jus.br/eleicoes/estatisticas/estatisticas-eleitorais)

 

 

47. Isso não quer dizer que não haja papel algum a desempenhar. É legítima a atuação do Poder Judiciário para assegurar direitos fundamentais de grupos historicamente vulneráveis, como mulheres, negros ou homossexuais, contra discriminações, diretas ou indiretas46. Se, ao menos no quadro geral das candidaturas de 2016, não se identifica ser baixo o percentual de candidaturas de pessoas negras, isso somente acentua a gravidade do problema do subfinanciamento destas. Assim, embora não caiba neste momento proceder à criação de uma política afirmativa voltada para as candidaturas de pretos e pardos, o TSE pode atuar no sentido de impedir que a ação afirmativa instituída pela Lei nº 9.504/1997 produza discriminações injustificadas em desfavor de grupos historicamente marginalizados e a perpetuação da desigualdade racial no acesso aos cargos públicos eletivos.

48. Nesse ponto, é importante considerar que o funcionamento da reserva de gênero (conforme explicitado acima) importou em uma forma adicional de discriminação indireta: aquela contra as candidaturas de homens negros. Veja-se que os recursos públicos para as campanhas são escassos e limitados. Isso significa que, ao destinar às candidaturas de mulheres recursos proporcionais aos patamares percentuais de suas candidaturas (inclusive em proporção superior à reserva legalmente estabelecida), esses recursos são naturalmente desviados das candidaturas dos homens. Ocorre, porém, que devido ao racismo estrutural e à marginalização histórica, são as candidaturas dos homens negros que tendem a ser desproporcionalmente afetadas com a diminuição dos recursos disponíveis.

49. Esse impacto desproporcional ilegítimo também é corroborado pelos dados estatísticos referentes às eleições de 2018 para a Câmara dos Deputados: os homens negros corresponderam a 26% das candidaturas, mas receberam apenas 16,6% dos recursos oriundos dos partidos. Por outro lado, candidaturas de homens brancos foram 43,1%, mas receberam 58,5% de todos os recursos. Diante da constatação de uma realidade de discriminação indireta semelhante àquela verificada em relação às mulheres negras, deve ser aplicável a mesma diretriz hermenêutica. Havendo o mesmo fundamento, aplica-se o mesmo direito. E isso também por uma questão de isonomia.

50. Portanto, apesar de responder negativamente à indagação a respeito da possibilidade de reservar, desde logo, 30% das candidaturas de cada partido a pessoas negras, nos mesmos termos da cota de gênero prevista no art. 10, § 3º, da Lei nº 9.504/1997, entendo ser possível responder positivamente às demais indagações, ainda que sem estabelecer o patamar mínimo de 30%, em vista da ausência de previsão legal. Desse modo, para mitigar o impacto desproporcional identificado, penso que se deve determinar o custeio proporcional das campanhas dos candidatos negros e assegurar tempo de propaganda eleitoral gratuita na rádio e na televisão proporcional às candidaturas de pessoas negras, na exata proporção do número de candidaturas.

51. Por fim, esclareço que a distribuição proporcional de recursos às candidaturas negras constitui o patamar mínimo de proteção a ser assegurado, desde já, às pessoas negras que concorram a cargos eletivos. Isso, é claro, não impede o diálogo com o Congresso na busca de soluções mais amplas e estruturais para solucionar o problema da sub-representação política das pessoas pretas e pardas no Brasil.

c) Exequibilidade imediata da decisão e parâmetros para cálculo e fiscalização da destinação de recursos a candidaturas de pessoas negras

52. É recomendável indicar, desde logo, a forma de execução da decisão, para que esteja clara para os partidos, candidatos e órgãos de fiscalização de contas da Justiça Eleitoral, caso prevaleça a resposta afirmativa à destinação proporcional de recursos públicos a candidaturas de pessoas negras.

53. Em primeiro lugar, entendo pela aplicabilidade imediata da resposta dada por esta Corte. Com efeito, esta Consulta deve seguir a mesma lógica da Consulta nº 0600252-18/DF, de Relatoria da Ministra Rosa Weber, j. em 22.05.2018, com a qual ela dialoga diretamente. Rememoro que, no precedente de relatoria da Ministra Rosa Weber, a resposta à consulta não apenas foi aplicada imediatamente às eleições de 2018, como também acarretou a alteração da regulamentação do financiamento por meio da Res.-TSE nº 23.575/2018 e da Res.-TSE nº 23.581/2018. Considerada, no entanto, a proximidade do início das campanhas, bem como a referida necessidade de clareza na execução do julgado, considero que a execução imediata do julgado deve ocorrer por meio de expedição de comunicação aos órgãos nacionais dos partidos, da qual conste os parâmetros de execução a seguir explicitados.

54. Em segundo lugar, os cálculos a serem efetuados devem considerar as premissas adotadas no presente voto: a destinação de recursos a pessoas negras deve ocorrer dentro da destinação de recursos por gênero, e não de forma global. Isso porque a evasão de investimento nas candidaturas de homens negros e o baixo investimento de recursos nas candidaturas de mulheres negras se verificou justamente a partir de desvios na aplicação prática da reserva de recursos para candidaturas femininas. Isso significa que, primeiramente, deve-se distribuir as candidaturas em dois grupos – homens e mulheres –, como já é feito atualmente para reserva de recursos para as candidaturas femininas. Na sequência, deve-se estabelecer o percentual de candidaturas de mulheres negras em relação ao total de candidaturas femininas, bem como o percentual de candidaturas de homens negros em relação ao total de candidaturas masculinas. Assim, do total de recursos destinados a cada gênero é que se separará a fatia mínima às pessoas negras desse gênero.

55. Em terceiro lugar, tal como já acontece com as candidaturas femininas, devem ser observadas as particularidades dos cálculos e da forma de fiscalização própria ao FEFC e ao Fundo Partidário, em razão da própria natureza desses fundos49. A seguir, explica-se cada uma das hipóteses.

c.1) Cálculo e forma de fiscalização da destinação de recursos do FEFC

56. A aplicação de recursos do FEFC em candidaturas femininas é calculada e fiscalizada em âmbito nacional. O cálculo do montante mínimo do FEFC já era realizado mediante as seguintes etapas: (i) afere-se o percentual nacional de candidaturas de cada gênero em cada partido, com base nos registros requeridos nas Eleições 2020; (ii) afere-se o percentual de candidaturas femininas utilizado para definir o montante mínimo do FEFC a ser aplicado pelo partido, em todo o país, nessas candidaturas; e (iii) feito esse cálculo, o diretório nacional pode distribuir os recursos de forma estratégica, observados os critérios enviados à Justiça Eleitoral para publicação (art. 6º da Res.-TSE nº 23.605/2019). A fiscalização da aplicação do percentual mínimo será realizada pelo TSE apenas no exame das prestações de contas do diretório nacional,.

57. Como se observa, o FEFC não está submetido a uma distribuição homogênea em todos os municípios brasileiros. Os partidos políticos são autorizados a fixar regras estratégicas para a distribuição desse fundo, inclusive levando em conta a viabilidade das candidaturas. Ocorre que deverão conciliar sua autonomia com a obrigação de destinação mínima de recursos a mulheres – e, agora, a mulheres negras e homens negros.

58. Para efetivar a destinação de recursos a serem aplicados pelo partido, em todo o país,  proporcionalmente às candidaturas de mulheres negras e de homens negros apresentadas nas Eleições 2020, respeitando-se primeiramente o recorte de gênero das candidaturas, basta realizar a complementação das etapas (i) e (ii), acima, conforme os trechos em itálico a seguir acrescidos: (i) afere-se o percentual nacional de cada gênero em cada partido, com base nos registros requeridos nas Eleições 2020, seguindo-se à aferição de mulheres negras, dentro do total de candidaturas femininas, e de homens negros, dentro do total de candidaturas masculinas; (ii) esses percentuais (mulheres, mulheres negras e homens negros) serão utilizados para definir o montante mínimo do FEFC a ser aplicado pelo partido, em todo o país: a) nas candidaturas femininas, observado, dentro deste grupo, o volume mínimo a ser aplicado a candidaturas de mulheres negras; b) nas candidaturas de homens negros. As demais etapas seguem o já indicado.

c.2) Cálculo e forma de fiscalização da destinação de recursos do Fundo Partidário

59. A aplicação de recursos do Fundo Partidário em candidaturas femininas é calculada e fiscalizada em cada esfera partidária48. As etapas do cálculo são as seguintes: (i) os diversos órgãos partidários recebem recursos do Fundo Partidário para sua manutenção e atividades, sendo apenas facultativa a aplicação em campanhas eleitorais; e (ii) decidindo investir recursos em campanhas, o órgão partidário deve destinar recursos proporcionalmente ao efetivo percentual das candidaturas femininas49. Já a fiscalização da aplicação do percentual mínimo será realizada no exame das prestações de contas de campanha de cada órgão partidário que tenha feito a doação.

60. Para aplicação da proposta que apresentei, o único ajuste se dará na seguinte etapa, conforme acréscimo em itálico a seguir: (ii) decidindo investir recursos em campanhas, o órgão partidário deve destinar recursos proporcionalmente ao efetivo percentual de a) candidaturas femininas, observado, dentro deste grupo, o volume mínimo a ser aplicado a candidaturas de mulheres negras; e b) candidaturas de homens negros.

V. Conclusão

61. Diante do exposto, o primeiro quesito deve ser respondido afirmativamente nos seguintes termos: os recursos públicos do Fundo Partidário e do FEFC e o tempo de rádio e TV destinados às candidaturas de mulheres, pela aplicação das decisões judiciais do STF na ADI nº 5.617/DF e do TSE na Consulta nº 0600252-18/DF, devem ser repartidos entre mulheres negras e brancas na exata proporção das candidaturas apresentadas pelas agremiações.

62. O segundo quesito é respondido de forma negativa, não se mostrando adequado o estabelecimento, por este Tribunal Superior Eleitoral, de política de reserva de candidaturas para pessoas negras no patamar de 30%.  O terceiro e o quarto quesitos, por sua vez, devem ser respondidos afirmativamente, nos seguintes termos: os recursos públicos do Fundo Partidário e do FEFC e o tempo de rádio e TV devem ser destinados ao custeio das candidaturas de homens negros na exata proporção das candidaturas apresentadas pelas agremiações.

63. Por fim, manifesto-me pela aplicabilidade imediata da resposta dada por esta Corte no presente feito, conforme precedente (Consulta nº 0600252-18/DF, de Relatoria da Ministra Rosa Weber, j. em 22.05.2018), e, considerada a proximidade do início das campanhas, bem como a referida necessidade de clareza na execução do julgado, determino a expedição de comunicação aos órgãos nacionais dos partidos, da qual constem os parâmetros de execução fixados a seguir:

i. O cálculo da aplicação de recursos do FEFC em candidaturas de mulheres negras e homens negros será realizado do seguinte modo: (i) afere-se o percentual nacional de candidaturas de cada gênero para cada partido, com base no total de pedidos de registro; (ii) afere-se o percentual de mulheres negras, dentro do total de candidaturas femininas, e de homens negros, dentro do total de candidaturas masculinas; (iii) esses percentuais (mulheres, mulheres negras e homens negros) serão utilizados para definir o montante mínimo do FEFC a ser aplicado pelo partido, em todo o país: a) nas candidaturas femininas, observado, dentro deste grupo, o montante mínimo a ser aplicado a candidaturas de mulheres negras; b) nas candidaturas de homens negros. A fiscalização da aplicação dos percentuais mínimos será realizada pelo TSE apenas no exame das prestações de contas do diretório nacional.

ii. O cálculo e a fiscalização da aplicação de recursos do Fundo Partidário em candidaturas de mulheres negras e de homens negros será realizado do seguinte modo: (i) havendo aplicação de recursos do Fundo Partidário em campanhas, o órgão partidário doador, de qualquer esfera, deverá destinar os recursos proporcionalmente ao efetivo percentual de a) candidaturas femininas, observado, dentro deste grupo, o volume mínimo a ser aplicado a candidaturas de mulheres negras; e b) candidaturas de homens negros; (ii) e a proporcionalidade será aferida com base nas candidaturas apresentadas no âmbito territorial do órgão partidário doador. A fiscalização da aplicação do percentual mínimo será realizada no exame das prestações de contas de campanha de cada órgão partidário que tenha feito a doação.

iii. Em ambos os casos – FEFC e Fundo Partidário –, os percentuais de candidatas negras e de candidatos negros serão definidos, a cada eleição, com base na autodeclaração da cor preta e da cor parda, lançada no formulário do registro de candidatura.

iv. Os critérios para a distribuição do FEFC, enviados pelos partidos políticos à Justiça Eleitoral para publicação, deverão ser compatibilizados com a destinação mínima de recursos em candidaturas de pessoas negras, nos termos ora fixados, sendo desnecessária a edição de ato complementar.

64. É como voto.

 

4 Art. 23. Compete, ainda, privativamente, ao Tribunal Superior: (...) XII – responder, sobre matéria eleitoral, às consultas que lhe forem feitas em tese por autoridade com jurisdição federal ou órgão nacional de partido político;

5 “Art. 5º Não se aplica aos feitos eleitorais o instituto do Amicus Curiae de que trata o art. 138 da Lei nº 13.105, de 2015”.

6 Registra-se que, sem desconhecer as controvérsias a respeito do tema, optou-se aqui por utilizar os critérios do IBGE, considerando negros os pretos e os pardos. Nesse sentido: https://www.geledes.org.br/entenda-as-diferencas-entre-preto-pardo-e-negro/.

7 Os dados do IBGE e do Atlas da Violência aqui mencionados foram compilados por Nathália Afonso na reportagem “Dia da Consciência Negra: números expõem desigualdade racial no Brasil”, da Agência Lupa, publicada em 20.11.2019 e disponível em https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2019/11/20/consciencia-negra-numeros-brasil/.

8 Stokely Carmichael e Charles Hamilton, Black Power: the politics of liberation, 1967; Michel Wieviorka, O racismo, uma introducao, 2007.

9 Silvio Luiz de Almeida. Racismo estrutural. Coleção feminismos plurais. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. Posição 125 de 2930.

10 Adilson José Moreira. O que é discriminação? Belo Horizonte: Letramento, 2017.

11 Adilson José Moreira. Miscigenando o círculo do poder: ações afirmativas, diversidade racial e sociedade democrática. In Revista da Faculdade de Direito – UFPR, Curitiba, vol. 61, n. 2, maio/ago. 2016, p. 117 – 148

12 Dados extraídos de: http://www.tse.jus.br/eleicoes/estatisticas/estatisticas-eleitorais

13 Baixa representação de negros na política deve ser mantida nas eleições deste ano. Notícia. Câmara dos deputados. 02.10.2018. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/545514-baixa-representacao-de-negros-na-politica-deve-ser-mantida-nas-eleicoes-deste-ano/.

14 Maioria na população, negros somam apenas 29% dos prefeitos eleitos. UOL. 07.10.2016. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/eleicoes/2016/noticias/2016/10/07/maioria-na-populacao-negros-somam-apenas-29-dos-prefeitos-eleitos.htm

15 Frase extraída da reportagem “A sub-representação dos negros na política brasileira” publicada na Deutsche Welle em 29.09.2017. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/a-sub-representa%C3%A7%C3%A3o-dos-negros-na-pol%C3%ADtica-brasileira/a-40747414.

Osmar Teixeira e Kabengele Munanga (Orientador). Direitos políticos e representatividade da população negra na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo e Câmara Municipal de São Paulo 2017. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.

16 Rayanderson Guerra. País elegeu apenas 4% de parlamentares negros. O Globo. 20.11.2018. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/pais-elegeu-apenas-4-de-parlamentares-negros-23246278.

17 Catarina Helena Cortada Barbieri, Luciana de Oliveira Ramos (coords.), Democracia e Representação nas Eleições de 2018: campanhas eleitorais, financiamento e diversidade de gênero: Relatório Final (2018-2019). São Paulo: FGV Direito SP, em parceria com o Centro de Economia e Política do Setor Público (FGV CEPESP), 2019.

18 Id. p. 67-69.

19 Id. p. 76.

20 Camila Zarur e João Paulo Saconi. Candidatos negros têm menos verbas dos partidos nas eleições. Jornal “O Globo” de 1.12.2019. Disponível em https://oglobo.globo.com/brasil/candidatos-negros-tem-menos-verbas-dos-partidos-nas-eleicoes-24111170.

21 Daniel Bramatti, Rodrigo Burgarelli, Leonardo Augusto. Apenas brancos disputam em 45%

das cidades do País. O Estado de S.Paulo. 18.09.2016. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,apenas-brancos-disputam-em-45-das-cidades-do-pais,10000076642.

22 Ângela Boldrini. Bancada negra no Congresso é sub-representada em postos de comando. Publicado na Folha de São Paulo de 16. 11. 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/11/bancada-negra-no-congresso-e-sub-representada-em-postos-de-comando.shtml?origin=folha.

23 Ângela Boldrini. Bancada negra no Congresso é sub-representada em postos de comando. Publicado na Folha de São Paulo de 16. 11. 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/11/bancada-negra-no-congresso-e-sub-representada-em-postos-de-comando.shtml?origin=folha.

24 Rachel Meneguello, Bruno Wilhelm Speck, Teresa Sacchet, Maíra Kubik Mano, Fernando Henrique dos Santos e Caroline Gorski. Mulheres e Negros na Política: estudo exploratório sobre o desempenho eleitoral em quatro estados brasileiros. Campinas, SP: UNICAMP/CESOP, 2012.

25 Ronald Dworkin, Taking rights seriously, 1997, p. 181. A primeira edição é de 1977.

26 CF/1988, art. 5º, XLII: “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”.

27 Joaquim Barbosa Gomes, Ações afirmativas e o princípio constitucional da igualdade, 2001, p. 41.

28 Adilson Moreira, Miscigenando o círculo de poder [...]; e Silvio Almeida, Racismo estrutural.

29 Adilson José Moreira. Miscigenando o círculo do poder [...]. p. 120 e 129.

30 Maíra Kubick Taveira Mano. Legislar sobre “mulheres”: relações de poder na Câmara Federal. Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do Título de Doutora em Ciências Sociais. Campinas: UNICAMP, 2015..

31 Adilson José Moreira. Miscigenando o círculo do poder: [...]. p. 22..

32 Silvio Luiz de Almeida. Racismo estrutural. Coleção feminismos plurais. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. Posição 1059 de 2930.

33 Ver: Wallace Corbo, Eduardo Adami, O supremo problema racial, Jota, 29.06.2020, Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-supremo-problema-racial-29062020.

34 Sobre o tema, cf. NOWAK, John E. e ROTUNDA, Ronald D. Constitutional law. 5 ed. Saint Paul: West Publishing Co, 1995; SARMENTO, Daniel. A igualdade étnico-racial no Direito Constitucional Brasileiro: discriminacao “de facto”, teoria do impacto proporcional e ação afirmativa. In. Livres e Iguais: estudos de direito constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006; GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade: o Direito como instrumento de transformação social. A experiência dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. 

35 Djamila Ribeiro. Pequeno Manual Antirracista. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

36 Betina Fontana Piovesan. Mulheres no poder legislativo: possibilidades de ressignificação através da teoria político-feminista do cuidado. In: Resenha eleitoral. Vol. 23. Nº 1. 2019. Florianópolis: TRE/SC.

37 Olivia Vilas Boas da Paixão; Leonardo Custódio da Silva Júnior; Vanessa Lemgruber. Quem são elas para dizer o que se passou no corpo delas? In: Mulheres na sociedade: desafios para a visibilidade feminina.(Orgs: Daniela Tiffany Prado de Carvalho; Elisa Maria Taborda da Silva; Polianna Pereira dos Santos). Belo Horizonte. D’Plácido, 2018. p. 136.

38 Soujouner Truth. E não sou uma mulher? Tradução de Osmundo Pinho, disponível no Portal Geledés. Disponível em: https://www.geledes.org.br/e-nao-sou-uma-mulher-sojourner-truth/.

39 Kimberlé Crenshaw, Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics. In: University of Chicago Legal Forum, 1989.

40 Sueli Careneio. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na américa latina a partir de uma perspectiva de gênero.

41 Olivia Vilas Boas da Paixão; Leonardo Custódio da Silva Júnior; Vanessa Lemgruber. Quem são elas para dizer o que se passou no corpo delas? In: Mulheres na sociedade: desafios para a visibilidade feminina.(Orgs: Daniela Tiffany Prado de Carvalho; Elisa Maria Taborda da Silva; Polianna Pereira dos Santos). Belo Horizonte. D’Plácido, 2018. p. 136

42 Agora é que São Elas. “Um ano sem Marielle” – Entrevista Exclusiva. Disponível no canal de Youtube “Agora é que São Elas”.

43 Wallace Corbo, Discriminação indireta: Conceito, fundamentos e uma proposta de enfrentamento a luz da Constituicao de 1988, 2017.

44 Baixa representação de negros na política deve ser mantida nas eleições deste ano. Notícia. Câmara dos deputados. 02.10.2018. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/545514-baixa-representacao-de-negros-na-politica-deve-ser-mantida-nas-eleicoes-deste-ano/.

45 Luigi Mazza. Mulher negra (não tão) presente. Revista Piauí. 12.12.2018. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/mulher-negra-nao-tao-presente/.

46 Essa ideia é mais bem explorada no texto “Contramajoritário,           Representativo e Iluminista: Os papeis dos  tribunais          constitucionais nas     democracias    contemporâneas” publicado na revista Direito e Práxis e disponível em: http://luisrobertobarroso.com.br/wp-content/uploads/2016/06/Dignidade_texto-base_11dez2010.pdf.
47 Vide documento "Procedimentos Técnicos de Exame - Justiça Eleitoral - Prestação de Contas - Eleições 2018". Item 7: Exame de Regularidade de Despesas Realizadas com Recursos do Fundo Partidário; Item 8: Exame de Regularidade de Despesas Realizadas com Recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha.
48 Res.-TSE n° 23.607/2019, art. 19, § 3º Os partidos políticos, em cada esfera, devem destinar ao financiamento de campanhas de suas candidatas no mínimo 30% dos gastos totais contratados nas campanhas eleitorais com recursos do Fundo Partidário, incluídos nesse valor os recursos a que se refere o inciso V do art. 44 da Lei nº 9.096/1995  (Lei nº 13.165/2015, art. 9º).
49 § 4º Havendo percentual mais elevado de candidaturas femininas, o mínimo de recursos globais do Fundo Partidário destinados a campanhas deve ser aplicado no financiamento das campanhas de candidatas na mesma proporção.

 

VOTO

 

O SENHOR MINISTRO EDSON FACHIN: Senhor Presidente, eminentes Ministros, principio a declaração de voto, que vou sumariar e juntarei aos autos. E, aqui, nada obstante, almejo dela apresentar o núcleo fundamental de argumentação.

Trata-se de consulta formulada pela Deputada Federal Benedita Souza da Silva Sampaio, com suporte da associação EDUCAFRO – Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes, acerca da participação política da mulher negra e dos negros em geral, em que se questionou, como sintetiza o Min. Relator em seu voto, “se (i) os recursos financeiros e o tempo de rádio e TV destinados às candidaturas de mulheres, em razão das cotas de gênero, devem ser repartidos entre mulheres negras e brancas, de acordo com o percentual de 50% para cada grupo, dada a distribuição demográfica brasileira; e (ii) deve haver reserva de 30% das candidaturas de cada partido a pessoas negras, nos mesmos termos da cota de gênero prevista no art. 10, § 3º, da Lei nº 9.504/1997, com a consequente destinação proporcional do Fundo Especial de Financiamento de Campanha e do tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão para candidaturas de pessoas negras”.

O ilustre Ministro Relator conhece da consulta formulada, na linha do precedente de relatoria da Ministra Rosa Weber (Cta nº 0600252-18.2018.6.00.0000), sob o entendimento – ao qual subscrevo – de que “cabe à Justiça Eleitoral apreciar, no exercício de sua função consultiva, temáticas que digam respeito à garantia de igualdade material entre as candidaturas”.

Principio enaltecendo a lucidez, a sensibilidade de Vossa Excelência, que vem de proferir um voto que tem um sentido histórico e de uma fundamentação jurídico-normativa inabalável e traduz, ao mesmo tempo, seu alcance e impacto na sociedade que reverbera na manifestação de associações e movimentos representativos de direitos e interesses da população negra, como o Movimento Negro Unificado, que pleiteou sua admissão como amicus curiae, a rede de Mulheres Negras do Paraná e a Associação Quilombola e Afrodescendentes da Restinga, que ofereceram memoriais, somando informações e dados relevantíssimos para a compreensão do feito, bem assim pontuando sobre a essencialidade de ações em prol do aumento da participação da mulher negra na política, da ocupação de espaços de poder e da promoção do princípio da igualdade.

Vossa Excelência, Ministro Luís Roberto Barroso, principia seu voto com ousio que lhe caracteriza no exercício da jurisdição, com afirmações importantes, ainda que desconfortantes. Disse Vossa Excelência: “O Brasil é um país racista. Somos uma sociedade racista (...) não é confortável reconhecer esse fato, mas é preciso fazê-lo”. Exatamente, Senhor Presidente. A declaração, que subscrevo às inteiras, faz-me rememorar a lição da autora Robin Diangelo, autora da aclamada obra “White fragility”, que ao acrescentar uma introdução à edição brasileira de seu livro, intitulado “Não basta não ser racista: sejamos antirracistas”, pontuou, e cito. Disse Robin Diangelo: “Embora as histórias variem entre países, o resultado é consistente: existe uma vantagem institucionalizada dos brancos, e ao mesmo tempo, uma fragilidade desses quando a sua superioridade e vantagens são questionadas”. A autora ainda completa:

“[...] o racismo realmente existe no Brasil e você foi necessariamente moldado pelas forças que ele exerce. Não estar ciente de como o racismo opera no seu contexto não significa que o racismo não exista. Basta ver os números da desigualdade racial, salários, acesso a posições de comando, presença em lugares sofisticados....” (DIANGELO, Robin J. Não Basta não ser racista: sejamos antirracistas. São Paulo: Faro Editora, 2018. p. 11/12)

Portanto, parece-me oportuno iniciar uma reflexão. Decidir também é refletir e ponderar, num processo progressivo e contínuo de reflexão, como fez o eminente Ministro Barroso em seu brilhante voto, com o reconhecimento da relevância da discussão do tema, que se perfaz no âmbito de uma instituição que é, e também é preciso que se diga, como todas são no Brasil, estruturadas a partir da lógica da branquitude. Reconhecer a necessidade premente de desobstaculizar o acesso da população negra aos espaços de poder, às instituições públicas e privadas, é medida que se impõe.

A tese de doutoramento de Osmar Teixeira Gaspar, referenciada no voto de Vossa Excelência, Ministro Barroso, nos traz dados e nos mune de informações essenciais para compreender o aspecto estrutural do racismo que opera para dificultar o acesso da população negra às esferas públicas e à política institucional (Osmar Teixeira e Kabengele Munanga (Orientador). Direitos políticos e representatividade da população negra na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo e Câmara Municipal de São Paulo 2017. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017).

Nessa matéria, Boaventura de Sousa Santos, que defende, como sabemos, a concepção de democracia como uma nova gramática social, que o não reconhecimento da diferença arrosta o “metadireito que subjaz a uma concepção contra-hegemônica de democracia”. Disse o festejado Professor Boaventura de Sousa Santos na sua análise e estudo:  “temos o direito de ser iguais quando a diferença nos inferioriza; temos o direito de ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza” (SANTOS, Boaventura, de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 48, 1997. 30).

É nessa linha que também me permito citar Rita Laura Segato, no seu estudo sobre gênero e colonialidade, que, a partir de uma perspectiva da inter-historicidade, permite a leitura de povo –  são suas palavras –  como “um projeto de ser uma história”, e ali se busca, como diz a autora Rita Laura Segato, reconhecer e afastar a noção de “sujeito cidadão universal”, aquele “que formulou a regra da cidadania à sua imagem e semelhança, porque a originou a partir de uma exterioridade plasmada no primeiro processo bélico e imediatamente ideológico que instalou a episteme colonial e moderna”. E disse ela, com acerto acutíssimo e também ácido, como necessário há de ser, é “homem, é branco, é pater familiae – portanto, é funcionalmente heterossexual –, é proprietário, e é letrado”, o que dificulta e muitas vezes impede – ou se não de forma direta na atualidade, historicamente já impediu o exercício da capacidade cidadã daqueles que não se equiparam ao “sujeito cidadão universal”, nomeadamente numa sociedade de exclusão da negativa do direito, a ter direitos, como garantidos no caput do art. 5o da Constituição Brasileira. (SEGATO, Rita Laura. Gênero e colonialidade: em busca de chaves de leitura e de um vocabulário estratégico descolonial. E-cadernos ces, n. 18, 2012. p. 112; 123)

Assim, Senhor Presidente, eminente Ministro Relator, entendo, tal como Vossa Excelência, ser necessário e oportuno problematizar essa concepção de cidadania que tem sido utilizada como parâmetro para o exercício dos direitos políticos fundamentais, e todo regramento constitucional e infraconstitucional que lhe dá respaldo. Para tanto, a questão da racialidade, escreveu Denise Ferreira da Silva, como “significante sociológico da diferença humana” não pode ser ignorada. (SILVA, Denise Ferreira da. Ninguém: direito, racialidade e violência. Meritum, Revista de Direito da Universidade FUMEC, v. 9, n. 1, 2014, p. 81). Denise Ferreira da Silva, propõe, ademais, a “leitura da diferença racial e cultural como significantes políticos, momentos de uso do poder na designação dos modos de ser humano – ou seja, na própria formulação da noção de humanidade” (idem, p. 81).

E é assim que o voto de Vossa Excelência, Ministro Luís Roberto Barroso, reforça a perspectiva de que a Constituição de 1988 marca a institucionalização dos direitos humanos no Brasil, perspectiva essa que se insere no contexto de reconhecimento da igualdade de gênero e igualdade racial como elementos essenciais para uma sociedade democrática. Por isso, ações em prol da igualdade racial e de gênero devem ser respeitadas e buscadas como um fim preconizado pela ordem constitucional vigente.

Assim, e como bem pontua o eminente Min. Relator em seu voto, o imperativo constitucional da igualdade preconizado na Constituição da República é densificado pela Lei nº 12.288/2010, que institui o Estatuto da Igualdade Racial. Ademais, a igualdade é elemento basilar do princípio democrático.

E eu recordo, o que é muito caro a todos nós, aqui no Tribunal Superior Eleitoral, a análise que foi elaborada pelo nosso Grupo de Trabalho, instituído no âmbito deste Tribunal, com o qual concorreram inúmeros Ministros, servidores, técnicos, mentes e corações da Justiça Eleitoral, da comunidade jurídica, da comunidade interessada sobre a Sistematização das Normas Eleitorais, o Eixo Temático VII, Participação das Minorias Políticas no Processo Eleitoral, coordenado pela Profa. Lara Marina Ferreira na Sistematização das Normas Eleitorais (Brasil. Tribunal Superior Eleitoral. Sistematização  das  normas  eleitorais  [recurso  eletrônico]:  eixo  temático  VII:  participação  das  minorias  no  processo  eleitoral  / Tribunal Superior Eleitoral. – Brasília: Tribunal Superior Eleitoral, 2019. 144 p. – (Coleção SNE; 8) pag. 122),e, notemos, ao apresentar o diagnóstico inicial do art. 93-A da Lei 9504/97, o grupo do Eixo Témático VII assentou, o que é de abismar:

Dispositivo indica necessidade de incentivar a participação de mulheres, de jovens e de negros na política; entretanto, não faz referência a outras categorias: pessoas trans, indígenas, pessoas com deficiência, etc.

Matéria não regulamentada em resolução.

E agora a referência que me permito sublinhar:

Única referência legal encontrada sobre participação de negros na política

E, portanto, afirmo e marcho para essa conclusão, Senhor Presidente, permitindo-me alongar-me um pouco pela relevância do tema, conquanto sejam essenciais a inclusão e o respeito à igualdade no contexto e na perspectiva democrática, o levantamento empreendido pelo trabalho, pela Sistematização das Normas Eleitorais, mostra-nos a ausência e insuficiente regulamentação específica sobre a participação da população negra na política.

Sobre esse silêncio retumbante, cabe referenciar texto de autoria de Deivide Julio Ribeiro e Maria Fernanda Salcedo Repolês, que assim se pronunciaram:

"Se constitucionalismo é disputa e tem como primado a universalidade direitos para todas as pessoas, ignorar as constantes disputas de pessoas em estado de vulnerabilidade social [...] é uma leitura parcial desta sociedade. Qualquer projeto constitucional que se pretenda democrático, mas que lançam estas tensões para a clandestinidade da memória nacional, estará fadado a reproduzir e dar manutenção ao que sempre foi destinado para as reivindicações das pessoas negras: o silêncio. E isso em um país, por exemplo como o Brasil, marcado desde seu nascimento com a pecha da escravidão, não é esquecimento: é uma escolha." (Revolução Haitiana e Memória Subterrânea do Constitucionalismo. Congresso 30 Anos, e Agora? Direito e Política nos Horizontes da República de 1988 – Homenagem a Juarez Guimarães, no prelo)

Pois bem.

Arremato dizendo que a consulta formula, baseada nas diferenças socioestruturais e no racismo existente em nossa sociedade, que reduziu ao estatuto de objeto pessoas, ao estatuto, portanto, de objeto de titularidade ou propriedade como antes referi, o primeiro questionamento sobre a distribuição dos recursos financeiros e tempo em rádio e TV, já concedido às mulheres na Consulta 0600252-18.2018.6.00.0000, também referenciada pelo Senhor Presidente, vem ao encontro da proposta de repartição dos recursos entre as mulheres brancas e negras.

Assim, como fez Carole Pateman, reconhecendo “as estruturas sexuais e raciais de poder [que] obstruem de forma sistemática a cidadania formal das mulheres” (PATEMAN, Carole. Garantir a cidadania das mulheres: a indiferença e outros obstáculos. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 89, p. 29-40, 2010, p. 30), verifico ser essencial respeitar a distribuição dos recursos entre as candidatas mulheres brancas e as mulheres negras.

Com relação ao segundo questionamento, sobre a criação de reserva de candidaturas para pessoas negras, reconheço, tal como fez o eminente Ministro Luís Roberto Barroso, a necessidade, importância e urgência da temática. Nada obstante, na linha do voto do eminente Min. Relator, identifico, ao menos em parte, no âmbito da via da prestação jurisdicional, no contexto de uma consulta, óbice para o estabelecimento, ao menos por ora, de ação afirmativa de reserva de candidaturas para pessoas negras.

Tal compreensão, todavia, não revela impossibilidade da interpretação normativa vigente no sentido de estabelecer a observância ao percentual de candidaturas apresentadas pelas agremiações no custeio das candidaturas de homens negros, que está abarcada no terceiro e no quarto questionamentos.

Isso posto, e com esse fundamento, acompanhando o voto do eminente Ministro Relator,  subscrevendo às inteiras o sentido e o alcance do voto de Sua Excelência o Ministro Luís Roberto Barroso, para responder afirmativamente à primeira, à terceira e à quarta perguntas e negativamente à segunda pergunta.

É como voto.

 

PEDIDO DE VISTA

 

O SENHOR MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES: Boa noite, Presidente; boa noite, Ministros; boa noite, Vice-Procurador-Geral Eleitoral, Doutor Renato Brill, ao Diretor-Geral, Doutor Rui.

Eu inicio, assim como o Ministro Fachin, cumprimentando Vossa Excelência, Presidente, pelo voto, pela sabedoria do voto, pelas afirmações, e não há dúvidas de que isso é crucial para que o país supere os seus problemas, os seus traumas, as suas discriminações, as suas diferenciações. Não há dúvida de que o primeiro passo importante para isso é assumir os problemas. O Brasil tem um racismo estrutural gigantesco. Nós verificamos isso a partir de algumas frases populares que, ao tentar negar o racismo, acabam confirmando. As pessoas citam frases: “no Brasil, não existe racismo”, “eu até tenho amigos negros”, “eu até… não sei o quê”. Essas frases demonstram um racismo estrutural, que tem reflexos nefastos em toda a sociedade, inclusive na política.

Agora, Presidente, já adianto que irei pedir vista.

Presidente, aqui a minha preocupação é que eventuais medidas reforcem o racismo na política  e digo como quem participou ativamente da política no Brasil , em virtude da diferenciação entre as razões que levaram o TSE e o Supremo Tribunal Federal, e eu tive a possibilidade, no Supremo, de votar a favor da tese, em ação direta de inconstitucionalidade: 30% tanto do Fundo Partidário quanto do direito de arena às mulheres. As razões que lá foram colocadas impediam, inclusive por expressa previsão legislativa, que houvesse, digamos assim, uma retaliação discriminatória por parte de partidos políticos.

Por que digo isso? Todos sabemos que a distribuição de tempo partidário  do direito de arena: tempo de televisão/rádio , a distribuição do Fundo Partidário se dá por uma série de critérios, alguns mais objetivos, outros absolutamente subjetivos; mas se dá pela potencialidade de votos, aquele que tem mais chances de votos, que tradicionalmente tem mais voto, tem mais destinação de Fundo Partidário, tem mais tempo de televisão, até porque, num sistema de lista aberta, ele é um puxador de voto para os demais.

Então, há isso. Aquele que já tem um mandato eletivo, ele também tem, tradicionalmente, nos partidos, mais tempo de televisão, mais tempo de rádio, mais Fundo Partidário; porque ele que contribuiu, com o seu mandato, para parcela de Fundo Partidário e direito de arena que tem determinado partido. Então, uma série de critérios.

No momento em que se fixou corretamente os 30% (trinta por cento) para as mulheres, em razão de a legislação estabelecer 30% (trinta por cento) das candidaturas femininas, não seria possível, como não foi  como eu disse , “uma retaliação” partidária, ou seja, “ah, eu tenho que dar 30% (trinta por cento) para as mulheres, então eu vou passar a admitir menos mulheres candidatas.” Não é possível, porque existe a obrigatoriedade de 30% (trinta por cento), o que não existe em relação à presente consulta.

Então, o critério que Vossa Excelência colocou, absolutamente lógico, que valeria  como Vossa Excelência concluiu  tanto para os 30% (trinta por cento) quanto para os 70% (setenta por cento); tanto para os 30% de candidaturas de mulheres negras quanto para os 70% (setenta por cento) de candidaturas de homens negros.

Agora, por não existir o mínimo legal, uma estipulação mínima legal de candidaturas seja de mulheres negras, seja de homens negros, em tese, haveria a possibilidade de retaliação partidária de não admitir mais candidaturas. “Ah, eu quero repartir diferente; eu quero destinar para cá ou para lá”. Então, eu passo a não admitir candidatos negros. Poderia se perguntar  como eu iniciei, dizendo  “ah, mas em relação às mulheres?” Em relação às mulheres, não é possível. Porque não só a lei estabelece 30% (trinta por cento) como a Justiça Eleitoral não admite compensação: “ah, só conseguiu 20% (vinte por cento) de mulheres candidatas. Os outros 10% (dez por cento) podem ser homens?”. Não.

Agora, em relação a candidaturas de homens negros ou mulheres negras, isso é absolutamente discricionário, por parte do partido. Então, me parece aqui, e é a minha dúvida a pedir vista, uma análise, para verificar algum mecanismo a impedir isso. A impedir que... para que não tenha que destinar percentualmente os Fundos Partidários, os partidos comecem, eventualmente, a fazer um filtro partidário entre candidaturas de homens e mulheres brancos e homens e mulheres negras, o que poderia, eventualmente, acabar ampliando esse racismo estrutural, difícil de ser combatido, e que, já no século XXI, estamos a combater.

Então, em virtude dessa questão, Presidente, exatamente da diferenciação entre a previsão legal, e aí uma proteção maior contra essa, em tese, possibilidade de retaliação partidária das candidaturas femininas, em relação a essa diferenciação com as candidaturas de homens e mulheres negras, eu peço vista.

O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO (relator): Ok. Pede vista o Ministro Alexandre de Moraes. Apenas para a reflexão que vai fazer, Ministro Alexandre, que é sempre, evidentemente, oportuna.

Em algum momento você tem que quebrar o ciclo. Quer dizer, o sujeito que tem o mandato, o sujeito que tem mais chances de ganhar, na tradição, é o homem branco. Portanto, para você fazer um movimento contracíclico, você tem que dar essa vantagem competitiva.

E acho que o partido que adotar uma prática discriminatória fundada nesse temor, que eu bem entendo, que Vossa Excelência verbaliza vai ter o ônus político de ser um partido racista e as pessoas negras vão para o outro lado e com a denúncia grave de mais um caso de discriminação.

É sempre muito difícil quebrar o status quo, mas eu também não imaginaria não dar um direito, que nós consideramos legítimo, pelo temor de que os outros vão tentar tirar esse direito. Mas nós vamos ouvi-lo – Vossa Excelência sempre traz contribuição valiosa, de um constitucionalista criativo –, e quem sabe construamos alguma ainda coisa melhor do que fui capaz de propor.

 

EXTRATO DA ATA

 

Cta nº 0600306-47.2019.6.00.0000/DF. Relator: Ministro Luís Roberto Barroso. Consulente: Benedita Souza da Silva Sampaio (Advogados: Irapuã Santana do Nascimento da Silva – OAB: 341538/SP e outra).

Decisão: Após o voto do relator, respondendo afirmativamente quanto ao primeiro, terceiro e quarto quesitos, e negativamente quanto ao segundo, nos termos e fundamentos constantes do voto, no que foi acompanhado pelo Ministro Edson Fachin, pediu vista o Ministro Alexandre de Moraes.

Aguardam os Ministros Og Fernandes, Luis Felipe Salomão, Tarcisio Vieira de Carvalho Neto e Sérgio Banhos.

Composição: Ministros Luís Roberto Barroso (presidente), Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Og Fernandes, Luis Felipe Salomão, Tarcisio Vieira de Carvalho Neto e Sérgio Banhos.

Vice-Procurador-Geral Eleitoral: Renato Brill de Góes.

SESSÃO DE 30.6.2020.

 

REGISTRO

 

O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO (presidente): A questão central é a seguinte:

Consulta a respeito da possibilidade de:

I - Garantir às candidatas negras percentual dos recursos financeiros e do tempo em rádio e TV destinados às candidaturas femininas no montante de 50%, dada a distribuição demográfica brasileira;

II - Instituir reserva de 30% das candidaturas de cada partido a pessoas negras, nos termos da cota de gênero prevista na Lei nº 9.504/97;

III - Determinar o custeio proporcional das campanhas dos candidatos negros, destinando-se a estes, no mínimo, 30% do total do FEFC e;

IV - Assegurar tempo de propaganda eleitoral gratuita na rádio e na televisão proporcional às candidaturas de pessoas negras, respeitando-se o mínimo de 30%.

O histórico do julgamento é o seguinte: na sessão de 30 de junho de 2020, após o meu voto respondendo afirmativamente ao primeiro, terceiro e quarto quesitos e negativamente ao segundo, nos termos ali expostos, no que fui acompanhado pelo Ministro Edson Fachin, pediu vista o Ministro Alexandre de Moraes.

Registro brevemente, nesse ponto, a subsequente apresentação de manifestações por parte da Coalizão Negra por Direitos, que articula 150 organizações, coletivos e entidades do Movimento Negro e Antirracista e da Bancada do Partido Socialismo e Liberdade na Câmara dos Deputados, das quais foi dado conhecimento aos eminentes Ministros.

Concedo a palavra ao Ministro Alexandre de Moraes.

 

 

VOTO-VISTA

 

O SENHOR MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES: Senhor Presidente, trata-se de Consulta formulada pela Deputada Federal Benedita Souza da Silva Sampaio sobre a possibilidade de reserva de vagas e distribuição proporcional do Fundo Partidário, Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) e do tempo de propaganda eleitoral para candidaturas de mulheres negras e de negros em geral, nos seguintes termos:

"a) As formas de distribuição dos recursos financeiros e tempo em rádio e TV, já concedido às mulheres na Consulta 0600252-18.2018.6.00.0000, deverão ser na ordem de 50% para as mulheres brancas e outros 50% para as mulheres negras, conforme a distribuição demográfica brasileira? Motivo? Vários! Entre eles: Deputados e Senadores com seus sobrenomes consolidados estão trazendo suas mulheres, filhas e outras da família com o mesmo sobrenome para terem acesso a este dinheiro, exclusivo para mulheres. Sendo membros das famílias destes tradicionais Deputados e Senadores, este dinheiro corre o perigo de ser desviado, não chegando às mulheres negras que estão fora deste círculo de poder.

b) É possível haver reserva de vagas nos partidos políticos para candidatos negros, nos mesmos termos do que ocorreu com as mulheres? Motivo? Vários! Entre eles: conforme mostrado no texto acima, mesmo tendo um número razoável de candidatos homens negros, por causa da discriminação institucional, poucos candidatos negros são, de fato, eleitos.

c) É possível aplicar o entendimento dos precedentes supra para determinar o custeio proporcional das campanhas dos candidatos negros, destinando 30% como percentual mínimo, para a distribuição do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, previsto nos artigos 16-C e 16-D, da Lei das Eleições, conforme esta Corte entendeu para a promoção da participação feminina?

d) É possível aplicar o precedente, também quanto à distribuição do tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão para os NEGROS, prevista nos artigos 47 e seguintes, da Lei das Eleições, devendo-se equiparar o mínimo de tempo destinado a cada partido, conforme esta Corte entendeu para a promoção da participação feminina?"

A Consulente aponta a ocorrência da sub-representatividade dos candidatos negros nas eleições, que, segundo explica, decorre da discrepância entre a renda média de negros e brancos, e, ainda, do racismo cultural, gerador de filtro racial que dificulta o acesso de negros aos cargos eletivos, sobretudo aos de maior relevo.

Traça um paralelo entre o presente caso e as decisões proferidas pelo SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – ADI 5.617 (Rel. Min. EDSON FACHIN) – e por esta Corte Superior – Consulta 0600252-18.2018.6.00.0000 (Rel. Min. ROSA WEBER) –, ambas envolvendo ações afirmativas relacionadas à participação feminina no cenário político-eleitoral, asseverando a importância do instituto da representatividade nas demandas da população, das quais, consoante defende, a parcela negra dos brasileiros não poderia ser excluída. Defende que a presente Consulta merece o mesmo direcionamento jurídico dado nos mencionados precedentes, “haja vista a identidade do pano de fundo envolvendo os casos: a proteção e promoção das minorias sub-representadas politicamente”.

A partir de dados do IBGE, narra a situação de desigualdade vivenciada pela mulher negra no país em termos educacionais, no mercado de trabalho e na exposição à violência, concluindo que “extirpar tamanha injustiça social é um dever de todos nós”. Por fim, assevera a possibilidade de incentivo estatal às candidaturas dos negros em geral com amparo nos arts. 2º, 4º e 39 do Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/2010), considerando novamente a realidade desigual enfrentada por essa população, em especial quanto ao rendimento mensal, às taxas de analfabetismo, aos índices da população carcerária, todos obstáculos à participação democrática dos negros.

A Consulta foi inicialmente distribuída ao eminente Ministro FACHIN, que a remeteu à Presidência (ID 22530638) para análise de suposta prevenção do Ministro LUIS ROBERTO BARROSO em razão de outra que lhe havia sido direcionada, mas que fora extinta sem o julgamento do mérito (Cta 0600587-37.2018.6.00.0000). Ao examinar a questão, a eminente Ministra ROSA WEBER, no exercício da Presidência, acatou a prevenção e determinou a redistribuição do processo (ID 24715838).

A Assessoria Consultiva opinou pela resposta negativa a todos os questionamentos, ante a necessidade de observância do devido processo legislativo para viabilizar as pretensões (ID 21912388).

O Vice-Procurador-Geral Eleitoral ofertou parecer, manifestando-se pela “resposta negativa a todos os quesitos da consulta, por ausência de previsão legal, mantendo-se legítima, contudo, a opção de determinada agremiação partidária, no exercício de sua autonomia, por fixar critérios de reserva de vagas e recursos financeiros para candidatas e candidatos negros”.

O Movimento Negro Unificado pleiteou a sua admissão, na qualidade de amicus curiae (ID 34678938), o que foi indeferido pelo eminente Relator com base na Res.-TSE 23.478/2016.

A ação foi pautada para julgamento em 30/6/2020, sendo apresentada proposta de voto pelo Min. Relator LUIS ROBERTO BARROSO respondendo afirmativamente ao primeiro, terceiro e quarto quesitos, e negativamente ao segundo. Sua Excelência, em voto proficiente, traz breve elucidação sobre o cenário racial no Brasil, em especial em relação ao racismo estrutural, à falta de apoio às candidaturas das mulheres negras e à sub-representatividade nos espaços de poder. Sustenta ser de responsabilidade social a implementação de ações destinadas ao combate ao racismo, nos termos do art. 4°, II e IV, do Estatuto da Igualdade Racial.

Ao examinar a destinação de recursos públicos e tempo de TV e rádio às candidatas negras, conclui ser possível o implemento de medidas com vistas à distribuição proporcional dos recursos, em razão dos seguintes fundamentos: a) na linha das decisões do STF e TSE, a previsão legal de reserva de vagas de candidatura somente pode reduzir a desigualdade de gênero na política se associada a medidas que possibilitem a competitividade das candidaturas femininas; b) a concretização da cota de gênero e da distribuição proporcional de recursos às candidatas mulheres produziu como efeito secundário indesejável a manutenção do subfinanciamento das candidaturas das mulheres negras e, consequentemente, da sua sub-representação, hipótese que caracteriza discriminação indireta; c) por força do princípio da igualdade, reconheceu “como sendo a única interpretação constitucional admissível aquela que determina aos partidos políticos a distribuição dos recursos públicos destinados a campanha eleitoral na exata proporção das candidaturas de ambos os sexos”; e d) do mesmo modo, deve-se destinar às candidatas negras recursos (financeiros e de acesso à tv e ao rádio) na exata proporção do número de candidaturas efetivamente apresentadas pela agremiação.

Quanto à reserva de vagas para candidaturas de pessoas negras, no patamar de 30% (segundo quesito), distribuição de recursos públicos e direito de antena aos candidatos negros, o Relator respondeu negativamente à indagação, entendendo se tratar de competência prioritária do Congresso Nacional.

Pedi vista dos autos para mais detida análise do caso, considerando a repercussão e os impactos da decisão nas eleições que se avizinham.

É a síntese do necessário.

Trata-se de consulta realizado ao TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL sobre a possibilidade de:

• Garantir às candidatas negras percentual dos recursos financeiros e do tempo em rádio e TV destinados às candidaturas femininas no montante de 50%, dada a distribuição demográfica brasileira;

• Instituir reserva de 30% das candidaturas de cada partido a pessoas negras, nos termos da cota de gênero prevista na Lei nº 9.504/1997;

• Determinar o custeio proporcional das campanhas dos candidatos negros, destinando-se a estes no mínimo 30% do total do FEFC e;

• Assegurar tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão proporcional às candidaturas de pessoas negras, respeitando-se o mínimo de 30%.

Inicialmente, ressalto que não tenho dúvidas de que a sub-representação das pessoas negras nos poderes eleitos, ao mesmo tempo que é derivada do racismo estrutural existente no Brasil, acaba sendo um dos principais instrumentos de perpetuação da gravíssima desigualdade social entre brancos e negros. Trata-se de um círculo extremamente vicioso, que afeta diretamente a igualdade proclamada na Constituição Federal e fere gravemente a dignidade das pessoas negras.

Em outras palavras, o histórico funcionamento do sistema político eleitoral brasileiro perpetua a desigualdade racial, pois tradicionalmente foi estruturado nas bases de uma sociedade ainda e lamentavelmente racista. O mesmo sempre ocorreu em relação à questão de gênero, cuja legislação vem avançando em busca de uma efetiva e concreta igualdade de oportunidades com a adoção de mecanismos de ações afirmativas.

O princípio da igualdade consagrado pela constituição opera em dois planos distintos. De uma parte, frente ao legislador ou ao próprio executivo, na edição, respectivamente, de leis e atos normativos, impedindo que possam criar tratamentos abusivamente diferenciados a pessoas que se encontram em situações idênticas. Em outro plano, na obrigatoriedade ao intérprete, basicamente, a autoridade pública, de aplicar a lei e atos normativos de maneira igualitária, sem estabelecimento de diferenciações em razão de sexo, religião, convicções filosóficas ou políticas, raça, classe social.

A desigualdade inconstitucional na lei, também se produz quando, mesmo sem expressa previsão, a aplicação da norma acarreta uma distinção de tratamento não razoável ou arbitrária especificamente a determinadas pessoas, como na presente hipótese.

Para que as diferenciações produzidas pela aplicação da lei possam ser consideradas não discriminatórias, torna-se indispensável que exista uma justificativa objetiva e razoável, de acordo com critérios e juízos valorativos genericamente aceitos, cuja exigência deve aplicar-se em relação à finalidade e efeitos da medida considerada, devendo estar presente por isso uma razoável relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade perseguida, sempre em conformidade com os direitos e garantias constitucionalmente protegidos.

Nesse contexto, são justificáveis interpretações e políticas estatais baseadas em discriminações positivas, sempre legítimas quando: (a) houver demonstração empírica de que a neutralidade do ordenamento jurídico produz resultados prejudiciais a determinados grupos de indivíduos, reduzindo-lhes as oportunidades de realização pessoal (viabilidade fática); (b) a discriminação se prestar a promover objetivo expressamente contemplado no texto constitucional (viabilidade jurídica); e (c) a vantagem jurídica proposta for virtualmente idônea para reverter o quadro de exclusão verificado na realidade social, gerando mais consequências positivas do que negativas (viabilidade prática).

Na presente hipótese, a interpretação que venha a permitir a efetivação da plena participação política das brasileiras e brasileiros negros produziria inúmeros resultados positivos, promovendo uma espécie de compensação pelo tratamento aviltante historicamente aplicado à população negra no Brasil (ideia de reparação), viabilizando acesso preferencial a uma plataforma importante para subsidiar o rearranjo das condições de funcionamento do processo social (ideia de redistribuição), atenuando, por meio do exemplo positivo, o sentimento de inferiorização causado pela rarefeita presença de pessoas negras em posições políticas de prestígio (ideia de reconhecimento) e qualificando nosso sistema político eleitoral e a própria Democracia pela incorporação de políticos com experiências de vida plurais (ideia de diversidade).

Essas premissas são coerentes para justificar a utilização do recorte racial para a distribuição dos recursos públicos à disposição do sistema político eleitoral.

Importante ressaltar sempre essa relevantíssima questão. O que se discute é a distribuição de recursos públicos (financeiros e direito de arena) que, portanto, deve respeitar em sua execução os fundamentos constitucionais da República, previstos no artigo 1º da Constituição Federal, em especial, assegurando a plena cidadania, a dignidade das pessoas e o pluralismo político; visando, sempre, atingir os objetivos fundamentais da Democracia brasileira estabelecidos no artigo 3º de nossa Carta Magna, em especial, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, com a erradicação da pobreza e marginalização, com a redução das desigualdade sociais, para promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

O mapeamento dos indicadores sociais verificados no Brasil evidencia que a perpetuação intergeracional da desigualdade não constitui mero acaso, mas subproduto de um modelo estruturalmente injusto na distribuição das oportunidades. O que dificulta a identificação da discriminação no país é o seu escondimento sob facetas aparentemente neutras, como o mérito, a competição ou o desempenho. É a falsa ideia da inexistência de racismo no Brasil, em virtude da ocorrência da miscigenação ocorrida em nosso país, como bem ressaltado pelo ilustre relator, nosso Presidente, Ministro ROBERTO BARROSO, em seu belíssimo voto, onde detalhada e minuciosamente expôs as estatísticas de desigualdade racial no Brasil em todas as áreas.

O princípio da igualdade, portanto, sustenta a constitucionalidade da interpretação baseada no recorte racial para a distribuição de recursos públicos no campo eleitoral, por se tratar de fórmula razoável e adequada para a realização da integração proporcional e efetiva dos negros em espaços de poder político.

Dessa forma, em um primeiro momento, acompanho o eminente Ministro relator em sua conclusão, no sentido de responder ao:

a. Primeiro quesito afirmativamente nos seguintes termos: os recursos públicos do Fundo Partidário e do FEFC e o tempo de rádio e TV destinados às candidaturas de mulheres, pela aplicação das decisões judiciais do STF na ADI nº 5617/DF e do TSE na Consulta nº 0600252-18/DF, devem ser repartidos entre mulheres negras e brancas na exata proporção das candidaturas apresentadas pelas agremiações.

b. Segundo quesito de forma negativa, não se mostrando adequado o estabelecimento, por este Tribunal Superior Eleitoral, de política de reserva de candidaturas para pessoas negras no patamar de 30%.

c. Terceiro e o quarto quesitos, por sua vez, devem ser respondidos afirmativamente, nos seguintes termos: os recursos públicos do Fundo Partidário e do FEFC e o tempo de rádio e TV devem ser destinados ao custeio das candidaturas de homens negros na exata proporção das candidaturas apresentadas pelas agremiações.

Preocupa-me, porém, que uma importante decisão integrativa do TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL, visando contribuir para o exercício efetivo e pleno da cidadania pelos negros e reduzir suas desigualdades de representação política em relação aos brancos, possa gerar efeitos extremamente negativos, inclusive ampliando a histórica discriminação.

Explico.

Após a decisão do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, na ADI 5617, de relatoria do eminente Ministro EDSON FACHIN, equiparando o patamar legal mínimo de candidaturas femininas (30%) ao mínimo de recursos eleitorais a lhe serem destinadas, que passou também a ser interpretado como 30% do montante do fundo alocado a cada partido político, verificou-se reflexamente e, como forma de pretensa “compensação de recursos supostamente perdidos pelos candidatos homens brancos”, a ampliação de discriminação indireta contra as candidaturas de mulheres e homens negros, com bem  realçado pelo eminente Ministro relator, ROBERTO BARROSO:

“Como fenômeno intrinsecamente relacionado às relações de poder e dominação, o racismo se manifesta especialmente no âmbito político-eleitoral. Nas eleições gerais de 2018, embora 47,6% dos candidatos que concorreram fossem negros, entre os eleitos, estes representaram apenas 27,9%. Um dos principais fatores que afetam a viabilidade das candidaturas é o financiamento das campanhas. Quanto ao tema, verifica-se que, em 2018, houve efetivo incremento nos valores absolutos e relativos das receitas das candidatas mulheres por força das decisões do STF e do TSE. Enquanto em 2014 a receita média de campanha das mulheres representava cerca de 27,8% da dos homens, em 2018, tal receita representou 62,4%. No entanto, ao se analisar a intersecção entre gênero e raça, verifica-se que a política produziu efeitos secundários indesejáveis. Estudo da FGV Direito relativo à eleição para Câmara dos Deputados apontou que mulheres brancas candidatas receberam percentual de recursos advindos dos partidos (18,1%) proporcional às candidaturas (também de 18,1%). No entanto, candidatos negros continuaram a ser subfinanciados pelos partidos. Embora mulheres negras representassem 12,9% das candidaturas, receberam apenas 6,7% dos recursos.  Também os homens negros receberam dos partidos recursos (16,6%) desproporcionais em relação às candidaturas (26%). Apenas os homens brancos foram sobrefinanciados (58,5%) comparativamente ao percentual de candidatos (43,1%)”.

Em outras palavras, houve uma reação do sistema político eleitoral em proteção aos “candidatos e candidatas brancos”, principalmente em relação aos “homens brancos”. A partir das decisões do TSE e do STF, como os “candidatos brancos” não poderiam mais ter quase 100% dos recursos, passando a ter no máximo 70%, os partidos políticos passaram a destinar a maior parte desse montante de recursos – 70% - predominantemente aos “candidatos homens e brancos”; enquanto que a distribuição dos 30% da cota de gênero, igualmente, passou a ser direcionada predominantemente para as “candidatas mulheres brancas”.

Se o “bolo” ficou menor para os “candidatos homens”, a “fatia” destinada aos “candidatos homens brancos” foi ampliada para compensar eventuais perdas de recursos eleitorais. De outro lado, se passou a existir um “bolo” obrigatório para as “candidatas mulheres” (30%), a distribuição privilegiou as “candidatas mulheres brancas”.

Não há dúvidas de que a “reação compensatória” do sistema político eleitoral às decisões judiciais de fixação de um patamar mínimo de 30% do recursos eleitorais às candidaturas de mulheres, novamente, discriminou as candidaturas de negros.

Ao responder afirmativamente a presente Consulta, estabelecendo a divisão proporcional dos recursos públicos eleitorais pelo número de candidaturas de brancos e negros – tanto os 70%, quanto os 30% – o TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL pretende afastar essa acomodação discriminatória em relação às candidaturas negras, evitando esse “sistema de compensação informal” que passou a beneficiar os “candidatos brancos”, tanto em relação aos homens quanto as mulheres.

Ocorre, porém que a tendência de acomodação do sistema político eleitoral, com a criação de “compensações informais” que beneficiem as “candidaturas de brancos”, poderá criar novos obstáculos à própria existência de um número razoável de candidaturas de negros, tanto homens quanto mulheres, gerando uma nova e mais grave forma de discriminação racial: a dificuldade ou mesmo inacessibilidade às candidaturas de negros, com consequente diminuição do número de candidatos

Explico utilizando os dados de 2016, pois as eleições municipais tem características diversas das eleições gerais, principalmente no tocante à maior participação dos negros no processo eleitoral.

Em que pese naquelas eleições ainda não vigorar as decisões do TSE e do STF de obrigatoriedade de destinação mínima dos 30% às candidaturas femininas, a aplicação da Lei 13.165/2015 – que reservava, no mínimo 5% e no máximo 15% do montante do Fundo Partidário destinado ao financiamento das campanhas eleitorais de suas candidatas – apresentou a mesma “compensação discriminatória” em favor das “candidaturas de brancos”; afetando, diretamente as “candidaturas de mulheres e homens negros”.

Abaixo, o quadro geral com a divisão de candidaturas entre brancos e negros e a respectiva distribuição do fundo partidário:

Em 2016, segundos dados oficiais do TSE, entre os homens, as “candidaturas de homens, negros” apresentaram um percentual de 48,73% do total, representando 155.744 candidatos; que, entretanto, receberam somente 26,24% do total de repasse de recursos eleitorais destinados aos homens, em um montante de R$ 124.775, 91.

Esses números são importantes para analisarmos os possíveis reflexos negativos decorrentes de uma provável acomodação discriminatória do sistema político eleitoral à nova decisão do TSE.

A adequação das candidaturas de homens com a distribuição dos recursos eleitorais proporcionalmente como proposto na presente consulta geraria duas possibilidades.

1ª possibilidade: Para manter o mesmo número de “candidatos negros homens” e respeitar a distribuição proporcional de recursos eleitorais previstos na consulta, seria necessário aumentar o percentual de 26,24% para 48,73%, ou seja, aumentar a destinação dos recursos em aproximadamente R$ 57.617.000,00. Esse montante, obviamente, precisaria ser retirado diretamente das “candidaturas de homens brancos”, que, apesar de corresponderem a 51,27% do total dos candidatos homens em 2016, receberam 73,76% dos recursos eleitorais destinados às candidaturas masculinas.

2ª possibilidade: Para manter a mesma distribuição proporcional de recursos de 2016 entre “candidatos homens negros e brancos” seria necessário reduzir o número de “candidatos homens negros”, com o respectivo aumento das de “homens brancos”, adequando-as aos percentual de recursos à eles destinados, ou seja, haveria a necessidade de diminuir os 48,73% de “candidaturas de homens negros” para 26,24%, com o consequente aumento de “candidatos homens brancos”. Com isso o montante de recursos distribuídos entre candidatos homens brancos e negros permaneceria idêntico ao do pleito eleitoral de 2016. Essa manutenção da mesma distribuição proporcional de recursos ocorrida em 2016 acarretaria a redução de 71.879 “candidatos homens negros” em todo o país, que passaria de 155.744 para 83.865.

Essa distorção, da mesma maneira ocorreria em relação as “candidaturas de mulheres negras e brancas”.

Em resumo, a aprovação da presente consulta sem o estabelecimento de uma regra de transição possibilitaria aos partidos políticos essas duas opções extremadas:

1ª opção: Manutenção da mesma proporção entre candidaturas de homens negros e brancos – Acarretaria a redução de, aproximadamente, R$ 57.617.000,00 de recursos eleitorais aos “candidatos homens brancos”.

2ª opção: Manutenção da mesma proporção entre os recursos eleitorais distribuídos entre candidaturas de homens negros e brancos – Acarretaria a redução de 71.879 “candidatos homens negros”.

Obviamente, existem possibilidades intermediárias entre a manutenção integral na proporção de candidaturas de homens negros e brancos (1ª opção) ou a manutenção da mesma proporção entre os recursos eleitorais distribuídos entre candidaturas de homens negros e brancos (2ª opção) ocorridas em 2016, porém, o histórico de discriminação às candidaturas de negros e de favorecimento às candidaturas de brancos não parece deixar margem de dúvidas sobre qual seria a “acomodação compensatória” adotada pelo sistema partidário à partir da implementação das novas regras estabelecidas na presente consulta.

Fatalmente, teríamos uma diminuição considerável do número de candidaturas de negros – tanto homens, quanto mulheres – como fator de acomodação e compensação de perdas na distribuição de recursos eleitorais às candidaturas de homens e mulheres brancos.

Em outras palavras, para conseguir compensar a diminuição de recursos para os “candidatos brancos”, em virtude da regra de proporcionalidade, os partidos poderiam passar a diminuir o número de “candidaturas de negros”; ou mesmo, em uma hipótese radical, deixar de lançar candidatos negros; uma vez que, diferentemente da questão de gênero, onde há a previsão de um mínimo de 30% destinado às mulheres, na questão racial não há mínimo legal estabelecido.

Assim, me parece razoável e adequado, que o TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL estabeleça, como regra de transição, um percentual mínimo obrigatório de candidaturas de homens e mulheres negros para a próxima eleição, para fins de cálculo dos recursos eleitorais e direito de arena.

Esse percentual mínimo não será fixado subjetivamente pelo TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL, nem tampouco de forma genérica à todos os partidos políticos, mas sim, deve corresponder aos idênticos percentuais dessas candidaturas concretizadas pelos próprios partidos políticos nas últimas eleições municipais de 2016.

Dessa maneira, independentemente dos recursos eleitorais distribuídos nas eleições de 2016, se o partido teve 20% de candidatos negros, entre os homens e 15% de candidatas negras, entre as mulheres, esses serão os percentuais mínimos de recursos eleitorais a serem distribuídos, respectivamente, aos novos candidatos e candidatas negras, mesmo que o número de candidaturas fique aquém desses patamares.

Essa regra de transição evitará o surgimento de qualquer mecanismo de “acomodação compensatória” que, discriminando as candidaturas de negros – com a potencialidade, inclusive, de diminuição de aproximadamente 71.879 “candidaturas de homens negros” – possibilite a manutenção de distribuição privilegiada dos recursos eleitorais às “candidaturas de brancos”.

Esse critério objetivo será configurador de efetivo instrumento em defesa da vedação ao retrocesso – evitar que o próprio partido diminua o seu número anterior de candidaturas de homens e mulheres negros, simplesmente para compensar a perda de recursos eleitorais das candidaturas de homens e mulheres brancos – , compatibilizando a atuação do Poder Legislativo (que representa o princípio democrático da maioria) com o exercício da Justiça constitucional (que representa a garantia do Estado de Direito) em defesa dos direitos e garantias fundamentais consagrados constitucionalmente, em especial na presente hipótese, no combate à discriminação racial.

Não se trata de atuação substitutiva ao Congresso Nacional com a fixação de uma política de ação afirmativa genérica e fixação de uma “cota racial”, com percentual abstrato e permanente a ser seguido, indistintamente, por todos os partidos políticos, mas sim, de “assegurar direitos fundamentais de grupos historicamente vulneráveis” como bem destacado pelo eminente Ministro relator, ROBERTO BARROSO:

Compete prioritariamente ao Congresso Nacional estabelecer política de ação afirmativa apta a ampliar a participação política de minorias não-brancas, atendendo ao anseio popular e à demanda constitucional por igualdade. À mingua de uma norma específica que institua ação afirmativa nessa seara, o Poder Judiciário não deve ser protagonista da sua formulação. Isso, porém, não quer dizer que não haja papel algum a desempenhar. É legítima a atuação do Poder Judiciário para assegurar direitos fundamentais de grupos historicamente vulneráveis, como mulheres e negros ou homossexuais, contra discriminações, diretas ou indiretas. Assim, o TSE pode e deve atuar para impedir que a ação afirmativa instituída pela Lei nº 9.504/1997 produza discriminações injustificadas e perpetue a desigualdade racial.

Diante dessas considerações, acrescento à resposta da presente consulta que: “Os percentuais mínimos de distribuição de recursos públicos do Fundo Partidário e do FEFC e o tempo de rádio e TV destinados às candidaturas de mulheres e homens negros serão calculados na exata proporção das candidaturas apresentadas pelas agremiações nas eleições de 2016”.

É como voto.

 

ESCLARECIMENTO

 

O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO (presidente): Muito obrigado, Ministro Alexandre de Moraes. Quando Vossa Excelência pediu vista, lá em final de junho, eu fiquei duplamente angustiado. Em primeiro lugar, porque a causa me era muito cara; e, em segundo lugar, porque Vossa Excelência é meu amigo e eu detestava a ideia de que pudesse estar do outro lado dessa causa.

E agora vem Vossa Excelência com esse voto extraordinário e com essa ideia final – eu vou ouvir os outros colegas, enquanto reflito sobre essa sugestão do Ministro Alexandre de Moraes, que me pareceu extremamente importante – que é assegurar que nossa decisão não produza o resultado contrário ao que nós desejamos, qual seja, a redução de candidaturas negras.

Portanto, Sua Excelência está propondo, para evitar esse tipo de reação – que identificou ter ocorrido, quando nós estabelecemos um percentual mínimo para as mulheres –, que os partidos, nos registros de candidaturas para 2020, observem a mesma quantidade, a mesma proporcionalidade de candidatos negros registrados nas eleições de 2016, evitando assim o que os americanos chamariam de um backlash, que é uma reação que torna a decisão judicial ineficaz.

Eu vou ouvir, Ministro Alexandre, os demais colegas e, durante o voto deles, vou refletir, porque tenho grande simpatia pela ideia que Vossa Excelência traz. Vou só fazer um breve exame de viabilidade, mas tenho simpatia e incluiria na minha proposta de resposta essa ideia de Vossa Excelência.

Portanto, vou ouvir os demais e, depois, pronuncio-me sobre essa sugestão importante de Vossa Excelência.

Passo a palavra ao eminente Ministro Og Fernandes.

 

PEDIDO DE VISTA

 

O SENHOR MINISTRO OG FERNANDES: Presidente, que situação cômoda que me encontro aqui, neste momento, diante desses votos todos aqui potentes!

Eu, diante disso, me valeria do socorro de pedir um exame até terça-feira. Se Vossa Excelência entender que há possibilidade de eu retornar com esse processo na terça-feira, eu pediria um exame da engenharia jurídica elaborada pelo Ministro Alexandre.

Se Vossa Excelência considerar que há dificuldades para terça-feira, eu tenho noção exatamente do que vou dizer. Apenas não quero atropelar a pauta.

O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO (presidente): Vossa Excelência então gostaria de ter vista para trazer de volta na terça-feira?

O SENHOR MINISTRO OG FERNANDES: Terça-feira, sem alterações.

O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO (presidente): Eu devo dizer que a pauta das próximas semanas é quase um monopólio de Vossa Excelência, de modo que não há um problema maior; apenas, possivelmente, teríamos que tirar algum processo de Vossa Excelência para a colocação desse. Mas é muito importante nós decidirmos isso antes do início do prazo de registro de candidaturas.

Portanto, nós retomaríamos, então, esse julgamento, a pedido de Vossa Excelência, na próxima terça-feira.

O SENHOR MINISTRO OG FERNANDES: Ou eu trago o voto ou apresento o atestado de óbito.

O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO (presidente): Muito bem, então fica suspenso o julgamento, porque aguardam os demais.

 

EXTRATO DA ATA

 

Cta nº 0600306-47.2019.6.00.0000/DF. Relator: Ministro Luís Roberto Barroso. Consulente: Benedita Souza da Silva Sampaio (Advogados: Irapuã Santana do Nascimento da Silva – OAB: 341538/SP e outra).

Decisão: Prosseguindo no julgamento, após o voto-vista do Ministro Alexandre de Moraes, acompanhando a conclusão do voto do relator, mas sugerindo percentuais mínimos de observância, considerados os números das eleições de 2016, pediu vista o Ministro Og Fernandes.

Aguardam os Ministros Luis Felipe Salomão, Tarcisio Vieira de Carvalho Neto e Sérgio Banhos.

Composição: Ministros Luís Roberto Barroso (presidente), Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Og Fernandes, Luis Felipe Salomão, Tarcisio Vieira de Carvalho Neto e Sérgio Banhos.

Vice-Procurador-Geral Eleitoral: Renato Brill de Góes.

SESSÃO DE 20.8.2020.

 

VOTO-VISTA

 

O SENHOR MINISTRO OG FERNANDES: Senhor Presidente, o julgamento da presente consulta teve início na sessão administrativa do dia 30.6.2020, oportunidade em que V. Exa. respondeu afirmativamente ao primeiro, terceiro e quarto questionamentos, e negativamente ao segundo.

O entendimento inicial de V.Exa. foi acompanhado, na íntegra, pelo Ministro Edson Fachin e, na sequência, o Ministro Alexandre de Moraes pediu vista dos autos.

Na sessão administrativa do dia 20.8.2020 o Ministro Alexandre de Moraes acompanhou V. Exa. na resposta aos quesitos, mas acrescentou que “os percentuais mínimos de distribuição de recursos públicos do Fundo Partidário e do FEFC e o tempo de rádio e TV destinados às candidaturas de mulheres e homens negros serão calculados na exata proporção das candidaturas apresentadas pelas agremiações nas eleições de 2016”.

Após, solicitei vista dos autos para melhor exame da matéria. Nessa oportunidade trago a minha compreensão sobre o tema.

Inicio por reafirmar que não tenho dúvidas de que o Brasil é um país preconceituoso. E esse preconceito, além da questão racial, perpassa pelas questões de gênero e da condição sexual.

A questão do negro no Brasil é aflitiva. Há, de fato, um racismo estrutural, que exige do Estado a adoção de políticas públicas afirmativas que compensem, por meio de tratamento diferenciado, as desvantagens surgidas historicamente das condições degradantes a que foram submetidos os negros.

Os números apontados pelo relator refletem um passado de omissão sistêmica e comprovam a situação deplorável a que a população negra está submetida no Brasil no âmbito da educação, da segurança pública, do emprego, da renda, do sistema prisional, da saúde e também no âmbito político-eleitoral.

No caso em exame, a consulente constrói a argumentação de que o modelo interpretativo do STF, na ADI nº 5.617/DF, e desta Corte, na Cta nº 0600252-18/DF, poderia ser adotado também em benefício da população negra, a fim de incentivá-la a participar das decisões políticas do país.

Tenho a compreensão que há espaço para essa empreitada afirmativa, conferindo interpretação à legislação eleitoral vigente de forma a efetivar o princípio da igualdade em todas as suas dimensões e a evitar a chamada “discriminação indireta”. 

O princípio da igualdade deve ser analisado à luz do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, de forma a buscar a concretização dos valores preconizados pela Constituição Federal, sem que isso configure ativismo judicial desmedido.

Aliás, o art. 4º, IV, da Lei nº 12.288/2010 (Estatuto da Igualdade Racial) justifica a atuação do Poder Judiciário no sentido de promover “[...] ajustes normativos para aperfeiçoar o combate à discriminação étnica e às desigualdades étnicas em todas as suas manifestações individuais, institucionais e estruturais”.

Longe de esgotar a problemática, e sem inovar no ordenamento jurídico, entendo que este Tribunal, ao atribuir interpretação constitucional à norma vigente, conforme pontuado pelo Ministro Edson Fachin, contribui, de forma efetiva, para a igualdade de condições de acesso da população negra ao centro do debate político.

Dessa forma, confere-se efetividade ao art. 2º do Estatuto da Igualdade Racial, que preconiza:

Art. 2o É dever do Estado e da sociedade garantir a igualdade de oportunidades, reconhecendo a todo cidadão brasileiro, independentemente da etnia ou da cor da pele, o direito à participação na comunidade, especialmente nas atividades políticas, econômicas, empresariais, educacionais, culturais e esportivas, defendendo sua dignidade e seus valores religiosos e culturais. (grifos acrescidos)

Negar à população negra iguais condições de acesso aos recursos do Fundo Partidário e ao direito de antena é inviabilizar a democracia participativa plural em sua plenitude.

A sub-representatividade1 de pretos e pardos no Congresso Nacional não é justificável e contribui para o agravamento da discriminação racial, não podendo o Poder Judiciário compactuar com a perpetuação dessa condição. Nas palavras de Dworkin, “[...] a segregação não pode ser preservada [...]”2.

Destaco a natureza pública dos recursos do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, de modo que a repartição desses fundos, ainda que dentro da autonomia partidária, não pode ensejar mecanismos de perpetuação da discriminação.

Ao contrário, sua destinação deve convergir para o fortalecimento dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, em especial a promoção do bem de todos, sem preconceitos de cor e raça, conforme previsto no art. 3º, IV, da CF.

A ação afirmativa de gênero instituída pelo art. 10, § 3º, da Lei nº 9.504/1997, com a interpretação conferida pelo STF, na ADI nº 5.617/DF, e pelo TSE, na Cta nº 0600252-18/DF, possibilitou o incremento da participação feminina no cenário político eleitoral, embora ainda permaneça a sub-representação.

No entanto, por vias reflexas, essa norma gerou um subfinanciamento das candidaturas negras. Por exemplo, o estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) – Direito – São Paulo mencionado pelo relator demonstra que os homens negros (16,6%) receberam menos recursos que as mulheres brancas (18,1%).

Nas palavras do relator, o referido estudo concluiu que, para as Eleições 2018, o aspecto “raça” foi preponderante ao gênero no acesso aos recursos públicos.

Assim, uma norma pretensamente neutra e que visava a diminuir a desigualdade entre gêneros potencializou a discriminação racial, devendo ser afastado o efeito indesejado por ela gerado.

Para tanto, aplica-se a Teoria do Impacto Desproporcional (Disparate Impact), que teve origem nos Estados Unidos da América, no caso Griggs vs. Duke Power Co., 401 U.S. 424 (1971). Naquele julgamento, a Suprema Corte americana entendeu que uma norma pretensamente neutra, que exigia teste de conhecimento para a contratação de funcionários, acabou, na prática, gerando discriminação racial.

De acordo com o doutrinador Ministro Joaquim Barbosa:

Toda e qualquer prática empresarial, política governamental ou semi-governamental, de cunho legislativo ou administrativo, ainda que não provida de intenção discriminatória no momento de sua concepção, deve ser condenada por violação do princípio constitucional da igualdade material se, em consequência de sua aplicação, resultarem efeitos nocivos de incidência especialmente desproporcional sobre certas categorias de pessoas.

(GOMES, Joaquim Barbosa. Ação Afirmativa e Princípio Constitucional da Igualdade. Rio de Janeiro: Renovar, 2001)3

Embora de origem no common law, sua aplicação, no direito brasileiro, não suscita dúvidas, já tendo o STF a aplicado em, pelo menos, duas oportunidades.

No julgamento da ADI nº 1.946/DF, a Suprema Corte declarou a inconstitucionalidade do art. 14 da EC nº 20/1998, por entender que o referido dispositivo, ao limitar o salário-maternidade ao teto dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social, estimulava a opção pelos trabalhadores masculinos e criava uma discriminação indireta às mulheres.

Naquela oportunidade, o ministro Nelson Jobim afirmou que a citada teoria reclama que “não podem ser mantidos os atos que induzem às práticas discriminatórias”.

Mais recentemente, no julgamento da ADPF nº 291/DF, de relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, o STF declarou não recepcionadas, pela CF, as expressões “pederastia ou outro”, mencionada na referência enunciativa do art. 235 do Código Penal Militar, e “homossexual ou não”, contida nesse mesmo dispositivo.

Entendeu a Suprema Corte que a norma questionada era uma hipótese típica de discriminação indireta que gerava “[...] um impacto desproporcional sobre homossexuais, o que é incompatível com o princípio da igualdade”.

Reafirmo minha compreensão, portanto, de que, para mitigar os efeitos indesejados que a cota por gênero produziu na população negra, é necessário conferir interpretação no sentido estabelecido pelo relator, com a destinação de recursos públicos do Fundo Partidário e com o direito de antena, na exata proporção, para as candidaturas negras.

Assim, respondo afirmativamente aos questionamentos I, III e IV formulados pela consulente, nos termos do voto do relator.

Relativamente à reserva de vagas para candidaturas de negros e pardos (questionamento II da consulta), entendo que seu estabelecimento implica a criação de nova política de cotas, o que requer a atuação primária do Poder Legislativo.

Nesse ponto, verifico a existência de omissão legislativa na elaboração de políticas afirmativas à população negra, em especial no âmbito eleitoral. A título de exemplificação, tramita, na Câmara dos Deputados, o PL nº 8.350/2017, que prevê “[...] destinação de recursos do Fundo Partidário para a promoção da participação política de afrodescendentes” e que está pronto para ser pautado no Plenário daquela Casa, mas que se encontra paralisado desde 25.9.20174.

Não nego que o Poder Judiciário pode e deve atuar em caso de omissão legislativa, sobretudo na defesa de populações vulneráveis, mas as técnicas de controle para tanto são o mandado de injunção e ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO), ambas de competência da Suprema Corte Federal.

Não cabe, portanto, a esta Corte, por meio de consulta, suprir omissão legislativa e inaugurar ação afirmativa em relação à reserva de cotas à população negra na disputa eleitoral, razão pela qual respondo negativamente ao segundo questionamento.

De toda forma, a matéria reclama, sem sombra de dúvidas, a providência adotada na Cta nº 0603816-39/DF, no sentido de se oficiar ao Congresso Nacional para que se debruce sobre o tema das cotas raciais na política, com a recomendação de que inclua em pauta o PL nº 8.350/2017.

Não obstante a resposta afirmativa parcial aos questionamentos I, III e IV formulados pela consulente, tenho a compreensão de que a aplicação das teses ora assentadas encontra limitação temporal no princípio da segurança jurídica.

Não tenho dúvidas de que a presente consulta representa um marco histórico e um avanço na efetivação da democracia participativa plural com reflexos significativos na estrutura política nacional.

Há, indubitavelmente, uma inovação no campo normativo jurisprudencial que reclama a aplicação do princípio da anualidade, insculpido no art. 16 da CF.

O Supremo Tribunal Federal ao julgar a ADI 3658 que tratava da verticalização das coligações partidárias assentou que “[...] o art. 16 representa garantia individual do cidadão-eleitor, detentor originário do poder exercido pelos representantes eleitos e ‘a quem assiste o direito de receber, do Estado, o necessário grau de segurança e de certeza jurídicas contra alterações abruptas das regras inerentes à disputa eleitoral’ [...]5.

Reforço que esse postulado também é aplicável às alterações interpretativas promovidas pelo TSE, sobretudo em virtude do caráter normativo que emana das decisões desta Corte, tal como na presente consulta. Nesse sentido, destaco trecho da ementa do julgamento do RE nº 637.485/RJ, sob o regime de repercussão geral:

[...]

II. MUDANÇA DA JURISPRUDÊNCIA EM MATÉRIA ELEITORAL. SEGURANÇA JURÍDICA. ANTERIORIDADE ELEITORAL. NECESSIDADE DE AJUSTE DOS EFEITOS DA DECISÃO. Mudanças radicais na interpretação da Constituição devem ser acompanhadas da devida e cuidadosa reflexão sobre suas consequências, tendo em vista o postulado da segurança jurídica. Não só a Corte Constitucional, mas também o Tribunal que exerce o papel de órgão de cúpula da Justiça Eleitoral devem adotar tais cautelas por ocasião das chamadas viragens jurisprudenciais na interpretação dos preceitos constitucionais que dizem respeito aos direitos políticos e ao processo eleitoral. Não se pode deixar de considerar o peculiar caráter normativo dos atos judiciais emanados do Tribunal Superior Eleitoral, que regem todo o processo eleitoral. Mudanças na jurisprudência eleitoral, portanto, têm efeitos normativos diretos sobre os pleitos eleitorais, com sérias repercussões sobre os direitos fundamentais dos cidadãos (eleitores e candidatos) e partidos políticos. No âmbito eleitoral, a segurança jurídica assume a sua face de princípio da confiança para proteger a estabilização das expectativas de todos aqueles que de alguma forma participam dos prélios eleitorais. A importância fundamental do princípio da segurança jurídica para o regular transcurso dos processos eleitorais está plasmada no princípio da anterioridade eleitoral positivado no art. 16 da Constituição. O Supremo Tribunal Federal fixou a interpretação desse artigo 16, entendendo-o como uma garantia constitucional (1) do devido processo legal eleitoral, (2) da igualdade de chances e (3) das minorias (RE 633.703). Em razão do caráter especialmente peculiar dos atos judiciais emanados do Tribunal Superior Eleitoral, os quais regem normativamente todo o processo eleitoral, é razoável concluir que a Constituição também alberga uma norma, ainda que implícita, que traduz o postulado da segurança jurídica como princípio da anterioridade ou anualidade em relação à alteração da jurisprudência do TSE. Assim, as decisões do Tribunal Superior Eleitoral que, no curso do pleito eleitoral (ou logo após o seu encerramento), impliquem mudança de jurisprudência (e dessa forma repercutam sobre a segurança jurídica), não têm aplicabilidade imediata ao caso concreto e somente terão eficácia sobre outros casos no pleito eleitoral posterior. 

[...]

IV. EFEITOS DO PROVIMENTO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. Recurso extraordinário provido para: (1) resolver o caso concreto no sentido de que a decisão do TSE no RESPE 41.980-06, apesar de ter entendido corretamente que é inelegível para o cargo de Prefeito o cidadão que exerceu por dois mandatos consecutivos cargo de mesma natureza em Município diverso, não pode incidir sobre o diploma regularmente concedido ao recorrente, vencedor das eleições de 2008 para Prefeito do Município de Valença-RJ; (2) deixar assentados, sob o regime da repercussão geral, os seguintes entendimentos: (2.1) o art. 14, § 5º, da Constituição, deve ser interpretado no sentido de que a proibição da segunda reeleição é absoluta e torna inelegível para determinado cargo de Chefe do Poder Executivo o cidadão que já exerceu dois mandatos consecutivos (reeleito uma única vez) em cargo da mesma natureza, ainda que em ente da federação diverso; (2.2) as decisões do Tribunal Superior Eleitoral que, no curso do pleito eleitoral ou logo após o seu encerramento, impliquem mudança de jurisprudência, não têm aplicabilidade imediata ao caso concreto e somente terão eficácia sobre outros casos no pleito eleitoral posterior. (RE 637485, Relator(a): GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 01/08/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-095 DIVULG 20-05-2013 PUBLIC 21-05-2013 RTJ VOL-00227-01 PP-00675 – grifos acrescidos)

No âmbito desta Justiça Especializada rememoro que a Res.-TSE nº 23.472/2016 determina a observância do postulado previsto no art. 16 CF quanto às decisões emanadas desta Corte:

Art. 5º A modificação da jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral e as alterações de que tratam o inciso V do art. 2º desta Resolução entrarão em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência (CF, art. 16).

Destaco que o processo eleitoral relativo ao pleito de 2020 já teve início, inclusive com realização das filiações partidárias, de modo que as estratégias e logísticas dos partidos políticos já foram montadas e as regras para repartição dos recursos oriundos do FEFC e do Fundo Partidário já foram definidas ou estão na iminência de ser.

Nos termos do art. 6º da Res.-TSE nº 23.605/2019 os recursos do FEFC ficarão à disposição do partido político somente após a definição dos critérios para a sua distribuição, os quais devem ser comunicados ao TSE.

Dados desta própria Corte6 indicam que um terço do partido político já cumpriu o citado dispositivo e encontram-se aptos a receber recursos do FEFC e, de certo, não levaram em consideração na definição dos critérios a distribuição entre negros.

Nesse contexto, alterar as regras relativas à distribuição de recursos do FEFC e do Fundo Partidário, a uma semana do início das convenções partidárias, enseja um efeito surpresa e severa instabilidade. Em alusão a uma partida de futebol, mudar as “regras do jogo” após o “apito inicial”, implica ofensa à segurança jurídica.

Para que se garanta a normalidade e legitimidade do pleito é indispensável a previsibilidade e confiança quanto às normas a serem aplicadas. Assim, proponho que o entendimento firmado na presente consulta somente poderá ser imposto aos partidos políticos a partir das eleições 2022, em conformidade com o art. 16 da CF.

Por outro lado, há uma outra condição que considero essencial para tornar efetiva e, sobretud,o exata a proteção aos pretos e pardos, que é a elaboração de uma resolução específica sobre a temática. Explico.

A par da preocupação externada pelo Ministro Alexandre de Moraes, no sentido de haver a possibilidade de diminuição considerável do número de candidaturas de negros, inquietam-me outras questões de ordem prática advindas da resposta afirmativa parcial à consulta.

São pontos que se não receberem contornos precisos, podem gerar um efeito secundário não desejado por esta Corte, que, por sua vez, levarão a um incremento da discriminação racial na política, além de uma significativa e irreparável insegurança no processo eleitoral.

Sem pretensão de esgotá-las, destaco as seguintes questões a merecerem respostas: (a) pertencimento étnico-racial: auto declaração e impugnação; (b) consequências da inobservância do percentual pelos partidos políticos; (c) eventual doação dos recursos recebidos entre negros e brancos; e d) qual deve ser a atuação do magistrado de primeira instância nos 5.570 municípios ao identificar que determinado partido não observou o percentual de candidatos negros7.

No Direito Eleitoral, as respostas a esses questionamentos precisam ser dadas imediatamente, pois envolvem recursos financeiros e direito de antena relativos ao pleito. Não há como reparar o candidato prejudicado passada a eleição, daí a necessidade de critérios objetivos e de fácil compreensão.

Ao meu sentir, portanto, o instrumento adequado para sanar essas dúvidas e efetivar a participação de negros na política é a resolução. Conquanto não exista norma específica a respeito do assunto, penso que o Tribunal poderia, como já fez em outras ocasiões, v.g. a Res.-TSE nº 22.610, regulamentar a matéria a fim de dar estabilidade ao processo eleitoral e tornar efetiva a proteção aos pretos e pardos.

Somente com a edição prévia de uma resolução, cuja elaboração deverá ser precedida de realização de audiência pública, nos termos do art. 29 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro e do art. 3º, IV, da Res.-TSE nº 23.472/2016, como forma de fomentar o debate e a participação da sociedade como instrumento da democracia participativa, é que se alcançará a necessária segurança jurídica. 

Quanto ao acréscimo proposto pelo Ministro Alexandre de Moraes, entendo que também deve ser sopesado durante a elaboração da proposta de resolução, por impor um percentual mínimo distinto para cada partido, a partir de um recorte das eleições de 2016, que desiguala a grei na missão de promover a inclusão de negros na disputa eleitoral.

A título exemplificativo, de acordo com dados extraídos do portal do TSE, entre os candidatos do PCB, 67% eram pretos e pardos, ao passo que o Partido Novo tinha apenas 10% de candidaturas negras. Na esteira da proposição do Ministro Alexandre de Moraes, em minha compreensão, isso significa que o PCB obrigatoriamente terá que destinar 67% dos recursos do FEFC e Fundo Partidário às candidaturas negras, enquanto o Partido Novo somente precisaria destinar 10%, o que representa a imposição de uma cota mínima, distinta e desproporcional a cada agremiação e que pode gerar um desequilíbrio na disputa eleitoral.

Assim, a edição de uma resolução sobre o tema possibilitará a operacionalização da distribuição dos recursos do FEFC e do Fundo Partidário e do direito de arena às candidaturas negras, com critérios objetivos que evite burla aos termos fixados na presente consulta.

Com essas considerações, quanto aos questionamentos postos pela Consulente, acompanho o relator, mas condiciono sua aplicabilidade a partir do pleito de 2022 e mediante a edição de resolução por esta Corte.

É como voto.

 

1 De acordo com pesquisa publicada no Jornal Folha de São Paulo, os negros representam 55,8% da população brasileira, mas ocupam apenas 24,4% das cadeiras da Câmara Federal. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/07/pesquisas-economicas-avanc

am-e-apontam-como-racismo-perpetua-fosso-social.shtml>. Acesso em 19 jul. 2020.

2 DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 459.

3 Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarTesauro.asp?txtPesquisaLivre=
TEORIA%20DO%20IMPACTO%
20DESPROPORCIONAL>. Acesso em 16 jul. 2020.

4 Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao
=2148739
>. Acesso em 16 jul. 2020.

5 ADI 3685, Relator(a): ELLEN GRACIE, Tribunal Pleno, julgado em 22/03/2006, DJ 10-08-2006 PP-00019 EMENT VOL-02241-02 PP-00193 RTJ VOL-00199-03 PP-00957

6 Disponível em:<http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2020/Agosto/eleicoes-2020-um-terco-dos-partidos-ja-estao-aptos-a-receber-recursos-do-fundo-eleitoral> Acesso em 20 ago.2020.

7 No caso de inobservância ao percentual de gênero, nos termos do art. 17, § 6º, da Res.-TSE nº 23.609/2019 – que regulamenta a escolha e o registro de candidatos para as eleições deste ano – há a previsão expressa que o DRAP será indeferido e, via de consequência, todas as candidaturas restarão indeferidas. Para tanto, basta que o juiz tenha intimado o partido interessado para fazer eventual correção. No caso de desobediência ao percentual de negros e pardos, haverá a mesma consequência? O juiz deve intimar a agremiação?

 

VOTO (ratificação)

 

O SENHOR MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES: Boa noite, Presidente. Cumprimento os colegas, Ministro Fachin, Ministro Luis Felipe Salomão, Ministro Og, Ministro Tarcisio, Ministro Sérgio Banhos e também o Vice-Procurador-Geral Eleitoral, Doutor Renato e o Diretor, Doutor Rui Moreira.

Presidente, é um rápido esclarecimento, até porque citado, honrosamente citado duas vezes no voto do Ministro Og Fernandes.

Veja, nenhuma regra de transição é perfeita, obviamente. Porque senão ela seria permanente, não seria de transição. O que se pretendeu – o que eu pretendi – com a regra de transição é evitar que uma eventual decisão – e isso vale para 2020 e valerá para 2022 –  do Tribunal Superior Eleitoral acabe, via reflexa, prejudicando mais as candidaturas negras.

Recebi um estudo técnico que falava de algumas distorções, e as distorções podem ocorrer com qualquer regra de transição. É por isso, exatamente, que a regra proposta por mim pegou o universo de candidaturas de homens separadas de candidaturas de mulheres. Exatamente para evitar o quê? Evitar que aqueles partidos que tradicionalmente têm um número muito restrito de candidaturas negras, de candidaturas principalmente de homens negros, acabem reduzindo a zero – e o Ministro Og Fernandes pinçou e citou dois casos, do PCB e do Partido Novo. Eu diria que, nesse caso, o PCB, se nós pegarmos tradicionalmente as candidaturas municipais, ele mantém sempre um número mais ou menos equitativo entre brancos e negros e não sofreria nenhum problema.

O problema seria, se nós fixarmos, por exemplo, o Partido Novo teria que dar 10% para candidaturas. No caso do Partido Novo, não faria diferença, porque ele não utilizou o Fundo Partidário para as eleições. Mas muitos – e eu tive o cuidado de, em alguns estados obviamente, analisar as listas que foram oferecidas aos eleitores –, muitos dos partidos colocam sempre as candidaturas negras no final da lista, simplesmente para receber alguns votos e tentar aumentar o quociente partidário.

Exatamente por isso, a redução de recursos é muito drástica. É isso que eu fiz questão de apontar. Nós teríamos duas possibilidades – não há dúvida disso, seja 2020 ou 2022, ao não estabelecer quota e isso, obviamente, todos concordamos, a função é do Poder Legislativo, mas ao não respeitar o que o próprio partido, na eleição passada, optou –, nós teríamos duas possibilidades: ou teríamos uma mesma proporção entre candidaturas de homens e negros, e aí, o cálculo que fiz, haveria uma transposição de quase 58 milhões dos candidatos homens brancos para os negros, ou manteríamos a mesma distribuição de recursos, continuando a privilegiar os homens brancos, e isso reduziria em 72 mil candidaturas de homens negros. Não há meio termo, ou reduz um ou reduz outro. Mas, obviamente, volto a dizer: toda regra de transição, por óbvio, é uma regra que pretende só fazer esse meio do caminho, essa ponte, sem maiores prejuízos.

Aproveito, Presidente, para não precisar mais me manifestar, obviamente, reiterar o voto que proferi, também acompanhando Vossa Excelência, que valha para agora, com essa regra de transição, e dizer rapidamente que entendo as questões bem colocadas pelo Ministro Og. Mas a todas elas me parece que a Justiça Eleitoral já tem resposta. O que aconteceria se um partido não cumprir o percentual mínimo de recursos – não é de candidatura, é de recursos – às candidaturas negras? Suas contas não seria aprovadas, simplesmente isso. Não seriam aprovadas. “Ah, e as doações feitas ao partido?” Nós aqui estamos a tratar somente de recursos públicos. Os recursos públicos, como também bem salientou o Ministro Og Fernandes, devem levar em conta, na sua distribuição, a necessária erradicação da desigualdade, da discriminação e da pobreza.

Então me parece que seria possível – sem surpreender os partidos, até porque as convenções nem se iniciaram – dar um passo a mais. Mas agradeço, Presidente, parabenizando as colocações do Ministro Og, que nos levam também, obviamente, a refletir sobre outros pontos que não foram trazidos na consulta, como, por exemplo, a autodeclaração ou não, que é um problema que o Supremo já enfrentou e ainda tem dificuldades, na prática, em relação a vestibular, a faculdade, a concursos públicos.

Obrigado, Presidente.

 

ESCLARECIMENTO

 

O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO (presidente): Obrigado, Ministro Alexandre de Moraes. De fato, essa questão da autodeclaração é um dos problemas mais graves em relação a esse tema, porque ninguém quer interferir com a autodeterminação das pessoas, de como elas se percebem e, por outro lado, ninguém quer chancelar a fraude, como, em muitas situações, ocorrem nos casos de quotas.

Eu vou seguir com a votação. Se for necessário, eu farei a interlocução com o Ministro Alexandre de Moraes, sobre essa questão da transição. Nesse momento, ainda não é necessário.

Eu somente peço, Ministro Og, que Vossa Excelência apenas leve em conta, enquanto os outros colegas votam: eu entendo perfeitamente a preocupação de Vossa Excelência, relativamente ao art. 16 da Constituição, que tem a seguinte dicção, que foi decisiva para a tomada de posição de Vossa Excelência.

Diz o art. 16:

Art. 16. A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência.

Não vou me perder em miudezas – porque aqui não se trata de lei –, mas eu levaria um questionamento: a qualificação da fase em que nós estamos como processo eleitoral, a lei que alterar o processo eleitoral.

Mas eu peço a Vossa Excelência que considere que, nos precedentes nessa matéria, tanto o do Supremo quanto o do Tribunal Superior Eleitoral, as decisões foram tomadas a menos de um ano das eleições.

No caso do Supremo Tribunal Federal, da relatoria do Ministro Edson Fachin, na ADI nº 5617, que instituiu a destinação mínima do Fundo Partidário para candidaturas femininas, o julgamento foi em 15 de março de 2018, para as eleições que se realizaram em outubro de 2018. E a decisão do próprio Tribunal Superior Eleitoral, sob a relatoria da Ministra Rosa Weber, na Consulta nº 0600252-18, em que nós estendemos, por unanimidade, os efeitos da decisão do Supremo também para o Fundo Eleitoral, ela foi tomada em 22 de maio de 2018.

Portanto, nas situações... porque a minha decisão e a dos demais colegas que a acompanharam foi inspirada por essa decisão do Supremo Tribunal Federal. Nós não deferimos a quota, porque, no caso das mulheres, havia uma quota estabelecida por lei. Mas nós deferimos, na mesma lógica adotada pelo Supremo e pelo TSE, uma quantidade de recursos dos Fundos, proporcional ao número de candidaturas, que é rigorosamente a hipótese que nós estamos lidando aqui, apenas estendendo isso para as candidaturas negras – portanto, nos precedentes que nós temos, nem o Supremo nem o TSE consideraram aplicáveis o art. 16 da Constituição.

Eu, pelo apreço, além de o Ministro Og Fernandes ser uma pessoa adorável é um homem dialógico, apenas peço que, enquanto os demais votam, Vossa Excelência possa fazer uma reflexão sobre esses dados, porque acho que... evidentemente é um avanço, 2022, mas não deixa de ser uma frustração também nós postergarmos por dois anos uma situação que, pelo menos até agora, a maioria já formada considera injusta.

 

VOTO

 

O SENHOR MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO: Senhor Presidente, 1. A hipótese cuida de Consulta formulada pela Deputada Federal Benedita da Silva, versando sobre a possibilidade de reserva de cotas para candidaturas de pessoas negras e, por conseguinte, a respectiva distribuição proporcional dos recursos públicos de campanha e do tempo de rádio e televisão, nos seguintes termos:

a) As formas de distribuição dos recursos financeiros e tempo em rádio e TV, já concedido às mulheres na Consulta 0600252-18.2018.6.00.0000, deverão ser na ordem de 50% para as mulheres brancas e outros 50% para as mulheres negras, conforme a distribuição demográfica brasileira? [...]

b) É possível haver reserva de vagas nos partidos políticos para candidatos negros, nos mesmos termos do que ocorreu com as mulheres? [...]

c) É possível aplicar o entendimento dos precedentes supra para determinar o custeio proporcional das campanhas dos candidatos negros, destinando 30% como percentual mínimo, para a distribuição do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, previsto nos artigos 16-C e 16-D, da Lei das Eleições, conforme esta Corte entendeu para a promoção da participação feminina?

d) É possível aplicar o precedente, também quanto à distribuição do tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão para os NEGROS, prevista nos artigos 47 e seguintes, da Lei das Eleições, devendo-se equiparar o mínimo de tempo destinado a cada partido, conforme esta Corte entendeu para a promoção da participação feminina?

Na assentada de 30/6/2020, o eminente Presidente e Relator, Ministro Luís Roberto Barroso, em voto verticalizado, respondeu a Consulta no sentido de que embora não caiba a esta Corte – por falta de previsão legal – impor a obrigatoriedade de cota de candidaturas para pessoas negras, os recursos públicos de campanha e o tempo de rádio e televisão devem observar a exata proporção entre os candidatos negros e brancos que vierem a ser registrados, respeitando-se, nesse cálculo, o percentual mínimo de 30% já previsto para as mulheres.

2. Anoto, de início, a relevância do tema em debate – fruto de aprofundada reflexão e talentoso trabalho do eminente relator e presidente, Ministro Barroso – e o papel desta Justiça Especializada em propiciar os meios necessários para a plena concretização da garantia fundamental de isonomia, prevista no caput e no inciso I do art. 5º da Constituição da República.

Os exemplos dessa incessante e imprescindível busca são inúmeros. Destaco, dentre eles, (a) recente Consulta de relatoria da Ministra Rosa Weber envolvendo a composição dos diretórios partidários por mulheres (CTA 0603816-39), (b) a distribuição proporcional de recursos e de tempo de propaganda entre candidaturas masculinas e femininas (CTA 0600252-18), (c) a identificação de candidatos transgêneros na urna eletrônica mediante seu nome social (Res.-TSE 23.609/2019) e (d) a impossibilidade de se exigir, de deficientes visuais, alfabetização em braille para disputar as eleições (RO 0602475-18, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, de 18/9/2018).

Temas sensíveis como os debatidos na presente Consulta exigem olhar atento deste Tribunal, seja em razão de sua relevância e das possíveis consequências das respostas oferecidas, sopesando bem todos os ângulos das questões que envolvem diretamente direitos fundamentais.

Por outro vértice, embora o campo seja vasto em um país de desigualdades históricas, deve-se ter igual atenção para que a atuação buscando a mitigação das omissões estatais e sociais não descambe para ilegítimo ativismo judicial.

Nesse ponto, relevante a preocupação da doutrina ao afirmar que:

A transferência de poderes e responsabilidades para o Judiciário dá espaço ao ativismo, até porque os Poderes Legislativo e o Executivo delegam decisões impopulares ao Poder que menos sofre consequências do ponto de vista de custo eleitoral.

CÔRTES, Osmar Mendes Paixão, A objetivação do processo e o ativismo judicial no contexto do pós-positivismo. São Paulo: REPRO RT 251 – janeiro/2016.

Após a segunda metade do século passado, principalmente a partir de estudos e casos concretos ocorridos nos Estados Unidos, colocou-se em pauta a questão de como deveriam atuar os juízes, debatendo-se sobre seu papel na interpretação do direito e implementação de direitos e garantias fundamentais.

Importante ressaltar que, por vezes, essa postura mais ativa pode ter reflexos concretos no sentido da modificação ou implementação de políticas públicas, devendo haver preocupação de idêntico calibre com a capacidade de realização prática das decisões judiciais.

Nesse sentido, é notório o caso Brown x Board of Education, nos Estados Unidos, quando os juízes federais buscaram implementar decisão da Suprema Corte de 1954 que determinava o fim da segregação racial no sistema educacional americano. As escolas para negros e para brancos deixariam de existir como tal, devendo o sistema passar a ser unitário e não racial.

O Poder Judiciário pode e deve avançar, sobretudo em situação contra majoritária de modo a garantir direitos constitucionais fundamentais, mas entendo que deve se autoconter e não pode substituir a sociedade ou seus representantes nos debates e na implementação de políticas públicas sobre o significado de direitos controversos.

Assim, é de se reconhecer, segundo penso, que o âmbito de atuação da Justiça Eleitoral encontra como limites, em primeiro lugar, o feixe de competências delimitado na Constituição e na legislação infraconstitucional, e, de igual modo, o princípio fundamental da separação de poderes, sendo “independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário” (art. 2º da CF/88).

Diante deste cenário, creio que o Tribunal, assim como bem e cuidadosamente estabelecido nos votos que me precederam, não extrapola sua competência ao responder a Consulta e examinar se os recursos públicos de campanha e o tempo de rádio e televisão devem observar a exata proporção entre os candidatos negros e brancos que vierem a ser registrados – sob enfoque do princípio constitucional da isonomia –, respeitando-se, nesse cálculo, o percentual mínimo de 30% já previsto para as mulheres em âmbito legal.

O eminente Relator deixou claro que, embora desejável, não se poderia estabelecer cotas para negros, à mingua de previsão legal, mas o Tribunal pode sim apreciar a divisão dos recursos públicos eleitorais à luz do princípio da igualdade, consoante será abordado ao longo do voto.

Como se vê, há de se distinguir a fixação, por esta Corte, entre a reserva obrigatória de cotas para a candidatura de pessoas negras, o que requer lei em sentido estrito, e a forma de distribuição dos recursos de campanha e do tempo de propaganda gratuita, que constitui decorrência lógica dos candidatos que vierem a ser livremente escolhidos pelas legendas.

Essa delimitação, no meu modo de pensar, a um só tempo evita a ilegítima atuação do Poder Judiciário na imposição de dever sem lei stricto sensu, e, de outra parte, representa consectário lógico do poder regulamentar conferido a esta Corte Superior para expedir instruções em matéria eleitoral (art. 105 da Lei 9.504/97).

3. Há de se ressaltar, também, que as respostas aos questionamentos formulados na presente Consulta perpassam necessariamente pela temática do racismo e pelas notórias desigualdades que subsistem em todas as searas da sociedade em desfavor da etnia negra – em especial nos campos econômico, político e educacional – mais de um século após abolida a escravidão, em 1888.

O racismo, em nosso país, manifesta-se nas mais diversas formas e ambientes, por razões que remontam a aspectos de ordem histórica e estrutural, de maneira direta ou implícita. Possui tamanha amplitude que fixou raízes no âmbito privado e também no público, na medida em que a prática racista concretiza-se não apenas em atos expressamente discriminatórios ou ofensivos, mas também em políticas, atos e planos governamentais que venham de algum modo a excluir ou a reduzir, por ações ou omissões, o acesso de determinada classe, raça ou etnia a direitos básicos de qualquer ser humano.

Adilson Moreira, ao sintetizar algumas das principais nuances sobre o tema, destaca o racismo aversivo (“sentimentos conscientes e inconscientes que sustentam atitudes negativas em relação a negros, [...] ancorados pelo funcionamento do psiquismo humano”), o racismo simbólico (“construções culturais que estruturam a forma como minorias raciais são representadas”) e, ainda, o racismo institucional. Quanto a esta última modalidade, salienta que

O conceito de racismo institucional designa práticas institucionais que podem ou não levar necessariamente a raça em consideração, mas que mesmo assim afetam certos grupos raciais de forma negativa. [...]

Atos praticados por representantes de instituições públicas e privadas contra minorias raciais que prejudicam o status social dos membros desses grupos expressam o racismo institucional. [...] O racismo institucional torna-se parte do funcionamento normal de instituições públicas e privadas que não levam em consideração o impacto de suas decisões ou de suas omissões na vida dos diferentes grupos raciais. Ele também ocorre quando elas implementam medidas que excluem grupos raciais de benefícios sociais. Como essas práticas discriminatórias fazem parte da operação normal dessas organizações, elas não são analisadas da mesma forma que atos individuais de racismo.

(Racismo Recreativo. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019)

O atual estágio de enraizamento do racismo, nas suas mais diversas formas, requer imediata atuação institucional, em todas as suas esferas, visando amainar a incômoda quadra atualmente vivida.

Essas constatações, ademais, materializam-se enfaticamente nos mais diversos dados estatísticos oficiais.

Os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), relativos a 2018, revelam que a renda média domiciliar per capita de pessoas brancas é quase duas vezes maior em comparação com pessoas negras (R$ 1.846,00 contra R$ 934,00).

Também se verifica disparidade no confronto de índices educacionais entre negros e brancos, cuja taxa de analfabetismo é de, respectivamente, 9,1% e 3,9%.

A essas duas estatísticas, que bastariam para evidenciar o verdadeiro abismo que separa negros e brancos no Brasil, soma-se a módica representação política da etnia negra na disputa e na eleição para o parlamento brasileiro e para a chefia do Poder Executivo nos três níveis da Federação.

Com efeito, os dados das Eleições 2018 demonstram, de um lado, que expressivos 71,9% dos candidatos eleitos eram brancos, contra apenas 27,8% de negros, e que apenas 3% do total de candidatos negros disputaram os pleitos majoritários (presidente da República, senador e governador).

4. A partir desse norte, passo ao exame dos questionamentos, os quais, em suma, podem ser analisados sob dois aspectos: (a) possibilidade de se estabelecer reserva de vagas para pessoas negras para fim de registro de candidatura; (b) distribuição dos recursos financeiros e do tempo de rádio e televisão, respeitada a proporção entre candidaturas de negros e de brancos.

4.1. Quanto ao primeiro ponto, entendo, assim como o eminente Relator, no sentido da impossibilidade de impor aos partidos políticos a pretendida reserva de cota para pessoas negras.

Essa medida, ainda que plenamente desejável, salutar e imprescindível ao cumprimento do múnus do poder público de erradicar o racismo, requer atuação legislativa em sentido estrito, que, portanto, refoge às competências administrativa e jurisdicional do Tribunal Superior Eleitoral.

Com efeito, é de se ver que a Lei 9.504/97, no § 3º do art. 10, contempla hipótese de reserva de vagas apenas quanto ao gênero:

Art. 10.  Cada partido ou coligação poderá registrar candidatos para a Câmara dos Deputados, a Câmara Legislativa, as Assembleias Legislativas e as Câmaras Municipais no total de até 150% (cento e cinquenta por cento) do número de lugares a preencher, salvo:

[...]

§ 3º Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo.

Por conseguinte, sendo clara e específica a delimitação do dispositivo, não considero factível, em interpretação extensiva, ampliar a previsão legal a fim de que a reserva de vagas também contemple pessoas negras.

Como já antes sublinhado, a atuação do Poder Judiciário não pode substituir a sociedade ou seus representantes nos debates de matérias como a versada na hipótese, isto é, que venham a gerar obrigação perante os atores do processo eleitoral, ainda que pautada pela premente necessidade de concretização de escopos sociais de reconhecido quilate.

Observo, ainda, a manifesta dificuldade de esta Justiça Especializada definir o percentual que seria fixado nessa hipótese, haja vista a diversidade de critérios que poderiam incidir no caso, a exemplo da paridade de 30% já prevista para as mulheres ou do percentual da população negra brasileira.

Ademais, sem contar a necessidade de complexo estudo visando a inclusão de outras etnias ou classes sub-representadas.

4.2. De outra parte, a conclusão atinente ao primeiro questionamento não impede que esta Corte, tendo por base as candidaturas de negros e brancos que venham a ser efetivamente lançadas, determine que os partidos políticos adotem distribuição proporcional, tanto dos recursos públicos de campanha, como do tempo de rádio e televisão.

Consoante salientou o eminente Relator,

45. [...] Na ausência de uma norma específica que institua ação afirmativa para pessoas negras no acesso a participação política, determinando, e.g., o tamanho da cota e suas condições específicas, o Poder Judiciário não deve – em princípio – ser protagonista da sua formulação.

46. Isso não quer dizer que não haja papel algum a desempenhar. É legítima a atuação do Poder Judiciário para assegurar direitos fundamentais de grupos historicamente vulneráveis, como mulheres, negros ou homossexuais, contra discriminações, diretas ou indiretas. Assim, embora não caiba neste momento proceder à criação de uma política afirmativa voltada para as candidaturas de pretos e pardos, o TSE pode atuar no sentido de impedir que a ação afirmativa instituída pela Lei nº 9.504/1997 produza discriminações injustificadas em desfavor de grupos historicamente marginalizados e a perpetuação da desigualdade racial no acesso aos cargos públicos eletivos.

Trata-se aqui, no meu modo de ver, não apenas de mera decorrência lógica da proporção de candidatos negros e brancos que vierem a ser lançados, mas de uma questão maior, de justiça, como verdadeiro corolário dos princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana.

Segundo a doutrina de Pedro Lenza,

O art. 5º, caput, consagra que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Deve-se, contudo, buscar não somente essa aparente igualdade formal (consagrada no liberalismo clássico), mas, principalmente, a igualdade material, na medida em que a lei deverá tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades. Isso porque, no Estado social ativo, efetivador dos direitos humanos, imagina-se uma igualdade mais real perante os bens da vida, diversa daquela apenas formalizada perante a lei

(Direito Constitucional Esquematizado: Igualdade Formal e Material. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 679).

Acrescenta Gilmar Ferreira Mendes que “liberdade e igualdade formam dois elementos essenciais do conceito de dignidade da pessoa humana, que o constituinte erigiu à condição de fundamento do Estado Democrático de Direito e vértice do sistema dos direitos fundamentais” (Curso de Direito Constitucional. 13ª Ed. São Paulo: Saraiva: 2020. P. 371).

Em consequência, a distribuição igualitária dos recursos de campanha e do tempo de propaganda, na exata proporção de candidaturas lançadas, representa decisivo passo para concretizar a garantia constitucional da isonomia em seu aspecto material, de forma a amainar a histórica desigualdade de condições entre negros e brancos vivenciada em nosso país.

Esse entendimento também contempla a dignidade da pessoa humana, porquanto confere, a grupo social notoriamente sub-representado, condições mais equânimes de acesso às cadeiras do parlamento e à chefia do Poder Executivo nas esferas federal, estadual e municipal, fomentando, por conseguinte, a criação de incentivos e a aprovação de projetos que possam reduzir a escala de desigualdade enfrentada pelas pessoas negras. 

5. Anoto também que, na sessão de 20/8/2020, o douto Ministro Alexandre de Moraes acompanhou o eminente Presidente na resposta à Consulta, porém, em acréscimo, propôs a seguinte tese:

[...] os percentuais mínimos de distribuição de recursos públicos do Fundo Partidário e do FEFC e o tempo de rádio e TV destinados às candidaturas de mulheres e homens negros serão calculados na exata proporção das candidaturas apresentadas pelas agremiações nas eleições de 2016.

Com todas as vênias, e apesar das relevantes considerações do eminente Ministro vistor, penso que esta não parece a melhor solução.

Isso porque a adoção de critério que não a exata proporcionalidade entre o número de candidatos brancos e negros que vierem a ser registrados – tal como defendido pelo eminente Presidente – pode ensejar inúmeras intercorrências de ordem prática na distribuição dos recursos e do tempo de propaganda gratuita.

Como já tive oportunidade de ponderar, é salutar que o Poder Judiciário avalie as repercussões de ordem prática decorrentes do exercício de sua competência jurisdicional e administrativa.

A título demonstrativo, destaco alguns dos questionamentos ou controvérsias que podem surgir a partir da reprodução do quadro de candidaturas verificado nas Eleições 2016, para fins de distribuição dos recursos de campanha e do tempo de rádio e televisão em pleitos futuros:

a) após o último pleito municipal, esta Corte deferiu o registro do estatuto do Unidade Popular. Assim, surge a problemática de este partido, diversamente dos demais, ter plena liberdade de lançar candidaturas de pessoas negras e brancas na proporção que entender adequada, em detrimento das demais agremiações, que deverão observar o quadro de 2016;

b) consoante a Emenda Constitucional 97/2017, que deu nova redação ao art. 17, § 1º, da Constituição Federal, a partir de 2020 não mais se permitirão coligações para as eleições proporcionais, o que pode gerar distorções na medida em cada partido político disputará o pleito isoladamente;

c) a observância da proporção de candidaturas registradas em 2016 implicará, em última análise, manter a discrepância verificada entre as agremiações naquela oportunidade, com percentuais de candidatos negros que variaram entre 9% e 70% a depender da legenda.

Assim, tenho que a regra de distribuição proposta pelo eminente Presidente é a que melhor equaciona a implementação da política de igualdade racial que se objetiva estabelecer.

6. Apesar de acompanhar o eminente Presidente na resposta às perguntas formuladas, e, ainda, da inequívoca relevância do tema em debate nesta Consulta, entendo que a aplicação do entendimento ora firmado deve ocorrer apenas a partir das Eleições 2022, em observância ao princípio da anualidade ou anterioridade eleitoral, insculpido no art. 16 da Constituição da República, in verbis:

Art. 16. A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência.

É remansosa a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de que o mencionado dispositivo aplica-se não apenas na seara legislativa, como também na atuação jurisdicional desta Corte, como se decidiu em célebre caso julgado sob o regime de repercussão geral envolvendo matéria eleitoral:

[...] II. MUDANÇA DA JURISPRUDÊNCIA EM MATÉRIA ELEITORAL. SEGURANÇA JURÍDICA. ANTERIORIDADE ELEITORAL. NECESSIDADE DE AJUSTE DOS EFEITOS DA DECISÃO. Mudanças radicais na interpretação da Constituição devem ser acompanhadas da devida e cuidadosa reflexão sobre suas consequências, tendo em vista o postulado da segurança jurídica. Não só a Corte Constitucional, mas também o Tribunal que exerce o papel de órgão de cúpula da Justiça Eleitoral devem adotar tais cautelas por ocasião das chamadas viragens jurisprudenciais na interpretação dos preceitos constitucionais que dizem respeito aos direitos políticos e ao processo eleitoral. Não se pode deixar de considerar o peculiar caráter normativo dos atos judiciais emanados do Tribunal Superior Eleitoral, que regem todo o processo eleitoral. Mudanças na jurisprudência eleitoral, portanto, têm efeitos normativos diretos sobre os pleitos eleitorais, com sérias repercussões sobre os direitos fundamentais dos cidadãos (eleitores e candidatos) e partidos políticos. No âmbito eleitoral, a segurança jurídica assume a sua face de princípio da confiança para proteger a estabilização das expectativas de todos aqueles que de alguma forma participam dos prélios eleitorais. A importância fundamental do princípio da segurança jurídica para o regular transcurso dos processos eleitorais está plasmada no princípio da anterioridade eleitoral positivado no art. 16 da Constituição. O Supremo Tribunal Federal fixou a interpretação desse artigo 16, entendendo-o como uma garantia constitucional (1) do devido processo legal eleitoral, (2) da igualdade de chances e (3) das minorias (RE 633.703). Em razão do caráter especialmente peculiar dos atos judiciais emanados do Tribunal Superior Eleitoral, os quais regem normativamente todo o processo eleitoral, é razoável concluir que a Constituição também alberga uma norma, ainda que implícita, que traduz o postulado da segurança jurídica como princípio da anterioridade ou anualidade em relação à alteração da jurisprudência do TSE. Assim, as decisões do Tribunal Superior Eleitoral que, no curso do pleito eleitoral (ou logo após o seu encerramento), impliquem mudança de jurisprudência (e dessa forma repercutam sobre a segurança jurídica), não têm aplicabilidade imediata ao caso concreto e somente terão eficácia sobre outros casos no pleito eleitoral posterior.

[...]

(RE 637.485/RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes, Plenário, DJE de 20/5/2013)

Conforme lecionam Flávio Cheim Jorge, Ludgero Liberato e Marcelo Abelha Rodrigues, o princípio da anterioridade da Lei Eleitoral constitui uma das mais relevantes expressões da segurança jurídica:

[...] O princípio da anterioridade da Lei eleitoral está previsto no art. 16 da CF/88, sendo verdadeira manifestação do princípio da segurança jurídica com espeque na seara eleitoral.

Por meio dele, garante-se que as alterações que porventura ocorrerem no processo eleitoral somente produzam efeitos nas eleições que ocorrerem após um ano de sua vigência.

(Curso de Direito Eleitoral, 2ª Ed. Salvador: JusPODVIUM, 2017. P. 67)

A segurança jurídica encontra amparo em inúmeros dispositivos além do mencionado art. 16, a denotar sua posição privilegiada no corpo normativo e principiológico da Constituição de 1988. Conforme a doutrina clássica de José Afonso da Silva, são reconhecidas no texto constitucional quatro modalidades de segurança jurídica: a segurança como garantia; a segurança como proteção dos Direitos subjetivos; a segurança como Direito social e a segurança por meio do Direito (In: ROCHA, Carmen Lúcia Antunes (Coord.). Constituição e segurança jurídica: Direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. Estudos em homenagem a José Paulo Sepúlveda Pertence. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 165-191).

De fato, o compromisso do legislador constituinte com essa indispensável garantia é extraído, direta ou implicitamente, de outras disposições, como a vedação de que alguém seja obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (art. 5º, II), a observância ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada (art. 5º, XXXVI), a privação da liberdade ou dos respectivos bens apenas mediante o devido processo legal (art. 5º, LIV), a impossibilidade de reapreciação na mesma sessão legislativa de proposta de emenda constitucional rejeitada ou prejudicada (art. 60, § 5º), e, ainda, a anterioridade nonagesimal ou anual na cobrança de tributos (art. 150, III, b e c).

E não poderia ser diferente, novamente recorrendo à abalizada doutrina. Canotilho categoriza a segurança jurídica como princípio, atribuindo-lhe uma necessária relação de causa e efeito entre os atos e decisões públicas do Estado e sua previsão normativa. Confira-se:

O Direito de o indivíduo poder confiar em que aos seus atos e às suas decisões públicas incidentes sobre os seus direitos, posições ou relações jurídicas alicerçadas em normas jurídicas vigentes e válidas por esses atos jurídicos deixados pelas autoridades com base nessas normas se ligam os efeitos jurídicos previstos e prescritos no ordenamento jurídico.

(Direito constitucional e teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2013. P. 257)

Em obra específica sobre o tema, Humberto Ávila aponta que a segurança jurídica pode ser analisada sob uma perspectiva do Estado de Direito, estática, englobando os requisitos estruturais do próprio ordenamento, e também sob um prisma dinâmico, ou seja, levando em conta a atuação do Direito no tempo (Segurança jurídica. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 305 e ss).

Desse modo, a estatura constitucional do princípio da segurança jurídica requer que a superveniência de alterações legislativas ou jurisprudenciais observem parâmetros que impeçam o comprometimento da estabilidade das relações jurídicas, mormente nesta seara, pois, como se sabe, os debates intrapartidários para a escolha de candidatos iniciam-se em período muito anterior ao microprocesso eleitoral, que compreende apenas o período das convenções até a data do prélio.   

Além das multicitadas balizas teóricas e normativas, penso que algumas questões de ordem prática recomendam – rogando as mais respeitosas vênias aos que entenderem de modo diverso – a adoção apenas para pleitos futuros do entendimento proposto nesta Consulta.

Entendo que a resposta à Consulta, apesar de fruto de intenso e colaborativo debate entre os eminentes pares, demanda posterior Resolução por esta Corte, de modo a disciplinar o tema, nos termos do art. 105 da Lei 9.504/97, segundo o qual “[...] o Tribunal Superior Eleitoral, atendendo ao caráter regulamentar e sem restringir direitos ou estabelecer sanções distintas das previstas nesta Lei, poderá expedir todas as instruções necessárias para sua fiel execução, ouvidos, previamente, em audiência pública, os delegados ou representantes dos partidos políticos”.

Essa circunstância, aliada ao fato de que, por força da Emenda Constitucional 107/2020, as convenções partidárias para a escolha de candidatos terão início em seis dias, recomendam – a meu sentir – prudência na aplicação imediata do que aqui decidido.

Na esteira dessa questão, é bem de ver que, em casos como o dos autos, impende regulamentar posteriormente a matéria por meio de Resolução. Dentre os inúmeros exemplos passíveis de menção, cito as recentes Consultas de minha relatoria envolvendo a possibilidade de convenções partidárias em formato virtual, que culminaram na Res.-TSE 23.623/2020, e a Consulta 13-98, sobre fidelidade partidária, que resultou na Res.-TSE 22.610/2007.

Por fim, há notícia de que ao menos onze partidos políticos já definiram os critérios de distribuição dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha para as Eleições 2020. Assim, a alteração dos critérios no atual estágio tem o potencial de produzir ruídos indesejáveis na distribuição desses valores, causando insegurança jurídica.

7. Ante o exposto, acompanho em parte o eminente Presidente para assentar a (a) impossibilidade de a Justiça Eleitoral criar reserva de vagas para pessoas negras para fim de registro de candidatura e (b) a distribuição dos recursos financeiros e do tempo de rádio e televisão deve respeitar a proporção entre candidatos de pessoas negras e brancas, entendimento, contudo, aplicável apenas a partir das Eleições 2022, em observância aos princípios da anualidade e da segurança jurídica.

É como voto.

 

ESCLARECIMENTO

 

O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO (presidente): Ministro Salomão, perdão, o art. 16 fala um ano, não fala oito meses, sete meses, quatro meses. Ou se aplica o art. 16 ou não se aplica.

O SENHOR MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO: Sim, Ministro Barroso, nós estamos somando argumentos. Eu acho que ela precisa – se houve o erro passado, como se diz, com todo respeito, eu não tenho compromisso com erro, eu tenho compromisso com os acertos futuros.

Mas ainda que não se considere essa anualidade, como Vossa Excelência postula ou propõe com muita argúcia, com muito talento, como sempre, ainda que se flexibilize, é preciso ter um período de respiro, fazer isso com dezesseis dias pela frente é muito elemento surpresa para a vida partidária, penso eu, claro, respeitando aí a posição em contrário.

Como dito, eu acompanho integralmente o voto do eminente relator, respondendo aos quesitos. Não há nenhuma divergência em relação a isso, me somo à maioria já estabelecida, mas também pondero – assim como fez o Ministro Og Fernandes – que a validade dessa regra será para o futuro, mediante a elaboração de uma resolução, sendo que, nesse meio tempo, se assim  desejar, o Parlamento poderia, convidado que é, legislar sobre esse tema.

É como voto, Presidente.

O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO (presidente): Muito obrigado, Ministro Luis Felipe Salomão. Desculpe a interrupção, mas nós somos parceiros no debate e na construção dialógica de soluções, mas eu tenho todo o respeito pela posição de Vossa Excelência.

 

VOTO

 

O SENHOR MINISTRO TARCISIO VIEIRA DE CARVALHO NETO: Senhor Presidente, trata-se de consulta formulada pela deputada federal Benedita Souza da Silva Sampaio, nos seguintes termos:

As formas de distribuição dos recursos financeiros e tempo em rádio e TV, já concedido às mulheres na Consulta 0600252-18.2018.6.00.0000, deverão ser na ordem de 50% para as mulheres brancas e outros 50% para as mulheres negras, conforme a distribuição demográfica brasileira?

É possível haver reserva de vagas nos partidos políticos para candidatos negros, nos mesmos termos do que ocorreu com as mulheres?

É possível aplicar o entendimento dos precedentes supra para determinar o custeio proporcional das campanhas dos candidatos negros, destinando 30% como percentual mínimo, para a distribuição do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, previsto nos artigos 16-C e 16-D, da Lei das Eleições, conforme esta Corte entendeu para a promoção da participação feminina?

É possível aplicar o precedente, também quanto à distribuição do tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão para os NEGROS, prevista nos artigos 47 e seguintes, da Lei das Eleições, devendo-se equiparar o mínimo de tempo destinado a cada partido, conforme esta Corte entendeu para a promoção da participação feminina? (ID nº 11856638)

Na inicial, a consulente tece considerações a título de contextualização da “participação dos negros nas eleições como candidatos” (ID nº 11856638, fl. 4) e aponta a necessidade da sua maximização. Aborda aspectos atinentes à representatividade e à igualdade como reconhecimento. Expõe que seus questionamentos têm como base o julgamento feito pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na ADI nº 5617 e pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) na Cta nº 0600252-18, além da Lei nº 12.880/2010.

O parecer da Assessoria Consultiva (Assec) deste Tribunal é pelo conhecimento da consulta, com resposta negativa aos questionamentos, ante a necessidade de observância do devido processo legislativo (ID nº 21912388).

Parecer da Procuradoria-Geral Eleitoral também pelo conhecimento, com resposta “negativa a todos os quesitos da consulta, por ausência de previsão legal, mantendo-se legítima, contudo, a opção de determinada agremiação partidária, no exercício de sua autonomia, por fixar critérios de reserva de vagas e recursos financeiros para candidatas e candidatos negros” (ID nº 25568638).

Na sessão de julgamento do dia 30.6.2020, o relator prolatou voto no sentido de conhecer da consulta e responder afirmativamente aos primeiro, terceiro e quarto quesitos, com resposta negativa apenas à segunda indagação, no que foi acompanhado às inteiras pelo Ministro Edson Fachin, ocasião em que houve pedido de vista regimental pelo Ministro Alexandre de Moraes.

É o relatório do necessário.

Passo ao voto.

Senhor Presidente, de início e da mesma forma como já feito nos substanciosos votos que me antecederam, entendo ser o caso de conhecimento da consulta diante da legitimidade da consulente, que é deputada federal, da pertinência temática atinente ao objeto da consulta, que repousa, em suma, no alcance dos julgamentos realizados na ADI nº 5617/DF (Rel. Min. Edson Fachin, DJe de 2.10.2018) e na Cta nº 0600252-18/DF (Rel. Min. Rosa Weber, DJe de 15.8.2018), bem como da inequívoca abstração aliada à objetividade e à clareza das dúvidas plausíveis trazidas para análise desta Corte.

Consoante o relatado, há quatro questionamentos formulados, que podem ser lidos, de forma concatenada e objetiva, como a possibilidade ou não de distribuição igualitária, entre mulheres brancas e negras, de recursos financeiros e tempo de propaganda, bem como a viabilidade ou não da reserva de vagas nos partidos políticos para candidatos negros, nos mesmos termos que há para mulheres, com a consequente extensão também da destinação dos recursos financeiros e tempo de propaganda de maneira proporcional.

Sobre o tema, é certo que os “recursos oriundos do Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos (Fundo Partidário) são públicos e têm a sua aplicação vinculada ao disposto no art. 44 da Lei 9.096/95” (REspe nº 0601193-81/AP, Rel. Min. Sergio Banhos, DJe de 12.12.2019), ademais, de igual forma, é tranquila a afirmação na linha de que o “FEFC é composto por verbas públicas, de destinação vinculada, sendo sua utilização disciplinada por legislação específica, de modo a garantir o controle dos gastos e a fiscalização pela Justiça Eleitoral” (AgR-AI nº 0605505-56/RJ, de minha relatoria, DJe de 15.6.2020).

Nesse contexto, uma premissa inicial soa-me extremamente importante: a campanha eleitoral é em grande parcela financiada com recursos públicos, por isso a distribuição dessas verbas deve seguir necessariamente os critérios legais, com a interpretação conferida pelo STF na análise das normas atinentes à matéria.

Pode-se dizer, portanto, que há uma destinação legalmente vinculada em razão da natureza pública da verba, como ocorre, a título de exemplo, com as candidaturas femininas, para as quais há a reserva de 30% no lançamento dos registros de candidaturas, com destinação do percentual proporcional do Fundo Partidário e do FEFC, assim como do tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão, tudo conforme os arts. 10, § 3º, 16-C, 16-D e 47, todos da Lei nº 9.504/97, 9º da Lei nº 13.165/2015, na leitura empregada na ADI nº 5617/DF (Rel. Min. Edson Fachin, DJe de 2.10.2018) e na Cta nº 0600252-18/DF (Rel. Min. Rosa Weber, DJe de 15.8.2018).

Veja-se que a base normativa acima exposta é literal quanto ao preenchimento mínimo de 30% e máximo de 70% para candidaturas de cada sexo, com a consequente reserva financeira para aplicação nessas campanhas. O STF e o TSE, ao se debruçarem sobre esse arcabouço normativo já em vigor, apenas conferiram uma interpretação conforme à Constituição dos dispositivos e uma leitura da diretriz hermenêutica do pronunciamento operado na ação de controle, respectivamente.

Não houve, como não poderia deixar de ser, gênese normativa nos julgamentos supramencionados, mas tão somente a densificação da norma em vigor, em interpretação extraída do órgão competente para tanto, em prol da efetividade da regra. O TSE, por sua vez, sem criar fundamentação nova, mas apenas aplicando de maneira racional e coerente a ratio decidendi da Corte Constitucional, afirmou que a distribuição dos recursos do FEFC e do tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão deveria observar os percentuais mínimos de candidatura por gênero.

Por outro lado, diferentemente do que ocorre com as regras afetas às candidaturas por gênero, não há, na legislação pátria, base normativa apta a garantir reserva de recursos financeiros para o abastecimento de candidaturas negras, masculinas ou femininas, cenário que forçosamente deságua na conclusão de que tal matéria é adstrita ao âmbito interno de cada partido político, como genuína matéria interna corporis, a partir da análise de viabilidade de cada candidatura para fins de distribuição dos recursos públicos.

Uma leitura apressada desse raciocínio talvez pudesse trazer à baila a ocorrência de indiferença quanto à matéria, que de forma alguma se chancela, sendo certo que o tema é caro e precisa ser debatido de maneira séria e responsável, como de fato já vem ocorrendo em diversas searas jurídicas.

O Brasil dispõe de instrumentos legais materializadores das ações afirmativas necessárias referentes ao tema, como a Lei nº 12.990/2014, que reserva aos negros 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, de autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista controladas pela União, norma, aliás, declarada constitucional pelo STF na ADC nº 41/DF, Rel. Min. Roberto Barroso, DJe de 16.8.2017.

Veja-se, ainda, a Lei nº 12.711/2012, que dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio, em que há reserva de vaga para estudantes autodeclarados pretos, pardos e indígenas. O STF, antes mesmo da edição da referida lei, foi instado a se pronunciar acerca das regras então previstas administrativamente pelas instituições de ensino no mesmo contexto do que viria a ser posteriormente legislado, ocasião em que foi afirmado não haver ofensa à igualdade, mas verdadeiro prestígio a tal princípio na medida em que a atribuição de determinadas vantagens, de maneira pontual e temporalmente limitadas, permitiria a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares (ADPF nº 186/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe de 20.10.2014).

É de se notar, ademais, que, em dezembro de 2012, o quesito “cor ou raça” passou a ser campo obrigatório dos registros administrativos, cadastros, formulários e bases de dados do governo federal. A inovação teve por objetivo orientar os órgãos públicos federais na adoção de ações de promoção da igualdade racial previstas na Lei nº 12.288/2010, que institui o Estatuto da Igualdade Racial e atende reivindicações do movimento negro brasileiro.

Em todos esses exemplos é possível visualizar a lei como um instrumento de reequilíbrio social, mediante imposições de desigualdades compensatórias, gestada na arena política, vocacionada para tanto.

Por outro lado, na seara eleitoral propriamente dita, não se verifica a existência de legislação robusta a tratar de tão caro tema. Pode-se mencionar a regra do art. 93-A da Lei nº 9.504/97, que impõe ao TSE a promoção de propaganda institucional destinada a incentivar a participação feminina, dos jovens e da comunidade negra na política, mas não há, na norma, disposições sobre cotas ou reservas de recursos.

Sem dúvida, essa esqualidez legal reclama, em razão da premência da matéria, um diálogo institucional para que o tema, já às portas do Poder Judiciário, seja tratado de forma responsável no Congresso Nacional, de forma que compreendo, com todas as vênias, inviável a criação de cotas ou reservas financeiras pela via jurisprudencial, sobretudo diante da ausência de demonstração omissiva do órgão constitucionalmente destinado à tarefa.

É de se notar, nesse contexto e como bem pontuado pelo parecer da área técnica do TSE, que está em tramitação na Câmara dos Deputados o PL nº 8350/2017, cuja ementa é assim redigida: “Altera a Lei nº 9.096, de 19 de setembro de 1995, para prever a destinação de recursos do Fundo Partidário para a promoção da participação política de afrodescendentes”. Ao referido projeto estão apensados outros três (PL nº 459/2019, PL nº 10190/2018 e PL nº 9693/2018), que, em síntese, almejam a reserva de parte do Fundo Partidário e do FEFC para o incentivo à participação da população negra na política.

Todas essas proposições apontam, portanto, para a conclusão de que o tema já está em debate na seara legislativa própria, de forma que eventual resposta desta Corte à presente consulta poderia consubstanciar uma solução per saltum no arquétipo constitucional em que cabe ao Judiciário, quando provocado e a partir de seus órgãos competentes, aferir a constitucionalidade de determinadas soluções legais já existentes.

Por questão de coerência hermenêutica, ademais, entendo prudente estabelecer um distinguishing do cenário no qual está envolta a presente consulta com meu posicionamento no julgamento da Cta nº 0600252-18/DF (Rel. Min. Rosa Weber, DJe de 15.8.2018), em que acompanhei o voto da relatora para que a solução adotada pelo STF na ADI nº 5617/DF (Rel. Min. Edson Fachin, DJe de 2.10.2018) fosse aplicada também para fins de destinação de recursos do FEFC e do tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão, com a observância do percentual das candidaturas por gênero.

Naquele caso, como já exposto no início do presente voto, havia um arcabouço normativo a ser interpretado, na medida em que o art. 10, § 3º, da Lei nº 9.504/97 já previa a necessidade de observância dos percentuais mínimos e máximos dos gêneros nas candidaturas, ao passo que o art. 9º da Lei 13.165/2015 já destinava parcela do Fundo Partidário ao financiamento das campanhas eleitorais das candidatas dos partidos.

A partir desse cenário legal posto, sobreveio a interpretação conforme empregada pelo STF na ação de controle sobre a matéria, e esta Corte, de forma subsequente e diante do substrato tanto normativo advindo do legislador quanto interpretativo advindo da Corte incumbida de abstratamente controlar a compatibilidade da lei diante da Constituição da República, posicionou-se pela aplicação da mesma ratio decidendi, tendo como norte a diretriz hermenêutica previamente fixada.

Rememoro também, por oportuno, o julgamento da Cta nº 0603816-39/DF, de relatoria da Ministra Rosa Weber, em que esta Corte entendeu, na sessão de julgamento ocorrida em 19.5.2020, que a previsão de reserva de vagas para a disputa de candidaturas proporcionais, inscrita no § 3º do artigo 10 da Lei nº 9.504/97, deve ser observada para a composição das comissões executivas e diretórios nacionais, estaduais e municipais dos partidos políticos, de suas comissões provisórias e demais órgãos equivalentes. A resposta, no entanto, ocorreu sem vinculatividade normativa e sem natureza sancionatória.

Naquela ocasião, ao acompanhar o voto da relatora no mérito, teci considerações sobre o parágrafo único do art. 30 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) e aderi à proposta do Ministro Luís Roberto Barroso no sentido de que fosse iniciado um debate bastante fértil com o Congresso Nacional para que aquele órgão, dentro da sua discricionariedade política e de seu poder legiferante, trabalhasse a matéria como entender de Direito. A solução propugnada, portanto, partiu da existência da regra exposta no art. 10, § 3º, da Lei nº 9.504/1997, e, ainda assim, não ocorreu com a total eficácia do que disposto na mencionada norma da LINDB, novamente a configurar um quadro jurídico diverso do que a presente Consulta descortina.

O caso em exame, por outro lado, não parte de um pressuposto normativo próprio, capaz de gerar uma interpretação extensiva voltada ao máximo alcance do significado legal. A consulente, na realidade, questiona e entende que as respostas a suas dúvidas deveriam ser da ordem afirmativa a partir de analogia com os regramentos existentes às mulheres.

Como se vê, o “dever de apresentação de candidaturas femininas é imposto em lei aos partidos políticos, mas não há imposição de recorte da etnia ou da cor da pele”, nesse sentido, a “Justiça Eleitoral, dentro de seu espectro de atuação, pode e deve produzir medidas de promoção de igualdade na cidadania, mas não pode transferir esse encargo aos partidos políticos sem lei”, como bem exposto no parecer ministerial acostado aos autos (ID nº 25568638).

Isso não impede, é claro, que os partidos políticos deliberem e entendam prudente a reserva de vagas para candidatos negros, inclusive com destinação de recursos e tempo de propaganda eleitoral de forma proporcional, contudo tal decisão, diante da ainda ausente previsão legal sobre o tema, circunscreve-se na autonomia partidária, a partir de juízos próprios como o da representatividade ou mesmo da viabilidade (performance política).

Com efeito, pode-se afirmar, inclusive, que uma previsão interna da destinação mínima das verbas públicas em relação a todos os candidatos escolhidos em convenção partidária mostrar-se-ia como um elemento agregador de qualidades ao partido, apto a atrair candidatos atentos à concepção de representatividade material, bem como votos também com o mesmo móvel.

Há, nesse sentido, diante da imposição dos fatos, guias naturais a moldarem a autonomia partidária, que não pode ser concebida como um passe livre ao partido político. Some-se a esse raciocínio a existência de diversas amarras também de ordem legal, dispostas no art. 44 da Lei nº 9.096/95 e nos art. 16-C e 16-D da Lei nº 9.504/97, dentre outros.

Como último tópico de reflexão e no mesmo contexto atinente à concepção de que, diante da ausência de comprovação de omissão legislativa, cabe ao Congresso Nacional debater o caro tema trazido ao exame da Corte pela consulente, verifico a existência do Projeto de Lei nº 4041/2020, em análise na Câmara dos Deputados, que tem por objetivo alterar as Leis nº 9.504/97 e nº 9.096/95 (Lei dos Partidos) com o fim de promover candidaturas étnico-raciais e assegurar recursos e tempo de rádio e televisão em proporções equivalentes.

Além das demais proposições legislativas em análise antes elencadas, essa, em especial, foi proposta pela própria consulente, em conjunto com diversos outros parlamentares, e, de forma específica, traz a reserva de quotas mínimas para candidaturas de afro-brasileiros (pretos e pardos), sem prejuízo dos percentuais previstos para as candidaturas de gênero. Ademais, há igual destinação, pelo projeto, de valores do FEFC e do Fundo Partidário em proporção de 50% para candidaturas de mulheres brancas e 50% para mulheres pretas e pardas.

Segundo a justificativa do referido projeto de lei, a “proposta legislativa, de um lado, positiva do texto da legislação as recentes decisões do Supremo Tribunal Federal e Tribunal Superior Eleitoral acerca do financiamento das candidaturas femininas e, de outro, assegura maior representatividade étnico-racional nos pleitos eleitorais, inclusive com melhor distribuição de recursos e tempos de rádio e televisão na promoção das candidaturas de pretos e pardos”.

Com essa leitura, pode-se compreender que o tema trazido a esta Corte está, às inteiras, em análise na Câmara dos Deputados, de maneira que eventual resposta, senão aquela na linha de que não há previsão legal em vigor sobre o tema, turbaria o genuíno debate instaurado na seara legislativa.

É imperioso avançar e adotar medidas que denotem respeito à diversidade, ao pluralismo, à subjetividade e à individualidade como expressões do postulado supremo da dignidade da pessoa humana. Aliado a tal concepção, rememoro que um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil consiste em promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade ou quaisquer outras formas de discriminação. Não obstante, para fins de resposta às sensíveis inquietações trazidas para análise, entendo que o tema, despido de legislação própria, está muito bem entregue ao elevado descortino político do Congresso Nacional, diante da salutar iniciativa da consulente e de demais parlamentares.

Ante o exposto, com todas as vênias, na linha do parecer técnico da ASSEC e do douto parecer ministerial, divirjo do relator, conheço da presente consulta e a respondo negativamente.

É como voto.

 

VOTO

 

O SENHOR MINISTRO SÉRGIO BANHOS: Senhor Presidente, antes de tudo, louvo o denso voto de Vossa Excelência, que bem retrata uma das mais graves mazelas históricas da sociedade brasileira, o racismo estrutural, decorrente, dentre outras razões, de um processo de abolição da escravatura sem inclusão social, culminando no abandono de gerações de concidadãos negros à própria sorte.

Desse modo, já de início, adianto que estou de acordo com a precisa fundamentação constante do item II do voto de Vossa Excelência, pensamento muito bem sintetizado no seguinte trecho: “Trata-se aqui do racismo que é incorporado nas estruturas políticas sociais e econômicas e no funcionamento das instituições. Essa forma de racismo se reflete na institucionalização, naturalização e legitimação de um sistema e modo de funcionamento social que reproduz as desigualdades raciais e afeta, em múltiplos setores, as condições de vida, as oportunidades, a percepção de mundo e a percepção de si que pessoas, negras e brancas, adquirirão ao longo de suas vidas”.

O diálogo que pretendo estabelecer no meu voto diz respeito não só ao cenário supracitado, infeliz chaga da Nação, mas também aos limites da manifestação desta Corte Superior em sede de consulta.

No Estado Democrático de Direito, novas leituras do princípio da separação (ou interdependência) dos poderes devem ser realizadas para melhor compreender o inescapável diálogo interinstitucional.

Há uma tênue fronteira entre a atividade legislativa, a jurisdição constitucional e a jurisdição ordinária, sendo fundamental questionar os limites institucionais e analisar os diálogos existentes entre os Poderes, sob a óptica do princípio democrático e das funções inerentes de cada Poder.

Os debates são profundos e merecem detida reflexão. O que parece incontroverso é que a insuficiência de legislação pode ensejar, em determinadas circunstâncias, omissões inconstitucionais. Também parece correto asseverar que, no mundo contemporâneo, a invasão de competência legislativa pelo Poder Judiciário, na tentativa de suprir a eventual inércia legislativa, expandiu fronteiras e se tornou muitas das vezes prática habitual, o que nos leva a questionar quais seriam os seus legítimos limites.

Há, ademais, a meu sentir, vários riscos atrelados a postura mais vanguardista, entre eles o envolvimento do Poder Judiciário com os interesses de grupos políticos e sociais envolvidos e interessados, o que pode prejudicar a sua função precípua, que é exatamente solver conflitos por meio da aplicação do direito.

Não se ignora que o presente feito trata de consulta acerca da interpretação da legislação eleitoral, feito que não tem partes em sentido material nem pretensão em sentido processual. Não obstante, os questionamentos feitos a esta Corte Superior em regra carregam ínsitos uma resposta desejada, que melhor se amolda aos interesses do consulente (ou do grupo por ele representado).

Esse aspecto é tão marcante na presente consulta que a consulente, após exímia exposição do preocupante quadro brasileiro, não indaga propriamente acerca da aplicação de determinada lei eleitoral. Não há propriamente dúvida, mas uma pretensão, como se vê (ID 11856638):

a) As formas de distribuição dos recursos financeiros e tempo em rádio e TV, já concedido às mulheres na Consulta 0600252- 18.2018.6.00.0000, deverão ser na ordem de 50% para as mulheres brancas e outros 50% para as mulheres negras, conforme a distribuição demográfica brasileira? Motivo? Vários! Entre eles: Deputados e Senadores com seus sobrenomes consolidados estão trazendo suas mulheres, filhas e outras da família com o mesmo sobrenome para terem acesso a este dinheiro, exclusivo para mulheres. Sendo membros das famílias destes tradicionais Deputados e Senadores, este dinheiro corre o perigo de ser desviado, não chegando às mulheres negras que estão fora deste círculo de poder.

b) É possível haver reserva de vagas nos partidos políticos para candidatos negros, nos mesmos termos do que ocorreu com as mulheres? Motivo? Vários! Entre eles: conforme mostrado no texto acima, mesmo tendo um número razoável de candidatos homens negros, por causa da discriminação institucional, poucos candidatos negros são de fato, eleitos.

c) É possível aplicar o entendimento dos precedentes supra para determinar o custeio proporcional das campanhas dos candidatos negros, destinando 30% como percentual mínimo, para a distribuição do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, previsto nos artigos 16-C e 16-D, da Lei das Eleições, conforme esta Corte entendeu para a promoção da participação feminina?

d) É possível aplicar o precedente, também quanto à distribuição do tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão para os NEGROS, prevista nos artigos 47 e seguintes, da Lei das Eleições, devendo-se equiparar o mínimo de tempo destinado a cada partido, conforme esta Corte entendeu para a promoção da participação feminina? [Grifo nosso.]

É curioso notar que os dispositivos legais citados nos questionamentos (arts. 16-C, 16-D e 47, da Lei das eleições) não têm sequer correlação com o tema da promoção da igualdade racial por meio de candidaturas.

O que se percebe é que a provocação feita a esta Corte Superior não é a de interpretação de determinado preceito jurídico existente, mas da criação de norma que, conforme preconiza a consulente, seria mais desejável, porquanto estaria mais alinhada com o princípio da igualdade.

Nesse contexto, quando o órgão julgador, à míngua de preceito normativo expresso, se compromete com determinado interesse, com a realização de determinada política social – por mais justa que ela se revele, como é o caso –, há o risco de que tenha a sua imparcialidade afetada, visto que tais questões decerto aportarão na Justiça Eleitoral por ocasião do julgamento de registros de candidatura.

No caso, a pretensão da consulente, não obstante extremamente justa, somente se torna possível mediante certa atribuição livre do sentido do texto legal pelo magistrado, atividade que deve sempre ser encarada com muita cautela, para que não se mude o paradigma dos estados modernos, construído a partir de um sofisticado sistema, que contempla normas e princípios.

Enfim, mesmo em Constituições dirigentes e detalhadas como a nossa e mesmo em face de problemas graves de nossa sociedade – como o racismo e a sub-representação de minorias –, entendo que a criação de  posições jurídicas deve, preferencialmente, decorrer das decisões políticas do Congresso Nacional, verdadeira câmara de ressonância dos anseios dos diversos grupos da população brasileira.

A questão das cotas de gênero para financiamento de campanhas é um exemplo de decisão judicial na qual não se percebe caracterizada nenhuma interferência judicial indevida na autonomia partidária, tampouco usurpação de competência, pois o Poder Judiciário tinha um parâmetro legal já existente, qual seja, a reserva de vagas por gênero constante do art. 10, § 3º, da Lei 9.504/97.

Daí a peculiaridade daquele caso, que o distingue do presente. O entendimento de ambas as Cortes, Supremo Tribunal Federal (ADI 5.679, rel. Min. Edson Fachin) e Tribunal Superior Eleitoral (CTA 060025218, rel. Min. Rosa Weber), não usurpou a competência do Poder Legislativo, mas tão somente privilegiou a escolha antes tomada pelo próprio legislador: a reserva de vagas de, no mínimo, 30% e, no máximo, 70% de candidatos do mesmo gênero.

Na presente hipótese, todavia, não há disposição similar de reserva mínima de vagas para candidatos negros, da qual se poderia extrair a necessidade de observância proporcional na distribuição de tempo de propaganda e dos recursos oriundos dos fundos públicos de custeio de partidos e campanhas. Demais disso, não há aqui uma decisão prévia, do Supremo Tribunal Federal, em sede de ação direta de inconstitucionalidade. A situação, portanto, a meu sentir, é distinta, data venia.

Não obstante, a sensibilidade que reveste o tema – o racismo estrutural e a consequente falta de oportunidades eleitorais dos negros – merece, por certo, uma resposta desta Corte.

Ao tempo em que penso ser o Poder Legislativo o locus adequado – espaço plural e democrático – para se debater e criar o direito, também compreendo, sem dificuldade, que, nos tempos de agora, cumpre também ao Poder Judiciário a tarefa de bem aplicar o direito, de forma muito restrita, minimalista, com o objetivo solene – e inerente à sua função – de garantir direitos fundamentais.

Nesse particular, faça-se justiça à consulente. Em sua bem fundamentada petição, os questionamentos (rectius: pedidos) a, c e d estão de certo modo conectados com a pretensão no pedido vertido no item b, pois a garantia de financiamento e tempo de propaganda proporcionais, como instrumento de promoção da igualdade material entre negros e brancos, somente faz sentido em um modelo que também assegure  percentual mínimo de candidaturas.

Todavia, o pleito de reserva de vagas é respondido negativamente pelo relator, ao passo que a garantia de recursos para as mulheres negras (primeiro questionamento – item a) e a distribuição de recursos dos fundos públicos e de tempo de propaganda aos candidatos homens negros (terceiro e quarto questionamentos – itens c e d) foram atendidas “na exata proporção das candidaturas apresentadas pelas agremiações”.

Essa solução – a qual, reitero, decorre de voto denso e bem construído do nosso insigne Presidente – pode acabar tendo o efeito contrário do pretendido pela consulente, com a diminuição de candidaturas de homens e mulheres negros lançadas pelas agremiações, eventualmente não interessadas em afetar certa fatia de seus recursos para a promoção de políticas afirmativas.

Há, entretanto, notícia alvissareira: a ilustre deputada Benedita da Silva fez protocolar na Câmara dos Deputados, no dia 4 de agosto passado, projeto de lei, recebido como PL 4041/20, que objetiva, na mesma linha argumentativa da consulta ora em análise, promover, ainda que em parte, a resolução desta dívida histórica da Nação com os afro-brasileiros, garantindo uma devida ocupação de cargos eletivos pela comunidade negra, buscando dar efetividade a essa essencial, necessária, imprescindível ação afirmativa.

Por tudo, parece-me que uma postura mais consentânea com o limite da atuação dos poderes seria que esta Corte, tendo em vista a existência do referido PL 4041/20, respondesse positivamente àquelas questões, na linha do voto do relator, mas restringindo a aplicação desse entendimento às Eleições de 2022.

Desse modo, estaríamos a prestigiar o Poder Legislativo, que, sem dúvida, está aparelhado com melhor estrutura para examinar os reflexos da edição de determinada norma, da adoção de certo regime jurídico em detrimento de outro, atividades essas balizadas pela conexão que, em tese, seus membros têm com as respectivas bases eleitorais.

Da mesma forma, em face de uma eventual omissão daquele Poder, poderia esta Corte Superior, com mais tempo, melhor se preparar para edição de resoluções sobre o sensível tema, tendo em vista que a imposição de prescrições a partidos políticos é tradicionalmente realizada em sede de resolução, editada a partir de detido processo de elaboração, no qual se assegura necessariamente a participação de quaisquer interessados mediante audiências públicas. E nas palavras Peter Häberle[1], “para uma sociedade lícita e cidadã, é imprescindível a existência de um Judiciário constitucional concebido como um Judiciário cidadão”, sendo certo que “as audiências públicas são um meio para este fim”. Esse debate não existe em sede de consulta.

Entendo, por fim, já que foi formada maioria em torno das considerações do relator acerca do racismo estrutural e da necessidade do reforço de políticas afirmativas para representação política de minorias, sobretudo dos negros, que seja oficiada a Câmara dos Deputados e o Senado Federal, dando ciência do debate aqui havido e rogando que o tema seja considerado nas discussões a serem realizadas naquelas casas.

Em razão disso, louvando as razões trazidas nos votos dos doutos pares que me antecederam, acompanho o ilustre relator da consulta, Presidente Luís Roberto Barroso, mas com a ressalva de aplicação de suas conclusões apenas às Eleições de 2022.


[1] HÄBERLE, Peter. Constituição é declaração de amor ao país. Consultor Jurídico, reportagem disponível em https://www.conjur.com.br/2011-mai-29/entrevista-peter-haberle-constitucionalista alemaoer. acesso em 17.8.2020.

 

ESCLARECIMENTO

 

O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO (presidente): Muito obrigado, Ministro Sérgio Banhos. E acho que assim já se compôs todo o Colegiado em um pronunciamento que verifico, majoritariamente, deliberar no sentido de que a decisão que aqui estamos tomando só produzirá os seus efeitos a partir das Eleições Gerais de 2022.

 

PROCLAMAÇÃO DO RESULTADO

 

O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO (presidente): Proclamo o resultado: o Tribunal, por maioria, respondeu afirmativamente, quanto ao primeiro, terceiro e quarto quesitos e negativamente quanto ao segundo, nos termos e fundamentos constantes do voto do relator.

Votaram com o relator os Ministros Edson Fachin, Og Fernandes, Luis Felipe Salomão, Sérgio Banhos e Alexandre de Moraes, com um acréscimo à resposta formulada. Vencido o eminente Ministro Tarcisio Vieira de Carvalho Neto.

Quanto à execução do decidido na presente consulta, por maioria, fixou-se a aplicabilidade a partir das eleições de 2022, mediante regulamentação por resolução do Tribunal.

Isso é o que foi decidido.

Eu considero que este é um momento muito importante na vida do Tribunal e na vida do país.

Como disse, há momentos na vida em que cada um precisa escolher de que lado da história deseja estar. Pois hoje nós, o Tribunal Superior Eleitoral, nós afirmamos que estamos do lado dos que combatem o racismo, estamos do lado dos que querem escrever a história do Brasil com tintas de todas as cores.

Por muito tempo prevaleceu entre nós o discurso do humanismo racial brasileiro, que negava a existência do preconceito e da discriminação das pessoas em razão da sua raça e da sua cor. Tudo se resumiria a uma questão de classe social, o estigma seria contra pobreza e não contra os negros. Nós gostávamos de acreditar nessa versão da história. Pena mesmo é que não era verdadeira.

Como escreveu Adílson Moreira, em Pensando Como um Negro, “esse discurso que procurava limitar o racismo a alguns comportamentos individuais irracionais encobria, ainda que inconscientemente, um sistema de dominação racial que influencia o funcionamento de todas as instituições”.

Reconhecer essa situação não nos diminui como país, o que nos diminuía era o escamoteamento dessa realidade, enquanto a metade dos brasileiros era condenada à exclusão social, à discriminação ou, no mínimo, a um preconceito renitente, ora ostensivo, ora velado.

Por qual motivo que se justifica esse tipo de ação afirmativa que nós estamos endossando hoje aqui?

1 – Para reparar injustiças históricas trazidas pela escravidão e pelo abandono à própria sorte, por ocasião da abolição, como lembrado em praticamente todos os votos;

2 – Para assegurar a igualdade de oportunidades aos que começam a corrida para vida em grande desvantagem;

3 – Para que tenhamos negros em posições públicas de destaque, servindo de inspiração e de motivação para os jovens que com eles se identificam.

Para que fique clara a nossa posição.

O racismo no Brasil não é fruto apenas de comportamentos individuais pervertidos. É um fenômeno estrutural, institucional e sistêmico. E há toda uma geração hoje disposta a enfrentá-lo. Uma geração integrada por militantes idealistas e engajados, dentre os quais, todos nós devemos lembrar, o Frei David e intelectuais como Silvio Almeida, Djamila Ribeiro e Adilson Moreira e artistas geniais, que homenageio na pessoa do extraordinário Gilberto Gil.

A maioria do Tribunal entendeu que a inovação somente deve valer para as Eleições Gerais de 2022 e não para as próximas Eleições Municipais. Esse adiamento dos efeitos da decisão, em relação ao qual ficamos vencidos três de nós, não diminui a importância do que estamos fazendo aqui hoje, com atraso, mas não tarde demais, estamos empurrando a história do Brasil na direção da justiça racial.

Está encerrado este julgamento.

 

EXTRATO DA ATA

 

Cta nº 0600306-47.2019.6.00.0000/DF. Relator: Ministro Luís Roberto Barroso. Consulente: Benedita Souza da Silva Sampaio (Advogados: Irapuã Santana do Nascimento da Silva – OAB: 341538/SP e outra).

Decisão: O Tribunal, por maioria, vencido em parte o Ministro Tarcisio Vieira de Carvalho Neto, respondeu afirmativamente quanto ao primeiro, ao terceiro e ao quarto quesitos, e negativamente quanto ao segundo, nos termos e fundamentos constantes do voto do relator. Votaram com o Relator, no ponto, os Ministros Edson Fachin, Alexandre de Moraes, que condicionou as respostas ao estabelecimento de parâmetros, Og Fernandes, Luis Felipe Salomão e Sérgio Banhos. Também por maioria, vencidos, no ponto, os Ministros Luís Roberto Barroso (relator), Edson Fachin e Alexandre de Moraes, decidiu pela aplicabilidade da decisão a partir das eleições de 2022, mediante a edição de resolução do Tribunal, nos termos do voto do Ministro Og Fernandes. Votaram com o Ministro Og Fernandes os Ministros Luis Felipe Salomão, Tarcisio Vieira de Carvalho Neto e Sérgio Banhos.

Composição: Ministros Luís Roberto Barroso (presidente), Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Og Fernandes, Luis Felipe Salomão, Tarcisio Vieira de Carvalho Neto e Sérgio Banhos.

Vice-Procurador-Geral Eleitoral: Renato Brill de Góes.

SESSÃO DE 25.8.2020.

Sem revisão das notas de julgmento do Ministro Luis Felipe Salomão.