TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL
TRIBUNAL REGIONAL ELEITORAL DA PARAÍBA
32ª ZONA ELEITORAL - PIANCÓ/PB
AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL (11527) Nº 0600302-18.2024.6.15.0032 / 032ª ZONA ELEITORAL DE PIANCÓ PB
INVESTIGANTE: COLIGAÇÃO "UNIDOS POR CATINGUEIRA"
Advogado do(a) INVESTIGANTE: GUSTAVO NUNES DE AQUINO - PB13298
INVESTIGADO: SUELIO FELIX DE ALENCAR, PATRICIO JOSE FAUSTO DE SOUSA
Advogados do(a) INVESTIGADO: NEWTON NOBEL SOBREIRA VITA - PB10204-A, DOUGLAS QUEIROZ DE FREITAS - PB29632
Advogados do(a) INVESTIGADO: NEWTON NOBEL SOBREIRA VITA - PB10204-A, DOUGLAS QUEIROZ DE FREITAS - PB29632
SENTENÇA
Trata-se de Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) proposta pela Coligação "UNIDOS POR CATINGUEIRA" em face de SUÉLIO FÉLIX DE ALENCAR e PATRÍCIO JOSÉ FAUSTO DE SOUSA, atual prefeito e vice-prefeito do município de CATINGUEIRA/PB, respectivamente, candidatos à reeleição e vencedores do último pleito realizado em 06/10/2024.
A exordial (ID 123031880) traz como argumentos fundantes, em apertado bosquejo, o que se segue:
A investigante aponta diversas irregularidades na execução do programa, como ausência de avaliações técnicas pelo Centro de Referência da Assistência Social (CRAS), inobservância aos requisitos legais, inexistência de coordenadoria, ausência de critérios para fixação de valores, falta de publicidade para inscrições, pagamentos via PIX (ao invés de cartão alimentação) e pagamentos acima do limite legal.
Ao final, postula a procedência da ação "para que os investigados sejam apenados com sanção de inelegibilidade para as eleições a se realizarem nos oito anos subsequentes à eleição em que se verificam o abuso acima narrado; condenados a pagarem multa (art. 73, §§ 4°, 5º e 8°, da Lei 9.504/97); bem como condenados à pena de cassação de seus registros de candidaturas ou dos diplomas, e por consequência dos mandatos, nos termos do art. 22, inciso XIV, da Lei Complementar n.º 64/90".
Regularmente citados, os investigados apresentaram contestação conjunta (ID 123126425), suscitando, em sede preliminar, a inépcia da inicial por ausência de individualização das condutas. No mérito, sustentam, em síntese, que:
Os investigados sustentam ainda que todos os usuários do programa possuem NIS – Número de Identificação Social gerado pelo acesso ao CadÚnico, que os cadastros contêm comprovantes de residência e autodeclarações, e que o critério utilizado para definir o valor pago é a avaliação social elaborada pelo profissional da assistência social.
A investigante, em sede de réplica (ID 123200223), arguiu a intempestividade da contestação apresentada e levantou incidente de falsidade documental em relação à Resolução nº. 04/2023 do CMAS acostada pelos investigados, sustentando que o documento foi adulterado mediante inserção posterior de página no Diário Oficial do Município.
Por decisão (ID 123208188), foram rejeitadas as preliminares de inépcia da inicial e intempestividade da contestação, determinando-se aos investigados que comprovassem a data efetiva de publicação da Resolução nº 04/2023 do CMAS.
Em atendimento, os investigados apresentaram manifestação técnica da empresa responsável pelo portal oficial do município, explicando questões relacionadas à nomenclatura e armazenamento dos arquivos digitais (ID 123667480).
Em decisão de saneamento e organização do processo (ID 123755362), este Juízo delimitou as questões controvertidas, distribuiu o ônus da prova, indeferiu, naquele momento, o pedido de perícia técnica e designou audiência de instrução para oitiva das testemunhas arroladas pelas partes.
O Ministério Público Eleitoral manifestou ciência expressa (ID 123761784) acerca da sobredita decisão e, por consectário, da audiência aprazada.
A investigante juntou nova petição (ID 123770772) requerendo, em síntese, a adoção de medidas prévias à realização da audiência de instrução, dentre as quais a certificação nos autos do não atendimento pelos investigados da determinação judicial quanto à comprovação da data de publicação da Resolução nº 04/2023 do CMAS, a intimação expressa do Ministério Público Eleitoral sobre o objeto da presente ação e o deferimento do depoimento pessoal das partes.
Por meio da decisão de ID 123771254, este Juízo analisou os pleitos formulados pela investigante, concluindo pela desnecessidade de certificação cartorária quanto ao alegado descumprimento parcial pelos investigados da determinação judicial anteriormente exarada, considerando que os demandados apresentaram manifestação e documentação que reputaram suficientes para o atendimento ao comando decisório.
Ademais, reputou descabida nova intimação do Parquet, tendo em vista que o órgão ministerial já havia manifestado ciência expressa quanto aos atos processuais praticados. Por derradeiro, indeferiu o requerimento de colheita de depoimento pessoal das partes, em virtude da preclusão consumativa, uma vez que tal modalidade probatória não fora tempestivamente pleiteada na petição inicial, momento processual adequado para tanto, conforme disciplina o art. 22, caput, da Lei Complementar nº 64/90.
Em audiência realizada em 18/12/2024, foram ouvidas as testemunhas arroladas pelas partes. Durante o ato, os investigados solicitaram a contradita de Edjane Barbosa de Freitas Araújo e Felix Leite da Silva Neto, que foram ouvidos como declarantes. Ao final, foi deferido prazo à investigante para juntada das Leis de Diretrizes Orçamentárias (LDOs) do município de Catingueira/PB, alusivas aos exercícios financeiros de 2023 e 2024.
O evento foi integralmente gravado, dividido em 2 (duas) partes, cujos links de acesso se encontram lançados na respectiva ata (ID 123803037).
A investigante apresentou a documentação requerida (IDs 123814793 e 123814798), sobre a qual os investigados manifestaram-se (ID 123845171), afirmando a inexistência de violação ao art. 22 da Lei Municipal n.º 699/2023 e a ausência de abuso de poder.
As partes apresentaram suas alegações finais (IDs 123856384 e 123856392), reiterando, em síntese, os argumentos anteriormente expostos, acrescidos da valoração da prova testemunhal produzida.
Por meio da decisão de ID 123888571, este Juízo determinou à serventia que certificasse, nos termos do art. 4º, § 7º, da Resolução TSE nº 23.735/2024, o percentual de votos que poderá ser anulado em caso de procedência do pedido, bem como a existência de outras ações que versem sobre o mesmo fato, deferindo, ainda, o pedido de dilação de prazo formulado pelo Ministério Público Eleitoral para apresentação de seu parecer (ID 123880832).
A serventia certificou (ID 123902954) que o percentual de votos válidos que poderá ser anulado em caso de procedência do pedido é de 65,61% (sessenta e cinco vírgula sessenta e um por cento), alusivo à eleição para os cargos de prefeito e vice-prefeito, não havendo outras ações em trâmite que versem sobre o mesmo fato.
O Ministério Público Eleitoral, por intermédio do parecer de ID 123880832, opinou pela IMPROCEDÊNCIA da presente ação, "por inexistirem elementos objetivos que autorizem inferir, com necessária segurança, que as condutas imputadas foram nocivas ao ambiente das eleições", mantendo, por consectário, incólumes os diplomas e a capacidade eleitoral passiva dos investigados. Para tanto, trouxe à baila vigorosa e elogiosa fundamentação, cujas principais premissas se encontram a seguir discriminadas:
O Parquet registra, no entanto, a gravidade sob o aspecto qualitativo (reprovabilidade absoluta da conduta do Chefe do Poder Executivo), que configuraria, em tese, improbidade administrativa, informando que remeterá cópia de sua manifestação ao Promotor de Justiça com atribuição na defesa do patrimônio público da Comarca de Piancó/PB.
Os autos vieram-me conclusos.
É o relatório. Passo a DECIDIR.
DAS PRELIMINARES
1. Das questões preliminares já decididas
As preliminares de inépcia da petição inicial e de intempestividade da contestação foram devidamente enfrentadas por este Juízo por meio da decisão interlocutória de ID 123208188, ocasião em que ambas foram rejeitadas com base em fundamentação jurídica adequada ao caso concreto e em estrita observância ao ordenamento processual aplicável à espécie.
Por consectário lógico e em respeito ao princípio da segurança jurídica, ratifico in totum as razões de decidir anteriormente expostas, evitando-se desnecessária tautologia e preservando a coerência dos pronunciamentos judiciais ao longo da marcha processual.
2. Da arguição de falsidade documental
A investigante, em sede de réplica (ID 123200223), suscitou incidente de falsidade documental em relação à Resolução nº. 04/2023 do Conselho Municipal de Assistência Social (CMAS) apresentada pelos investigados, aduzindo possível adulteração mediante inserção posterior de página no Diário Oficial do Município.
Naquela ocasião, determinou-se aos investigados que comprovassem, por quaisquer meios idôneos, a data efetiva de publicação da resolução questionada, providência atendida mediante apresentação de manifestação técnica da empresa responsável pelo portal oficial do município (ID 123667480), que esclareceu questões relativas ao sistema de nomenclatura e armazenamento dos arquivos digitais.
É digno de nota que, durante a audiência de instrução (ID 123803037), a própria investigante manifestou expressamente sua desistência quanto à realização de perícia técnica no documento, declarando-se satisfeita com as provas já produzidas, o que evidencia a superação da controvérsia inicialmente suscitada.
Ademais, impende destacar que o conteúdo material da Resolução nº 04/2023 do CMAS, ainda que autêntico, não possui o condão de afastar as supostas irregularidades apontadas pela investigante na execução do programa social em questão. Isso porque, ao analisar detidamente o texto da referida Resolução (ID 123126427), constata-se que esta se limita a enunciar diretrizes genéricas e declaratórias, sem estabelecer procedimentos objetivos e mecanismos concretos de fiscalização que pudessem efetivamente regularizar o Programa "Bolsa Esperança".
Com efeito, a mera existência formal da resolução não supre a necessidade de regulamentação específica exigida pela Lei Municipal nº 699/2023, notadamente quanto aos critérios de seleção dos beneficiários, procedimentos para comprovação dos requisitos legais, fixação dos valores dos benefícios dentro da faixa prevista, forma de pagamento e, principalmente, mecanismos de controle e transparência. A resolução apresenta-se como documento insuficiente para conferir legitimidade administrativa ao programa social, não constituindo verdadeira norma regulamentadora no sentido técnico-jurídico da expressão.
A realização de perícia técnica, nesse contexto, além de não agregar elementos substantivos para a elucidação do mérito da causa, representaria medida meramente protelatória, postergando indevidamente a prestação jurisdicional em processo que, por sua natureza eleitoral, reclama celeridade e efetividade. A dilação probatória dessa natureza consumiria recursos e tempo consideráveis, sem trazer utilidade prática para a resolução da lide, configurando verdadeiro desperdício da atividade jurisdicional.
Nesse cenário, o debate sobre a autenticidade temporal da publicação do documento revela-se, ainda mais, periférico ao objeto central da lide, não sendo determinante para o deslinde da controvérsia principal, qual seja, a configuração ou não do abuso de poder político e econômico na execução do Programa "Bolsa Esperança", que perpassa por elementos probatórios de maior relevância e densidade jurídica.
Nesse contexto, ratifico o NÃO CONHECIMENTO da arguição de falsidade documental (ID 123208188) e o INDEFERIMENTO da perícia técnica (ID 123755362), considerando: (i) a expressa desistência da investigante quanto à produção da prova; (ii) a irrelevância do documento questionado para a solução da controvérsia principal; (iii) a inaptidão material do conteúdo da resolução para suprir as falhas na regulamentação do programa, mesmo que autêntica sua publicação no período indicado pelos investigados; e (iv) o caráter protelatório que a dilação probatória representaria, em detrimento da celeridade e efetividade que devem nortear o processo eleitoral.
DO MÉRITO
Superadas as questões preliminares, passa-se à análise do mérito, cuja complexidade e relevância exigem exame minucioso.
E, ao fazê-lo, extrai-se que a causa de pedir deduzida pela investigante circunscreve-se, essencialmente, à alegação de abuso de poder político e econômico, em virtude da suposta manipulação do programa social denominado "Bolsa Esperança" com finalidade eleitoreira, notadamente pelo expressivo aumento no número de beneficiários durante o ano eleitoral de 2024. Postula-se, nos pedidos, além da cassação do registro/diploma e da decretação de inelegibilidade, a aplicação de multa por conduta vedada, nos termos do art. 73, §§ 4º, 5º e 8º, da Lei Federal nº. 9.504/97, embora as hipóteses específicas não tenham sido expressamente delimitadas na exordial.
A despeito da ausência de capitulação específica na petição inicial, as condutas descritas pela investigante apontam para possível enquadramento nas tipos previstos no art. 73, inciso IV (uso promocional em favor de candidato de distribuição gratuita de bens e serviços de caráter social custeados pelo Poder Público) e §10 (distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública em ano eleitoral, fora das hipóteses excepcionais legalmente previstas), da Lei Federal nº. 9.504/97, razão pela qual serão objeto de análise por este Juízo.
Quanto ao abuso de poder, núcleo central da presente demanda, a controvérsia reside na verificação da existência de desvio de finalidade na execução do Programa "Bolsa Esperança", instituído pela Lei Municipal nº. 699, de 12 de junho de 2023, mediante o desvirtuamento de sua função assistencial para captação ilícita de sufrágio, com potencial lesivo à normalidade e legitimidade do pleito.
A cognição judicial, nesse particular, perpassa necessariamente pela aferição da gravidade das circunstâncias, em seus aspectos qualitativo (reprovabilidade da conduta) e quantitativo (repercussão no contexto específico da eleição), nos termos do art. 22, inciso XVI, da LC nº 64/90 c/c o art. 7º, parágrafo único, da Resolução TSE nº 23.735/2024.
Imperioso asseverar que, consoante pacificado na jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral, a análise de tais ilícitos eleitorais demanda prova robusta e inconcussa, não sendo admissíveis presunções ou ilações sem substrato probatório adequado, em homenagem à soberania popular manifestada nas urnas e ao princípio in dubio pro sufragio.
O objeto de conhecimento deste Juízo, portanto, circunscreve-se à verificação da ocorrência das condutas alegadas e de sua subsunção aos tipos normativos mencionados, mediante análise criteriosa do acervo probatório produzido sob o crivo do contraditório, bem como à eventual aplicação das sanções cabíveis, considerando os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.
Com o objetivo de conferir organicidade à análise, subdividir-se-á o exame meritório em tópicos específicos, iniciando-se pela verificação das irregularidades na execução do Programa "Bolsa Esperança", seguida da análise quanto à configuração das condutas vedadas implicitamente apontadas e, por fim, do exame do alegado abuso de poder político e econômico.
1. Das irregularidades na execução do Programa "Bolsa Esperança"
A investigante apontou inúmeras irregularidades na execução do Programa "Bolsa Esperança", as quais, em seu entendimento, teriam caracterizado desvio de finalidade e utilização eleitoral do benefício assistencial. Impende ressaltar que, conquanto o extenso rol de supostas ilegalidades administrativas mereça atenção das instâncias competentes, a jurisdição eleitoral, por sua natureza especializada, não se confunde com o juízo de controle de legalidade dos atos administrativos, tampouco com aquele competente para apuração de atos de improbidade administrativa.
Essa compreensão é imperativa para o correto enquadramento da demanda no âmbito da legislação eleitoral e encontra ressonância na jurisprudência consolidada dos tribunais especializados:
3. Dessa forma, prevalece o entendimento jurisprudencial de que as práticas que consubstanciem tão somente atos de improbidade administrativa devem ser conhecidas e julgadas pela Justiça Comum. Precedentes.4 . Recurso especial eleitoral não provido.
(TSE - REspe: 65807 RJ, Relator.: Min. JOSÉ DE CASTRO MEIRA, Data de Julgamento: 01/08/2013, Data de Publicação: DJE - Diário de justiça eletrônico, Tomo 160, Data 22/08/2013, Página 32)
4. Suposta prática de atos de improbidade administrativa no período eleitoral. Questões adstritas à esfera administrativa, sem a comprovação do seu cometimento por finalidade eleitoreira, alheias a esta Justiça Especializada, a serem apuradas pela Justiça Comum . Provimento negado.
(TRE-RS - RE: 0000373-55.2016.6 .21.0138 CIRÍACO - RS 37355, Relator.: LUCIANO ANDRÉ LOSEKANN, Data de Julgamento: 18/04/2017, Data de Publicação: DEJERS-66, data 20/04/2017)
Nesse diapasão, a análise que doravante será desenvolvida limitar-se-á às irregularidades efetivamente comprovadas pela instrução processual, cuja magnitude e conjunto possam repercutir no aspecto qualitativo da conduta sob o prisma estritamente eleitoral. A perquirição judicial, portanto, recairá sobre as impropriedades suscetíveis de interferência na normalidade e legitimidade do pleito, sem a pretensão de exaurir o exame da legalidade administrativa do programa em sua integralidade. Tal matéria, por sua própria natureza, deverá ser objeto de apuração específica pelos órgãos constitucionalmente competentes, notadamente o Ministério Público Estadual, o Tribunal de Contas e o Juízo Comum, aos quais incumbe, por expressa disposição constitucional, a fiscalização abrangente e pormenorizada da gestão pública municipal.
Após criteriosa análise do acervo probatório carreado aos autos, compreendendo documentação e depoimentos testemunhais colhidos sob o crivo do contraditório, este Juízo constatou a existência das seguintes irregularidades substantivas, cuja materialidade restou plenamente demonstrada e que, em seu conjunto, ostentam relevância para a apreciação da controvérsia sob a perspectiva eleitoral,
1.1 Do pagamento via PIX em detrimento do cartão alimentação
A investigante alega que os pagamentos do benefício foram realizados por meio de transferências bancárias via PIX, em desconformidade com o art. 19 da Lei Municipal nº. 699/2023, que expressamente prevê: "O repasse financeiro aos beneficiários do programa será em forma de pecúnia, disponibilizada por meio de um cartão alimentação" (ID 123031880).
Os investigados, por sua vez, argumentaram que (ID 123126425):
O programa foi implementado no âmbito municipal no ano de 2023, sendo o seu principal objetivo a transferência de renda e a melhoria efetiva na vida dos beneficiários. A implementação de um cartão bancário, que é um meio de pagamento eletrônico que permite ao titular realizar transações financeiras, é condicionado a diversos fatores burocráticos e que ocasionam despesas. Assim, para atender ao objetivo precípuo do programa de transferência de renda, os pagamento estão ocorrendo antes da implementação do cartão bancário.
Entretanto, a alegação de que o Primeiro Investigado estaria afirmando que estou dando do meu bolso” e que “vou fazer seu pix” é, levianamente, disposta nos autos sem qualquer comprovação, sendo mera ilação que não há sequer um elemento que levante a hipótese.
A instrução probatória, em especial os depoimentos testemunhais colhidos em audiência (ID 123803037), corroborou que os pagamentos foram efetivamente realizados através de transferências eletrônicas via PIX diretamente para as contas dos beneficiários, em desacordo com a previsão normativa.
Osvambergh de Oliveira Martins (Membro do Comitê Municipal "Bolsa Esperança"), testemunha arrolada pela investigante, esclareceu que, apesar da previsão legal de pagamento via cartão, o Comitê entendeu que o recebimento direto na conta bancária proporcionaria maior liberdade aos beneficiários na utilização dos recursos. Ainda segundo a testemunha, essa decisão foi tomada com o conhecimento do Conselho Municipal de Assistência Social.
Edjane Barbosa de Freitas Araújo (Assessora Jurídica do Conselho Municipal de Assistência Social), declarante arrolada pelos investigados, confirmou que a questão da forma de pagamento foi amplamente debatida pelo Conselho Municipal de Assistência Social, que deliberou pela transferência direta às contas dos beneficiários por considerar que o uso do cartão poderia comprometer a natureza essencial do benefício. A declarante também afirmou que tal decisão foi implementada pelo próprio Conselho sem interferência direta do prefeito.
Sem muito esforço hermenêutico, verifica-se, de pronto, a manifesta contradição entre a tese defensiva apresentada em contestação (ratificada nas alegações finais) e os depoimentos colhidos em audiência. Enquanto a peça defensiva sugere que o pagamento via PIX seria uma medida provisória, a ser posteriormente substituída pela implementação do cartão alimentação previsto em lei, os depoimentos revelam uma deliberação consciente e definitiva dos órgãos municipais pela adoção do pagamento direto via transferência bancária, em substituição ao cartão, por considerarem tal modalidade mais vantajosa aos beneficiários.
Não se desconhece a aparente razoabilidade das justificativas apresentadas pelos(as) depoentes sob o prisma da eficiência e da finalidade do programa de transferência de renda. De fato, o pagamento direto nas contas bancárias dos beneficiários poderia realmente conferir maior autonomia e flexibilidade aos destinatários na utilização dos recursos, além de reduzir custos operacionais para a administração municipal. Entretanto, tal razoabilidade material não tem o condão de sanar o vício formal constatado, tampouco justifica a contradição argumentativa verificada na defesa dos investigados, o que apenas reforça a irregularidade da conduta.
É princípio basilar do ordenamento jurídico pátrio que a Administração Pública está adstrita ao princípio da legalidade estrita (art. 37, caput, CF/88), somente podendo atuar nos estritos limites da lei. A alteração de procedimento expressamente determinado em lei municipal - no caso, o pagamento via cartão alimentação - demandaria, necessariamente, modificação legislativa prévia, submetida ao devido processo legislativo, com participação do Poder Legislativo local.
Ainda que o Conselho Municipal de Assistência Social e o Comitê Municipal "Bolsa Esperança" tenham deliberado pela alteração da forma de pagamento, tais órgãos não detêm competência normativa para inovar no ordenamento jurídico ou para excepcionar disposição legal expressa. Sua atuação, neste particular, extrapolou os limites do poder regulamentar, invadindo matéria reservada à lei em sentido formal.
Com efeito, resta evidenciado o descumprimento da lei municipal que instituiu o programa. A forma de pagamento adotada, por mais que possa apresentar justificativas plausíveis quanto à sua eficácia operacional, não encontra amparo no texto da Lei Municipal nº. 699/2023, caracterizando clara inobservância do procedimento legalmente estabelecido.
1.2 Da fragilidade na comprovação de residência no município por 12 (doze) meses
A investigante apontou que diversos beneficiários não apresentaram comprovação de residência no município de CATINGUEIRA/PB pelo período mínimo de 12 (doze) meses, conforme exigido pelo art. 6º, inciso II, da Lei Municipal nº. 699/2022 (ID 123031880).
Em réplica, a investigante apresentou relação de beneficiários que supostamente não teriam comprovado o requisito de residência, destacando casos específicos que foram objeto de oitiva durante a instrução processual (ID 123200223).
Os investigados, em sua defesa, sustentaram que "nos cadastros dos usuários (Dossiê Social) constam os comprovantes de residência, tais como conta de água ou luz que cumprem tal requisito, assim como, também se preenche a autodeclaração assinada ao final pelo declarante onde se consta o endereço" (ID 123126425).
A instrução probatória, inclusive os depoimentos testemunhais colhidos em audiência (ID 123803037), evidenciou significativas fragilidades no controle desse requisito legal.
Maria do Livramento de Sales Januário Silva (beneficiária), testemunha arrolada pela investigante, declarou que reside em CATINGUEIRA/PB desde 2018, tendo se transferido do município de Livramento/PB. Informou que, quando de seu cadastramento, apresentou, tendo em vista morar de aluguel, comprovante de residência em nome da proprietária do imóvel.
Osvambergh de Oliveira Martins (Membro do Comitê Municipal "Bolsa Esperança"), testemunha arrolada pela investigante, esclareceu que, em função das pequenas dimensões do município, há conhecimento geral sobre o domicílio efetivo dos requerentes, sendo aceitos comprovantes de endereço em nome de terceiros em razão da predominância de contratos verbais de locação e da sensibilidade do comitê quanto à situação socioeconômica da população de baixa renda. Informou que a análise documental não se restringe ao comprovante de residência, incluindo também consultas ao CadÚnico e aos registros dos agentes comunitários de saúde.
Edjane Barbosa de Freitas Araújo (Assessora Jurídica do Conselho Municipal de Assistência Social), declarante arrolada pelos investigados, apontou que o Programa "Bolsa Esperança", em consonância com orientação do Ministério do Desenvolvimento Social, utiliza o CadÚnico como principal fonte de informações, inclusive para verificação do tempo de residência no município, o que viabiliza a aceitação de comprovante de endereço em nome de terceiros, mediante assinatura de termo de declaração.
Felix Leite da Silva Neto (Secretário de Desenvolvimento Social de Catingueira), declarante arrolado pelos investigados, alegou que a população que busca assistência social geralmente encontra-se em significativa situação de vulnerabilidade, residindo frequentemente em imóveis cedidos ou locados informalmente, sem instrumentos contratuais, sendo praxe a assinatura de termo autodeclaratório quando o comprovante de endereço não está em nome do requerente, procedimento também adotado em programas federais. Destacou ainda que famílias em situação de vulnerabilidade apresentam elevada mobilidade, deslocando-se frequentemente entre zonas rural e urbana ou entre municípios.
Analisando minuciosamente os documentos acostados aos autos pelos próprios investigados (a partir do ID 123126435), constata-se que o requisito legal referente ao tempo mínimo de residência nem de longe era observado com o rigor necessário. Em substancial número de processos de concessão, verifica-se que os comprovantes de endereço não se encontram em nome dos requerentes e, nas hipóteses em que estão, as datas são contemporâneas ao pedido, servindo apenas para demonstrar a residência atual, sem qualquer comprovação do lapso temporal mínimo de 12 (doze) meses exigido pela lei municipal.
O argumento apresentado por parte dos depoentes de que tal requisito era verificado por meio de outros sistemas, como o CadÚnico e registros de agentes comunitários de saúde, embora aparentemente coerente sob a perspectiva da operacionalização do programa, não encontra respaldo material nos processos administrativos de concessão. Inexiste, nos relatórios sociais e formulários de avaliação analisados, qualquer informação objetiva ou menção específica capaz de comprovar o tempo mínimo de residência dos beneficiários no município.
A autodeclaração ou termo de responsabilidade firmado(a) pelo(a) interessado(a), conquanto exista nos processos de concessão, não poderia, por si só, ser considerada suficiente para comprovação de requisito legal expressamente exigido pela norma instituidora do programa.
Evidencia-se, portanto, uma flexibilização significativa do requisito legal de comprovação de residência no município pelo período mínimo exigido, baseada em justificativas de ordem prática e social, mas sem amparo na legislação instituidora do programa. Os depoimentos colhidos, embora indiquem uma preocupação com as situações de vulnerabilidade social, revelam a adoção de procedimentos que não garantem a observância estrita do requisito temporal de residência.
Resta caracterizado, mais uma vez, o manifesto descumprimento da lei municipal que instituiu o programa.
1.3 Da precariedade das avaliações técnicas
A investigante sustentou que não houve avaliação técnica adequada por profissional do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), conforme exigido pelo art. 5º, parágrafo único, da Lei Municipal nº. 699/2023 (ID 123031880).
Os investigados argumentaram que todos "os cadastros integralizados, ainda perpassam pelo crivo de Controle Social designado ao Comitê Municipal do programa cujo órgão detém o poderio de ratificação ou não das bolsas, regulamentação definida pela Portaria nº 57 de 01 de agosto de 2023" (ID 123126425).
A análise da documentação acostada aos autos (a partir do ID 123126435) revela que, embora existam fichas de avaliação socioeconômica e relatórios sociais nos processos administrativos de concessão do benefício, tais documentos apresentam significativas inconsistências técnicas que comprometem sua eficácia como instrumento de avaliação da vulnerabilidade social dos beneficiários.
Os formulários são preenchidos de maneira superficial, com marcações genéricas em campos predeterminados, sem contextualização adequada da situação socioeconômica do requerente ou análise aprofundada dos fatores de risco e vulnerabilidade. A padronização excessiva dos documentos sugere uma avaliação mecanizada, dissociada da análise individualizada que a legislação preconiza.
Adriana dos Santos Soares (beneficiária), testemunha arrolada pela investigante, declarou que, para efetivação de seu cadastro, apresentou documentos pessoais, documentação relativa aos seus filhos e comprovante de residência, não tendo recebido visita domiciliar para verificação das informações prestadas. Afirmou ter sido questionada sobre sua renda e composição familiar quando da entrevista, tendo informado que pagava aluguel no valor de R$ 300,00 (trezentos reais), sendo-lhe deferido benefício no montante de R$ 200,00 (duzentos reais).
Maria do Livramento de Sales Januário Silva (beneficiária), testemunha arrolada pela investigante, relatou que, ao tomar conhecimento do benefício, foi informada que o CRAS estaria concedendo auxílio denominado "aluguel social", não tendo conhecimento da nomenclatura "Bolsa Esperança". Afirmou acreditar ter sido atendida por assistente social, da qual não recorda o nome, ocasião em que foi questionada sobre a composição familiar e percepção de outros benefícios.
Felix Leite da Silva Neto (Secretário de Desenvolvimento Social de Catingueira), declarante arrolado pelos investigados, afirmou que compete à assistente social avaliar, considerando as peculiaridades familiares, como renda e composição, o valor a ser atribuído ao beneficiário, encaminhando o processo ao Comitê Municipal "Bolsa Esperança". Mencionou que a manutenção do benefício está condicionada, entre outros requisitos, à frequência escolar e atualização vacinal das crianças e adolescentes integrantes do núcleo familiar beneficiário.
A instrução processual evidenciou, portanto, que as avaliações técnicas realizadas pelos profissionais do CRAS eram concretizadas de forma simplificada, baseando-se essencialmente na autodeclaração dos requerentes quanto a aspectos relevantes de sua condição socioeconômica. Embora existissem relatórios sociais nos processos de concessão, estes se mostravam praticamente idênticos em sua estrutura e com conteúdo padronizado, sem aprofundamento nas particularidades de cada caso ou elementos que demonstrassem uma análise técnica efetiva da extrema vulnerabilidade social, conforme exigido pela legislação.
Verifico, portanto, mais uma inobservância significativa à lei municipal que instituiu o programa, especificamente quanto à avaliação técnica da vulnerabilidade social dos beneficiários pelo profissional de referência do CRAS, requisito expressamente previsto na norma.
1.4 Da deficiência no monitoramento e avaliação do programa
A investigante arguiu a inexistência de procedimentos adequados de monitoramento e avaliação do Programa "Bolsa Esperança", em inobservância ao disposto no art. 18 da Lei Municipal nº. 699/2023 (ID 123031880).
Os investigados, em sua defesa, afirmaram que "o Comitê Municipal estatuído pelo Art. 9º da legis retro realiza a função de coordenadoria do programa, pela função designada legalmente" e que "o CMAS é o controle social que monitora e avalia a concessão de TODOS os benefícios socioassistenciais no âmbito do Sistema Único de Assistência de Catingueira-PB, em outras palavras, realiza uma espécie de supervisão/controle mais amplo das atividades assistenciais, porquanto exerce o dever de supervisão das atividades do Comitê Municipal do programa Bolsa Esperança" (ID 123126425).
O conjunto probatório, analisado em sua integralidade, evidencia significativas lacunas nos procedimentos de monitoramento e avaliação previstos na legislação instituidora do programa. Os documentos acostados aos autos pelos investigados (ID 123126431) consistem essencialmente em atas de reuniões do Comitê Municipal "Bolsa Esperança", realizadas em datas esparsas, cujo conteúdo limita-se à análise de inclusões e permanências de beneficiários, sem qualquer menção a indicadores de resultado ou procedimentos sistemáticos de avaliação do programa.
Osvambergh de Oliveira Martins (Membro do Comitê Municipal "Bolsa Esperança"), testemunha arrolada pela investigante, declarou que o referido comitê, composto por aproximadamente oito membros, reúne-se periodicamente a cada três meses, e extraordinariamente quando necessário, geralmente nas dependências do CRAS. Afirmou que o órgão colegiado analisa a documentação apresentada pelos potenciais beneficiários conforme parâmetros estabelecidos na legislação. Questionado especificamente sobre o monitoramento do programa, limitou-se a mencionar as reuniões do comitê para análise de novos cadastros, sem fazer referência a procedimentos estruturados de avaliação de resultados.
Felix Leite da Silva Neto (Secretário de Desenvolvimento Social de Catingueira), declarante arrolado pelos investigados, mencionou que a manutenção do benefício está condicionada, entre outros requisitos, à frequência escolar e atualização vacinal das crianças e adolescentes integrantes do núcleo familiar beneficiário, controle realizado através dos sistemas das secretarias municipais de educação e saúde. Entretanto, não foram apresentados relatórios, estatísticas ou análises que demonstrassem a implementação efetiva desse monitoramento ou seus resultados concretos na promoção da autonomia familiar dos beneficiários.
Cumpre ressaltar que o monitoramento e a avaliação de políticas públicas, especialmente aquelas relacionadas à transferência de renda e enfrentamento à pobreza, constituem etapas fundamentais do ciclo da política pública, permitindo não apenas o controle de sua regularidade formal, mas principalmente a aferição de sua efetividade no alcance dos objetivos sociais propostos. O art. 18 da Lei Municipal nº. 699/2023 evidencia clara preocupação com esse aspecto, ao prever expressamente a definição de indicadores e procedimentos sistemáticos para avaliar os resultados do programa.
No entanto, inexistem nos autos elementos mínimos da implementação de mecanismos estruturados para avaliação das "seguranças afiançadas pela Política de Assistência Social e pela Política de Geração de Trabalho e Renda", conforme mencionado na legislação. Não foram apresentados indicadores específicos, relatórios periódicos de avaliação ou procedimentos sistemáticos para acompanhamento dos resultados do programa na vida dos beneficiários.
As atas de reunião do Comitê Municipal "Bolsa Esperança" (ID 123126431) evidenciam a preocupação quase exclusiva com a análise de concessões e manutenções de benefícios, sem qualquer menção a avaliações de impacto ou análises de efetividade do programa. A ausência de relatórios técnicos ou documentos que evidenciem o monitoramento previsto na legislação reforça a percepção de que o programa operava sem mecanismos adequados de controle e avaliação de resultados.
Evidencia-se, portanto, mais uma inobservância significativa às disposições da Lei Municipal nº. 699/2023, especificamente quanto aos procedimentos de monitoramento e avaliação do programa, previstos em seu art. 18.
1.5 Da Ausência de ampla publicidade e procedimentos claros para inscrição
A investigante alegou que "nunca foi publicado qualquer edital, instrumento ou algo similar que desse publicidade e/ou conhecimento da abertura dessas inscrições", em desconformidade com o art. 17 da Lei Municipal nº. 699/2023, cuja redação prescreve: (ID 123031880).
Os investigados, em sua defesa, argumentaram que "a procura pelos programas de transferência de renda devem ocorrer de maneira espontânea, com o intuito de evitar que pessoas que não se enquadram nos critérios de concessão tentem fraudar a concessão e ocasionem o recebimento indevido" e que "o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) é a porta de entrada para o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e tem como objetivo principal prevenir situações de risco e fortalecer os vínculos familiares e comunitário, atuando diretamente com a população local, portanto, as famílias e indivíduos atendidos pelos CRAS possuem ciência dos programas ofertados à população" (ID 123126425).
A instrução probatória, notadamente os depoimentos colhidos em audiência, revelou a inexistência de divulgação do programa e de procedimentos transparentes para inscrição dos interessados.
Adriana dos Santos Soares (beneficiária), testemunha arrolada pela investigante, afirmou que tomou conhecimento da existência do programa através de sua vizinha, identificada como "Joaninha", também beneficiária, a qual sugeriu que procurasse o CRAS para solicitar sua inclusão. Questionada especificamente, declarou que não tomou conhecimento de qualquer chamamento público ou divulgação oficial acerca do programa por parte da administração municipal, sendo a informação sobre sua existência difundida principalmente entre os beneficiários já contemplados.
Maria do Livramento de Sales Januário Silva (beneficiária), testemunha arrolada pela investigante, relatou que percebe o referido auxílio municipal desde aproximadamente setembro de 2023, tendo procurado o CRAS após tomar conhecimento de sua existência através de comentários informais. Afirmou que jamais tomou conhecimento de divulgação oficial do programa por parte da administração municipal, tendo sido informada de sua existência através de conversas com outros moradores.
Felix Leite da Silva Neto (Secretário de Desenvolvimento Social de Catingueira), declarante arrolado pelos investigados, interrogado especificamente sobre a questão da divulgação e inscrições, declarou que, apesar de a legislação estabelecer períodos de abertura e encerramento de inscrições no programa, considerando que situações de vulnerabilidade ocorrem de forma contínua, o CRAS recebe inscrições ininterruptamente. Afirmou que a divulgação dos requisitos legais ocorreu por meio do CRAS, painéis físicos instalados em órgãos públicos do município e publicação das normas no diário oficial. Questionado de forma mais específica, esclareceu que os painéis físicos utilizados para divulgação não eram instalados em vias públicas, mas em dependências de órgãos públicos.
Em minuciosa análise dos autos, não se vislumbra qualquer comprovação de divulgação ampla e transparente do programa, seja por meio de edital, aviso público ou outro instrumento capaz de garantir o acesso isonômico da população às informações e critérios para inscrição. A afirmação dos investigados de que a demanda pelo benefício seria espontânea contradiz frontalmente a previsão legal do art. 17, que estabelece expressamente a abertura e encerramento de inscrições, bem como critérios de priorização caso o número de inscritos supere o limite de 500 (quinhentos) beneficiários.
Merece destaque, nesse particular, o fato de que a falta de publicidade do programa pode ter resultado em desigualdade de acesso, uma vez que apenas aqueles que, de alguma forma, tomaram conhecimento de sua existência através de comunicação informal puderam pleitear o benefício.
A ausência de edital ou instrumento similar para abertura formal das inscrições, com divulgação de prazos, critérios e procedimentos, comprometeu substancialmente a transparência e a impessoalidade na implementação do programa. A opção por uma "demanda espontânea" contínua, sem períodos definidos de inscrição, além de contrariar a letra da lei, dificultou o controle social sobre o processo de concessão dos benefícios.
Verifica-se, portanto, mais uma inobservância às disposições da Lei Municipal nº. 699/2023, especificamente quanto à abertura e encerramento formal de inscrições, com a devida publicidade, conforme previsto em seu art. 17.
1.6 Da ausência de critérios objetivos para definição dos valores concedidos
A investigante apontou que o Programa "Bolsa Esperança" não possuía critérios objetivos e transparentes para a definição dos valores concedidos a cada beneficiário, variáveis entre R$ 100,00 (cem reais) e R$ 400,00 (quatrocentos reais), conforme autorizado pelo art. 11 da Lei Municipal nº. 699/2023 (ID 123031880).
Os investigados, em sua defesa, alegaram que "o critério utilizado para a definição do valor pago é a avaliação social elaborada pelo profissional da assistência social" e que "o assistente social possui a competência para determinar o valor a ser concedido a uma família em programas sociais, como o Bolsa Esperança/Solidária" (ID 123126425).
A detalhada análise dos processos administrativos de concessão do benefício (a partir do ID 123126435) revela a inexistência de parâmetros objetivos e consistentes para a definição dos valores atribuídos a cada beneficiário. Nos relatórios sociais constantes dos autos, não há fundamentação técnica específica que justifique a fixação de valores distintos para situações aparentemente similares, ou mesmo uma gradação clara baseada em critérios socioeconômicos objetivos.
Adriana dos Santos Soares (beneficiária), testemunha arrolada pela investigante, relatou que recebe o benefício municipal no valor de R$ 200,00 (duzentos reais) e que, durante sua entrevista no CRAS, informou que pagava aluguel no valor de R$ 300,00 (trezentos reais), além de possuir três filhos, um deles com diagnóstico de transtorno do espectro autista. Entretanto, não soube precisar os critérios utilizados para a definição do valor que lhe foi concedido.
Osvambergh de Oliveira Martins (Membro do Comitê Municipal "Bolsa Esperança"), testemunha arrolada pela investigante, declarou que os valores atribuídos variavam conforme as particularidades socioeconômicas dos beneficiários, havendo critérios autodeclaratórios, incluindo a aferição da vulnerabilidade. Questionado especificamente sobre os parâmetros técnicos para graduação dos valores, limitou-se a mencionar a análise da vulnerabilidade social de cada caso, sem indicar critérios objetivos ou metodologia específica para tal avaliação.
Edjane Barbosa de Freitas Araújo (Assessora Jurídica do Conselho Municipal de Assistência Social), declarante arrolada pelos investigados, asseverou que a técnica de referência do CRAS é a única profissional com qualificação socioassistencial necessária para avaliar, dentro dos parâmetros legais, o valor do benefício adequado a cada caso concreto, seguindo a metodologia aplicada em programas sociais federais. Afirmou também que nenhum benefício excedeu R$ 300,00 (trezentos reais), sendo a média dos valores pagos aproximadamente R$ 150,00 (cento e cinquenta reais).
Felix Leite da Silva Neto (Secretário de Desenvolvimento Social de Catingueira), declarante arrolado pelos investigados, afirmou que compete à assistente social avaliar, considerando as peculiaridades familiares, como renda e composição, o valor a ser atribuído ao beneficiário, encaminhando o processo ao comitê gestor. Mencionou que, apesar da previsão legal de atendimento a até 500 famílias, atualmente menos de 40% desse contingente encontra-se cadastrado, em decorrência de limitações orçamentárias do município.
Da análise dos depoimentos e da documentação acostada aos autos, evidencia-se que a definição dos valores concedidos a cada beneficiário era realizada de forma essencialmente discricionária, baseando-se na avaliação subjetiva do profissional responsável, sem a adoção de parâmetros objetivos, mensuráveis e verificáveis que pudessem garantir a isonomia no tratamento dos beneficiários em situações similares.
A mera invocação da competência técnica do assistente social, embora relevante, não supre a necessidade de critérios objetivos pré-estabelecidos para a fixação dos valores. Programas de transferência de renda, especialmente quando financiados com recursos públicos, demandam transparência não apenas nos requisitos de elegibilidade, mas também na metodologia utilizada para definição dos valores concedidos, de modo a assegurar tratamento equânime aos beneficiários e possibilitar o controle social sobre a aplicação dos recursos.
O exame dos processos administrativos demonstra, ainda, a ausência de correlação clara entre a situação socioeconômica descrita nos relatórios e o valor concedido, o que reforça a percepção de arbitrariedade na definição dos montantes. Não há, por exemplo, explicação técnica para a atribuição de valores distintos a beneficiários com composição familiar e condições socioeconômicas aparentemente similares.
Observo, portanto, que a ausência de critérios objetivos e transparentes para a definição dos valores concedidos a cada beneficiário comprometeu a impessoalidade e a isonomia na implementação do programa, contrariando princípios basilares da Administração Pública (art. 37, caput, da CF/88).
Embora a Lei Municipal nº. 699/2023 permita uma variação significativa nos valores do benefício (entre R$ 100,00 e R$ 400,00), a discricionariedade administrativa na fixação desses montantes deveria ser pautada por critérios técnicos objetivos, previamente estabelecidos e de conhecimento público, o que não se verificou no caso em análise.
Tal ausência de parâmetros objetivos, além de comprometer a transparência na gestão dos recursos públicos, abriu margem para potenciais arbitrariedades na distribuição dos benefícios, circunstância que merece especial atenção considerando o contexto eleitoral em que se intensificou a execução do programa.
1.7 Da configuração do aspecto qualitativo: reprovabilidade da conduta administrativa
Após detido exame dos elementos constitutivos da presente ação, este Juízo constatou um quadro sistemático de irregularidades na execução do Programa "Bolsa Esperança", que evidencia o nítido afastamento dos pressupostos normativos estabelecidos pela Lei Municipal nº 699/2023.
O conjunto de impropriedades administrativas verificadas, longe de representar meras falhas formais isoladas, revela um padrão de execução marcado por desvios procedimentais que, em seu conjunto, comprometem substancialmente a conformidade legal do programa assistencial.
Como bem salientou o Ministério Público Eleitoral em seu percuciente parecer (ID 123880832), "por todas as irregularidades administrativas verificadas na implementação do programa pelo Poder Executivo municipal, não se questiona a absoluta reprovabilidade da conduta (gravidade qualitativa)". Tal constatação encontra amplo respaldo na instrução processual realizada, que demonstrou, de forma inequívoca, o desvirtuamento dos parâmetros legais estabelecidos.
O programa foi implementado sem a observância de requisitos essenciais previstos na lei instituidora, substituindo-se, por mera deliberação administrativa, o cartão alimentação expressamente exigido pelo art. 19 por transferências bancárias diretas (PIX). A verificação do requisito de residência no município pelo período mínimo de 12 (doze) meses, condição expressamente estipulada pelo art. 6º, inciso II, foi relegada a segundo plano, admitindo-se a autodeclaração como suficiente, sem mecanismos efetivos de comprovação. As avaliações técnicas da vulnerabilidade social, cuja realização competiria aos profissionais do CRAS (art. 5º, parágrafo único), apresentaram-se superficiais e padronizadas, sem a devida individualização e aprofundamento técnico.
O monitoramento e a avaliação do programa, expressamente previstos no art. 18, não foram implementados de forma sistemática e estruturada, inexistindo indicadores de resultados ou mecanismos de acompanhamento da efetividade do programa na promoção da autonomia familiar. A publicidade e transparência nas inscrições, exigida pelo art. 17, cederam lugar a um modelo de "demanda espontânea", sem ampla divulgação, comprometendo a isonomia no acesso ao benefício. Por fim, a inexistência de critérios objetivos e transparentes para definição dos valores concedidos a cada beneficiário conferiu excessiva discricionariedade aos agentes administrativos responsáveis, em detrimento da impessoalidade que deve nortear a distribuição de recursos públicos.
Como acertadamente pontuou o Parquet, em trecho digno de transcrição (ID 123880832):
Inicialmente, quanto ao ato administrativo, pormenorizando a instituição do benefício, nota-se a sua inadequação em regulamentar aspectos relevantes e necessários à concretização do programa.
Dentre as diversas lacunas, observa-se a ausência de previsão adequada acerca da comprovação dos requisitos legais, os quais foram genericamente delegados a agentes municipais e à confiança quase absoluta da autodeclaração dos beneficiários, contudo, sem parâmetros minimamente seguros.
Nesse sentido, o conjunto probatório demonstra, de forma incontestável, a absoluta reprovabilidade da conduta administrativa na execução do programa, configurando plenamente o aspecto qualitativo necessário para a caracterização do abuso de poder. A implementação do programa social à margem dos dispositivos legais que o instituíram, marcada por excessiva discricionariedade e ausência de controles efetivos, revela significativo desvio dos parâmetros de legalidade e impessoalidade que devem orientar a atuação da Administração Pública, especialmente em matéria de transferência de renda.
Com efeito, a forma de operacionalização do programa, caracterizada pelo sistemático afastamento dos parâmetros normativos que o regulamentam, evidencia conduta administrativa gravemente desconforme aos princípios basilares da Administração Pública, notadamente a legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade (art. 37, caput, CF/88).
Cumpre ressaltar, portanto, que as irregularidades constatadas, analisadas em seu conjunto, demonstram de forma inequívoca que o programa foi executado à margem da lei que o instituiu, configurando a inegável reprovabilidade da conduta, aspecto que compõe, necessariamente, o juízo de configuração do abuso de poder, nos termos do art. 22, inciso XVI, da Lei Complementar nº 64/90, combinado com o art. 7º, parágrafo único, da Resolução TSE nº 23.735/2024.
2. Da análise quanto à configuração de conduta vedada
Embora a investigante não tenha explicitamente tipificado as condutas vedadas na peça vestibular, depreende-se de sua narrativa fática e dos pedidos formulados - especificamente a aplicação de multa com base no art. 73, §§ 4°, 5º e 8°, da Lei 9.504/97 - que as irregularidades apontadas na execução do Programa "Bolsa Esperança" enquadrar-se-iam nas hipóteses previstas no art. 73, inciso IV e § 10, da Lei Federal nº 9.504/97.
A subsunção das condutas descritas às normas proibitivas eleitorais decorre da própria narrativa da petição inicial, que sustenta que "o programa na verdade é usado de forma indiscriminada e manipulado" e que os investigados estariam "objetivando se beneficiar eleitoralmente em detrimento do seu adversário" (ID 123031880). Tais alegações, analisadas em seu contexto, sugerem o uso promocional de distribuição gratuita de benefícios sociais e a distribuição indevida de valores em ano eleitoral.
Considerando que o princípio da congruência, em matéria eleitoral, orienta-se pelos fatos narrados e não pela capitulação jurídica apresentada pelo autor (teoria da substanciação), passo a analisar cada uma dessas hipóteses normativas, identificáveis a partir do contexto fático apresentado na inicial e das provas produzidas durante a instrução processual.
2.1 Da conduta vedada prevista no art. 73, inciso IV, da Lei Federal nº. 9.504/97
O art. 73, inciso IV, da Lei Federal nº. 9.504/97 veda aos agentes públicos "fazer ou permitir uso promocional em favor de candidato, partido político ou coligação, de distribuição gratuita de bens e serviços de caráter social custeados ou subvencionados pelo Poder Público".
Para a configuração dessa conduta vedada, a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral exige a presença cumulativa de três elementos: a) contemplar bens e serviços de cunho assistencialista, diretamente à população; b) gratuidade, sem contrapartidas; e c) caráter promocional em benefício de candidatos ou legendas. Os precedentes abaixo confirmam tal entendimento:
3. Nos termos do art. 73, IV, da Lei 9.504/97, é proibido aos agentes públicos promover ou permitir – em benefício de candidato, partido político ou coligação – o uso promocional de distribuição gratuita de bens e serviços de caráter social custeados ou subvencionados pelo erário . 4. Consoante a jurisprudência desta Corte Superior, o ilícito do art. 73, IV, da Lei 9.504/97 pressupõe três requisitos cumulativos: a) contemplar bens e serviços de cunho assistencialista diretamente à população; b) ser gratuito, sem contrapartidas; c) ser acompanhado de caráter promocional em benefício de candidatos ou legendas.
(TSE - AREspEl: 06000409120206260391 EMBU DAS ARTES - SP 060004091, Relator.: Min. Benedito Gonçalves, Data de Julgamento: 16/02/2023, Data de Publicação: DJE - Diário de Justiça Eletrônico, Tomo 28)
2. Nos termos do art. 73, IV, da Lei 9 .504/97, é vedado aos agentes públicos "fazer ou permitir uso promocional em favor de candidato, partido político ou coligação, de distribuição gratuita de bens e serviços de caráter social custeados ou subvencionados pelo Poder Público". 3. Consoante entende esta Corte, a incidência do art. 73, IV, da Lei 9.504/97 pressupõe três requisitos cumulativos quanto a essa conduta: (a) deve contemplar bens e serviços de cunho assistencialista, diretamente à população; (b) há de ser gratuita, sem contrapartidas; (c) deve ser acompanhada de caráter promocional em benefício de candidatos ou legendas.
(TSE - REspEl: 060149454 NATAL - RN, Relator.: Min. Benedito Gonçalves, Data de Julgamento: 15/03/2022, Data de Publicação: 11/04/2022)
In casu, conquanto os 2 (dois) primeiros elementos estejam inquestionavelmente presentes - visto que o programa "Bolsa Esperança" consiste na distribuição gratuita de valores pecuniários a pessoas em situação de vulnerabilidade social -, o conjunto probatório carreado aos autos não evidencia a presença do terceiro requisito, qual seja, o uso promocional em benefício da candidatura dos investigados.
A instrução processual, sobretudo a prova testemunhal colhida sob o crivo do contraditório, não logrou demonstrar que os investigados vinculassem a concessão do benefício à sua atuação política ou solicitassem apoio eleitoral como contrapartida. Nenhuma das testemunhas inquiridas em juízo, incluindo aquelas arroladas pela própria investigante, relatou pedidos de votos, ameaças de suspensão do benefício ou qualquer forma de associação do programa à figura pessoal dos candidatos.
Adriana dos Santos Soares (beneficiária), testemunha arrolada pela investigante, quando questionada especificamente se houve solicitação ou condicionamento a voto, afirmou que jamais foi solicitada ou condicionada a votar em determinado candidato como contrapartida ao recebimento dos benefícios assistenciais e que não teve conhecimento de qualquer ameaça por parte do candidato SUELIO FELIX DE ALENCAR ou de correligionários, no sentido de vincular o recebimento dos benefícios à orientação de voto.
No mesmo sentido, Maria do Livramento de Sales Januário Silva (beneficiária), testemunha arrolada pela investigante, declarou que quando da realização de seu cadastro, não foi abordada com solicitações relacionadas a apoio político ou orientação de voto e que nenhum representante da administração municipal visitou sua residência solicitando apoio político em contraprestação ao recebimento do benefício.
Paradoxalmente, a ausência de ampla publicidade do programa - irregularidade administrativa confirmada durante a instrução processual e previamente analisada por este Juízo - constitui elemento que corrobora a inexistência da conduta vedada ora examinada. Com efeito, a falta de divulgação ampla e sistemática do benefício, embora caracterize inobservância à lei municipal instituidora, afasta o caráter promocional que é elemento essencial à configuração do ilícito eleitoral previsto no art. 73, inciso IV, da Lei Federal nº. 9.504/97.
Tal circunstância foi expressamente reconhecida pelo Ministério Público Eleitoral (ID 123913944) em sua manifestação: "A ausência de ampla publicidade do benefício, havendo em essência uma busca ativa pelos técnicos do CREAS, não atestam um caráter promocional em benefício do candidato". Resta evidente, portanto, que a forma de operacionalização do programa, caracterizada pela "demanda espontânea" e pelo conhecimento restrito de sua existência, embora irregular sob o prisma da legalidade, não se coaduna com a natureza promocional exigida para a configuração da conduta vedada.
Destarte, embora se constate a distribuição gratuita de benefícios assistenciais, inexiste comprovação do elemento essencial do uso promocional eleitoral, circunstância que, à luz da jurisprudência consolidada do Tribunal Superior Eleitoral, impõe o reconhecimento da não configuração da conduta vedada prevista no art. 73, inciso IV, da Lei Federal nº. 9.504/97.
2.2 Da conduta vedada prevista no art. 73, § 10, da Lei Federal nº. 9.504/97
O art. 73, § 10, da Lei Federal nº 9.504/97 estabelece que:
No ano em que se realizar eleição, fica proibida a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior, casos em que o Ministério Público poderá promover o acompanhamento de sua execução financeira e administrativa.
Essa disposição legal visa impedir que, no ano eleitoral, o gestor público distribua benesses às custas do erário com finalidade eleitoreira. A norma, contudo, excepciona expressamente 3 (três) hipóteses, dentre elas: programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior.
A jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral é pacífica quanto à necessidade de preenchimento cumulativo dos 2 (dois) requisitos para que o programa social se enquadre na exceção legal: autorização por lei específica e comprovação de sua execução orçamentária no exercício anterior. Nesse sentido:
4. Não ficou configurada a conduta vedada prevista no § 10 do art . 73 da Lei 9.404/97, porquanto a ressalva legal admite a implementação de programas sociais, no ano das eleições, desde que o programa social esteja autorizado em lei e em execução orçamentária no exercício anterior, e – consoante o Tribunal Regional Eleitoral gaúcho – não há controvérsias acerca da existência desses requisitos no programa habitacional implementado no Município de Entre Rios do Sul/RS.
5. Na linha do entendimento do Tribunal Superior Eleitoral: "Nas condutas vedadas previstas nos arts . 73 a 78 da Lei das Eleicoes imperam os princípios da tipicidade e da legalidade estrita, devendo a conduta corresponder exatamente ao tipo previsto na lei ( REspe nº 626–30/DF, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe de 4.2 .2016)" (AgR–REspe 1196–53, rel. Min. Luciana Lóssio, DJE de 12.9 .2016).
(TSE - AREspEl: 060050191 ENTRE RIOS DO SUL - RS, Relator.: Min. Sergio Silveira Banhos, Data de Julgamento: 09/03/2023, Data de Publicação: 22/03/2023)
No caso sob análise, restou incontroverso que o Programa "Bolsa Esperança" foi instituído pela Lei Municipal nº 699, de 12 de junho de 2023, com início de sua execução orçamentária em setembro do mesmo ano, conforme documentação extraída do Portal da Transparência e do Sistema de Acompanhamento da Gestão dos Recursos da Sociedade (SAGRES) do Tribunal de Contas do Estado da Paraíba (a partir do ID 123031888).
O Ministério Público Eleitoral, em seu parecer (ID 123880832), reconheceu expressamente que "o programa de transferência de renda estava aprovado em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior", circunstância que, em princípio, o enquadraria na ressalva legal.
No presente caso, como já amplamente demonstrado nos tópicos anteriores, o Programa "Bolsa Esperança" foi executado com significativas irregularidades, em flagrante desconformidade com os parâmetros estabelecidos pela Lei Municipal nº 699/2023, que o instituiu. Tais irregularidades, que vão desde a forma de pagamento até a ausência de critérios objetivos para definição dos valores, comprometem substancialmente a regularidade administrativa do programa.
Entretanto, a questão que se coloca é se tais irregularidades, por si sós, são suficientes para descaracterizar o enquadramento do programa na exceção prevista no art. 73, § 10, da Lei Federal nº. 9.504/97. A resposta do Tribunal Superior Eleitoral é negativa:
Este Tribunal Superior possui entendimento uníssono no sentido de que, "nas condutas vedadas previstas nos arts. 73 a 78 da Lei das Eleições imperam os princípios da tipicidade e da legalidade estrita, devendo a conduta corresponder exatamente ao tipo previsto na lei (REspe nº 626-30/DF, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJE: 4.2.2016)" (AgR-REspe nº 1196-53/RN, rel. Min. Luciana Lóssio, julgado em 23.8.2016, DJe de 12.9.2016; AgR-AREspE nº 0600501-91/RS, rel. Min. Sérgio Banhos, julgado em 9.3.2023, DJe de 22.3.2023; AgR-REspEl nº 0600497-27/MG, de minha relatoria, julgado em 14.2.2023, DJe de 2.3.2023).
(TSE. Agravo Regimental No Recurso Especial Eleitoral 060039428/MG, Relator(a) Min. Raul Araujo Filho, Acórdão de 11/04/2024, Publicado no(a) Diário de Justiça Eletrônico 63, data 22/04/2024)
4. Não ficou configurada a conduta vedada prevista no § 10 do art. 73 da Lei 9.404/97, porquanto a ressalva legal admite a implementação de programas sociais, no ano das eleições, desde que o programa social esteja autorizado em lei e em execução orçamentária no exercício anterior, e - consoante o Tribunal Regional Eleitoral gaúcho - não há controvérsias acerca da existência desses requisitos no programa habitacional implementado no Município de Entre Rios do Sul/RS. 5. Na linha do entendimento do Tribunal Superior Eleitoral: "Nas condutas vedadas previstas nos arts. 73 a 78 da Lei das Eleições imperam os princípios da tipicidade e da legalidade estrita, devendo a conduta corresponder exatamente ao tipo previsto na lei (REspe nº 626-30/DF, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe de 4.2.2016)"
(TSE. Agravo Regimental No Agravo Em Recurso Especial Eleitoral 060050191/RS, Relator(a) Min. Sergio Silveira Banhos, Acórdão de 09/03/2023, Publicado no(a) Diário de Justiça Eletrônico 47, data 22/03/2023).
Como se vê, a exceção legal exige, tão somente, que o programa social seja autorizado em lei específica e que já esteja em execução orçamentária no exercício anterior - requisitos que foram de forma incontroversa preenchidos no caso concreto. As irregularidades administrativas verificadas na execução do programa, embora reprováveis, não têm o condão de descaracterizar sua natureza de programa social previamente autorizado e em execução.
Sendo assim, concluo pela não configuração da conduta vedada prevista no art. 73, § 10, da Lei Federal nº. 9.504/97, uma vez que o Programa "Bolsa Esperança" estava autorizado em lei específica e já em execução orçamentária no exercício anterior ao pleito, enquadrando-se, portanto, na ressalva legal expressamente prevista.
3. Da análise quanto à configuração de abuso de poder político e econômico
A investigação e repressão ao abuso de poder no processo eleitoral constituem pilares fundamentais para assegurar o equilíbrio da disputa, a integridade do voto e a legitimidade das eleições. O art. 14, § 9º, da Constituição Federal estabelece a proteção da "normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta", preceito que encontra desdobramento procedimental no art. 22 da Lei Complementar nº 64/90.
O abuso de poder político, conforme consolidado na jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral, caracteriza-se quando o agente público, valendo-se de sua condição funcional, pratica condutas com desvio de finalidade em benefício de determinada candidatura, comprometendo a isonomia entre os competidores eleitorais. Segundo o julgado no REspEl nº 0600564-30/SC (Rel. Min. Floriano de Azevedo Marques, DJE de 23/8/2024), tal forma de abuso se configura pelo "ato de agente público praticado com desvio de finalidade eleitoreira, que atinge bens e serviços públicos ou prerrogativas do cargo ocupado, em prejuízo à isonomia entre candidaturas".
Merece destaque o escólio de ZILIO (2024, p. 735):
O abuso de poder político ou de autoridade na esfera eleitoral pressupõe a apropriação da estrutura governamental em benefício de determinado partido ou candidato com escopo de obter vantagem no certame. Trata-se do uso indevido de bens, serviços e prerrogativas da entidade estatal com intuito eleitoreiro, de modo a desequilibrar a igualdade de chances entre os competidores.
Por outro lado, o abuso de poder econômico materializa-se, nos termos da jurisprudência da Corte Superior Eleitoral, "pelo uso desmedido de aportes patrimoniais que, por sua vultosidade, é capaz de viciar a vontade do eleitor, desequilibrando, em consequência, o desfecho do pleito e sua lisura" (ROE nº 729906, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJE de 14/12/2021). Cumpre destacar que essas modalidades podem ocorrer de forma conjugada ou interdependente, especialmente quando o ato de abuso político possui expressão econômica, conforme reconhece o art. 6º, § 1º, da Resolução TSE nº 23.735/2024, verbis:
Art. 6º A apuração de abuso de poder em ações eleitorais exige a indicação de modalidade prevista em lei, sendo vedada a definição jurisprudencial de outras categorias ilícitas autônomas.
§ 1º O abuso do poder político evidenciado em ato que tenha expressão econômica pode ser examinado também como abuso do poder econômico. (Grifo nosso)
Recorrendo novamente a ZILIO (2024, p. 735), temos que o abuso de poder econômico ocorre:
[...] quando o uso de parcela do poder financeiro é utilizada indevidamente, com o intuito de obter vantagem, ainda que indireta ou reflexa, na disputa do pleito. Vale dizer, abuso de poder econômico consiste no emprego de recursos financeiros em espécie ou que tenham mensuração econômica para beneficiar determinado candidato, partido, federação ou coligação, interferindo indevidamente no certame eleitoral.
A jurisprudência do TSE estabeleceu uma estrutura analítica tripartite para a configuração do abuso de poder, exigindo a comprovação cumulativa de: (i) uma conduta específica; (ii) sua alta reprovabilidade (gravidade qualitativa); e (iii) sua significativa repercussão no pleito (gravidade quantitativa). Essa organização foi expressamente adotada no julgamento da AIJE nº 0600814-85/DF (Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJE de 2/8/2023) e reafirmada no REspEl nº 0600564-30/SC (Rel. Min. Floriano De Azevedo Marques, Publicação: DJE - Diário de Justiça Eletrônico, 23/08/2024), em que o TSE assentou que a tríade se aperfeiçoa diante de "elementos objetivos que autorizem estabelecer juízo de valor negativo a seu respeito" e "elementos objetivos que autorizem inferir com necessária segurança que essas condutas foram nocivas ao ambiente eleitoral".
Com a alteração promovida pela LC 135/2010, o art. 22, inciso XVI, da LC 64/90 passou a estabelecer que "para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam". Essa gravidade, conforme positivado no art. 7º, parágrafo único, da Resolução TSE nº. 23.735/2024, decompõe-se em "aspectos qualitativos, relacionados à reprovabilidade da conduta, e quantitativos, referentes à sua repercussão no contexto específico da eleição".
O aspecto qualitativo refere-se ao alto grau de reprovabilidade da conduta, avaliado a partir da natureza do ato, sua ilicitude intrínseca, a posição institucional do agente e o desvio de finalidade verificado. Já o aspecto quantitativo relaciona-se à significativa repercussão da conduta no contexto da eleição, mensurável por elementos como o alcance territorial do ato, a quantidade de pessoas atingidas e o montante dos recursos empregados proporcionalmente ao tamanho da circunscrição eleitoral.
O reconhecimento do abuso exige robusto acervo probatório, capaz de demonstrar, com elevado grau de certeza, tanto a materialidade da conduta quanto sua gravidade sob ambos os aspectos, aplicando-se o princípio in dubio pro suffragio em casos de incerteza probatória, como destacado no ED-ROE nº 0602962-04/CE (Rel. Min. André Mendonça, DJE de 27/11/2024).
Estabelecidas essas premissas jurídicas, passo a examinar se a conduta imputada aos investigados – a alegada manipulação do Programa "Bolsa Esperança" – configura abuso de poder político e econômico com gravidade suficiente para comprometer a legitimidade do pleito municipal de 2024, mediante análise sistemática dos elementos colhidos na instrução processual.
3.1. Do aumento no número de beneficiários do programa "Bolsa Esperança"
Questão central na presente demanda concerne ao expressivo incremento no quantitativo de beneficiários do Programa "Bolsa Esperança" durante o ano eleitoral de 2024, circunstância que, segundo a investigante, evidenciaria a utilização eleitoreira do programa assistencial.
A investigante sustenta que o aumento verificado entre o início da execução do programa, em setembro de 2023, e o mês da eleição, em outubro de 2024, revela uma manipulação deliberada para favorecer a candidatura dos investigados. Para exame criterioso dessa alegação, faz-se necessário examinar os dados objetivos referentes à evolução do quantitativo de beneficiários mês a mês:
Mês/Ano | Número de Beneficiários | Variação em relação ao mês anterior |
Set/2023 | 55 | - |
Out/2023 | 65 | +10 (+18,18%) |
Nov/2023 | 77 | +12 (+18,46%) |
Dez/2023 | 71 | -6 (-7,79%) |
Jan/2024 | 84 | +13 (+18,31%) |
Fev/2024 | 106 | +22 (+26,19%) |
Mar/2024 | 121 | +15 (+14,15%) |
Abr/2024 | 132 | +11 (+9,09%) |
Mai/2024 | 155 | +23 (+17,42%) |
Jun/2024 | 190 | +35 (+22,58%) |
Jul/2024 | 167 | -23 (-12,11%) |
Ago/2024 | 193 | +26 (+15,57%) |
Set/2024 | 190 | -3 (-1,55%) |
Da análise dos dados acima, é possível constatar que efetivamente ocorreu um incremento no número de beneficiários do Programa "Bolsa Esperança" entre sua implementação inicial, em setembro de 2023, e o período eleitoral de 2024. Em termos absolutos, o programa passou de 55 (cinquenta e cinco) para 190 (cento e noventa) beneficiários, o que representa um aumento de 245,45% (duzentos e quarenta e cinco vírgula quarenta e cinco por cento) em aproximadamente um ano.
Entretanto, tal incremento, analisado em seu contexto, não configura, por si só, evidência suficiente de abuso de poder político e econômico capaz de comprometer a legitimidade do pleito, pelos fundamentos que passo a expor.
Em primeiro lugar, verifica-se que o crescimento do número de beneficiários não ocorreu de forma abrupta às vésperas do período eleitoral, mas seguiu uma trajetória gradual e relativamente constante desde o início do programa. A variação mensal média foi de aproximadamente 14% (quatorze por cento) ao longo de todo o período analisado, sem picos desproporcionais que pudessem indicar manipulação direcionada para o período da campanha eleitoral.
Observe-se, inclusive, que nos meses de dezembro/2023, julho/2024 e setembro/2024 houve redução no número de beneficiários, circunstância que demonstra flutuação natural e afasta a tese de incremento unidirecional com finalidade eleitoreira. Se o propósito fosse meramente eleitoral, seria esperada uma escalada contínua e acelerada, especialmente nos meses imediatamente anteriores ao pleito, o que não se verificou.
É importante destacar que, conforme a Lei Municipal nº 699/2023, o Programa "Bolsa Esperança" possui capacidade para atender até 500 (quinhentas) pessoas, conforme seu art. 7º. Mesmo no auge da execução do programa, em agosto de 2024, quando atingiu 193 (cento e noventa e três) beneficiários, este número representava apenas 38,6% (trinta e oito vírgula seis por cento) do total permitido pela legislação de regência, permanecendo, portanto, substancialmente abaixo do limite legal estabelecido.
Ademais, é natural e esperado que programas sociais recém-implementados apresentem trajetória ascendente em seus primeiros meses ou anos de execução, até atingirem o público-alvo estimado. Tal fenômeno decorre da gradual divulgação do programa, da identificação progressiva dos potenciais beneficiários e do aperfeiçoamento dos mecanismos de cadastramento e seleção.
A jurisprudência das cortes eleitorais reconhece expressamente a possibilidade de continuidade e mesmo de ampliação de programas sociais em ano eleitoral, desde que previamente estabelecidos em lei e em execução orçamentária no exercício anterior, como é o caso dos autos:
A distribuição de benefícios pela administração pública no ano eleitoral encontra permissivo no art. 73, § 10, da Lei n. 9.504/97, quando se tratar de execução de programa social previamente estabelecido por lei e já em andamento no exercício anterior, ou em casos de estado de calamidade pública, como ocorrido no município.
(TRE/RS. Recurso Eleitoral 060033466/RS, Relator(a) Des. Francisco Thomaz Telles, Acórdão de 24/03/2025, Publicado no(a) Diário de Justiça Eletrônico 55, data 26/03/2025)
Fica firmada a tese de que a execução de programas sociais em ano eleitoral, desde que autorizados por lei e com previsão orçamentária anterior, não configura conduta vedada, nos termos do art. 73, §10, da Lei nº 9.504/97. Dispositivos relevantes citados: Lei nº 9.504/97, art. 73, §§4º, 5º e 10. Jurisprudência relevante citada: TSE, Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial Eleitoral nº 060367971, Rel. Min. André Mendonça, DJE 04/10/2024. RECURSO ELEITORAL nº060025049, Acórdão, Relator(a) Des. Julio Cesar Lorens, Publicação: DJE - DJE, 13/12/2024.
(TRE/MG. Recurso Eleitoral 060025049/MG, Relator(a) Des. Julio Cesar Lorens, Acórdão de 12/12/2024, Publicado no(a) DJE 238, data 13/12/2024)
No caso em análise, o Programa "Bolsa Esperança" foi instituído pela Lei Municipal nº. 699/2023, aprovada em 12 de junho de 2023, e sua execução orçamentária iniciou-se em setembro do mesmo ano, conforme comprovam os documentos acostados aos autos. Tal matéria, inclusive, foi exaustivamente debatida no TÓPICO 2.2, quando se analisou a possível prática de conduta vedada (art. 73, inciso IV e § 10, da Lei Federal nº. 9.504/97). Portanto, atende aos requisitos legais para sua regular continuidade durante o ano eleitoral.
Desta feita, ainda que se reconheça a ocorrência de incremento no número de beneficiários entre setembro de 2023 e outubro de 2024, tal circunstância, analisada objetivamente e em seu contexto cronológico, não evidencia, por si só, uma manipulação deliberada do programa social com finalidade eleitoreira. O crescimento verificado apresenta-se como consequência natural da implementação de uma política pública recém-instituída, mantendo-se dentro dos parâmetros legais e em consonância com a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral sobre a matéria.
3.2. Da gravidade das circunstâncias
Como anteriormente assentado, a configuração do abuso de poder, nos termos do art. 22, inciso XVI, da Lei Complementar nº 64/90, exige a demonstração da gravidade das circunstâncias que o caracterizam, não mais se exigindo a comprovação da potencialidade de alteração do resultado do pleito.
Conforme elogiosa e didática síntese de GOMES (2020, p.754):
O abuso de poder caracteriza-se por macular a integridade do processo eleitoral, a legitimidade do pleito e a sinceridade da vontade popular expressa nas urnas. São esses os bens jurídico-constitucionais objeto de proteção. A configuração do ilícito requer que os eventos abusivos sejam de tal magnitude que possam seriamente feri-los. Assim, a gravidade das circunstâncias relaciona-se com o grau ou intensidade de lesão aos referidos bens jurídicos. (Grifo nosso)
Tal gravidade, conforme solidificado na jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral e positivado no art. 7º, parágrafo único, da Resolução TSE nº 23.735/2024, decompõe-se em dois aspectos distintos e complementares: o qualitativo, relacionado à reprovabilidade da conduta, e o quantitativo, referente à sua repercussão no contexto específico da eleição.
No TÓPICO 2.1.7, este Juízo reconheceu estar plenamente caracterizada a gravidade sob o aspecto qualitativo, tendo em vista o conjunto sistemático de irregularidades verificadas na execução do Programa "Bolsa Esperança", que evidenciou o nítido afastamento dos pressupostos normativos estabelecidos pela Lei Municipal nº. 699/2023.
Todavia, a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral é uníssona no sentido de que a configuração do abuso de poder requer a comprovação cumulativa dos aspectos qualitativo e quantitativo da gravidade, não bastando a demonstração de apenas um deles.
Nessa mesma linha, o Ministro Floriano de Azevedo Marques, em voto proferido no julgamento do REspEl nº 0600564-30/SC, destacou que a tríade para a apuração do abuso (conduta, reprovabilidade e repercussão) somente se aperfeiçoa quando presentes, concomitantemente:
(i) prova de condutas que constituem o núcleo da causa de pedir; (ii) elementos objetivos que autorizem estabelecer juízo de valor negativo a seu respeito, de modo a afirmar que as condutas são dotadas de alta reprovabilidade (gravidade qualitativa); (iii) elementos objetivos que autorizem inferir com necessária segurança que essas condutas foram nocivas ao ambiente eleitoral (gravidade quantitativa).
No caso em apreço, conquanto o conjunto de irregularidades administrativas verificadas na execução do Programa "Bolsa Esperança" denote alto grau de reprovabilidade (gravidade qualitativa), é imprescindível perquirir se tais irregularidades efetivamente repercutiram de forma significativa no contexto específico da eleição (gravidade quantitativa), de modo a comprometer a legitimidade do pleito e a paridade de armas entre os candidatos.
O douto representante ministerial, por meio de sua peça opinativa (ID 123880832), abordou especificamente a questão da gravidade sob o aspecto quantitativo, destacando que:
O quadro de irregularidades administrativas é alarmante, revelando os documentos constantes dos autos um cenário complexo de improbidade administrativa. Entretanto, inexistem elementos objetivos que autorizem inferir, com necessária segurança, que essas condutas foram nocivas ao ambiente das eleições de 2024 no Município de Catingueira. A normalidade das eleições aparentemente não foi lesada, encontrando-se o programa de transferência de renda aprovado em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior, não repercutindo no contexto específico da eleição as irregularidades administrativas apontadas na concessão e fiscalização dos benefícios [...]
O Parquet, portanto, concluiu pela ausência de elementos probatórios concretos que permitissem evidenciar a significativa repercussão das irregularidades administrativas no pleito eleitoral, considerando, notadamente, a inexistência de "prova segura no sentido de atrelamento eleitoral à concessão, seja pelo caráter de promoção da imagem do candidato seja pelo pedido expresso, ou mesmo implícito, de voto".
Avaliando detidamente o conjunto probatório constante dos autos, este Juízo reconhece a ausência de elementos objetivos suficientes para caracterizar a gravidade sob o aspecto quantitativo, tendo em vista as seguintes circunstâncias:
1. Ausência de vinculação expressa entre a concessão do benefício e pedido de voto: A instrução processual, notadamente a prova testemunhal colhida sob o crivo do contraditório, não logrou demonstrar que a concessão do benefício estivesse condicionada ao apoio eleitoral aos investigados. Nenhuma das testemunhas ouvidas em juízo, inclusive aquelas arroladas pela própria investigante, relatou solicitação de votos, ameaças de suspensão do benefício ou qualquer forma de associação do programa à candidatura à reeleição;
2. Falta de ampla divulgação do programa: Em contraposição ao esperado, a restrita divulgação do programa assistencial - falha administrativa constatada ao longo da fase instrutória - funciona como elemento que debilita o argumento de aproveitamento eleitoreiro, uma vez que a comunicação limitada obstaculiza a vinculação cognitiva entre a distribuição do auxílio e as postulações eleitorais dos investigados, reforçando a ausência do componente promocional necessário à caracterização da irregularidade;
3. Alcance limitado em relação ao eleitorado: Conforme destacado pelo Ministério Público Eleitoral, "os 190 beneficiários diretos em setembro de 2024 equivalem a 4,1% dos votantes. Considerando famílias (média de 3-4 pessoas por núcleo), o alcance pode chegar a 570-760 pessoas, ou 12-16% do eleitorado". Tal percentual, embora não desprezível, não se mostra suficientemente expressivo para, isoladamente, comprometer a legitimidade do pleito e a paridade de armas entre os candidatos, sobretudo diante da expressiva diferença de votos obtida pelo candidato vencedor (30,12% de diferença, equivalente a 1.405 votos). Lembrando que o número total de votos válidos no município de CATINGUEIRA/PB foi da ordem de 4.499 (quatro mil quatrocentos e noventa e nove);
4. Regularidade formal do programa social: Não obstante as irregularidades verificadas em sua execução, o Programa "Bolsa Esperança" foi formalmente instituído por lei específica (Lei Municipal nº 699/2023) e já se encontrava em execução orçamentária no exercício anterior ao pleito, circunstâncias que, embora não afastem a reprovabilidade da conduta, mitigam sua repercussão no contexto eleitoral, visto que se enquadra na ressalva prevista no art. 73, § 10, da Lei Federal nº 9.504/97;
5. Ausência de indícios de um esquema articulado de cooptação de eleitores: O conjunto probatório não evidenciou a existência de um esquema estruturado para utilização do programa social como instrumento de captação de sufrágio. Ao contrário, os depoimentos colhidos em juízo, inclusive das testemunhas arroladas pela investigante, indicam que a concessão do benefício seguia, ainda que precariamente, critérios de vulnerabilidade social, sem condicionamento expresso ou tácito a apoio político.
Convém ressaltar que a jurisdição eleitoral, ao analisar possíveis práticas abusivas, deve pautar-se por critérios de proporcionalidade e razoabilidade, sopesando adequadamente a gravidade da conduta e sua efetiva repercussão no pleito, sob pena de banalização do instituto e indevida interferência na soberania popular.
Merece transcrição, pela sua notória exatidão e praticidade, a lição de GOMES (2020, p. 755) ao trazer valiosos critérios para um efetivo exame da gravidade da conduta:
Na apreciação da gravidade, pode ter utilidade a análise de circunstâncias como as seguintes: i) a conduta do candidato beneficiado e de integrantes de sua campanha, do grau de conhecimento, participação e envolvimento que tiveram com o fato abusivo; ii) o contexto do fato: quantidade de pessoas presentes ao evento, quantidade de pessoas atingidas ou beneficiadas pelo fato, situação em que essas pessoas se encontram (se mais ou menos vulneráveis, se mais ou menos suscetíveis de transacionar o voto), natureza e o tipo de eleição, se houve repercussão do fato nos meios de comunicação social, se os veículos em que houve repercussão são relevantes na circunscrição do pleito; iii) o resultado das eleições, analisando-se a votação obtida pelo candidato beneficiado com o fato e comparando-a com a dos seus concorrentes.
Nesse contexto, a jurisprudência dos tribunais eleitorais tem sido rigorosa na exigência de robusta comprovação da gravidade das circunstâncias, inclusive sob o aspecto quantitativo, para configuração do abuso de poder:
A qualificação do abuso de poder, em quaisquer de suas modalidades, exige a demonstração da gravidade do agir interpelado, em sua dupla dimensão, bem como a aptidão da conduta para comprometer a higidez do prélio, o que não se extrai na hipótese, onde sequer restou demonstrado o liame eleitoral das condutas tidas por ilícitas pela investigante.
(TRE/PE. Recurso Eleitoral 060045433/PE, Relator(a) Des. FERNANDO CERQUEIRA NORBERTO DOS SANTOS, Acórdão de 13/03/2025, Publicado no(a) Diário de Justiça Eletrônico do TRE-PE 49, data 18/03/2025)
A jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral estabelece que a caracterização do abuso de poder requer a comprovação da gravidade da conduta e sua repercussão na normalidade do pleito (TSE – REspEl: 06004194920206060048, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 01/02/2023).
Para a caracterização do abuso de poder político e econômico é imprescindível a comprovação robusta da gravidade da conduta e seu impacto na normalidade do pleito, não se presumindo a ilicitude com base em indícios insuficientes ou presunções.
(TRE/RN. Recurso Eleitoral 060029041/RN, Relator(a) Des. Suely Maria Fernandes da Silveira, Acórdão de 13/03/2025, Publicado no(a) Diário de justiça eletrônico 50, data 18/03/2025, pag. 21-30)
A caracterização do abuso de poder político e dos meios de comunicação social exige prova robusta da gravidade qualitativa e quantitativa das condutas.
(TRE/GO. Recurso Eleitoral 060038972/GO, Relator(a) Des. Rodrigo De Melo Brustolin, Acórdão de 28/01/2025, Publicado no(a) DJE 19, data 31/01/2025)
A repercussão das condutas vedadas reconhecidas em primeiro grau na normalidade do pleito, essencial para configurar o abuso de poder e ensejar as sanções mais gravosas, não foi devidamente demonstrada. A jurisprudência do TSE exige prova robusta e inequívoca da gravidade do ato (aspecto qualitativo) e da influência efetiva dos atos no pleito (aspecto quantitativo). No caso, as provas analisadas com parâmetros mensuráveis de alcance revelaram engajamento modesto, sem potencial para comprometer a igualdade na disputa eleitoral.
(TRE/MT. Recurso Eleitoral 60031409/MT, Relator(a) Des. Luis Otavio Pereira Marques, Acórdão de 19/12/2024, Publicado no(a) Diário da Justiça Eletrônico 4329, data 21/01/2025)
Em suma: para fins de cassação do registro ou diploma os atos devem ser graves o suficiente para macular a lisura do pleito, ofender a sua normalidade ou comprometer a sua legitimidade.
No caso em tela, entendo que as irregularidades administrativas verificadas na execução do Programa "Bolsa Esperança", conquanto revelem alta reprovabilidade sob o aspecto qualitativo, não repercutiram de forma significativa no contexto eleitoral a ponto de comprometer a legitimidade do pleito e a sinceridade da vontade popular manifestada nas urnas.
Na espécie, os elementos objetivos que emergiram da instrução processual não permitem inferir, com a necessária segurança jurídica, que as irregularidades administrativas verificadas na execução do programa social repercutiram de forma significativa no contexto eleitoral do município de CATINGUEIRA/PB, de modo a comprometer a legitimidade do pleito.
Persiste, portanto, a insuperável ausência do elemento "gravidade quantitativa", indispensável para a configuração do abuso de poder político e econômico, o que conduz, inexoravelmente, à improcedência da pretensão deduzida na exordial.
Importante consignar, por fim, que tal conclusão não implica chancela às irregularidades administrativas verificadas na execução do Programa "Bolsa Esperança", cuja reprovabilidade sob o aspecto qualitativo foi expressamente reconhecida, mas apenas constata a inexistência de repercussão eleitoral significativa capaz de justificar a intervenção desta Justiça Especializada, com a grave consequência de cassação de diplomas legitimamente conquistados nas urnas.
Ante o exposto, com arrimo no art. 93, inciso IX, da Constituição Federal, e considerando o amplo conjunto probatório produzido sob o crivo do contraditório, JULGO IMPROCEDENTES os pedidos formulados na presente Ação de Investigação Judicial Eleitoral, com espeque no art. 487, inciso I, do Código de Processo Civil, c/c o art. 22, inciso XIV, da Lei Complementar nº 64/90.
INTIMEM-SE as partes, via Diário de Justiça Eletrônico (DJE/TRE-PB), para que, caso queiram, interponham, no prazo de 3 (três) dias, recurso eleitoral, na forma dos art. 258 do Código Eleitoral c/c o art. 51 da Resolução TSE nº 23.608/2019.
Por consequência, mantenho hígidos os diplomas outorgados aos investigados SUÉLIO FÉLIX DE ALENCAR e PATRÍCIO JOSÉ FAUSTO DE SOUSA para os cargos de Prefeito e Vice-Prefeito do Município de CATINGUEIRA/PB, respectivamente, bem como preservo-lhes a capacidade eleitoral passiva.
A publicação desta SENTENÇA servirá como ato de intimação.
CIÊNCIA ao Ministério Público Eleitoral.
Havendo trânsito em julgado, CERTIFIQUE-SE.
Por fim, ARQUIVEM-SE.
Piancó/PB, datado e assinado eletronicamente.
PEDRO DAVI ALVES DE VASCONCELOS
Juiz Eleitoral