TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL
RECURSO ESPECIAL ELEITORAL Nº 0600363-82.2024.6.26.0027 – CLASSE 11549 – BRAGANÇA PAULISTA – SÃO PAULO
Relator: Ministro Floriano de Azevedo Marques
Recorrente: Coligação Experiência para Mudar Bragança
Advogado: Milton de Moraes Terra – OAB: 122186/SP e outros
Recorrente: Edmir José Abi Chedid
Advogado: Ricardo Vita Porto - OAB: 183224/SP e outros
DECISÃO
ELEIÇÕES 2024. RECURSO ESPECIAL ELEITORAL. REGISTRO DE CANDIDATURA DEFERIDO NA ORIGEM. NÃO CONFIGURAÇÃO DE INELEGIBILIDADE REFLEXA. ART. 14, § 7º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PARENTESCO. PREFEITO REELEITO. FALECIMENTO DURANTE O PRIMEIRO BIÊNIO DO SEGUNDO MANDATO. POSSIBILIDADE DA CANDIDATURA DO FILHO DO FALECIDO AO MESMO CARGO. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO EXERCÍCIO DE FATO DA CHEFIA DO EXECUTIVO E DE INGERÊNCIA NO MUNICÍPIO. CANDIDATO RECORRIDO NO EXERCÍCIO DO CARGO DE DEPUTADO ESTADUAL. AUSÊNCIA DE VEDAÇÃO LEGAL DA ATUAÇÃO PARLAMENTAR NA REGIÃO. IMPOSSIBILIDADE DE REEXAME DE PROVAS. ACÓRDÃO REGIONAL EM CONSONÂNCIA COM A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. INCIDÊNCIA DAS SÚMULAS 24 E 30 DO TSE. NEGATIVA DE SEGUIMENTO.
A Coligação Podemos Agir Bragança e a Coligação Experiência Para Mudar Bragança interpuseram recursos especiais (IDs 162926237 e 162926244) em face de acórdão do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo (ID 162926206) que, por unanimidade, negou provimento aos recursos e manteve a sentença que julgou improcedentes as impugnações apresentadas e deferiu o pedido de registro de candidatura de Edmir José Abi Chedid, prefeito eleito pela Coligação O Melhor Para Bragança no Município de Bragança Paulista/SP nas eleições de 2024.
O caso versa sobre pedido de registro de candidatura ao cargo de prefeito do Município de Bragança Paulista/SP, nas eleições de 2024, por Edmir José Abi Chedid, o qual foi impugnado com fundamento na inelegibilidade reflexa, prevista no § 7º, do art. 14, da Constituição Federal. O recorrido é filho do Sr. Jesus Adib Abi Chedid, que exerceu dois mandatos consecutivos como prefeito daquela localidade (2017-2020 e 2021-2022), vindo a falecer em 2.6.2022.
A pretensão recursal de ambas as recorrentes é o conhecimento e o provimento dos recursos especiais, para reformar o acórdão regional e declarar a incidência da inelegibilidade reflexa, para indeferir o registro de candidatura do recorrido.
Eis a ementa do acórdão recorrido (ID 162926209):
RECURSO ELEITORAL. REGISTRO DE CANDIDATURA. ELEIÇÕES 2024. PREFEITO. ART. 14°, § 7°, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. INELEGIBILIDADE REFLEXA POR PARENTESCO. FILHO. FALECIMENTO DO MANDATÁRIO. ALEGAÇÃO DE EXTINÇÃO DO PARENTESCO PARA FINS DE INELEGIBILIDADE REFLEXA. PRESENÇA DE CIRCUNSTÂNCIAS EXCEPCIONAIS. PRECEDENTES: TSE. INEXISTÊNCIA DE CAUSA DE INELEGIBILIDADE. RECURSOS ELEITORAIS DESPROVIDOS.
Opostos embargos de declaração, foram eles rejeitados em acórdão assim ementado (ID 162926229):
OPOSIÇÃO DE TRÊS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. RECURSO ELEITORAL. ELEIÇÕES 2024. REGISTRO DE CANDIDATURA. DEFERIMENTO. ALEGAÇÕES DE OMISSÃO E CONTRADIÇÃO. INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS A SEREM SANADOS. MEROS INCONFORMISMOS. CARÁTER INFRINGENTE. REDISCUSSÃO DA CAUSA. PREQUESTIONAMENTOS. REJEIÇÃO DE TODOS DOS EMBARGOS.
Nas razões recursais, a Coligação Podemos Agir Bragança alega, em suma, que:
a) houve erro da Corte Regional ao considerar que o falecimento do titular e a condição de deputado estadual do recorrido afastariam a inelegibilidade reflexa;
b) o Tribunal de origem afrontou o art. 14, § 7º, da Constituição Federal, porquanto: i) baseou-se em consultas eleitorais que nem sequer foram conhecidas pelo TSE, ii) contrariou a jurisprudência que exige não apenas o falecimento do titular, mas a efetiva quebra de vínculos político-administrativos; iii) confundiu a atuação parlamentar regular com o exercício de fato do poder local;
c) o vínculo consanguíneo em primeiro grau possui natureza jurídica permanente e imutável. A relação paterno-filial, estabelecida pelos laços de sangue, não se extingue com a morte de um dos genitores. Ao revés, frequentemente serve como elemento de continuidade e perpetuação do poder político familiar, exatamente o que o constituinte originário buscou coibir ao estabelecer a inelegibilidade reflexa;
d) “no caso concreto, a manutenção da influência política do grupo familiar Chedid resta inequívoca pelos fatos estabelecidos no próprio acórdão: (i) presença ostensiva do candidato em atos oficiais; (ii) coordenação política de 180 pré-candidatos a vereador; (iii) transferência estratégica de funcionários entre gabinetes; e (iv) principalmente, a desistência do atual prefeito em favor da candidatura do filho do ex-prefeito falecido” (ID 162926237, p. 7);
e) conforme a jurisprudência do TSE, na análise da inelegibilidade reflexa deve-se considerar não apenas aspectos formais do vínculo familiar, mas também a realidade da política local e da efetiva ruptura com o poder estabelecido;
f) no precedente AgR-REspEl 0600403-51 ficou decidido que a causa de inelegibilidade prevista nos §§ 5º e 7º do art. 14 da Constituição Federal não incide nos casos em que houve ruptura do vínculo familiar e político decorrente da morte do pai do candidato, o que não ocorreu na espécie;
g) a interpretação sistemática do art. 14, § 7º, da Constituição Federal deve levar em consideração o seu objetivo primordial que é impedir a perpetuação de grupos familiares no poder local.
h) “esta interpretação encontra respaldo no recente posicionamento do STF, manifestado no AgR no RE 1.028.577, de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, que enfatizou a necessidade de uma ‘interpretação construtiva’ das causas de inelegibilidade, fundamentada no Princípio Republicano da alternância no poder” (ID 162926237, p.9);
i) assim como na interpretação da Lei da Ficha Limpa, em que o STF e o TSE firmaram entendimento de que não se trata de interpretação restritiva ou elástica, mas de dar adequada conformação aos fins constitucionais, o caso em exame demanda o mesmo rigor metodológico;
j) a aplicação da Súmula Vinculante 18 do STF implica interpretação teleológica, não podendo ser automaticamente estendida a casos de falecimento e parentesco consanguíneo;
k) ao considerar somente o aspecto forma do falecimento, a Corte Regional violou o núcleo essencial da norma constitucional, pois ignorou a continuidade do projeto político e a alternância efetiva de poder;
l) os precedentes invocados pelo Tribunal de origem para fundamentar o acórdão recorrido são manifestamente inaplicáveis ao caso;
m) o acórdão recorrido foi fundamentado em consultas que nem sequer foram conhecidas;
n) houve flagrante violação ao princípio da alternância de poder, o qual veda a transformação do poder político em herança familiar, ainda que sob o manto da aparente legalidade;
o) “a força normativa da Constituição resta comprometida quando interpretações formalistas permitem que se faça indiretamente aquilo que a norma constitucional visa diretamente proibir. O caso evidencia verdadeira fraude à Constituição, pois o art. 14, §7º visa impedir perpetuação familiar no poder, mas a interpretação do acórdão permite exatamente esta perpetuação” (ID 162926237, p. 20);
p) o risco à democracia local está evidenciado no histórico de cinco mandatos consecutivos da família Chedid, com a tentativa de um terceiro mandato seguido por meio de sucessão articulada;
q) é juridicamente impossível equiparar a dissolução do vínculo conjugal por falecimento ao caso de filho que sucede o pai. O cônjuge sobrevivente pode efetivamente romper os laços e construir nova família política, mas o filho sempre representará a continuidade do projeto político familiar, o que o § 7º do art. 14 da Constituição Federal objetiva obstar;
r) houve divergência jurisprudencial, demonstrada por meio de cotejo analítico entre o acórdão recorrido e precedente do TSE;
s) “o próprio acórdão documentou a articulação sucessória através do atual prefeito que, integrante declarado do ‘Grupo Chedid’, sequer será candidato à reeleição, abrindo espaço para a candidatura do filho do antigo prefeito. Esta sequência de fatos, somada ao controle sobre 180 pré-candidaturas a vereador e à transferência de funcionários entre gabinetes, demonstra não uma ruptura, mas a continuidade do mesmo grupo familiar no poder” (ID 162926237, p. 39).
Por sua vez, a Coligação Experiência para Mudar Bragança sustenta, em síntese, que:
a) o acórdão regional considerou que a manutenção da mesma estrutura administrativa e toda a influência nas decisões administrativas decorreram do fato de o recorrido ter base eleitoral na região e ser deputado estadual;
b) o recorrido exerce de fato o cargo de prefeito desde o falecimento de seu pai, tendo sido o vice-prefeito apenas o detentor de direito do cargo;
c) deve ser aplicada a inelegibilidade reflexa estabelecida no art. 14, § 7º, da Constituição Federal, assim como a Súmula 6 do TSE;
d) é necessário se fazer o distinguishing entre o caso concreto e o disposto na Súmula Vinculante 18 do STF, visto que ela foi motivada pela preocupação de fraude na dissolução conjugal, já a presente situação exige um exame mais profundo a respeito da continuidade do projeto político familiar, reforçado pelo apoio explícito do atual prefeito e pela manutenção das estruturas do poder previamente estabelecidas;
e) houve dissenso jurisprudencial entre o presente caso e julgado do TRE/PR, que adotou entendimento diametralmente oposto ao firmado no acórdão recorrido;
f) “não há que se falar em extinção de vínculo de parentesco consanguíneo com a morte, como no caso em apreço, não há extinção do vínculo de filiação com a morte, ao contrário do conjugal onde o cônjuge sobrevivente poderá contrair novo matrimônio, não se extingue jamais o vínculo entre pai e filho” (ID 162926244, p. 25);
g) a Súmula 6 do TSE é nítida ao obstar que parentes do titular reeleito, ainda que falecido, concorram a terceiro mandato consecutivo pelo mesmo grupo familiar.
Em contrarrazões (ID 162926251), Edmir José Abi Chedid defende o não provimento dos recursos especiais, argumentando, em resumo, que:
a) de acordo com o entendimento manifestado pelo TSE em três consultas analisadas neste ano, estaria afastada a inelegibilidade reflexa. Nesse sentido, cita: CtaEl 0600049-46, rel. Min. Raul Araújo, DJE de 8.5.2024; CtaEl 0600334-39, rel. Min. Raul Araújo, DJE de 21.6.2024; e CtaEl 0600174-48, rel. Min. Kassio Nunes Marques, DJE de 12.8.2024;
b) o STF ao examinar o Tema de Repercussão Geral 678, fixou a tese de que: “A dissolução da sociedade ou do vínculo conjugal, no curso do mandato, não afasta a inelegibilidade prevista no § 7º do artigo 14 da Constituição Federal”, a qual não se aplica aos casos de extinção do vínculo conjugal pelo falecimento de um dos cônjuges;
c) nenhum dos julgados invocados pelos recorrentes é apto a demonstrar o dissenso jurisprudencial;
d) ao julgar o AgR-REspEl 0600403-51, de relatoria do Min. Sérgio Banhos, o TSE demonstrou que não há justificativa para tratar de modo distinto o vínculo familiar decorrente de relação conjugal e de parentesco consanguíneo;
e) o parecer da Assessoria Consultiva (Assec), unidade deste Tribunal Superior, no bojo da CtaEl 0600049-46, pontua uma eventual ressalva ao entendimento jurisprudencial, no sentido de que não existe óbice à candidatura de cônjuge ou parente consanguíneo, até o segundo grau, de prefeito falecido no primeiro biênio do segundo mandato, isto é, mais de dois anos antes das eleições.
f) “não há nenhum indício minimamente concreto de que sua atuação política estivesse vinculada a um uso indevido da máquina pública ou a uma tentativa de perpetuação familiar no poder. Ao contrário, sua presença em inaugurações e outros eventos é uma extensão natural das atribuições parlamentares, especialmente no contexto de sua função de representar os interesses da comunidade local” (ID 162926251, p.17);
g) na eventualidade do TSE alterar o seu entendimento sobre a matéria, essa nova orientação só poderá ser aplicada após as eleições de 2024, tendo em vista a regra da anualidade eleitoral, conforme preconizado no art. 16 da Constituição Federal.
A douta Procuradoria-Geral Eleitoral manifestou-se pelo provimento dos recursos (ID 162932748).
É o relatório.
Decido.
1. Tempestividade e regularidade da representação processual.
Os apelos são tempestivos. O acórdão atinente ao julgamento dos embargos foi publicado em sessão em 8.11.2024 (ID 162926234) e os recursos especiais foram interpostos em 11.11.2024 (IDs 162926237 e 162926244), por advogados habilitados nos autos (IDs 162925620 e 162925610).
2. Dos fundamentos do acórdão recorrido e da pretensão recursal.
O Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo, por unanimidade, manteve a sentença que não acolheu as impugnações ofertadas e deferiu o pedido de registro de candidatura de Edmir José Abi Chedid, prefeito eleito no Município de Bragança Paulista/SP nas eleições de 2024, por entender não caracterizada a inelegibilidade prevista no art. 14, § 7º, da Constituição Federal.
Extrai-se do acórdão regional o seguinte:
a) Edmir José Abi Chedid é filho de Jesus Adib Abi Chedid, que foi eleito prefeito do Município de Bragança Paulista/SP para os mandatos de 2017/2020 e 2021/2024, faleceu em 2.6.2022;
b) o falecimento do genitor do recorrido ocorreu no primeiro biênio do segundo mandato, isto é, mais de dois anos antes das eleições seguintes, o que não implicaria perpetuação política de grupos familiares nem ensejaria o uso indevido da estrutura administrativa em benefício de parentes detentores de poder (AgR-REspEl 0600204-35; CtaEl 0600442-05 e CtaEl 0600049-46);
c) “a tese definida no julgamento do RE n. 758.461, submetido à sistemática da repercussão geral, no sentido de que a Súmula Vinculante 18 do Supremo Tribunal Federal não se aplica aos casos de extinção do vínculo conjugal pela morte de um dos cônjuges, bem como os julgados do c. Tribunal Superior Eleitoral relacionados ao tema em comento são precedentes que reconhecem excepcionalidades em cada um dos casos concretos que estavam sob análise, na medida em que evidenciaram o rompimento do continuísmo do grupo familiar no poder” (ID 162926206).
A Corte de origem asseverou, por fim, que o recorrido exerce o cargo de deputado estadual, eleito para algumas legislaturas, e tem como base eleitoral a região bragantina, sendo natural estabelecer conexões com a prefeitura local. Portanto, o fato de o recorrido defender o legado do falecido pai e ter o apoio do prefeito que sucedeu o genitor na prefeitura, não é capaz de atrair a incidência da inelegibilidade reflexa.
Feitas essas considerações, passo ao exame das razões recursais em conjunto, tendo em vista a similitude das pretensões recursais, todas voltadas ao reconhecimento da inelegibilidade do recorrido, por alegada incidência da hipótese do § 7º do art. 14 da Constituição Federal.
3. Da análise dos recursos especiais.
3.1. Da ausência de afronta ao art. 14, § 7º, da Constituição Federal. Incidência da Súmula 30 do TSE.
Cinge-se a questão em verificar se o recorrido incide ou não na inelegibilidade reflexa prevista no art. 14, § 7º, da Constituição Federal, tendo em vista que o mandato do seu genitor iria se encerrar no final deste ano, o que não ocorreu, devido ao seu falecimento ainda no primeiro biênio do segundo mandato.
O art. 14, § 7º, da Constituição Federal estabelece que: “São inelegíveis, no território de jurisdição do titular, o cônjuge e os parentes consanguíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, do Presidente da República, de Governador de Estado ou Território, do Distrito Federal, de Prefeito ou de quem os haja substituído dentro dos seis meses anteriores ao pleito, salvo se já titular de mandato eletivo e candidato à reeleição”.
É certo que o objetivo da norma é impedir a permanência de um grupo familiar no poder por tempo indeterminado, evitar eventual comprometimento da isonomia entre os candidatos e preservar a salutar alternância no poder.
Nessa linha: “A ratio essendi do art. 14, § 7º, da Lei Fundamental destina-se a evitar que haja a perpetuação ad infinitum de uma mesma pessoa ou de um grupo familiar na chefia do Poder Executivo, de ordem a chancelar um (odioso) continuísmo familiar na gestão da coisa pública, amesquinhando diretamente o apanágio republicano de periodicidade ou temporariedade dos mandatos político-eletivos” (AgR-REspe 215-94, rel. Min. Luiz Fux, DJE de 2.6.2017).
Nesse contexto, a inelegibilidade prevista no § 7º deve ser considerada a partir do objetivo da norma, por meio de hermenêutica teleológica, na linha do que já asseverava o Ministro Pertence no RE 344.832, no sentido de que, com o advento da possibilidade de reeleição pelo próprio mandatário, a “letra do 7º, atinente a inelegibilidade dos cônjuges e parentes, consanguíneos ou afins, dos titulares tornados reelegíveis [...] interpretado no absolutismo da sua literalidade, conduz a disparidade ilógica de tratamento e gera perplexidades invencíveis”.
Foi a partir da Emenda Constitucional 16/97, que incluiu a possibilidade de reeleição para os cargos majoritários, que a regra do § 7º do art. 14 da Constituição da República passou a ser interpretada de modo a permitir a candidatura de parente ou cônjuge, no caso em que o titular tivesse condição de se reeleger e se afastasse do cargo seis meses antes do pleito.
Vale destacar que a interpretação dada a esse dispositivo pelo Supremo Tribunal Federal e por esta Corte Superior oscilou desde a promulgação da Constituição Federal, de acordo com as alterações promovidas no texto constitucional.
A despeito da necessária evolução na aplicação da norma, é bom que se diga que as causas de inelegibilidade devem ser interpretadas de forma estrita, visto que estão vinculadas ao exercício de direitos políticos fundamentais, a depender do cumprimento de todos os requisitos estabelecidos na regra de regência.
O presente caso versa sobre situação atípica, porquanto o genitor do recorrido faleceu no meio do seu segundo mandato como prefeito, ou seja, mais de dois anos antes início do processo eleitoral.
Este Tribunal Superior, em recente julgamento, apreciou hipótese que guarda semelhança específica com o caso dos autos (AgR-REspEl 0600090-37, rel. Min. André Mendonça, PSESS em 21.11.2024), ocasião em que se firmou a orientação de que a morte do gerador da inelegibilidade reflexa – aquele cuja titularidade do mandato eletivo causou o óbice em razão do parentesco – gera a extinção dos vínculos familiares e, por consequência, afasta a incidência do disposto no § 7º do art. 14 da CF.
Naquele caso, a morte do antigo prefeito, mais de dois anos antes do pleito, foi considerada apta a afastar a incidência da inelegibilidade reflexa para a candidatura de seu filho nas eleições de 2024.
Conforme consignei naqueles autos, na hipótese específica de inelegibilidade reflexa em caso de morte do titular de mandato de chefe do Executivo, o Supremo Tribunal Federal decidiu deferir o registro de candidatura ao cargo de prefeito formulado por chefe do Poder Executivo cujo cônjuge falecera no curso do primeiro mandato e fora sucedido pelo vice, tendo sido a candidata eleita na eleição subsequente e pretendendo agora a reeleição (RE 758.461, rel. Min. Teori Zavascki, DJE de 30.10.2014). No caso, o Supremo entendeu que a extinção do vínculo conjugal pela morte de um dos cônjuges não está abrangida no entendimento constante da Súmula Vinculante 18, segundo a qual “a dissolução da sociedade ou do vínculo conjugal, no curso do mandato, não afasta a inelegibilidade prevista no § 7º do artigo 14 da Constituição Federal”. O fundamento para tal decisão é que a edição do citado verbete sumular foi orientada pela preocupação com o uso de mecanismos de burla à norma da inelegibilidade reflexa, o que já não ocorre no caso de morte do titular, situação em que há rompimento do vínculo familiar.
Além de considerar outras especificidades do caso concreto, o STF fixou a premissa de que a superveniência da morte do chefe do Poder Executivo no curso do prazo legal de desincompatibilização deste afasta duas situações que o § 7º do art. 14 da Constituição Federal busca inibir, quais sejam: a perpetuação política de grupos familiares e a utilização da máquina administrativa em benefício de parentes do detentor do poder. Ainda na compreensão do STF, “a morte, além de fazer desaparecer o ‘grupo político familiar’, impede que os aspirantes ao poder se beneficiem de eventuais benesses que o titular lhes poderia proporcionar”.
Nessa linha, o Tribunal Superior Eleitoral, na Consulta 0600049-46, sob a relatoria do Ministro Raul Araújo, ressaltou seu alinhamento com o entendimento já esposado no STF, fixando que o falecimento de prefeito durante o segundo mandato não impede a elegibilidade de cônjuge e parentes consanguíneos ou afins para um mandato sucessivo. A ementa da consulta restou assim sintetizada:
CONSULTA. HIPÓTESE DE INELEGIBILIDADE. ART. 14, § 7º, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. EXECUTIVO MUNICIPAL. PREFEITO REELEITO. FALECIMENTO DURANTE O SEGUNDO MANDATO. PRETENSA CANDIDATURA DE VIÚVA OU DO FILHO DO FALECIDO AO MESMO CARGO. TERCEIRO MANDATO. NÃO CONFIGURAÇÃO. MATÉRIA JÁ ANALISADA POR ESTE TRIBUNAL. CONSULTA NÃO CONHECIDA.
Diante do exposto, o acórdão regional está em consonância com a jurisprudência deste Tribunal Superior, o que atrai a incidência da Súmula 30 do TSE, a qual pode ser fundamento para afastar ambas as hipóteses de cabimento do recurso especial (afronta à lei e divergência jurisprudencial). Nesse sentido: AgR-AREspE 0601062-39, rel. Min. Sérgio Banhos, DJE de 11.5.2023.
3.2. Da suposta ingerência do candidato recorrido no Município. Alegação de continuísmo político. Entendimento contrário firmado pela Corte Regional. Atuação política do candidato no exercício do mandato de deputado estadual. Impossibilidade de reexame de provas.
Nas razões recursais, sustenta-se a ocorrência de continuísmo político, sob o argumento de que, desde o afastamento do pai do ora recorrido da prefeitura por motivo de saúde, este teria passado a comandar de fato o Município, situação que teria perdurado até mesmo após a morte do chefe do Executivo local e a assunção do vice-prefeito, que atuaria apenas como “figura decorativa”.
Segundo os recorrentes, não teria havido efetiva ruptura dos vínculos político-administrativos após o falecimento do prefeito, tendo em vista que a atuação do seu filho, candidato Edmir Chedid, revelaria uma clara continuidade do projeto familiar, reforçada pelo apoio ao atual prefeito – que sucedeu ao cargo após a morte do titular – e pela manutenção das estruturas de poder.
Entretanto, o Tribunal de origem adotou o entendimento do magistrado de primeiro grau que, ao julgar improcedente a impugnação, afastou a tese de continuísmo político, por considerar que a atuação do ora recorrido em reuniões com representantes da sociedade civil e na interlocução com agentes públicos diversos, além da sua presença em inaugurações de obras públicas, seria decorrente do exercício do mandato de deputado estadual.
Para o melhor esclarecimento dos fatos, reproduzo os seguintes trechos do aresto regional (ID 162926210, p. 11):
Outrossim, no que se refere a suposta continuidade administrativa e política do grupo familiar Chedid, mesmo após o falecimento de Jesus Chedid, importante destacar, como bem observou o magistrado de primeiro grau,
“(...) é preciso ponderar que o pretenso candidato é deputado estadual, já tendo sido eleito para algumas legislaturas, e sabidamente tem como base eleitoral a região bragantina.
O exercício do mandato de deputado não se resume ao comparecimento à Assembleia Legislativa, como também a atuação in loco em sua base eleitoral para entender e buscar atender às necessidades da população local.
Faz parte do exercício do mandato de deputado estadual participar da inauguração de obras públicas e de reuniões com representantes da sociedade civil, além de estabelecer interlocução com agentes públicos diversos.
Tendo o deputado estadual base eleitoral na região, com exercício longevo do mandato de deputado estadual, é natural estabelecer conexões com a Prefeitura local.
Situação diversa ocorreria se o pretenso candidato não exercesse qualquer mandato político que justificasse as suas aparições e atuações locais, mas meramente como filho do prefeito.
O tão só fato do pretenso candidato defender o legado do falecido pai e ser apoiado pelo atual Prefeito, que sucedeu o genitor na Prefeitura, não tem o condão de gerar inelegibilidade reflexa”.
Portanto, acolher a pretensão dos recorrentes de que não houve a ruptura do exercício do cargo de prefeito pelo núcleo familiar, diante da atuação de fato do ora recorrido na chefia do executivo municipal, o que atrairia sua inelegibilidade reflexa, implicaria reconhecer circunstância fática expressamente rechaçada pelo Tribunal de origem, por meio do reexame fático-probatório dos autos, providência vedada pelo verbete sumular 24 do TSE.
Ademais, ressalto que a influência de um deputado estadual eleito na base territorial do Município onde mantém vínculos sociais, familiares e políticos não é objeto de vedação legal, uma vez que a atuação política do agente público consiste em atividade inerente ao exercício do cargo parlamentar, circunstância que, no caso dos autos, foi considerada pela Corte Regional, ao afastar a tese de que o ora recorrido estaria no exercício de fato do cargo de prefeito.
Reitero que a inelegibilidade reflexa insculpida no art. 14, § 7º, da Constituição Federal visa a impedir o monopólio do poder político, por tempo indeterminado, exercido por grupos ligados por laços familiares, como forma de se evitar o comprometimento da isonomia entre os candidatos e se preservar a salutar alternância no poder.
Na hipótese dos autos, após a morte do prefeito no primeiro biênio do seu segundo mandato, o cargo foi assumido pelo vice-prefeito, não havendo no aresto regional evidências de que o ora recorrido esteve no exercício de fato do cargo de chefe do Executivo durante esse período.
Por outro lado, considerando as circunstâncias fáticas descritas pela Corte de origem, observo que o exercício do mandato de deputado estadual pelo ora recorrido – filho do ex-prefeito falecido no primeiro biênio do segundo mandato –, ainda que se considere sua influência política no município, tendo em vista sua forte atuação na região como parlamentar, não tem o condão, por si só, de atrair a inelegibilidade do parágrafo 7º do art. 14 da Constituição Federal.
Conforme destaquei no julgamento do AgR-REspEl 0600090-37, rel. Min. André Mendonça, PSESS de 21.11.2024, já citado alhures – em que esta Corte manteve a elegibilidade do filho do prefeito, também falecido no primeiro biênio do segundo mandato – , a norma do art. 14, § 7º, da Constituição Federal, por ter natureza de cláusula restritiva de direito fundamental, impõe interpretação igualmente restritiva, assegurando-se a elegibilidade quando não incidentes, de forma expressa e imediata, as causas que geram o impedimento.
4. Conclusão.
Por essas razões, com base no art. 36, § 6º, do Regimento Interno do Tribunal Superior Eleitoral, nego seguimento aos recursos especiais eleitorais interpostos pela Coligação Podemos Agir Bragança e pela Coligação Experiência para Mudar Bragança.
Publique-se em mural.
Intime-se.
Ministro Floriano de Azevedo Marques
Relator