TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL
Corregedoria-Geral da Justiça Eleitoral
AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL (11527) Nº 0600814-85.2022.6.00.0000 (PJe) - BRASÍLIA - DISTRITO FEDERAL
RELATOR: MINISTRO BENEDITO GONÇALVES
REPRESENTANTE: PARTIDO DEMOCRÁTICO TRABALHISTA (PDT) - NACIONAL
ADVOGADO: ANA CAROLINE ALVES LEITAO - OAB/PE49456-A
ADVOGADO: MARA DE FATIMA HOFANS - OAB/RJ68152-A
ADVOGADO: MARCOS RIBEIRO DE RIBEIRO - OAB/RJ62818
ADVOGADO: ALISSON EMMANUEL DE OLIVEIRA LUCENA - OAB/PE37719-A
ADVOGADO: EZIKELLY SILVA BARROS - OAB/DF31903
ADVOGADO: WALBER DE MOURA AGRA - OAB/PE757-A
REPRESENTADO: JAIR MESSIAS BOLSONARO
ADVOGADO: ADEMAR APARECIDO DA COSTA FILHO - OAB/SP256786-A
ADVOGADO: MARINA FURLAN RIBEIRO BARBOSA NETTO - OAB/DF70829-A
ADVOGADO: MARINA ALMEIDA MORAIS - OAB/GO46407-A
ADVOGADO: EDUARDO AUGUSTO VIEIRA DE CARVALHO - OAB/DF17115-A
ADVOGADO: TARCISIO VIEIRA DE CARVALHO NETO - OAB/DF11498-A
REPRESENTADO: WALTER SOUZA BRAGA NETTO
ADVOGADO: ADEMAR APARECIDO DA COSTA FILHO - OAB/SP256786-A
ADVOGADO: MARINA FURLAN RIBEIRO BARBOSA NETTO - OAB/DF70829-A
ADVOGADO: MARINA ALMEIDA MORAIS - OAB/GO46407-A
ADVOGADO: EDUARDO AUGUSTO VIEIRA DE CARVALHO - OAB/DF17115-A
ADVOGADO: TARCISIO VIEIRA DE CARVALHO NETO - OAB/DF11498-A
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
Trata-se de pedido de reconsideração, formulado por Jair Messias Bolsonaro e Walter de Souza Braga Neto, contra decisão (ID 158554507) em que se admitiu a juntada, pela parte autora, de minuta de decreto de Estado de Defesa apreendida pela Polícia Federal na residência do ex-Ministro da Justiça e da Segurança Pública, Anderson Torres, no dia 12/01/2022.
Os investigados requerem o desentranhamento do documento, sustentando que (ID 158557842):
a) a decisão acarretou desautorizada alteração da causa de pedir em momento no qual já havia sido consumada a decadência, saneado o feito e “deflagrada” a fase instrutória;
b) a juntada de documentos novos, nesse momento, é excepcional, exigindo, “além da demonstração de que não se encontravam disponíveis na data da propositura da ação, a demonstração inequívoca de correlação concreta, direta e imediata com a causa de pedir, sob pena de sua indevida expansão – cujo prejuízo, no caso, majora-se sobremaneira diante do fato de já ter sido exercido o contraditório e de se ter como formal e materialmente estabilizada a demanda”;
c) a jurisprudência do TSE refuta a possibilidade de “juntada de documentos com alcance insuficiente à causa de pedir posta e que configurem tese nova” (AIJE nº 194358, Rel. Min. Herman Benjamin, Rel. designado Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJE de 12/08/2018; RO 0601788-58, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJE de 19/09/2022);
d) na hipótese, a juntada da minuta de decreto de Estado de Defesa apreendida em operação policial representaria “a admissão de fato novo, e não de documento novo, em momento tão avançado da marcha processual”, a acarretar “irreparável violação aos princípios da congruência e, em última instância, ao contraditório e à segurança jurídica”;
e) o autor não se desincumbiu do ônus de justificar a juntada, pois “[a] mera alegação de que o documento evidenciaria ‘a ocorrência de abuso de poder político tendente [a] promover descrédito a esta Justiça Eleitoral e ao processo eleitoral’ é [...] de todo inapta a justificar a quebra de todas as liturgias processuais vigentes”;
f) “[a]inda que não existissem os óbices antepostos à indevida extensão da causa de pedir após o saneamento do processo, também há que se considerar que a referida pretensão está peremptoriamente fulminada pela decadência”, que, na hipótese, consumou-se em 12/12/2022, quando diplomados o Presidente da República e o Vice eleitos;
g) a parte autora busca provocar no processo o exame de fatos posteriores, relacionados ao documento juntado, que se encontram em apreciação pelo STF no Inquérito nº 4879/DF;
h) o documento não faz prova de qualquer fato relevante para o deslinde da causa, uma vez que é apócrifo, “não foi encontrado em posse dos Investigados, nem assinado por eles, [...] tampouco indica quaisquer atos concretos ou ao menos indiciários de que tenham participado de sua redação ou agido para que as providências supostamente pretendidas pelo documento fossem materializadas no plano da realidade fenomênica”.
Ao analisar os argumentos, salientei a necessidade de imediato enfrentamento das questões relativas à violação, à estabilização da demanda e à consumação de decadência, por seu caráter prejudicial em relação a fatos que poderiam ser trazidos a lume a partir do documento apreendido na residência de Anderson Torres, ou até mesmo a outras evidências coletadas no Inquérito nº 4879, já requisitadas ao Relator daquele processo no STF. Em prestígio ao contraditório, antes de decidir, determinei à parte autora para se manifestar sobre as questões (ID 158560428).
Devidamente intimado, o PDT sustenta que a minuta de decreto de Estado de Defesa “apenas complementa o núcleo fático desta AIJE”, razão pela qual devem ser rechaçadas as questões prejudiciais suscitadas pelos réus. Argumenta que (ID 158614931):
a) “salientou-se, no âmbito da petição inicial, que o evento realizado em 18/07/2022 foi estruturado para alcançar não apenas os embaixadores, mas os eleitores e as bases do Senhor Jair Messias Bolsonaro, especificamente porque a propagação de fatos sabidamente inverídicos sobre o sistema de votação e os ataques à integridade do processo eleitoral sempre estiveram inseridos na estratégia de campanha do primeiro Investigado”;
b) o discurso proferido na reunião com embaixadores converge com dizeres apropriados por eleitores e apoiadores do candidato, em uma “cruzada antidemocrática com a instalação de acampamentos em frente aos QG’s do Exército em todos os rincões do Brasil”, centrada em uma “suposta existência de fraude nas urnas, bem como também no sistema eleitoral, de modo que bradavam por intervenção militar e por um ‘processo eleitoral transparente’”;
c) desse modo, o “arsenal de inverdades e ataques desferidos pelo Senhor Jair Messias Bolsonaro contra a integridade do processo eleitoral foi suficiente, sob o aspecto quantitativo (repercussão no contexto do pleito específico) e qualitativo (grau de reprovabilidade) da gravidade da conduta no âmbito da tipificação dos abusos de poder sob análise nesta AIJE, para inflamar os ânimos dos eleitores e dar sequência aos inúmeros ataques às instituições da República, principalmente o Poder Judiciário (Supremo Tribunal Federal e Tribunal Superior Eleitoral)”;
d) outros eventos, como a investida do Partido Liberal (PL) para anular votos de urnas de modelos anteriores a 2020, os ataques às sedes dos 3 Poderes em 08/01/2023 e a postagem compartilhada pelo primeiro investigado em 11/01/2023, seguiram-se “na esteira do teor do discurso objeto desta AIJE”, com graves consequências;
e) o evento de 18/07/2022 foi difundido por redes sociais e na TV Brasil, e investiga-se na ação, a partir desses fatos incontroversos, justamente “a intensidade dos efeitos do teor do discurso”;
f) a minuta de decreto de Estado de Defesa, apreendida na residência de Anderson Torres em 12/01/2023 somente se tornou acessível a partir dessa data, atendendo ao disposto no art. 435 do CPC, que dispõe sobre a possibilidade de juntada de documentos novos;
g) o documento possui aderência com a causa de pedir, pois o decreto seguiu o norte das palavras de ordem proferidas pelo primeiro Investigado durante o período de campanha, que podem ser pinçadas a partir do arsenal de inverdades que compõem o teor do discurso realizado no dia 18/07/2022 e sua posterior difusão”;
h) “todos os pontos que estruturam o objetivo do decreto em comento são postos sob a ótica deturpada do primeiro Investigado, no sentido de que: a) não houve lisura no processo eleitoral presidencial no ano de 2022; b) existiram desconformidades no decorrer do pleito; e c) as irregularidades e o desrespeito ao princípio da legalidade, em seu aspecto sistêmico, representam grave ameaça à ordem pública e à paz social”;
i) questões como a não convocação de Conselhos de Defesa em nada afetam a conclusão que se extrai do documento apreendido em residência do ex-Ministro de Estado, no sentido de que “o primeiro Investigado sempre nutriu o animus de dar consecução a um golpe de Estado caso não lograsse êxito no pleito eleitoral de 2022”;
j) por todo exposto, não decorre do documento novo juntado uma inovação na causa de pedir, tratando-se apenas de “reforço aos fatos essenciais já contemplados em linhas gerais na petição inicial”.
Feito esse breve relato, decido.
Nos termos do art. 487, II, do Código de Processo Civil, consumada a decadência, deve o órgão jurisdicional, de ofício ou requerimento da parte, extinguir o processo com resolução do mérito.
A decadência é instituto de direito material, que corresponde ao perecimento de um direito não exercitado em um determinado prazo. Na civilística, incide sobre direitos potestativos, que correspondem ao poder de seu titular de interferir na esfera jurídica alheia por mera declaração unilateral de vontade.
No âmbito do Direito Eleitoral, ao se transpor o instituto para as ações sancionadoras, é necessário ter em vista que os direitos tutelados têm natureza difusa. Os legitimados ativos, nesses casos, não se valem da jurisdição para impor um ato de vontade unilateral, mesmo porque não são os titulares do poder de cassar mandatos ou de aplicar inelegibilidade. Agem como “representantes adequados”, aos quais a lei incumbiu a função de submeter ao controle jurisdicional a análise de condutas que se desviem dos parâmetros democráticos e republicanos que norteiam as eleições.
Por outro lado, é certo que os efeitos de uma decisão que conclua pela prática de ilícitos graves incidem sobre a esfera jurídica dos réus de modo imperativo, sem depender de qualquer ato de aceitação ou de cumprimento forçado. Proferida a condenação, opera-se a mudança do status jurídico dos responsáveis e beneficiários, uma vez que são disparadas as consequências legais da cassação ou da declaração de inelegibilidade, mesmo que não requeridas expressamente.
O fundamento para a propositura de uma ação eleitoral sancionadora, portanto, não é um direito cujos efeitos dependem somente da atuação do titular no tempo devido. O fundamento é, sim, a existência de circunstâncias fáticas suficientes para disparar o controle jurisdicional, sendo que a aplicação das sanções ocorre de forma imperativa quando se conclui, após a tramitação do processo em contraditório, pela configuração das práticas ilícitas.
Desse modo, ao contrário de um direito potestativo, insuscetível de discussão por quem suportará as consequências de seu exercício (ex.: o divórcio, o direito de arrependimento do consumidor, o pedido de demissão do empregado, a desfiliação partidária), a imputação de um ilícito eleitoral não é, em si, suficiente para produzir efeitos. No curso da ação, todos os elementos constitutivos, extintivos ou modificativos da base fática e jurídica estarão em análise.
Decorre disso que a causa de pedir da AIJE, da AIME e das representações especiais é delimitada pelos contornos fáticos e jurídicos que permitam a compreensão da demanda, não se exigindo que a parte autora, ao postular em juízo, tenha pleno domínio de todos os fatos que podem influir no julgamento da causa e os descreva em minúcias. O contraditório é um espaço dinâmico, dentro do qual argumentos e provas podem ser apresentados, por todas as partes, com vistas a convencer da ocorrência ou não do ilícito narrado.
Decerto, caso fosse ônus do autor apresentar de antemão todos os componentes de um ilícito eleitoral – conhecimento que, em regra, apenas os responsáveis pela prática terão – o controle jurisdicional seria inviabilizado. A petição inicial teria que evidenciar algo como um “ilícito líquido e certo” que, instantaneamente, propiciasse cabal conclusão quanto a sua existência, gravidade e responsabilidade.
Um entendimento desse tipo não encontra abrigo na jurisprudência do TSE, que, ao contrário, estatui que “[a] abertura de investigação judicial eleitoral demanda a indicação de provas, indícios e circunstâncias da suposta prática ilícita, não sendo exigível prova pré-constituída dos fatos alegados” (RO nº 1588-36, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJE de 24/11/2015).
Por isso, quando se cogita da decadência da propositura de ações eleitorais sancionadoras, descabe traçar paralelos rígidos com a incidência do instituto no Direito Civil. Na verdade, o nomen iuris deve ser visto com reservas, sendo certo que o que mais interessa é que se compreenda a finalidade e a abrangência da fixação de um prazo peremptório para o ajuizamento das ações.
Com efeito, a decadência em Direito Eleitoral remete a um termo fatal, exíguo, para inaugurar controvérsias em torno das condutas que possam ter vulnerado determinado pleito. Conforme uníssona doutrina, esse é um elemento relevante para a estabilidade política, pois propicia encerrar o procedimento de escolha de mandatários, sabendo-se quais comportamentos atrairão o controle jurisdicional. Ou seja: a decadência para a propositura de ações eleitorais sancionadoras não fulmina a vontade de um sujeito, mas a sindicabilidade de condutas ilícitas.
No caso da AIJE, a data da diplomação é o limite a ser observado para que se postule à Corregedoria a investigação de práticas abusivas (REspEl nº 357-73, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJE de 03/08/2021). O marco decadencial evita que o armazenamento tático de informações e mesmo a manipulação de narrativas sobre fatos passados sirvam a estratégias de ocasião, definidas ao sabor de alianças, distensões e rupturas no curso dos mandatos e, vale dizer, do exercício da oposição.
Identificada, portanto, a finalidade da estipulação de prazo decadencial para a propositura da AIJE, cumpre explicitar a abrangência das restrições que então decorrem para a atuação dos legitimados ativos.
Em primeiro lugar, é certo que nenhuma nova ação desse tipo poderá ser ajuizada após a data da diplomação.
Na hipótese do pleito presidencial de 2022, esse termo final recaiu em 12/12/2022. Registro que foram ajuizadas, no período, 31 AIJEs, sendo que 10 foram extintas, dada sua inviabilidade processual, e se encontram arquivadas. Seguem em curso 21 ações, das quais 5 foram ajuizadas contra a chapa eleita e 16 contra a chapa vencida no 2º turno. A presente ação foi proposta em 19/08/2022, assim, no que diz respeito a esse primeiro ponto, não há dúvidas de que a parte autora observou o prazo decadencial aplicável.
Em segundo lugar, a consumação da decadência impõe um limite específico às ações em curso: é vedado ampliar sua causa de pedir fática, já que isso representaria verdadeira burla à impossibilidade de instauração de procedimentos novos. Há, portanto, um reforço às regras processuais da estabilização da demanda, uma vez que a causa de pedir da AIJE não poderá ser alterada por vontade da autora ou consenso das partes se superado o termo final da decadência.
No entanto, conforme já se expôs em decisões neste feito (IDs 15848796 e 158554507), a estabilização da demanda não acarreta uma blindagem do debate processual contra fatos que possam influir no julgamento. Ao contrário. Há disposições legais expressas no sentido de que o magistrado leve em consideração fatos constitutivos, modificativos ou extintivos supervenientes ao ajuizamento (art. 493, CPC) e, ainda, fatos públicos e notórios e circunstâncias, ainda que não alegadas pelas partes, que preservem a lisura eleitoral (art. 23, LC nº 64/90).
Veja-se que, acima, destacou-se a diferença substancial entre um direito potestativo, autoevidente e inoponível, e a imputação de ilícito eleitoral, que somente produz seus efeitos legais se seus elementos fáticos e jurídicos forem demonstrados em juízo. Salientou-se que a decadência opera de formas distintas nas duas situações, sendo que, no caso da AIJE, obsta-se a sindicabilidade da conduta reputada abusiva. Simples constatar, da conjugação dessas duas assertivas, que uma AIJE proposta a tempo e modo dispara a apuração do abuso de poder que se extrai da narrativa apresentada, o que, considerada a finalidade do processo, comporta o exame de todos os fatos que possam influir no julgamento.
A condenação por abuso de poder, como é sabido, exige não apenas a comprovação do fato constitutivo, que compõe a causa de pedir. É indispensável analisar sua gravidade sob a ótica qualitativa – grau de reprovabilidade = e quantitativa – impacto no contexto de um pleito específico (AIJE nº 0601864-88, Rel. Min. Jorge Mussi, DJE de 25/9/2019). Também se deve avaliar se houve benefício a determinada candidatura, bem como a dimensão da responsabilidade de cada investigado, uma vez que a declaração de inelegibilidade tem natureza personalíssima.
Sendo assim, inegável que o debate na AIJE não é encapsulado em uma simples pergunta sobre a ocorrência de um fato constitutivo, a ser respondida apenas com “sim” ou “não”. Inúmeras questões concorrem para o exame da configuração do abuso de poder e para a fixação das consequências por sua prática.
Não se pode agregar a uma ação em curso uma causa de pedir inédita. Porém, sempre deverão ser examinados, inclusive de ofício, os “fatos simples, contíguos, instrumentais à formação da convicção necessária a julgar a demanda conformada pelas partes” (PEREIRA, Luiz Fernando Casagrande. Demandas Eleitorais: estabilização, fatos novos e decadência. Resenha Eleitoral, Florianópolis, SC, v. 22, n. 1, pp. 17–34, 2018).
Por isso, não há como dar guarida à ideia de que a delimitação da causa de pedir provoca um recorte completo e irreversível na realidade fenomênica, gerando um descolamento tal dos fatos em relação a seu contexto que chega a impedir o órgão judicante de levar em conta circunstâncias que gradativamente se tornem conhecidas ou potenciais desdobramentos das condutas em investigação.
Na prática, diferenciar a indevida extrapolação da causa de pedir da salutar agregação de fatos e circunstâncias relevantes para o deslinde da causa é tarefa mais singela do que pode parecer à primeira vista. A jurisprudência do TSE tem se mostrado consistente nesse mister, alcançando um ponto de maturidade em que se tem contornos bem claros quanto aos efeitos da estabilização da demanda fática e jurídica.
Na sempre citada AIJE nº 1943-58 (Rel. Min. Herman Benjamin, Rel. designado Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJE de 12/09/2018), a causa de pedir fática dizia respeito ao uso de recursos oficialmente doados por partidos políticos à chapa Dilma-Temer em 2014 que, embora tivessem sido declarados à Justiça Eleitoral nos anos de 2012 e 2013, teriam fonte originária ilícita (reserva formada a partir de superfaturamento de contratos celebrados entre empreiteiras e a Petrobrás). O TSE, por maioria, recusou que a ação servisse para discutir fatos inteiramente novos, concernentes à imputação de “caixa 2” (recursos de empresas doados à margem de contabilização oficial, para custeio de despesas eleitorais).
Estava-se, então, diante de dois ilícitos autônomos, com elementos próprios. As condutas eram, inclusive, dissociadas no tempo (doações recebidas e declaradas pelos partidos em 2012 e 2013 e que constituiriam uma reserva financeira, de um lado, e “caixa 2” de campanha em 2014, de outro). Os fatos posteriores não se apresentavam como desdobramentos dos primeiros, tampouco serviam para adensar ou corroborar a narrativa da petição inicial. Cada um dos episódios, por si, demandaria instrução própria, a fim de se concluir pela ocorrência ou não de abuso de poder econômico. Desse modo, consumada a decadência, não era possível inserir na ação em curso a segunda causa de pedir.
O TSE, em outro caso, reconheceu que o tribunal regional violou os limites da demanda estabilizada, não sob a ótica dos fatos, mas da capitulação jurídica. Isso porque, ajuizada representação para apurar captação ilícita de sufrágio (art. 41-A, Lei nº 9.504/97), proferiu-se condenação por captação ilícita de recursos (art. 30-A, Lei nº 9.504/97), que somente foi ventilada em alegações finais. Confira-se trecho da ementa (RO-El nº 0601788-58, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJE de 19/09/2022):
ELEIÇÕES 2018. RECURSO ORDINÁRIO. REPRESENTAÇÃO ELEITORAL. CANDIDATO AO CARGO DE DEPUTADO ESTADUAL. APREENSÃO DE VULTOSA QUANTIA, EM DINHEIRO, EM VEÍCULO UTILIZADO NA CAMPANHA ELEITORAL. AGENDA MANUSCRITA E SANTINHOS. ALEGAÇÃO DE NULIDADES. [...] ALTERAÇÃO DA CAUSA DE PEDIR. ACOLHIMENTO. RECURSO ORDINÁRIO PROVIDO.
1. Na origem, o MPE ajuizou representação, embasada no art. 41–A da Lei nº 9.504/1997, por captação ilícita de sufrágio em desfavor de Carlos Avalone Junior, eleito deputado estadual de Mato Grosso no pleito de 2018, e pugnou pela procedência do pedido a fim de que fossem aplicadas as sanções previstas no mencionado dispositivo legal.
2. O TRE/MT, rejeitando as preliminares arguidas, entendeu que não houve alteração da causa de pedir e julgou procedente o pedido formulado na representação para reconhecer que o representado incidiu na prática de captação ilícita de recursos, condenando–o à penalidade de cassação de seu mandato de deputado estadual, com fundamento no § 2º do art. 30–A da Lei nº 9.504/1997. Decretou, ademais, a perda dos valores apreendidos em favor da União.
[...]
6. No caso, o MPE, verificando não haver elementos probatórios que denotassem a prática da captação ilícita de sufrágio (art. 41–A da Lei nº 9.504/1997), pugnou, em alegações finais, pela condenação pela prática do ilícito descrito no art. 30–A da Lei das Eleições.
[...]
8. Embora o Enunciado nº 62 da Súmula do TSE estabeleça que "[...] os limites do pedido são demarcados pelos fatos imputados na inicial, dos quais a parte se defende, e não pela capitulação legal atribuída pelo autor", no caso, houve uma verdadeira alteração do ilícito imputado ao recorrente.
[...]
10. Modifica a causa de pedir, afrontando–se o disposto no art. 329 do CPC, o pedido do autor da representação, formulado em alegações finais, para condenar o réu com base nas acusações de captação e gastos ilícitos de recursos na campanha eleitoral, consistente na movimentação de recursos fora da conta de campanha, sem a identificação da origem, na omissão de despesa com pessoal na prestação de contas e na extrapolação do limite de gastos, condutas estas passíveis de atrair a incidência de eventual sanção prevista no art. 30–A da Lei nº 9.504/1997.
[...]
(Sem destaques no original.)
Ambos os precedentes acima referidos foram lembrados pelos investigados ao pedir que fosse reconsiderada a decisão que declarou a pertinência ao feito da minuta de decreto de Estado de Defesa cujo original foi apreendido pela Polícia Federal na residência de Anderson Torres – ex-Ministro da Justiça e Segurança Pública do governo de Jair Bolsonaro – durante diligência determinada pelo Ministro Alexandre de Moraes no âmbito do Inquérito nº 4879, que tramita no STF.
No entanto, não lhes assiste razão.
Sob a ótica da causa de pedir jurídica, não houve qualquer inovação no caso, em que se apura abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação. Portanto, o segundo precedente citado pelos investigados não guarda relação com o cerne da decisão ora questionada, sendo inservível ao pedido de reconsideração.
Sob o ponto de vista dos fatos que compõem a causa de pedir, o documento revelado em 12/01/2023 se conecta às alegações iniciais da parte autora, no sentido de que o discurso proferido por Jair Messias Bolsonaro no encontro com embaixadores em 18/07/2022 era parte da estratégia de campanha consistente em lançar graves e infundadas suspeitas sobre o sistema eletrônico de votação.
De se notar que o fato constitutivo da imputação (evento e discurso ocorridos em 18/07/2022) é incontroverso. As partes disputam a narrativa referente ao contexto em que se insere o episódio. Esses apontamentos constaram da decisão de saneamento e organização do processo.
Em primeiro lugar, referida decisão contemplou capítulo em que foram criteriosamente delimitadas as questões de fato sobre as quais recairia a prova, prestigiando-se a estabilização da demanda e a racionalidade da iniciativa probatória. Desde então, mencionei que a melhor técnica processual, refletida na doutrina e em precedente do TSE, indica a imperatividade de que sejam admitidas à discussão, na AIJE, alegações de fato que possuam correlação com a demanda estabilizada. Transcrevo o trecho:
“4. Delimitação das questões de fato
A estabilização da demanda é regra prevista no art. 329, II, do CPC segundo a qual a causa de pedir e o pedido não podem mais ser modificados após o saneamento, verbis:
Art. 329. O autor poderá:
I - até a citação, aditar ou alterar o pedido ou a causa de pedir, independentemente de consentimento do réu;
II - até o saneamento do processo, aditar ou alterar o pedido e a causa de pedir, com consentimento do réu, assegurado o contraditório mediante a possibilidade de manifestação deste no prazo mínimo de 15 (quinze) dias, facultado o requerimento de prova suplementar.
(sem destaques no original)
A aplicação desse instituto no âmbito eleitoral foi consagrada no julgamento das ações contra a chapa Dilma-Temer. Na ocasião, o TSE, por maioria, negou a possibilidade de ampliação do objeto da demanda após o prazo decadencial da propositura da AIJE e da AIME, consignando que “[o]s princípios constitucionais do contraditório exigem a delimitação da causa de pedir, tanto no processo civil comum como no processo eleitoral, para que as partes e também o Julgador tenham pleno conhecimento da lide e do efeito jurídico que deve ser objeto da decisão” (AIJE 1943-58, Rel. Min. Herman Benjamin, Rel. designado Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJE de 12/09/2018).
Por outro lado, cabe pontuar que, mesmo no processo civil, “o objetivo do art. 329, II, foi apenas o de traçar um limite à livre alterabilidade do pedido pelas partes, fora do controle do juiz” (THEODORO JÚNIOR, Humberto. Estabilização da demanda no Novo Código de Processo Civil. Revista de Processo, v. 40, n. 244, p. 195–205, jun., 2015, p. 201). Ou seja: há alterações legalmente possíveis, e até imperativas.
Exemplo relevante é o art. 493, do CPC, que prevê que, “[s]e, depois da propositura da ação, algum fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito influir no julgamento do mérito, caberá ao juiz tomá-lo em consideração, de ofício ou a requerimento da parte, no momento de proferir a decisão”. Decerto, a segurança jurídica propugnada pelo art. 329, II, do CPC não impede a discussão de fatos que tenham relação direta com a causa de pedir já estabilizada. A vedação apenas incide no caso de ser deduzida causa de pedir inteiramente autônoma.
Essa, aliás, é a distinção essencial que, no caso da AIJE 1943-58, obstou que a ação fosse ampliada para discutir fatos totalmente diversos daqueles que subsidiavam a propositura da ação e que somente foram veiculados após o decurso do prazo decadencial para a propositura da AIME.
Em síntese, a delimitação das questões de fato visa apresentar os contornos gerais da matéria controvertida sobre a qual recairá a prova. Trata-se de uma definição do tema e dos principais pontos controvertidos, que norteará a instrução e que balizará o exame da pertinência ao objeto da ação. Não decorre dessa medida a blindagem do debate processual contra alegações e documentos que possam influir no julgamento da causa. Com esse norte, analisa-se a controvérsia até aqui delineada.”
(Destaques no original.)
Passei, então, à delimitação da controvérsia submetida a juízo nesta AIJE. Nessa etapa, salientei que são incontroversos: a) a realização do evento em que o então Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, dirigiu-se a embaixadores de países estrangeiros para apresentar sua visão sobre o sistema eletrônico de votação brasileiro; b) o teor do discurso proferido; c) a transmissão do evento pela TV Brasil e pelas redes sociais do primeiro representado. Pontuei, em seguida, que a matéria controvertida diz respeito ao contexto desse ato, conforme se lê abaixo:
“A controvérsia fática recai sobre as circunstâncias em que a reunião foi realizada e em que ocorreu sua divulgação nas redes.
O autor afirma que o primeiro réu, atuando com desvio de finalidade, utilizou-se do encontro com chefes de missões para atacar a integridade do processo eleitoral, especialmente disseminando “desordem informacional” relativa ao sistema eletrônico de votação e fazendo insinuações sobre a conduta de Ministros que presidiram o TSE. Além disso, argumenta que o discurso tem aderência à estratégia de campanha do candidato à reeleição para mobilizar suas bases por meio de fatos sabidamente falsos, devendo-se levar em conta que a transmissão pelas redes sociais fez com que a mensagem chegasse ao eleitorado.
De sua parte, os investigados refutam qualquer relação entre o evento e o pleito de 2022. Defendem que a reunião se ateve à sua finalidade pública, uma vez que, segundo sua narrativa, o Presidente da República, no exercício da liberdade de expressão, expôs seu ponto de vista sobre o sistema de votação para convidados que nem mesmo eram eleitores. Ressaltam que a fala fez parte de um diálogo institucional sobre tema de interesse público, devendo ser lida em cotejo com anterior evento do TSE (em que o Ministro Edson Fachin, então seu Presidente, se dirigiu a membros da comunidade internacional) e com nota em que o tribunal rebateu as afirmações feitas por Jair Bolsonaro na reunião do Palácio do Alvorada.”
(Destaques no original.)
Na decisão saneadora, também delimitei questões de direito e, em amplo prestígio ao contraditório, reafirmei o direito das partes de produzirem provas de fatos que possam ter influência na configuração jurídica da conduta descrita. Destaquei que, no caso do abuso de poder, o exame da gravidade da conduta, sob o ângulo qualitativo e quantitativo, reclama especial atenção para a análise de elementos contextuais:
“5. Delimitação das questões de direito
Embora seja de rigor afirmar que o réu se defende dos fatos e não da qualificação jurídica dada a estes, é certo que as particularidades das ações eleitorais exigem que, ao ter início a fase instrutória, tenha-se plena ciência das questões de direito que serão relevantes para o deslinde do feito. Isso porque, em Direito Eleitoral, uma mesma conduta pode ser capitulada sob a ótica de ilícitos diversos, com consequências distintas.
Tais ilícitos possuem elementos típicos próprios que influem na iniciativa probatória das partes. Por exemplo, o que é suficiente para demonstrar que foi realizada propaganda irregular, punível com multa mediana, pode não bastar para a condenação por conduta vedada ou por uso indevido de meios de comunicação. Do mesmo modo, e com especial interesse para a AIJE, cada modalidade abusiva possui características próprias, que devem ser levadas em conta ao longo da instrução.
No caso vertente, as teses jurídicas deduzidas pelo autor encontram-se bem delimitadas. Imputa-se aos investigados a prática de abuso de poder político, ante o alegado desvio de finalidade no exercício de suas funções de Presidente da República e no uso de bens públicos, e de uso indevido de meios de comunicação, que teria sido perpetrado pela utilização de redes sociais, inclusive de empresa pública, para difundir conteúdo sabidamente falso acerca do sistema eletrônico de votação.
Ao longo da exposição, o autor menciona ainda a violação aos arts. 37, § 1º da Constituição, 73, I, da Lei 9.504/97 e 9º-A da Res.-TSE 23.610/2019, que descrevem condutas passíveis, em tese, de se amoldar às práticas abusivas descritas no art. 22 da LC 64/90.
Ao refutar a configuração dos ilícitos em comento, os investigados, além de se oporem à ocorrência do desvio de finalidade e do uso das redes para divulgar fake news, afirmam que os fatos não são graves o suficiente para afetar os bens jurídicos tutelados pela AIJE. Em particular, alegam que a publicação da nota do TSE, com ampla repercussão midiática, teria neutralizado eventuais impactos da fala dirigida pelo primeiro investigado aos embaixadores.
Assim, a gravidade da conduta, sob o ângulo qualitativo (grau de reprovabilidade) e quantitativo (repercussão no contexto do pleito específico) é ponto controvertido cuja análise deverá ser balizada pelos elementos probatórios coligidos aos autos.
(Destaques no original.)
Todos esses aspectos voltaram a ser abordados na decisão ora impugnada, sendo prudente transcrever, na íntegra, os fundamentos que explicam a correlação entre a causa de pedir e os fatos supervenientes trazidos ao processo:
“Tem-se, em síntese, que as partes controvertem sobre: a) a relação entre o evento realizado em 18/07/2022 e as eleições ocorridas no mesmo ano; b) caso estabelecida essa correlação, a gravidade da conduta, no aspecto qualitativo (o discurso em si) e quantitativo (repercussão no contexto eleitoral).
Com base na fixação da matéria fática e jurídica controvertida, já se deferiu, nos presentes autos, prova testemunhal requerida pela parte ré. Note-se que essa prova foi pleiteada, a despeito de se ter acesso à íntegra do discurso proferido por Jair Bolsonaro, porque os investigados sustentaram a relevância de expor outros fatores relativos à dinâmica do evento, tais como “falas e comentários dos presentes” e, ainda, a ótica de autoridades que desempenhavam “relevantes funções” no governo.
A justificativa mostrou aderência à tese defensiva que se dirige ao aspecto qualitativo da gravidade, uma vez que, segundo os investigados, as circunstâncias do evento, a serem relatadas pelas testemunhas, demonstrariam a sua regularidade, vez que estaria inserido em um “diálogo institucional” entre o TSE e o Poder Executivo. Desse modo, deferi a prova, consignando que “[n]a presente ação, constata-se que a disputa de narrativas tem por objeto o contexto do evento (reunião com embaixadores) e, não, sua existência.”
De igual forma, constato que os fatos ora trazidos a juízo pela parte autora possuem aderência aos pontos controvertidos, em especial no que diz respeito à correlação do discurso com a eleição e ao aspecto quantitativo da gravidade.
Conforme se observa, a tese da parte autora, desde o início, é a de que o discurso realizado em 18/07/2022 não mirava apenas os embaixadores, pois estaria inserido na estratégia de campanha do primeiro investigado de “mobilizar suas bases” por meio de fatos sabidamente falsos sobre o sistema de votação. Na petição ora em análise, alega que a minuta de decreto de Estado de Defesa, ao materializar a proposta de alteração do resultado do pleito, “densifica os argumentos que evidenciam a ocorrência de abuso de poder político tendente promover descrédito a esta Justiça Eleitoral e ao processo eleitoral”.
Constata-se, assim, a inequívoca correlação entre os fatos e documentos novos e a demanda estabilizada, uma vez que a iniciativa da parte autora converge com seu ônus de convencer que, na linha da narrativa apresentada na petição inicial, a reunião realizada com os embaixadores deve ser analisada como elemento da campanha eleitoral de 2022, dotado de gravidade suficiente para afetar a normalidade e a legitimidade das eleições e, assim, configurar abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação.”
(Destaques no original.)
A decisão impugnada, portanto, se mantém por seus próprios fundamentos.
No trâmite das ações originárias que se encontram sob minha relatoria na CGE, tenho conferido máxima primazia à coerência e à não-surpresa. Cabe, então, salientar que os investigados, nesta e em outras AIJEs em trâmite, têm sustentado que estabilização da demanda, associada à consumação da decadência, torna os procedimentos impermeáveis à tentativa das partes autoras de trazer novos fatos ao debate.
É o que se passa, por exemplo, na AIJE nº 0601002-78, em que invocam a tese para impedir que seja levado em consideração comunicado da empresa Stara, de propriedade do corréu Gilson Trennepohl, contendo indícios de assédio eleitoral, pois entendem ausente sua correlação com o fato de o empresário gaúcho ter atuado para enviar tratores ao desfile do Bicentenário da Independência, em Brasília. Também na AIJE nº 0601988-32, que versa sobre atos atentatórios ao sistema eleitoral brasileiro, esforçam-se os investigados para impedir que fatos notórios, como os atos terroristas de 08/01/2023, sejam conhecidos como elementos de persuasão da parte autora.
Essa estratégia de defesa, como facilmente se observa, busca um esvaziamento da legítima vocação da AIJE para tutelar bens jurídicos de contornos muito complexos, como a isonomia, a normalidade eleitoral e a legitimidade dos resultados. O adequado controle jurisdicional na matéria impõe ao órgão julgador perquirir circunstâncias relevantes, fatos públicos e notórios, provas e demais elementos que possibilitem, criteriosamente, avaliar se ocorreu a violação à legislação eleitoral e, em caso positivo, se houve gravidade (quantitativa e qualitativa) e quem foram os responsáveis.
Essa é a essência do procedimento previsto no art. 22 da LC nº 64/90 e, se é verdade que o CPC se aplica supletiva e subsidiariamente para conferir máxima efetividade ao contraditório e a ampla defesa, também é certo que técnicas processuais de racionalização, como a estabilização da demanda, não podem ser manejadas para frustrar o objetivo do processo de promover a efetiva proteção a bens jurídicos basilares para a democracia.
Nessa reflexão, cabe constatar, não sem tristeza, que os resultados das eleições presidenciais de 2022, embora fruto legítimo e autêntico da vontade popular manifestada nas urnas, se tornaram alvo de ameaças severas. Passado o pleito, a diplomação e até a posse do novo Presidente da República, atos desabridamente antidemocráticos e insidiosas conspirações tornaram-se episódios corriqueiros. São armas lamentáveis do golpismo dos que se recusam a aceitar a prevalência da soberania popular e que apostam na ruína das instituições para criar um mundo de caos onde esperam se impor pela força.
A infeliz constatação é que, embora seja de rigor afirmar que a diplomação encerra o processo eleitoral, um clima de articulação golpista ainda ronda as Eleições 2022. Assistimos a atos de terrorismo que atingiram seu ápice nos ataques à sede dos 3 Poderes da República em 08/01/2023. Indícios de desobediência e falta de comando no seio das forças de segurança, bem como de atos e omissões graves de agentes públicos seguem se acumulando. Somam-se o plano para espionar e gravar sem autorização conversa do Presidente do TSE, a ocultação de relatórios públicos que atestavam a lisura das eleições e o patrocínio partidário de “auditoria paralela” e de outras aventuras processuais levianas, tudo para manter uma base social em permanente estado de antagonismo com a Justiça Eleitoral, sem qualquer razão plausível.
Os acontecimentos se sucedem de forma vertiginosa. Mas o devido processo legal tem, entre suas virtudes, a capacidade de decantar os fatos e possibilitar seu exame analítico. É isso que deve guiar a instrução das AIJEs, pois é central à consolidação dos resultados das Eleições 2022 averiguar se esse desolador cenário é desdobramento de condutas imputadas a Jair Messias Bolsonaro, então Presidente da República, e a seu entorno. Esse debate não pode ser silenciado ou inibido por uma artificial separação das causas de pedir nas diversas AIJEs da realidade fenomênica em que se inserem.
Menciono que os temas das ações propostas são de conhecimento público. Não há segredo de justiça. As decisões de admissibilidade, de concessão de tutela inibitória e de saneamento, bem como outras de caráter interlocutório, têm contemplado cuidadoso delineamento das matérias em discussão. Por isso, reafirmo que se mostra tarefa simples, desde que adotadas premissas técnicas adequadas, observar se, em um determinado caso, estamos diante de fatos e documentos a serem admitidos ao debate processual com base nos arts. 435 e 493 do CPC e 23 da LC nº 64/90, ou se, ao contrário, uma ação em curso vem a ser utilizada como receptáculo de demanda inteiramente nova.
Por tais motivos, tendo em vista o prestígio à celeridade, à economia processual e à boa-fé objetiva, entendo prudente que, especificamente no que diz respeito às AIJEs relativas às eleições presidenciais de 2022, seja fixado um parâmetro seguro e objetivo que dispense, a cada fato ou documento específico, uma nova decisão interlocutória que revolva todos os fundamentos ora expostos.
Com efeito, a tese jurídica apresentada pelos investigados – no sentido de que a consideração de fatos e circunstâncias que já não tenham sido descritos na petição inicial, especialmente se posteriores a 12/12/2022, e a admissibilidade de documentos correlatos violam a decadência e a estabilização da demanda – consiste em interpretação profundamente equivocada sobre os institutos mencionados. Pertinente, então, sintetizar as razões para que seja refutada, por meio de orientação a ser aplicada a situações semelhantes.
Assim, a estabilização da demanda e a consumação da decadência não impedem que sejam admitidos no processo e considerados no julgamento elementos que se destinem a demonstrar desdobramentos dos fatos originariamente narrados, a gravidade (qualitativa e quantitativa) da conduta que compõe a causa de pedir ou a responsabilidade dos investigados e de pessoas do seu entorno, tais como: a) fatos supervenientes à propositura das ações ou à diplomação dos eleitos, ocorrida em 12/12/2022; b) circunstâncias relevantes ao contexto dos fatos, reveladas em outros procedimentos policiais, investigativos ou jurisdicionais ou, ainda, que sejam de conhecimento público e notório; e c) documentos juntados com base no art. 435 do CPC.
Reafirma-se que essa orientação diz respeito à admissibilidade dos elementos citados ao debate processual, em cotejo com alegações do autor. Não se estabelece, com isso, juízo prévio sobre o peso que venham a ter na análise do mérito, ocasião na qual serão cotejadas todos os argumentos e provas produzidos pelas partes.
Ante o exposto, rejeito as questões prejudiciais formuladas pelos investigados e, por conseguinte, indefiro o pedido de reconsideração da decisão ID 158554507.
Ademais, em atenção ao princípio da colegialidade, do contraditório, da celeridade e da racionalidade do processo, submeto a decisão a referendo do Plenário, tendo em vista a natureza prejudicial da matéria e a orientação apresentada para a análise de alegações semelhantes nas demais AIJEs relativas às eleições presidências de 2022. Fica, desde logo, assegurada às partes a realização de sustentação oral, exclusivamente sobre a matéria em apreciação, pelo tempo regimental.
Saliento que, tendo em vista produção imediata de efeitos da decisão interlocutória, a tramitação processual terá curso com a prática de atos cabíveis, inclusive realização de audiência para oitiva de testemunhas designada para 08/02/2023.
Publique-se. Intimem-se.
Brasília (DF), 7 de fevereiro de 2022.
MINISTRO BENEDITO GONÇALVES
Corregedor-Geral da Justiça Eleitoral