index: RECURSO EXTRAORDINÁRIO (1348)-0600814-85.2022.6.00.0000-[Cargo - Presidente da República, Cargo - Vice-Presidente da República, Abuso - De Poder Político/Autoridade, Abuso - Uso Indevido de Meio de Comunicação Social]-DISTRITO FEDERAL-BRASÍLIA
TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL
RECURSO EXTRAORDINÁRIO (1348) Nº 0600814-85.2022.6.00.0000 (PJe) - BRASÍLIA - DISTRITO FEDERAL
RELATOR: MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES
RECORRENTE: JAIR MESSIAS BOLSONARO
Advogados do(a) RECORRENTE: TARCISIO VIEIRA DE CARVALHO NETO - DF11498-A, EDUARDO AUGUSTO VIEIRA DE CARVALHO - DF17115-A, MARINA ALMEIDA MORAIS - GO46407-A, MARINA FURLAN RIBEIRO BARBOSA NETTO - DF70829-A, ADEMAR APARECIDO DA COSTA FILHO - DF40989-A
RECORRIDO: PARTIDO DEMOCRÁTICO TRABALHISTA (PDT) - NACIONAL
Advogados do(a) RECORRIDO: WALBER DE MOURA AGRA - PE757-A, EZIKELLY SILVA BARROS - DF31903, ALISSON EMMANUEL DE OLIVEIRA LUCENA - PE37719-A, MARCOS RIBEIRO DE RIBEIRO - RJ62818, MARA DE FATIMA HOFANS - RJ68152-A, ANA CAROLINE ALVES LEITAO - PE49456-A
O acórdão foi assim ementado (ID 159326778):
AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ELEIÇÕES 2022. ELEIÇÃO PRESIDENCIAL. CANDIDATO À REELEIÇÃO. REUNIÃO COM CHEFES DE MISSÕES DIPLOMÁTICAS. PALÁCIO DA ALVORADA. ANTEVÉSPERA DAS CONVENÇÕES PARTIDÁRIAS. DISSEMINAÇÃO DE INFORMAÇÕES FALSAS A RESPEITO DO SISTEMA ELETRÔNICO DE VOTAÇÃO. ANTAGONIZAÇÃO INSTITUCIONAL COM O TSE. COMPARATIVO ENTRE PRÉ-CANDIDATURAS. ASSOCIAÇÃO DE EVENTUAL DERROTA DO PRIMEIRO INVESTIGADO À OCORRÊNCIA DE FRAUDE. ESTRATÉGIAS DE MOBILIZAÇÃO POLÍTICO-ELEITORAL. TV BRASIL. REDES SOCIAIS. AMPLA REPERCUSSÃO PERANTE A COMUNIDADE INTERNACIONAL E O ELEITORADO. SEVERA DESORDEM INFORMACIONAL. DESVIO DE FINALIDADE NO USO DE BENS E SERVIÇOS PÚBLICOS E DE PRERROGATIVAS DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. GRAVIDADE. VIOLAÇÃO À NORMALIDADE ELEITORAL E À ISONOMIA. USO INDEVIDO DE MEIOS DE COMUNICAÇÃO. ABUSO DE PODER POLÍTICO. RESPONSABILIDADE PESSOAL DO PRIMEIRO INVESTIGADO. PROCEDÊNCIA PARCIAL. INELEGIBILIDADE. DETERMINAÇÕES.
1. Trata-se de Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) destinada a apurar a ocorrência de abuso de poder político e uso indevido de meios de comunicação, em virtude de reunião realizada em 18/07/2022, no Palácio da Alvorada.
2. O evento contou com a presença de embaixadoras e embaixadores de países estrangeiros, que assistiram à apresentação do primeiro investigado, então Presidente da República e pré-candidato à reeleição, a respeito do sistema eletrônico de votação e da governança eleitoral brasileira. Houve transmissão pela TV Brasil e pelas redes sociais do primeiro investigado.
3. Na hipótese, o autor alega que houve desvio de finalidade eleitoreiro, resultante do uso de bens e serviços e das prerrogativas do cargo em favor da iminente candidatura à reeleição. Alega, também, que houve difusão de fatos sabidamente falsos relativos ao sistema eletrônico de votação e ataques à Justiça Eleitoral, estratégia destinada a mobilizar o eleitorado por força de grave “desordem informacional”, atentatória à normalidade do pleito.
4. Em contrapartida, os investigados refutam qualquer relação entre o evento de 18/07/2022 e as eleições, enxergando no discurso uma legítima manifestação, em salutar “diálogo institucional” com o TSE. Afirmam ainda que qualquer efeito do discurso teria sido prontamente neutralizado por nota pública do Tribunal, sendo a conduta incapaz de ferir bens jurídicos eleitorais.
I - Preliminares
Preliminar de incompetência da Justiça Eleitoral (suscitada pelos investigados). Não conhecida.
5. Alegação rejeitada em decisão interlocutória já referendada pelo Plenário do TSE. Em benefício da racionalidade do processo e sem prejuízo às partes, submeteu-se de imediato ao órgão colegiado o exame de questões que pudessem levar à extinção do processo sem resolução do mérito.
6. Ocorrência de preclusão pro iudicato, no âmbito do TSE, sem impacto na recorribilidade para instância superior.
Questão prejudicial de “redelimitação da demanda (suscitada pelos investigados). Não conhecida.
7. As questões prejudiciais de violação à estabilização da demanda e à decadência já foram objeto de decisão interlocutória referendada pelo Plenário do TSE. A Corte, por unanimidade, admitiu ao exame fato superveniente apresentado pelo autor como desdobramento dos fatos alegados na inicial, reservando-se ao mérito avaliar se a alegação procede.
8. Impossibilidade de reexame da decisão pelo mesmo órgão colegiado, nos moldes já apontados.
Preliminar de ilegitimidade passiva ad causam do segundo investigado (suscitada pelos investigados). Rejeitada.
9. Ação proposta no curso do processo eleitoral, com observância à Súmula nº 38/TSE, cujo enunciado estabelece que “[n]as ações que visem à cassação de registro, diploma ou mandato, há litisconsórcio passivo necessário entre o titular e o respectivo vice da chapa majoritária”.
10. Ainda que a chapa investigada tenha sido derrotada, não há perda da condição de legitimado passivo, que decorre do vínculo formado entre os candidatos para o específico pleito ou do interesse processual, que permitiu ao segundo investigado exercitar ampla defesa.
Preliminar de nulidade processual decorrente da determinação de diligências complementares (suscitada pelos investigados). Rejeitada.
11. A atuação do Corregedor para determinar diligências, de ofício ou a requerimento das partes posteriormente à audiência de instrução é prevista expressamente no procedimento da AIJE (art. 22, VI a IX, LC nº 64/1990).
12. A estabilização da demanda não acarreta uma blindagem do debate processual contra fatos que possam influir no julgamento, uma vez que há disposições legais expressas no sentido de que o órgão julgador leve em consideração fatos constitutivos, modificativos ou extintivos supervenientes ao ajuizamento (art. 493, CPC) e, ainda, fatos públicos e notórios e circunstâncias, ainda que não alegadas pelas partes, que preservem a lisura eleitoral (art. 23, LC nº 64/1990).
13. A adequada aplicação dos dispositivos citados se dá como regra de instrução, ou seja, mediante prévia submissão ao contraditório de fatos e provas admitidos ao processo, o que foi feito. Entendimento que se amolda ao decidido na ADI nº 1082/STF (Rel. Min. Marco Aurélio, DJe de 30.10.2014).
14. Requisitados à Casa Civil documentos relativos à preparação do evento de 18/07/2022, os investigados se opuseram à diligência, ao argumento de que se tratava de “delegação de poder instrutório a grupo político beneficiário de eventual procedência da ação”, a permitir “um relatório sujeito a toda sorte de subjetivismos”.
15. A decisão foi mantida, tendo em vista que a requisição de documentos constitui meio legal de prova, sendo dever dos agentes públicos a que ela se destina prestarem informações completas, autênticas e fidedignas. A dinâmica é inerente aos princípios republicano e da impessoalidade.
16. A Casa Civil forneceu os documentos públicos que atendiam aos parâmetros da solicitação, sem apresentar sobre eles qualquer juízo de valor. Os investigados não apontaram qualquer ilegalidade in concreto e se utilizaram da prova para deduzir alegações em sua defesa.
17. Todos os elementos admitidos ao debate processual no curso da instrução possuem estrita correlação com a causa de pedir estabilizada. Sua força probante deve ser examinada no julgamento de mérito.
Requerimento de reabertura da instrução (formulado pelos investigados). Indeferido.
18. Na última audiência de inquirição de testemunhas, o advogado da defesa fez menção à denúncia apresentada pelo Ministério Público Eleitoral contra quatro pessoas acusadas de hackeamento que deixou instável o aplicativo e-título no pleito de 2020.
19. Deferiu-se a juntada da notícia jornalística, datada de 24/03/2023, da qual consta que o fato não tem relação com a segurança do sistema de votação.
20. A requisição do inquérito sigiloso em que foi apurado o episódio, referido apenas de passagem em pergunta do advogado dos investigados, é medida desproporcional. Caracterizados a impertinência e, mesmo, o viés protelatório do requerimento, é dever do Relator indeferir a produção da prova.
21. A dispensa de oitiva de testemunha indicada pelo juízo, após a coleta de outros três depoimentos convergentes sobre o mesmo fato, não induz nulidade. Os próprios investigados dispensaram três das testemunhas que arrolaram, pelo mesmo fundamento.
II - Mérito
Premissas de julgamento
22. O abuso de poder político se caracteriza como o ato de agente público (vinculado à Administração ou detentor de mandato eletivo) praticado com desvio de finalidade eleitoreira, que atinge bens e serviços públicos ou prerrogativas do cargo ocupado, em prejuízo à isonomia entre candidaturas.
23. O uso indevido de meios de comunicação, tradicionalmente, caracteriza-se pela exposição midiática desproporcional de candidata ou candidato. A compreensão se amolda ao paradigma da comunicação de massa (um-para-muitos), marcado pela concentração do poder midiático em poucos veículos com particular capacidade de influência sobre a sociedade.
24. A gravidade é elemento típico das práticas abusivas, que se desdobra em um aspecto qualitativo (alto grau de reprovabilidade da conduta) e outro quantitativo (significativa repercussão em um determinado pleito). Seu exame exige a análise contextualizada da conduta, que deve ser avaliada conforme as circunstâncias da prática, a posição das pessoas envolvidas e a magnitude da disputa.
25. As práticas ilícitas e sua forma de aferição ganham novos contornos no atual paradigma comunicacional, que é o da comunicação em rede (muitos-para-muitos). O aumento do tráfego de informações a partir de fontes múltiplas traz aspectos positivos, mas também faz crescer os ruídos e a dificuldade de checagem da veracidade de dados factuais. A expansão do discurso de ódio e da desinformação e a monetização de conteúdos falsos a serem consumidos por bolhas cativas são exemplos de fatores que podem degradar o debate público.
26. A premissa da abordagem da matéria é a ampla liberdade de manifestação do pensamento na internet, o que é plenamente compatível com o controle e a punição a novas formas de praticar condutas abusivas na sociedade em rede.
27. Nesse cenário, o TSE firmou entendimento no sentido de que “o uso de aplicações digitais de mensagens instantâneas, visando promover disparos em massa, contendo desinformação e inverdades em prejuízo de adversários e em benefício de candidato, pode configurar abuso de poder econômico e/ou uso indevido dos meios de comunicação social para os fins do art. 22, caput e XIV, da LC 64/90” (AIJEs nº 0601986-80 e nº 0601771-28, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJE de 22/08/2022).
28. O Tribunal também assentou a tese de que “a transmissão ao vivo de conteúdo em rede social, no dia da eleição, contendo divulgação de notícia falsa e ofensiva por parlamentar federal, em prol de seu partido e de candidato, configura abuso de poder de autoridade e uso indevido de meio de comunicação, sendo grave a afronta à legitimidade e normalidade do prélio eleitoral” (RO-El nº 0603975-98, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJE de 10/12/2021).
29. No segundo julgado, cassou-se o diploma de deputado estadual que, no dia do pleito de 2018, fizera live disseminando falso relato de apreensão de urnas fraudadas. Na caracterização dos elementos típicos do abuso, foram considerados: a) a credibilidade inspirada pela fonte, por se tratar de parlamentar; b) o alinhamento do discurso com estratégia político-eleitoral; c) o severo descompromisso com a verdade, eis que utilizados simples relatórios de substituição de urna para persuadir o eleitorado a acreditar na existência de fraude sistêmica e a não aceitar o resultado das urnas; d) a incompatibilidade do comportamento com a expectativa de conduta do agente público; e e) a exploração da imunidade parlamentar para reforçar a credibilidade das declarações falsas.
30. Em síntese, o abuso de poder midiático e político pode se configurar, em tese, mediante a divulgação de informações falsas sobre o sistema eletrônico de votação, feita por detentor de mandato eletivo, apta a produzir impactos sobre pleito específico. Considerada a posição preferencial da liberdade de expressão, há ônus elevados para o reconhecimento do ilícito, especialmente em uma eleição presidencial.
31. Em diversos campos jurídicos, reconhece-se que a palavra pode provocar dano a bens jurídicos de dimensão imaterial. Nesse sentido, citam-se o dano moral individual e coletivo e os crimes contra a honra. Destaca-se que a injúria racial, hoje equiparada ao racismo, tem pena majorada se o crime for cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou de publicação de qualquer natureza, inclusive em redes sociais e na internet.
32. A política é essencialmente performada por discursos. A palavra é o instrumento de governantes e parlamentares para transformar a realidade. Se assim é no campo da licitude, o mesmo ocorre quando se resvala para os ilícitos eleitorais.
33. Exatamente em razão da grande relevância da performance discursiva para o processo eleitoral e para a vida política, não é possível fechar os olhos para os efeitos antidemocráticos de discursos violentos e de mentiras que coloquem em xeque a credibilidade da Justiça Eleitoral.
34. Na atualidade, não há como negar que a desinformação é capaz de deteriorar o debate público e influir severamente sobre o processo de tomada de decisões.
35. Em primeiro lugar, estudos neurocientíficos demonstram que o novo paradigma comunicacional está produzindo transformações no cérebro. Reações rápidas, superficiais e pouco refletidas ocorrem diante do excesso de estímulos exteriores apresentados em alta velocidade. Os comportamentos, em geral, passam a ser afetados pela dinâmica de hiperestímulo a prazeres sensoriais, ligados a emoções básicas, em especial o medo e a raiva.
36. Em segundo lugar, pesquisas empíricas comprovam que o fenômeno das fake news, instalado nesse cenário, produziu efeitos políticos em larga escala. Notícias falsas possuem maior capacidade de intensificar o tráfego para sites, canais e perfis que as divulgam, e permitem promover engajamento político a partir não de pautas propositivas, mas da mobilização de paixões. Por suas características inflamáveis, essa mobilização acaba por direcionar um sentimento de inconformismo, nem sempre bem elaborado individualmente, para uma ação coletiva antissistema e antidemocrática. Seu uso foi rapidamente incorporado a ações estratégicas de grande impacto, como o Brexit, no Reino Unido.
37. Em terceiro lugar, a desordem informacional acarreta uma grave crise de confiança, que abala uma distribuição do trabalho cognitivo, que é essencial para o desenvolvimento das sociedades humanas. A contínua contestação de fontes de conhecimento especializado e o repúdio às instituições não tornam as pessoas mais autônomas e críticas. Surgem grupos orientados pela mobilização em torno de crenças, em que cada pessoa supre com um componente passional (o pertencimento ao grupo) a falta de um suporte epistêmico (validação de conteúdo) para a tomada de decisões. As fontes “alternativas” provocam um curto-circuito na chamada normatividade de coordenação (que nos ensina em quem confiar), que acaba por degradar a normatividade epistêmica (que nos diz em que conteúdo confiar).
38. A responsabilidade de candidatas e candidatos pelas informações que divulgam observa o modelo da accountability. Ou seja, ao se habilitarem para concorrer às eleições, essas pessoas se sujeitam a ter suas condutas rigorosamente avaliadas com base em padrões democráticos, calcados na isonomia, na normalidade eleitoral, no respeito à legitimidade dos resultados e na liberdade do voto.
39. Essa avaliação rigorosa não recai apenas sobre o agir em sentido estrito – como realizar uma carreata, ou custear despesas eleitorais. Ela incide também sobre a prática discursiva. Candidatas e candidatos exercem um importante papel na coordenação do conhecimento, ao disputar a confiança de eleitoras e eleitores para que sejam convencidos a agir de um determinado modo: apoiar pautas, engajar-se na campanha, convencer outras pessoas e, enfim, votar da forma sugerida.
40. Para atingir esse objetivo, é lícito que emitam opiniões e interpretem fatos de acordo com sua visão e inclinação políticas. Mas lhes é vedado utilizar informações falsas como ferramenta de mobilização política, como estratégia de domínio do debate público ou, no limite, para criar riscos de ruptura democrática.
41. No caso da pessoa ocupante do cargo de Presidente da República, o padrão de conduta democrática a ser observado é integrado pela responsabilidade pessoal por zelar pelo livre exercício dos demais Poderes, pelo exercício dos direitos políticos e pela segurança interna do país (art. 85, II, III e IV, da Constituição).
Fixação da moldura fática
42. A prova dos autos atesta, de forma inequívoca, que a reunião de 18/07/2022 no Palácio da Alvorada foi planejada pessoalmente pelo primeiro investigado como uma “resposta” à Sessão Informativa para Embaixadas, realizada pelo TSE em 30/05/2022. Na ocasião, o então Presidente do TSE estimulou os presentes a buscarem informações sérias e confiáveis sobre o sistema eletrônico de votação e ressaltou a importância das missões de observação internacional.
43. Testemunhas da defesa, ocupantes de altos cargos no governo do primeiro investigado, declararam que não houve envolvimento da Casa Civil, do Ministério das Relações Exteriores e da Assessoria Especial da Presidência da República. Os relatos, de meros espectadores, são uníssonos em informar que não foram chamados a discutir a abordagem e que desconheciam o teor da apresentação que seria feita.
44. O ex-Chanceler brasileiro observou o ineditismo da reunião envolvendo um Presidente da República e ressaltou que a temática não era afeta à política externa. O Ministro-Chefe da Casa Civil qualificou o evento como “evitável” e “superdimensionado”.
45. Os documentos requisitados à Casa Civil demonstram a magnitude do evento e a celeridade com que foram adotadas as providências para a realização do encontro. Entre os dias 13 e 17/07/2022 (dos quais apenas três eram úteis), o Cerimonial da Presidência disparou quase uma centena de convites dirigidos a Chefes de Missões Diplomáticas e outros 21 a outras autoridades brasileiras. Diversas unidades foram acionadas para fins logísticos e para o indispensável aparato de segurança envolvido.
46. No discurso proferido em 18/07/2022, o primeiro investigado, de forma expressa, declarou falsamente que as Eleições 2018 foram marcadas pela manipulação de votos, que havia risco de que o fato se repetisse em 2022 e que era interesse do TSE manter um sistema sujeito a fraudes e inauditável, a fim de permitir a adulteração do resultado em favor de candidato adversário. Houve, ainda, expresso desencorajamento ao envio de missões de observação internacional e hiperdimensionamento da participação das Forças Armadas para integrar Comissão de Transparência do TSE.
47. O primeiro investigado, no discurso, adotou explícita antagonização com o TSE, incentivando o descrédito a informações oficiais oriundas do Tribunal. Para tanto, valeu-se de afirmações insidiosas sobre Ministros desta Corte e atacou a competência do seu corpo técnico, afirmando falsamente que uma investigação em curso na Polícia Federal conteria prova da prática de fraude eleitoral e da desídia dos servidores.
48. A análise do IPL nº 135/2019 demonstra que o primeiro investigado não tinha em seu poder elemento mínimo relacionado à manipulação de votos ou a qualquer tipo de fraude eleitoral. A investigação versava sobre usual ataque a redes informatizadas, aos moldes dos que sofrem diversas instituições.
49. Além disso, não se tratava de um novo achado, mas de fato falso que o primeiro investigado, juntamente com o Deputado Federal Filipe Barros, havia divulgado em live de 04/08/2021. O teor das declarações foi desmentido em nota pública do TSE e o vazamento da investigação sigilosa rendeu o indiciamento de Mauro Cid, ajudante de ordens da Presidência durante o governo do primeiro investigado.
50. No ponto possivelmente de maior tensionamento do discurso, o então Presidente da República, em leitura distorcida de sua competência privativa para “exercer o comando supremo das Forças Armadas” (art. 84, XIII, da Constituição), enxerga-se como militar em exercício, à frente das tropas. A abordagem desconsidera uma conquista democrática, de incomensurável importância simbólica no pós-ditadura, que é a sujeição do poderio militar brasileiro a uma máxima autoridade civil democraticamente eleita.
51. O discurso, em diversos momentos, insinua uma perturbadora interpretação das ideias de “autoridade suprema do Presidente da República”, “defesa da Pátria” e “garantia da lei e da ordem” (art. 142 da Constituição). Com base nelas, o primeiro investigado adota a narrativa de que as Forças Armadas estavam comprometidas com a missão de debelar uma “farsa” que estaria sendo gestada no TSE. Essa visão se mostrou impermeável a qualquer argumento técnico ou decisão negocial do Tribunal que embasou o não acolhimento pontual de sugestões na Comissão de Transparência.
52. O primeiro investigado verbalizou insistentemente o desejo por eleições transparentes e por resultados autênticos. Essa afirmação somente pode ser compreendida no contexto das afirmações de que as Eleições 2018 foram marcadas pela fraude e que medidas para estancá-la, como o voto impresso e as propostas dos militares, eram alvo de resistência por parte de forças que conspiravam contra sua reeleição, ameaçando a paz, a soberania e a democracia.
53. Conforme a dinâmica própria às fake news, essa mensagem mobiliza sentimentos negativos capazes de produzir engajamento consistente na internet. Dispara-se um gatilho de urgência, no sentido de que algo precisa ser feito para impedir que o risco venha a se consumar. Esse pensamento intrusivo deixou latente a indagação sobre “o que fazer”. O primeiro investigado não deu uma resposta explícita a essa pergunta. Mas desenhou um cenário desolador que estreitava o leque de alternativas.
54. Para fechar o arco dos sentidos inscritos nesse discurso, salienta-se que o primeiro investigado inicia sua fala em 18/07/2022 dizendo que “até o momento, não fez nada fora das quatro linhas da Constituição”. Porém, ao longo da exposição, são acionados os sentimento de desesperança e de urgência, propensos a ampliar a margem de tolerância com ações que viessem a ser ditas necessárias para debelar fraudes eleitorais.
55. O discurso se encerra sem nenhuma proposição às embaixadoras e aos embaixadores, a não ser a insistente oferta do primeiro investigado em compartilhar seus slides e, ainda, cópias do IPL nº 1361/2018. O objetivo era rechaçar o TSE como fonte fidedigna de informações e conquistar adeptos para a crença disseminada, sem nenhuma prova, de que o sistema eletrônico de votação adotado no Brasil não era capaz de assegurar que o eleito nas Eleições 2022 seria quem de fato recebesse mais votos.
56. O evento contou com cobertura ao vivo da TV Brasil, emissora pertencente ao conglomerado da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), empresa pública que integra a Administração Pública Federal Indireta. É presumível que houve necessidade de algum ajuste às pressas na grade da programação, considerada a curta antecedência com que foi designado o evento. A gravação ficou disponível nas redes sociais da emissora até a ordem judicial para que fosse retirada do ar, em 23/08/2022.
57. Houve, também, transmissão do evento pelas redes sociais do primeiro investigado. As visualizações no Facebook e no Instagram, no momento da propositura da ação, ultrapassavam um milhão, contabilizadas somente aquelas diretamente nos citados perfis do candidato à reeleição. Houve, portanto, deliberado direcionamento do conteúdo para alcançar simpatizantes (seguidores) do já notório pré-candidato à reeleição.
58. O conteúdo da mensagem divulgada perante embaixadoras e embaixadores, portanto, não ficou restrito ao Palácio da Alvorada. O uso dos meios de comunicação, no caso em tela, criou uma multidão de espectadores, os quais puderam assistir ao primeiro investigado, na condição de Chefe de Estado, dirigir-se a uma prestigiosa plateia de Chefes de Missão Diplomática.
59. Essa dimensão performativa cumpre também função pragmática. Isso porque reforça a percepção de que o primeiro investigado tinha autoridade para tratar do tema, ao ponto de ser ouvido, respeitosamente, pela comunidade internacional.
60. O exame minucioso do discurso de 18/07/2022, em seu contexto, demonstra que a fala teve conotação eleitoral, sob tríplice dimensão: a) tratou-se de risco de fraude nas Eleições 2022; b) houve promoção pessoal e do governo do primeiro investigado, identificado com valores do povo brasileiro, em contraponto ao “outro lado”, associado a retrocessos e reputado como desprovido de apoio popular; c) narrou-se uma imaginária conspiração de Ministros do TSE para fazer com que um iminente adversário, já à época favorito em pesquisas pré-eleitorais, fosse eleito Presidente da República.
61. A narrativa apresentada no discurso estabelece-se em um contínuo com episódios anteriores, ocorridos no ano de 2021. Os elementos conspiratórios cultivados ao longo do tempo foram acionados pelo primeiro investigado, em 18/07/2022, ao evocar denúncias que vinha fazendo, há ao menos um ano, a respeito de supostas fraudes eleitorais.
62. Destacam-se, entre os fatos evocados, lives realizadas entre julho e agosto de 2021, quando o primeiro investigado explorou fortemente informações falsas a respeito do sistema eletrônico de votação no contexto de tramitação da PEC nº 135/2019. No ápice, chegou a afirmar que houve um acordo com um hacker para desviar 12 milhões de votos em 2018, o que, em sua narrativa fantasiosa, explicaria por que o primeiro investigado não foi eleito no primeiro turno.
63. Nessas ocasiões, o primeiro investigado se fez acompanhar de Anderson Torres, então Ministro da Justiça e da Segurança Pública (29/06/2021) e do Deputado Filipe Barros (04/08/2021), que endossaram o discurso de que haveria provas de fraudes eleitorais, produzidas pela Polícia Federal e pelo próprio TSE. Para essa finalidade, as autoridades distorceram relatórios técnicos de auditoria e o IPL nº 1361/2018. Ademais, análises precárias foram divulgados como material técnico, contra o aconselhamento de peritos da Polícia Federal, que haviam sido levados ao Palácio do Planalto a fim de que deles se extraísse declaração no sentido de que havia prova da fraude eleitoral, o que foi veementemente negado pelos policiais.
64. As lives foram transmitidas nas redes sociais do primeiro investigado e, ao menos em duas ocasiões, pela emissora Jovem Pan, durante o programa Os Pingos nos Is, normalizando um estado de paranoia injustificada e tornando familiar a prática discursiva que viria a ser exercitada pelo primeiro investigado em 18/07/2022.
65. Assim, a mensagem divulgada em 18/07/2022 não constituiu um fato esporádico, mas um importante marco na estratégia comunicacional do primeiro investigado com suas bases políticas, assegurando sua mobilização permanente.
66. Essa prática discursiva moldou um pensamento conspiracionista que se conservou latente e foi acionado com facilidade às vésperas do período eleitoral de 2022.
67. Não há como dar guarida à tese de que o primeiro investigado buscou travar um diálogo institucional na reunião de 18/07/2022. Sua fala foi um monólogo composto por conteúdos técnicos falsos e ataques insidiosos a reputações. O objetivo era esgarçar a confiabilidade do sistema de votação e da própria instituição que tem a atribuição constitucional de organizar eleições.
68. Tampouco é possível acolher a alegação de que teria havido, no discurso, mera defesa da necessidade de transparência eleitoral, respaldada pela liberdade de expressão e pelo interesse público. No contexto da narrativa, o suposto desejo por “transparência” era posto como inatingível, tendo em vista que eventual vitória do adversário, desde então à frente nas pesquisas, era tratada como suficiente para “comprovar” a fraude. O negacionismo se mostrava irredutível, a despeito de dados empíricos, consensos políticos e decisões técnicas que sustentam a robustez dos mecanismos de transparência já existentes.
69. Por fim, é também insubsistente a tese de que havia uma disposição de aceitação pacífica dos resultados pelo primeiro investigado. Os fatos apurados demonstram que um pensamento conspiratório, segundo o qual uma fraude seria engendrada pelo próprio TSE para entregar resultados eleitorais inautênticos, foi sendo normalizada pelo primeiro investigado e por seu entorno, com forte influência sobre o eleitorado. O então Presidente da República não fez qualquer gesto público que refletisse a pessoal aceitação dos resultados eleitorais de 2022 como legítimos. Manteve ativado, assim, o prognóstico trágico sobre o risco de fraude, que havia apresentado à comunidade eleitoral e ao eleitorado em 18/07/2022, em um perigoso flerte com o golpismo.
Subsunção dos fatos às premissas de julgamento
70. A “prova robusta”, necessária para a condenação em AIJE, equivale ao parâmetro da prova “clara e convincente” (clear and convincing evidence).
71. A tríade para apuração do abuso – conduta, reprovabilidade e repercussão – se perfaz diante de: a) prova de condutas que constituem o núcleo da causa de pedir; e b) elementos objetivos que autorizem: b.1) estabelecer um juízo de valor negativo a seu respeito, de modo a afirmar que são dotadas de alta reprovabilidade (gravidade qualitativa); e b.2) inferir com necessária segurança que essas condutas foram nocivas ao ambiente eleitoral (gravidade quantitativa).
72. Sob essa ótica:
72.1 restou comprovado que o primeiro investigado concebeu, planejou e mandou executar o evento de 18/07/2022 como uma reação a evento do TSE, uma atípica reunião em que o Presidente da República, com o objetivo de antagonizar com o Tribunal, apresentou a chefes de Missão Diplomática desconfiança sobre as urnas eletrônicas e desencorajou o envio de missões de observação internacional;
72.2 a análise integral do discurso proferido pelo primeiro investigado em 18/07/2022 no Palácio da Alvorada demonstra que foi disseminada severa desordem informacional a respeito do sistema eletrônico de votação e graves ataques a Ministros do TSE, com vistas a abalar a confiabilidade na governança eleitoral brasileira;
72.3 a reunião teve nítida finalidade eleitoral, mirando influenciar o eleitorado e a opinião pública nacional e internacional;
72.4 a prática discursiva exercitada em 18/07/2022 converge com a adotada na campanha dos investigados, que explorou os ataques à credibilidade das urnas eletrônicas e do TSE para mobilizar bases eleitorais;
72.5 comprovou-se, com riqueza de detalhes, que a estrutura pública da Presidência e as prerrogativas do cargo de Presidente da República foram direcionadas em favor da candidatura dos investigados;
72.6 os números relativos ao alcance do vídeo na internet não deixam dúvidas de que a transmissão pela TV Brasil e pelas redes sociais potencializou a difusão do discurso de 18/07/2022 e, com isso, da desinformação divulgada pelo primeiro investigado; e
72.7 é possível concluir com a segurança necessária que a estratégia de descredibilização das urnas eletrônicas e os ataques à Justiça Eleitoral contribuíram significativamente para fomentar um ambiente de não aceitação dos resultados das Eleições 2022.
73. Está configurado nos autos o uso indevido de meios de comunicação, perpetrado pessoalmente pelo primeiro investigado mediante difusão massiva de gravíssima desordem informacional sobre o sistema eletrônico de votação e a governança eleitoral brasileira, na reunião de 18/07/2022 no Palácio da Alvorada, que foi convocada e protagonizada pelo então Presidente da República e pré-candidato à reeleição, transmitida em suas redes sociais e pela TV Brasil.
74. Restou demonstrado, ainda, que o primeiro investigado negligenciou relevantes premissas simbólicas da relação entre os Poderes da República e explorou, no interesse exclusivo de sua estratégia eleitoral, prerrogativas do cargo, bens e serviços empregados para viabilizar um evento que teve por único fim veicular discurso extremamente danoso à normalidade eleitoral.
75. Assim, também se conclui pela ocorrência do abuso de poder político, praticado de forma pessoal pelo primeiro investigado, que concebeu, definiu e ordenou que se realizasse, em tempo recorde, evento estratégico para sua pré-campanha, no qual fez uso de sua posição de Presidente da República, de Chefe de Estado e de “comandante supremo” das Forças Armadas para potencializar os efeitos da massiva desinformação a respeito das eleições brasileiras apresentada à comunidade internacional e ao eleitorado.
76. A disponibilidade para candidatar-se pressupunha o compromisso com a preservação da normalidade eleitoral, da isonomia, da legitimidade e da liberdade do voto. Além disso, o cargo ocupado exigia-lhe respeitar a missão institucional da Justiça Eleitoral, abster-se de difundir pensamentos intrusivos capazes de perturbar o exercício de direitos políticos e, ainda, contribuir para que as eleições transcorressem em um ambiente pacífico e seguro. Esses deveres foram descumpridos.
77. Sob a ótica da accountability, a condição de Presidente da República candidato à reeleição era incompatível com os comportamentos adotados, por meio dos quais o primeiro investigado promoveu severo esgarçamento do tecido democrático. Desse modo, o primeiro investigado é pessoalmente responsável pelos ilícitos praticados.
78. Não foram comprovadas condutas ilícitas imputáveis pessoalmente ao segundo investigado.
III. Dispositivo
79. Preliminar de incompetência da Justiça Eleitoral e prejudicial de “redelimitação” da demanda não conhecidas.
80. Preliminar de ilegitimidade passiva ad causam do segundo investigado e alegação de nulidade processual rejeitadas.
81. Requerimento de reabertura da instrução indeferido.
82. Pedido julgado parcialmente procedente, para condenar o primeiro investigado, Jair Messias Bolsonaro, pela prática de abuso de poder político e de uso indevido de meios de comunicação nas Eleições 2022 e, em razão de sua responsabilidade direta e pessoal pela conduta ilícita praticada em benefício de sua candidatura à reeleição para o cargo de Presidente da República, declarar sua inelegibilidade por 8 (oito) anos seguintes ao pleito de 2022.
83. Cassação do registro de candidatura dos investigados prejudicada, exclusivamente em virtude de a chapa beneficiária das condutas abusivas não ter sido eleita, sem prejuízo de reconhecer-se os benefícios eleitorais ilícitos auferidos por ambos os investigados.
84. Comunicação imediata da decisão à Secretaria da Corregedoria-Geral Eleitoral para que, independentemente da publicação do acórdão, promova a devida anotação no histórico de Jair Messias Bolsonaro, no Cadastro Eleitoral, da hipótese de restrição a sua capacidade eleitoral passiva.
85. Determinação de envio de comunicações à Procuradoria-Geral Eleitoral, ao Tribunal de Contas da União e aos Relatores, no STF, dos Inquéritos nos 4878/DF e 4879/DF e da Petição nº 10.477/DF, para ciência e providências que entenderem cabíveis.
Opostos Embargos de Declaração, foram rejeitados (ID 159588460):
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ELEIÇÕES 2022. ELEIÇÃO PRESIDENCIAL. PROCEDÊNCIA PARCIAL. INELEGIBILIDADE DO PRIMEIRO INVESTIGADO. OBSCURIDADE. OMISSÃO. INEXISTÊNCIA. MERO INCONFORMISMO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO REJEITADOS.
1. Trata-se de embargos de declaração opostos contra acórdão em que o Tribunal Superior Eleitoral, julgando parcialmente procedentes os pedidos formulados na ação de investigação judicial eleitoral por suposta prática de abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação, declarou a inelegibilidade do ora embargante, então candidato à reeleição para o cargo de Presidente da República.
2. Conforme a legislação aplicável à AIJE, os embargos de declaração são cabíveis para “esclarecer obscuridade”, “eliminar contradição” ou “suprir omissão de ponto ou questão sobre o qual devia se pronunciar o juiz de ofício ou a requerimento” (art. 275, do Código Eleitoral, c/c art. 1.022, I e II, do Código de Processo Civil).
3. A estreita modalidade recursal se destina, assim, a corrigir vícios lógicos das decisões e, não, conformá-las ao entendimento defendido das partes.
4. Por sua vez, os efeitos modificativos somente podem ser atribuídos se decorrerem da correção de vícios, não se sustentando pedido autônomo de que sejam promovidos ajustes na fundamentação.
5. A exigência de fundamentação exauriente, apta a “enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador”, não impõe ao tribunal o acatamento das alegações de interesse do embargante, sendo incabível considerar omisso o texto decisório em que não se reproduziu, exatamente porque não se acolheu, a interpretação de normas legais e de precedentes defendida pela parte.
6. Nesse sentido, “a omissão apta a ser suprida pelos declaratórios é aquela advinda do próprio julgamento e prejudicial à compreensão da causa, não aquela deduzida com o fito de provocar o rejulgamento da demanda ou modificar o entendimento manifestado pelo julgador” (ED em AREspEl nº 0600362-93, Rel. Min. Sergio Banhos, DJE de 11/05/2023).
7. A obscuridade a ser desfeita por embargos diz respeito à inteligibilidade do texto, hipótese à qual não se amoldam indagações retóricas apenas apresentadas para enfatizar a discordância da parte com a decisão.
8. Na linha da jurisprudência, “os embargos de declaração não se prestam para o reexame das premissas fáticas e jurídicas já apreciadas no acórdão embargado e, desse modo, não propiciam novo julgamento da causa, em razão de decisão contrária aos interesses da parte (REspEl nº 0600156-61, Rel. Min. Raul Araujo Filho, DJE de 07/08/2023).
9. Na hipótese, inexistem vícios que autorizem a revisão do julgado, uma vez que a simples leitura do acórdão embargado, e mesmo de sua ementa, revela que foram enfrentadas de forma minudente todas as alegações de nulidades processuais, ainda que reiteradas. A conclusão pela inocorrência de cerceamento de defesa, de violação à estabilização da demanda e de extrapolação dos poderes instrutórios do Relator, embora contrária aos interesses do embargante, não caracteriza omissão ou obscuridade.
10. Os demais argumentos contidos nos embargos denotam o esforço de minimizar a gravidade da conduta do então Presidente da República, pré-candidato à reeleição, na reunião oficial com Chefes das Missões Diplomáticas em 18/07/2022, transmitida por emissora pública e pelas redes sociais, quando divulgou informações falsas sobre fraudes eleitorais inexistentes, supostamente envolvendo grotesca adulteração de votos na urna eletrônica, desencorajou o envio de missões de observação internacional ao argumento de que serviriam para encobrir uma “farsa” e, por fim, insinuou haver legitimidade das Forças Armadas para impedir o êxito de uma imaginária conspiração do TSE contra sua candidatura, associada, a todo tempo, à eventual vitória do adversário que, já naquela época, estava à frente nas pesquisas.
11. A responsabilidade pessoal do embargante foi fixada com base nos atos que comprovadamente praticou ao se valer das prerrogativas de Presidente da República e de bens e serviços públicos, em grave violação a deveres funcionais, com o objetivo de esgarçar a confiabilidade do sistema de votação e da própria instituição que tem a atribuição constitucional de organizar eleições. Portanto, o persistente empenho do embargante em tratar a minuta de decreto de estado de defesa como elemento decisivo para a declaração de inelegibilidade não encontra lastro no julgamento.
12. Consigne-se que, quando a legislação estabeleceu que “para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam”, somente indicou que não é necessário demonstrar as chances de êxito dos responsáveis pelo abuso em alcançar seu intento de obtenção ou conservação do poder por meios ilícitos. Logicamente, não se proibiu a Justiça Eleitoral de analisar desdobramentos da conduta que compõe a causa de pedir e que acaso revelem, no curso do processo.
13. Na hipótese, comprovou-se que o ex-Ministro da Justiça do governo do embargante tinha em seu poder, sem maior preocupação, uma minuta que propunha, como reação a uma fraude eleitoral inexistente, decretar estado de defesa no âmbito do TSE. Esse fato foi sopesado por cada Ministro e Ministra e, no caso específico do voto de relatoria, destacou-se que a minuta evocava como justificativa o mesmo tipo de desinformação difundida obstinadamente pelo ex-Presidente da República na reunião de 18/07/2022. As reflexões trazidas, com vistas à desnaturalização do golpismo, atendem à finalidade pedagógica deste julgamento.
14. Embargos de declaração rejeitados.
No Recurso Extraordinário (ID 159605901), o Recorrente aponta ofensa aos arts. 1º; 5º, IV, IX, XXXV, XXXVI, LIV, LV; 14, § 9º; 16; 84, VII, e 93, IX, da Constituição Federal aos seguintes fundamentos: a) presente a repercussão geral da matéria, “uma vez que a decisão contrariou expressamente (i) o tema [...] decidido no RE 637.458, além (ii) da Súmula Vinculante nº 10, ao declarar (indevidamente!), por vias transversas, a inconstitucionalidade do art. 48, da RES/TSE nº 23.608/2019”, sendo nítida a relevância política e social, considerando que a discussão permeia “o contexto da última eleição presidencial” (fl. 14), bem como relevante o interesse político, porque o “resultado, até aqui, é a declaração de inelegibilidade de Ex-Presidente da República, a partir de evento realizado antes do período eleitoral, no exercício de funções presidenciais, questão que deve passar pelo qualificado e definitivo crivo de constitucionalidade do E. Supremo Tribunal Federal” (fl. 16); b) “o v. acórdão deixou de aplicar o art. 48 da RES/TSE nº 23.608/2019, que estabelece a denominada recorribilidade diferida no âmbito do âmbito de processos originários no TSE, pela qual todas as questões preliminares serão (re)analisadas no julgamento final, de modo que os julgadores possam lidar com as implicações processuais sobre o direito material analisado” (fl. 26); c) “percebe-se que o Tribunal Superior Eleitoral admitiu uma dúplice operação por parte do Em. Min. Corregedor-Geral Eleitoral, que ampliou a causa de pedir originária e, simultaneamente, determinou a busca por novas fontes de provas que corroborariam, em tese, o ponto alienígena à causa de pedir originária” (fl. 28); d) “houve clara alteração da causa de pedir, ocorrida após o início dos trabalhos de oitiva das testemunhas arroladas exclusivamente pelos Requerentes, para que a AIJE pudesse conglobar, também, outros fatos, sem nenhuma continência com aqueles descritos na inicial” (fl. 29); e) “os declaratórios demonstram que a matéria recebeu atenções variadas por parte de cada julgador, mas, reconhecidamente, os fatos alusivos à minuta de decreto de Estado de Defesa compuseram o acervo fático considerado para a condenação do ora Requerente” (fl. 31); f) “se evidencia que as decisões do Il. Corregedor-Geral Eleitoral, que (i) promoveram a ampliação da causa de pedir inicialmente formulada e (ii.) possibilitaram a investigação indiscriminada sobre esses fatos não propostos inicialmente, ofenderam diretamente a Constituição Federal e contrariaram a posição do próprio Supremo Tribunal Federal, externada no julgamento da ADI 1088/DF, que delimitou o telos constitucional do art. 23, da LC nº 64/90”, contrariando, assim, os arts. 1º; 5º, XXXVI, LIV, LV; e 16 da CF/1988; g) “uma vez (a) delimitados a causa de pedir e o pedido, (b) implementado o contraditório circunstanciado e (c) saneado o feito, de maneira cabal, (d) a ação eleitoral teve por encerrada a fase postulatória e encontrava-se já estabilizada, com (e) instrução já iniciada, já tendo sido colhido, inclusive, o depoimento de uma das quatro testemunhas arroladas pela defesa, quando sobreveio decisão permissiva da juntada de um ‘suposto documento novo’, apreendido não em poder do Recorrente, em diligência eleitoral, mas sim na residência de terceiro, numa investigação diversa, apenas iniciada no âmbito STF” (fl. 41); h) “ao assim decidir, ao tempo em que assegura que a causa de pedir já estava estabilizada antes da juntada requestada, reconhece que o tal ‘documento’ tem com ela relação direta, o que, com o devido respeito, não faz sentido, a não ser que as AIJEs, doravante, sejam tratadas como processos objetivos de causa petendi aberta” (fl. 42); i) “por todos esses contornos é que se sustenta, com ênfase, que houve, sim, ofensa tanto à segurança jurídica (art. 16 da CF/88) quanto à confiança legítima (art. 1º c.c. art. 5º, XXXVI, todos da CF/88), o que impõe o conhecimento e provimento do recurso extraordinário para julgar nulo do processo, desde a juntada indevida de documento alheio à causa de pedir originária” (fl. 49); j) “em que pese o tom de preocupação institucional (ainda que externado mediante duras críticas), o v. acórdão entendeu por julgar parcialmente procedente o pedido para condenar o primeiro investigado, ora recorrente, Jair Messias Bolsonaro, pela prática de abuso de poder político e pelo uso indevido de meios de comunicação, e declarar sua inelegibilidade por oito anos seguintes ao pleito de 2022, desconsiderando o direito à liberdade de expressão (art. 5º, inc. IV e XI CF/88) e o fato do Recorrente ter realizado o evento na condição de Presidente da República (art. 84, inc. VII, c.c. art. 14 da CF/88)” (fl. 56); l) “os atos emanados da condição de Chefe do Executivo encontravam-se fora do escopo da Justiça Eleitoral, salvo nas hipóteses estritas do art. 73, da Lei das Eleições (condutas vedadas aos públicos em campanhas eleitorais)” (fl. 57); m) “para o caso em testilha, cumpre ressaltar ao menos dois critérios caracterizadores do ato de governo. O primeiro exsurge da ‘teoria do fim político’, [...], para a qual o ato de governo é o fim que norteia seu autor; de modo que é a natureza política do ato que impede o controle jurisdicional. O outro se dá sob o enfoque da própria noção de soberania, inerente às atividades de Estado” (fl. 58); n) “a reunião objeto da presente ação, com efeito, encontra-se fora do escopo de controle judicial, dado seu caráter eminentemente político e cuja discricionariedade está afeta ao chefe do Executivo, como executor de atos de governo próprios a um Estado Soberano, o que rechaça sua censura prévia ou posterior e esgota a discussão que se busca aviar nos autos” (fl. 60); o) “ainda que assim não fosse, não se pode desconsiderar o direito do Recorrente à liberdade de expressão, solicitando atenção e participação da Comunidade Internacional no processo eleitoral que seria desencadeado no Brasil” (fl. 60); p) “a Ação de Investigação Judicial Eleitoral, prevista em Lei Complementar como decorrência da disposição constitucional estampada pelo art. 14, § 9º, CRFB, é vocacionada a coibir ‘a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego’, hipótese que jamais poderia abarcar um discurso legítimo proferido pelo Presidente da República em exercício de prerrogativa expressamente prevista pela Constituição Federal” (fl. 68); q) “a solução jurídica dada ao caso, portanto, vai de encontro à vocação constitucional de prestígio à liberdade de expressão, notadamente porque puniu severamente a manifestação legítima do pensamento, em momento muito anterior ao próprio período eleitoral (!), o que acusa, data vênia, a completa ausência de nexo lógico entre a moldura fática posta e a conclusão exarada pelo acórdão” (fl. 73); r) “a (salutar) discussão acerca do voto impresso, por conseguinte, não deveria ser repreendida, mas efusivamente fomentada sob o respaldo da liberdade de expressão, à luz da publicidade e da contraposição de ideias, como forma de aperfeiçoamento da democracia e de seus sustentáculos. Sob todos esses fundamentos, patente a violação ao art. 5º, IV e IX da Constituição Federal de 1988, merecendo provimento o Recurso Extraordinário ora interposto” (fl. 85); s) houve negativa de prestação jurisdicional, por ofensa ao art. 5º, XXXV, c.c. art. 93, IX, da CF/1988, porque não enfrentados os seguintes argumentos de forma expressa e à luz dos dispositivos da Constituição Federal (notadamente os arts. 16 e 97): “i) não se pode falar, de forma técnica, na materialização de qualquer espécie de preclusão no caso, sendo injustificável a recusa em se aplicar, ao caso concreto, a inteligência do art. 48, da Resolução TSE nº 23.608/2019; ii) referida questão representou severos prejuízos à ampla defesa, já que o escopo de análise que pode ser empreendido por este E. TSE é muito mais amplo do que aquele constitucionalmente reservado à análise do Col. Supremo Tribunal Federal; iii) resulta inconteste que a extensão da causa de pedir, levada a cabo com a inclusão do ‘documento’ apócrifo e os consequentes desdobramentos, fere de morte, além de inúmeras garantias processuais, a própria delimitação inaugural levada a efeito por este E. Tribunal na decisão saneadora; e iv) com o fim de demonstrar a inexistência de inovação jurisprudencial, haveria um ônus argumentativo maior deste C. TSE, consistente em demonstrar a diferença do procedimento adotado nesta investigação do quanto refutado na AIJE nº 1943- 58 (que analisou o pedido de cassação da chapa Dilma Temer), que não foi satisfatoriamente atendido” (fl. 89).
Nesses termos, requer seja “reconhecida a ofensa à cláusula da confiança legítima (art. 1º c.c. art. 5º, XXXVI da CF/88) e ao princípio da anualidade eleitoral (art. 16 da CF/88), reflexo do princípio da segurança jurídica, requer-se seja provido o recurso extraordinário, reformando-se o v. acórdão recorrido, para determinar a imediata extração da ‘minuta de decreto de Estado de Defesa’ dos autos e a nulidade de todos os atos subsequentes, especialmente o julgamento de mérito, refazendo-se, após necessário saneamento, o completo julgamento do feito”.
Caso assim não se entenda, “pugna-se pela reforma do acórdão, reconhecendo-se a contrariedade aos arts. 14, 84, VII, c.c. art. 5º, LIV, LV, todos da CRFB violação ao art. 5º, IV e IX, CRFB, julgando-se improcedente a ação de investigação judicial eleitoral, de modo a afastar a condenação imposta ao Recorrente”.
Subsidiariamente, “caso se entenda pela ausência de alguma premissa fática ou jurídica necessária ao julgamento do apelo, mesmo diante do manejo dos embargos declaratórios na origem, requer-se seja reconhecida a ofensa aos artigos 5º, inc. XXXV, c.c. art. 93, inc. IX, ambos da Constituição Federal de 1988, com a consequente cassação do acórdão, para novo e completo julgamento do feito na origem, como se entender de direito, mas desde que mercê do enfretamento dos temas neles versados, de modo a se garantir a adequada prestação jurisdicional” (fl. 94).
Em contrarrazões, o Partido Democrático Trabalhista (PDT) requer (i) o não conhecimento do recurso extraordinário diante da ausência de preenchimento de requisitos de admissibilidade recursal e da incidência da Súmula 279 do STF; e (ii) “em deferência ao princípio da eventualidade, especificamente, caso este Egrégio Supremo Tribunal Federal conheça do Apelo Extremo, o julgamento pelo não provimento da pretensão recursal, com a manutenção do acórdão recorrido em todos os seus termos, pois não há se falar, sob qualquer vértice, em violação ou contrariedade aos dispositivos da Constituição Federal de 1988”.
É o breve relato. Decido.
A ofensa aos arts. 1º e 5º, IV, IX, da CF/1988 não foi objeto de análise no acórdão recorrido, inexistindo, portanto, o indispensável prequestionamento, o que atrai a incidência do enunciado 282 da Súmula do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: “é inadmissível o recurso extraordinário, quando não ventilada, na decisão recorrida, a questão federal suscitada”. Nesse sentido: AgR-RE 224.783, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, DJ de 20/4/2001; RE 299.768, Rel. Min. MOREIRA ALVES, Primeira Turma, DJ de 1º/6/2001; AgR-ARE 1.209.640, Rel. Min. ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, DJe de 10/10/2019; e AgR-ARE 1.213.074, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, DJe de 9/12/2020.
Esta CORTE SUPERIOR, entretanto, assentou no julgamento que “o direito fundamental à livre expressão, consagrado explicitamente na Constituição de 1988, não alberga a propagação de mentiras. Não se trata, portanto, de flexibilizar um direito, mas sim de delimitar seus contornos e seu âmbito de regência. Em contraponto à propagação de mentiras e ataques infundados que compõem, no caso concreto, como veremos, uma fala política inserida em uma estratégia eleitoral, vale recordar, ainda, o direito de todos à informação, que igualmente constitui um direito fundamental plasmado em nossa Constituição. O direito à informação encontra-se, assim como a liberdade de expressão, na essência da Democracia. No segmento eleitoral, a eleitora e o eleitor têm direito a que o debate público ocorra com base em informações e fatos verdadeiros, pois é apenas e tão somente dessa maneira que se garante efetivamente a liberdade de escolha; só dessa maneira se assegura o direito pleno ao voto”.
Nesse contexto, o Plenário do TSE entendeu que a conduta do Recorrente, à época Presidente da República, extrapolou os limites de atuação como Chefe de Estado, sendo legítima a atuação desta JUSTIÇA ESPECIALIZADA na tutela do processo eleitoral.
Em relação à ofensa ao art. 84, VII, da Constituição Federal, esta CORTE decidiu que “a exposição do investigado não teve caráter diplomático. Observa-se, isso sim, a mera roupagem diplomática, comprovada não apenas pela própria convocação e condições em que ocorreu a reunião, mas também pela juntada de comunicação oriunda da Casa Civil, a partir da requisição de informações consolidadas sobre a participação de órgãos do Governo Federal na preparação, realização e difusão do encontro realizado no Palácio do Planalto, em 18.7.2022 (ID nº 158839457 e seguintes)”, assentando, ainda que: “pela documentação, visualiza-se a existência de convites a embaixadores e ministros de nações estrangeiras, convites a autoridades nacionais e documentações internas direcionadas à preparação do evento. Não obstante essa situação, a pauta, a abordagem realizada com recurso amplo a fatos inverídicos e a reverberação de seu conteúdo via TV Brasil Distribuição e por redes sociais do primeiro investigado é que permitem a correta categorização do evento, inserto como uma estratégia eleitoral calcada em questionamentos e ataques despidos de base racional voltados ao sistema eleitoral, no interesse eleitoral dos investigados. Houve, portanto, um desvio de finalidade, caracterizando o abuso de poder”.
Assim, conclusão diversa demandaria a revisão das provas dos autos, medida inviável nesta sede recursal. Incidência da Súmula 279/STF.
Quanto à alegada violação ao art. 14, § 9º, da Constituição Federal, restou consignado no acórdão recorrido que “o inequívoco propósito eleitoral da conduta aqui analisada é uma circunstância deveras importante, a exercer dupla função neste caso, pois tanto permite concluir pela ocorrência do abuso, na medida em que é um dos requisitos exigidos pelo texto do art. 22 da LC 64/90, como enaltece, ao lado de outras circunstâncias, a presença da gravidade, necessária à caracterização do ilícito e aplicação das sanções pertinentes”.
E, mais, “resta inequívoco que seu conteúdo é permeado por ataques infundados ao sistema eletrônico de votação, com a disseminação de fatos inverídicos de maneira a criar uma narrativa alarmista, tudo com proveitos para a candidatura do investigado, considerado o acervo probatório apto a indicar a existência de um contexto cronologicamente situado de atuação, que robustece a constatação da gravidade da conduta por denotar a presença de uma estratégia abusiva de promoção eleitoral às custas da estabilidade democrática e da higidez do sistema eleitoral, levando-se ainda em conta, nesse cenário, a massiva divulgação dessas mentiras pelas redes sociais e por aparato estatal, entendo caracterizado o uso indevido dos meios de comunicação e abuso do poder de autoridade consistente no desvio de finalidade na realização de reunião com roupagem diplomática, mas com natureza eleitoral espúria”.
Dessa forma, a controvérsia foi decidida com base nas provas do caso concreto, de modo que alterar a conclusão do acórdão recorrido pressupõe revolvimento do conjunto fático-probatório dos autos, providência que se revela incompatível com o Recurso Extraordinário, conforme o enunciado 279 da Súmula do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Nesse sentido: AgR-RE 593.064, Rel. Min. EROS GRAU, Segunda Turma, DJe de 12/12/2008; AgR-ARE 1.058.803, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, DJe de 10/6/2020; AgR-RE 603.659, Rel. Min. ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, DJe de 24/8/2018.
No tocante à suposta ofensa aos arts. 5º, XXXV, e 93, IX, da Constituição Federal, registre-se, ainda, que o acórdão recorrido afigura-se devidamente fundamentado ao assentar que “a conclusão pela inocorrência de cerceamento de defesa, de violação à estabilização da demanda e de extrapolação dos poderes instrutórios do Relator, embora contrária aos interesses do embargante, não caracteriza omissão ou obscuridade”.
O acórdão recorrido, dessa forma, revela-se em conformidade com a jurisprudência firmada pela SUPREMA CORTE em sede de repercussão geral, no sentido de que “o art. 93, IX, da Constituição Federal exige que o acórdão ou decisão sejam fundamentados, ainda que sucintamente, sem determinar, contudo, o exame pormenorizado de cada uma das alegações ou provas, nem que sejam corretos os fundamentos da decisão” (AI 791.292-QO, Rel. Min. GILMAR MENDES, Pleno, DJe de 13/8/2010 – Tema 339):
Questão de ordem. Agravo de Instrumento. Conversão em recurso extraordinário (CPC, art. 544, §§ 3° e 4°). 2. Alegação de ofensa aos incisos XXXV e LX do art. 5º e ao inciso IX do art. 93 da Constituição Federal. Inocorrência. 3. O art. 93, IX, da Constituição Federal exige que o acórdão ou decisão sejam fundamentados, ainda que sucintamente, sem determinar, contudo, o exame pormenorizado de cada uma das alegações ou provas, nem que sejam corretos os fundamentos da decisão. 4. Questão de ordem acolhida para reconhecer a repercussão geral, reafirmar a jurisprudência do Tribunal, negar provimento ao recurso e autorizar a adoção dos procedimentos relacionados à repercussão geral.
Além disso, a SUPREMA CORTE já reconheceu a ausência de repercussão geral da controvérsia relativa à suposta violação aos princípios do contraditório, da ampla defesa, dos limites da coisa julgada e do devido processo legal (ARE 748.371-RG, Rel. Min. GILMAR MENDES, Pleno, DJe de 1º/8/2013 – Tema 660):
Alegação de cerceamento do direito de defesa. Tema relativo à suposta violação aos princípios do contraditório, da ampla defesa, dos limites da coisa julgada e do devido processo legal. Julgamento da causa dependente de prévia análise da adequada aplicação das normas infraconstitucionais. Rejeição da repercussão geral.
Em relação à alegada ofensa à segurança jurídica, princípio previsto nos arts. 5º, XXXVI, e 16 da Constituição Federal, tendo em vista a alegada existência de conclusão em sentido diverso nos julgamentos da Representação 1943-58/DF e do Recurso Ordinário 06011788-58 e a suposta ofensa à estabilidade da demanda, esta CORTE assentou expressamente que “não se alterou a orientação traçada por este Tribunal. O que se tem são duas situações totalmente distintas. No pleito de 2014, o TSE recusou inserir, em uma AIJE em curso, uma causa de pedir inteiramente autônoma. No pleito de 2022, a Corte admitiu que possa ser discutido nesta AIJE um fato posterior ao ajuizamento da ação que foi suscitado para demonstrar a gravidade da conduta narrada na petição inicial”.
No caso, a condenação do recorrente pela prática de abuso de poder político e de uso indevido dos meios de comunicação nas eleições 2022 se deu com base nos elementos de convicção dos autos que atestaram que a reunião realizada com os Chefes de Missões Diplomáticas, no Palácio da Alvorada, no dia 18/07/2022, produziu vantagem eleitoral competitiva desproporcional em favor do então Presidente da República, candidato à reeleição, tendo sido disseminada desinformação contra o sistema eletrônico de votação e a Justiça Eleitoral, potencializado o alcance da desinformação pela transmissão pela TV Brasil e pelas redes sociais do candidato no Facebook e no Instagram, a revelar gravidade suficiente a afetar a estabilidade do ambiente democrático.
Saliente-se, ainda, que não assiste razão ao recorrente ao alegar que a condenação foi baseada em "documento apócrifo", pois a suposta minuta de decreto não embasou a condenação do recorrente, tendo sido a responsabilidade do investigado fixada com base nos atos que comprovadamente praticou ao se valer das prerrogativas de Presidente da República e de bens e serviços públicos, com desvio de finalidade em favor de sua candidatura, como destacado nos diversos votos proferidos.
Assim, conforme destacado no voto do Relator, eminente Ministro BENEDITO GONÇALVES, “a responsabilidade pessoal do embargante foi fixada com base nos atos que comprovadamente praticou ao se valer das prerrogativas de Presidente da República e de bens e serviços públicos, em grave violação a deveres funcionais, com o objetivo de esgarçar a confiabilidade do sistema de votação e da própria instituição que tem a atribuição constitucional de organizar eleições. Portanto, o persistente empenho do embargante em tratar a minuta de decreto de estado de defesa como elemento decisivo para a declaração de inelegibilidade não encontra lastro no julgamento.”
Também destaquei em meu voto, que “o objeto da presente AIJE consiste na ocorrência de abuso do poder político, uso indevido dos meios de comunicação e prática de conduta vedada, inferidas da reunião, ocorrida em 18/7/2022 no Palácio da Alvorada, na qual o Investigado Jair Messias Bolsonaro, na presença de embaixadores de países estrangeiros convocados, ao discursar, desfere ataques ao sistema eletrônico de votação e a Ministros do TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL e do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. O evento em questão foi transmitido pela TV Brasil, bem como divulgado nas redes sociais do então Presidente no Facebook e no Instagram”.
Aassentei, ainda, que “a partir dos elementos de convicção existentes nos autos, notadamente do teor da fala do Investigado, não se mostra viável concluir no sentido da ausência de conotação eleitoral, tendo em vista os seguintes aspectos extraídos: i) exaltação de qualidades pessoais e do próprio governo; ii) desinformação sobre o sistema eleitoral, de modo a transgredir a confiabilidade das urnas eletrônicas e o resultado das Eleições que se aproximavam; iii) ataques ao TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL, ao SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL e a seus Juízes, sugerindo a ausência de imparcialidade e a existência de conspiração em benefício de adversário político; iv) criticas diretas ao oponente na disputa eleitoral. Tais aspectos fáticos, além de enfatizar a existência do desvio de finalidade na conduta de Jair Messias Bolsonaro, também se revelam apta a configurar a prática de uso indevido dos meios de comunicação”
De igual modo, a Ministra CARMEN LÚCIA se manifestou pela condenação do recorrente pela prática de abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação, considerado “o caráter eleitoreiro da reunião realizada pelo primeiro investigado com Chefes de Missões Diplomáticas, havida no dia 18.7.2022, no Palácio da Alvorada, e transmitida por emissora pública de televisão, a TV Brasil, além de repercutida nas redes sociais do sabidamente pré-candidato e de seus apoiadores.” E concluiu, “mostra-se especialmente reprovável a conduta de se utilizar, na condição de Chefe de Estado e de Governo, de prédio público e de emissora pública de televisão, a que tinha acesso privilegiado pelo exercício de cargo ou função, para realizar e veicular ato de cunho eleitoral, no qual a autopromoção do pré-candidato se realiza pela promoção do descrédito de outras instituições e do próprio sistema eleitoral.”
No mesmo sentido é o voto do Ministro FLORIANO DE AZEVEDO MARQUES, que pautou a condenação do investigado pela prática de abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação nas condutas consubstanciadas na realização de reunião com os embaixadores em 18.7.2022, no discurso proferido e na sua divulgação. Confira-se:
“Analisados, nos estritos lindes dos fatos trazidos na inicial desta AIJE, o contexto em que se organizou e desenvolveu a reunião com os embaixadores e o teor do discurso na ocasião, proferido pelo Primeiro Investigado, tenho comigo que está caracterizada a prática de abuso de poder político e de desvio de finalidade, tanto na realização do evento como no uso dos meios de comunicação social (EBC e redes sociais oficiais) na sua divulgação.
85.1. O evento não se inseriu nas atividades diplomáticas e de representação do país perante autoridades estrangeiras, tanto que o envolvimento do Itamaraty foi marginal, não se envolvendo sequer na elaboração do discurso do primeiro mandatário do país a Embaixadores estrangeiros.
85.2. A organização da reunião não ficou a cargo dos órgãos que seriam competentes para este fazer que se trataria de um evento governamental típico (Casa Civil e SAE), o que restou corroborado pelos depoimentos dos então titulares das pastas, sendo certo que até o então Ministro Ciro Nogueira afirmou ter sido contra o evento; ao contrário, o evento fora organizado pelo staff pessoal do Presidente ou de sua equipe de campanha, inexistindo elementos para identificar quem efetivamente se envolveu nessa preparação.
85.3. O evento teve lugar não nos próprios mais adequados para um ato de governo (Planalto ou Itamaraty), mas no Palácio da Alvorada, residência oficial do PR.
85.4. O discurso proferido teve nítido caráter de estratégia eleitoral, seja por emular a imagem do candidato incumbente, seja por aviltar a imagem do seu maior opositor, seja, ainda, por tentar criar empatia com o eleitorado, apresentando-se como candidato perseguido e antissistema viciado.
85.5. O discurso teve caráter também de deslegitimar e colocar sob suspeita o sistema eleitoral, gerando potencialmente um desincentivo à participação com vistas a obter o benefício que estatisticamente favorece o candidato incumbente, como demonstram os estudos teóricos, as pesquisas e os achados dos institutos de pesquisa.
85.6. O discurso primou pela difusão de desinformação e acusações sabidamente falsas ou, no mínimo, improvadas, o que, por si só, já é suficiente para caracterizar a conduta abusiva punível.
85.7. Não está passível de dúvidas que, por qualquer linha que se analise o discurso, ele visava a trazer benefício ao candidato, seja criando imagem sua positiva, reforçando imagem negativa do oponente, criando empatia com o eleitor, disseminando descrença apta a gerar abstenção que lhe favoreceria; ainda reforçando o discurso inveraz com o qual outras vezes já se elegera. Benefício mais claro (e lembre-se, o benefício há de ser potencial, pouco importando o resultado) impossível.
86. Houve desvio de finalidade, na medida em que o Primeiro Investigado usou de suas competências de Chefe de Estado para criar uma aparente reunião diplomática cujo objetivo era “responder ao TSE” e construir uma persona de candidato, servindo-se dos meios de comunicação social para alcançar seu real destinatário: o eleitor já cativado (cuja mobilização se intensificaria) ou aquele por conquistar.
87. E houve abuso de poder político, pois o Investigado mobilizou todo o poder de Presidente da República para emular sua estratégia eleitoral em benefício próprio, agindo de forma anormal, imoral e sobremaneira grave pelas suas premissas e consequências, como adiante se verá.
88. Diante disso, resulta também que houve abuso e desvio no emprego dos meios de comunicação social para transmitir ao vivo no primeiro momento e repercutir depois, estratégia que só não exponenciou a repercussão porque foi cessada cautelarmente pela Justiça Eleitoral”.
Ressalte-se, também, a mesma compreensão do voto do Ministro ANDRÉ RAMOS TAVARES no sentido de que “os ataques infundados ao sistema eletrônico de votação, com a disseminação de fatos inverídicos de maneira a criar uma narrativa alarmista, tudo com proveitos para a candidatura do investigado, considerado o acervo probatório apto a indicar a existência de um contexto cronologicamente situado de atuação, que robustece a constatação da gravidade da conduta por denotar a presença de uma estratégia abusiva de promoção eleitoral às custas da estabilidade democrática e da higidez do sistema eleitoral, levando-se ainda em conta, nesse cenário, a massiva divulgação dessas mentiras pelas redes sociais e por aparato estatal, entendo caracterizado o uso indevido dos meios de comunicação e abuso do poder de autoridade consistente no desvio de finalidade na realização de reunião com roupagem diplomática, mas com natureza eleitoral espúria.”
Não se trata, de maneira alguma, de alteração de jurisprudência ou de decisões conflitantes, mas, sim, de conclusão lastreada nas condutas, fatos e provas do caso concreto, sem qualquer pertinência temática com o Tema 564 da Repercussão Geral.
Diante de todo o exposto, com fundamento no artigo 1.030, I, a, e V, do CPC, NEGO SEGUIMENTO ao Recurso Extraordinário.
Publique-se e intime-se.
Ciência à Procuradoria-Geral Eleitoral.