TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL
ACÓRDÃO
RECURSO ESPECIAL ELEITORAL Nº 0600235-82.2020.6.26.0001 – SÃO PAULO – SÃO PAULO
Relator: Ministro Alexandre de Moraes
Recorrente: Ministério Público Eleitoral
Recorrida: Maria Helena Pereira Fontes
Advogada: Cynthia Helena Feitoza Pedrosa – OAB: 176666/SP
ELEIÇÕES DE 2020. RECURSO ESPECIAL ELEITORAL. PRÁTICA ILÍCITA DE “RACHADINHA”. CARACTERIZAÇÃO SIMULTÂNEA DE ENRIQUECIMENTO ILÍCITO E DANO AO ERÁRIO PÚBLICO. INELEGIBILIDADE DO ART. 1º, I, L, DA LC Nº 64/1990 CONFIGURADA. RECURSO PROVIDO.
1. "Fazem muito mal à República os políticos corruptos, pois não apenas se impregnam de vícios eles mesmos, mas os infundem na sociedade, e não apenas a prejudicam por se corromperem, mas também porque a corrompem, e são mais nocivos pelo exemplo do que pelo crime” (MARCO TÚLIO CÍCERO. Manual do candidato às eleições. As leis, III, XIV, 32).
2. O esquema de “rachadinha” é uma clara e ostensiva modalidade de corrupção, que, por sua vez é a negativa do Estado Constitucional, que tem por missão a manutenção da retidão e da honestidade na conduta dos negócios públicos, pois não só desvia os recursos necessários para a efetiva e eficiente prestação dos serviços públicos, mas também corrói os pilares do Estado de Direito e contamina a necessária legitimidade dos detentores de cargos públicos.
3. A exigência legal imposta de que a conduta ímproba traga, simultaneamente, prejuízo ao erário e enriquecimento ilícito do próprio agente ou de terceiros, como exigido por esta Corte Eleitoral, está presente, pois é regular e lícito ao TSE verificar na fundamentação da decisão condenatória a existência de ambos os requisitos (AgR-AI nº 411-02/MG, Rel. Min. EDSON FACCHIN, DJe de 7.2.2020; Rel. Min. OG FERNANDES, PSESS de 27.11.2018).
4. O enriquecimento ilícito está caracterizado pelo desvio de dinheiro público para o patrimônio da requerida; enquanto o dano ao erário público consubstanciou-se justamente pelo desvio de finalidade no emprego de verba pública de utilização não compulsória para subsequente apropriação de parte dos valores correlatos em desrespeito à legislação municipal.
5. Flagrante caracterização de existência de contraprestação desproporcional de serviços relacionada a esses valores; pois houve claro pagamento indevido à custa do erário, sendo que a retribuição pelo serviço prestado foi irregularmente superior à efetivamente pactuada.
6. RECURSO ESPECIAL PROVIDO PARA INDEFERIR O REGISTRO de candidatura de Maria Helena Pereira Fontes ao cargo de Vereadora de São Paulo/SP nas eleições de 2020.
Acordam os ministros do Tribunal Superior Eleitoral, por unanimidade, em dar provimento ao recurso especial para indeferir o registro de candidatura de Maria Helena Pereira Fontes ao cargo de Vereadora de São Paulo/SP nas eleições de 2020, nos termos do voto do relator.
Brasília, 19 de agosto de 2021.
MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES – RELATOR
RELATÓRIO
O SENHOR MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES: Senhor Presidente, trata-se de Recurso Especial interposto pelo Ministério Público Eleitoral contra acórdão do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo (TRE/SP) que reformou a sentença para deferir o registro de candidatura de Maria Helena Pereira Fontes ao cargo de Vereador de São Paulo/SP, nas eleições de 2020 (ID 97564588).
No Recurso Especial, amparado na violação ao art. 1º, I, l, da Lei Complementar 64/1990, o Recorrente sustenta, em síntese, a existência de dano ao erário no esquema de "rachadinhas", havendo claro prejuízo financeiro ao erário e violação de princípios constitucionais, o que atrai a restrição à capacidade eleitoral passiva da candidata (ID 97564888).
O Vice-Procurador-Geral Eleitoral opina pelo provimento do Recurso Especial (ID 10719838).
VOTO
O SENHOR MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES (relator): Senhor Presidente, a conduta da recorrida vem assim descrita no acórdão regional:
"agindo na qualidade de vereadora da Câmara Municipal de São Paulo 'obrigou funcionários comissionados a lhe entregar parte da remuneração que recebiam, sob pena de exoneração. Com isso, ela arrecadou R$ 146,3 mil em vantagem patrimonial indevida. OU SEJA, MAIS UM CASO DE RACHADINHA’.”
Nesse cenário, assentou aquela Corte que "não há notícia de que tenha havido lesão ao erário, na medida em que não há informação de que os pagamentos dos assessores não corresponderam à contraprestação do serviço. Com efeito, depreende-se da análise do conjunto probatório carreado aos autos que os danos não recaíram sobre o Erário, mas incidiram apenas sobre o patrimônio privado dos servidores" (ID 97564588).
Assim, concluiu por deferir o registro de candidatura de Maria Helena Pereira Fontes ao cargo de Vereadora de São Paulo/SP, nas eleições de 2020, por entender inaplicável a inelegibilidade prevista no art. 1º, I, l, da LC 64/1990, diante da falta do requisito da lesão ao erário.
Entendo não ter agido o Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo com o costumeiro acerto.
A Lei da Ficha Limpa, em momento algum, exige para a incidência do art. 1º, I, l, da LC 64/1990 que o agente público tenha sido condenado por improbidade administrativa, simultaneamente, pelos artigos 9º e 10 da Lei 8.429/1992.
A lei impõe que a conduta ímproba traga, simultaneamente, prejuízo ao erário e enriquecimento ilícito do próprio agente ou de terceiros, como exigido por esta Corte Eleitoral, sendo regular e lícito ao TSE verificar na fundamentação da decisão condenatória a existência de ambos os requisitos (AgR-AI nº 411-02/MG, Rel. Min. EDSON FACCHIN, DJe de 7.2.2020; Rel. Min. Og Fernandes, PSESS de 27.11.2018).
Há, portanto, a necessidade da Justiça Eleitoral verificar se, efetivamente, a conduta ilícita acarretou enriquecimento ilícito do agente e efetivo dano ao erário público; como patente na presente hipótese.
A Recorrida foi condenada como incursa no art. 9º da Lei 8.492/1992 pela conduta conhecida como "rachadinha", consistente em exigir para si parte dos salários dos assessores que atuavam dentro do seu gabinete. Trata-se de conduta que, além de malferir a probidade, causou evidente enriquecimento ilícito, pois utilizados recursos públicos em proveito da Recorrida.
O esquema de “rachadinha” é uma clara e ostensiva modalidade de corrupção, que, por sua vez é a negativa do Estado Constitucional, que tem por missão a manutenção da retidão e da honestidade na conduta dos negócios públicos, pois não só desvia os recursos necessários para a efetiva e eficiente prestação dos serviços públicos, mas também corrói os pilares do Estado de Direito e contamina a necessária legitimidade dos detentores de cargos públicos, vital para a preservação da Democracia representativa, pois como afirmado por MARCO TÚLIO CÍCERO (Manual do candidato às eleições):
"fazem muito mal à República os políticos corruptos, pois não apenas se impregnam de vícios eles mesmos, mas os infundem na sociedade, e não apenas a prejudicam por se corromperem, mas também porque a corrompem, e são mais nocivos pelo exemplo do que pelo crime (As leis, III, XIV, 32)”.
Tanto o caráter doloso da conduta da recorrida, como afirmado na condenação por improbidade administrativa, quanto seu enriquecimento estão amplamente demonstrados.
Da mesma maneira, a conduta dolosa da Recorrida acarretou grave prejuízo ao erário público, emergente justamente do desvio de finalidade no emprego de verba pública de utilização não compulsória para subsequente apropriação de parte dos valores correlatos em desrespeito à legislação municipal.
A Lei Municipal nº 13.637/2003 prevê que os vereadores da capital paulista têm verba específica para ser gasta com a contratação de assessores comissionados, havendo limites máximos de valores e quantidade de funcionários; sem contudo, existir limites mínimos ou mesmo a obrigatoriedade do gasto total ou parcial da referida verba.
Diz-se a Lei Municipal que “cada Gabinete contará com 01 (um) Chefe de Gabinete e até 17 (dezessete) Assistentes Parlamentares.” (art. 6º, § 1º) e que a gratificação de assessoria “... será atribuída aos servidores titulares dos cargos de provimento em comissão lotados em Gabinete de Vereador, de Membro da Mesa e das Lideranças, em valores fixos a serem definidos a critério do respectivo Vereador, Membro da Mesa ou Líder.” (art. 17 e respectivo § 1º, com a redação dada pela Lei Municipal nº 16.616/2017):
§ 1º O limite máximo por Gabinete a ser despendido com o pagamento da Gratificação será: I - nos Gabinetes de Vereadores: a diferença entre a soma dos vencimentos básicos percebidos pelos Assistentes Parlamentares e o limite de custos com estes servidores, por Gabinete de Vereador, correspondente a R$ 71.564,92 (setenta e um mil, quinhentos e sessenta e quatro reais e noventa e dois centavos), reajustado nos mesmos índices previstos para os reajustes salariais dos servidores da Câmara Municipal;” (art. 17 e respectivo § 1º, com a redação dada pela Lei Municipal nº 16.616/17).
Em outras palavras, não há número mínimo de assessores, nem tampouco remuneração específica para cada um deles, pois a legislação regente da matéria somente estabelece o número máximo de assessores (17) e a discricionariedade do vereador fixar suas respectivas remunerações. Dessa maneira, dentro do montante total da verba, cada gabinete poderá se organizar como melhor lhe aprouver, estipulando o número de assessores e seus respectivos vencimentos, sem a obrigatoriedade de comprometer toda verba estipulada.
Observados tais limites o próprio gabinete estabelece suas necessidades, não estando obrigado a utilizar todo o valor posto à disposição, tampouco contratar o máximo de funcionários autorizados.
Lamentavelmente, em algumas oportunidades, essa discricionariedade concedida ao vereador dá margem à realização da prática vulgarmente conhecida como “rachadinha”, que consiste no superfaturamento de valor remuneratório individual de cada assessor para posterior apropriação ilícita do agente público de hierarquia e comando na contratação, ou a contratação de funcionário sem efetiva necessidade relacionada à prestação do serviço, funcionando exclusivamente como “entreposto” à utilização da verba pública de forma desvirtuada, pois não voltada a remunerar contraprestação qualquer.
Em outras palavras, a verba pública posta à disposição do vereador serve – ou deveria servir – exclusivamente para, a seu crivo e obviamente tendo em conta os mais rigorosos princípios que devem nortear o manuseio de verbas dessa natureza, cercar-se da assessoria necessária ao bom desempenho do seu mandato.
O vereador tem a discricionariedade para decidir se a verba integral é necessária para custear os serviços de assessoria ou se, somente com parte da verba, já conseguiria realizar os serviços necessários. Dessa maneira, se, artificiosamente, encontra espaço para locupletar-se com parte desta verba, havendo-a para si por meio de conluio ilícito com o servidor comissionado, iniludivelmente tal despesa não era necessária aos fins previstos na legislação que a instituiu, e deveria ser economizada.
Como enfatizam Sérgio Ferraz e Lúcia Valle Figueiredo “quem quer que utilize dinheiros públicos terá de verificar seu bom e regular emprego, na conformidade das leis, regulamentos e normas emanadas das autoridades administrativas competentes, ou seja: quem gastar, tem de gastar de acordo com a Lei. Isso quer dizer: quem gastar em desacordo com a Lei, há de fazê-lo por sua conta, risco e perigos. Pois impugnada a despesa, a quantia irregularmente gasta terá que retornar ao erário público” (“Dispensa e Inexigibilidade de Licitação”. São Paulo: Ed. Malheiros, 1994, p. 93).
Se não houvesse a “rachadinha”, haveria uma "sobra” da verba de gabinete, cujo dispêndio não era obrigatório e somente ocorreu para viabilizar o locupletamento ilícito, tanto assim que a candidata foi condenada ao perdimento da quantia de R$ 146.311,67 (cento e quarenta e seis mil, trezentos e onze reais e sessenta e sete centavos). Trata-se de penalidade de natureza de ressarcimento, cujo objetivo é de restaurar a situação anterior em que se encontrava a Administração Pública. Desse modo, indubitável a caracterização do dano ao erário.
Situação similar foi apreciada pelo Ministro EDSON FACHIN, nas Eleições 2020, no qual igualmente reconhecido o dano ao erário:
No caso, o Tribunal a quo, ao analisar os autos, hauriu do teor do decisum condenatório da Justiça Comum elementos que viabilizaram a conclusão de que o ato ímprobo – consubstanciado na coação de servidores públicos comissionados a promoverem contribuição em favor do PMDB, partido presidido por José Amauri dos Santos, primo do então gestor municipal – importou em enriquecimento ilícito e lesão ao Erário.
Observa-se que a Corte de origem inferiu que o dano ao Erário decorreu do repasse de dinheiro público a outrem de forma indevida e o enriquecimento ilícito próprio da autoridade nomeante ou de outra por ela indicado (ID 52150688, p. 4).
Extrai-se de trecho transcrito do julgado condenatório que os autos revelam que os descontos de contribuição partidária - prática que o Ministério Público alcunhou de Dízimo Partidário - foi uma regra presente ao longo de todo o mandato do apelado Jean Carlos (ex-prefeito), que agiu mancomunado com seu irmão Luiz Marcos (ex-secretário municipal) para implementar forçadamente os descontos nas folhas de pagamentos dos servidores comissionados, promovendo a transferência dos valores descontados para as contas do diretório do PMDB local, à época presidido pelo Sr. José Amauri dos Santos, primo do ex-prefeito Jean Carlos, e principal beneficiário dos valores angariados pelo esquema (ID 52150688, p. 3), afigurando-se concebível o reconhecimento do enriquecimento ilícito e da lesão ao Erário com base nessas premissas (REspe 0600197-54, Rel. Min. EDSON FACHIN, PSESS de 16.11.2020).
Nessa direção a manifestação do eminente Vice-Procurador-Geral Eleitoral:
“O dano ao erário resta evidenciado pelo repasse de dinheiro público à então vereadora, ora recorrida, de forma indevida.
Isso porque há um desvirtuamento dos recursos utilizados pelo erário para pagamento de pessoal, que, como bem descrito nas palavras do recorrente, configura ‘prática grave, rechaçada pelo ordenamento e pelos conceitos mais básicos de moralidade, que deve ser coibida pro todos os órgãos jurisdicionais.’ (ID 9756838 – p. 9).
(...)
Isso porque os recursos públicos, que deveriam remunerar o servidor, foram incorporados ao patrimônio do agente ímprobo, podendo-se afirmar que as próprias contratações decorreram não da necessidade ou da capacidade dos servidores e visando a prestação do serviço público à sociedade, mas sim da vantagem que proporcionariam ao agente político que os nomeou.
(...)
Logo, não há como afastar a constatação de ocorrência de dano ao erário, pois ele é ínsito dos crimes contra a administração pública. Pode-se argumentar, ainda, que se os servidores aceitaram dividir seus vencimentos com o vereador, o Poder Público poderia tê-los contratado por valor inferior.” (ID 107198938, p. 5/6).
Assim, o enriquecimento ilícito está caracterizado pelo desvio de R$ 146.311,67 dos cofres públicos para o patrimônio da requerida; enquanto o dano ao erário público consubstanciou-se na inexistência de contraprestação de serviços relacionada a esses valores; pois houve claro pagamento indevido à custa do erário, sendo que a retribuição pelo serviço prestado foi irregularmente superior à efetivamente pactuada.
Ante o exposto, DOU PROVIMENTO ao Recurso Especial para indeferir o registro de candidatura de Maria Helena Pereira Fontes ao cargo de Vereadora de São Paulo/SP nas eleições de 2020.
PEDIDO DE VISTA
O SENHOR MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO: Presidente, primeira vez que me manifesto. Eu reitero aqui aos colegas o cordial bom dia aos integrantes desse Colegiado. Eu estendo esse cumprimento ao representante do Ministério Público, Doutor Renato Brill. Também aos servidores, ao Doutor João Paulo e a todos que proporcionam o nosso trabalho e àqueles que nos acompanham pela internet e pela TV.
Presidente, o caso é realmente muito interessante. Eu cumprimento o Doutor Renato pela sua sustentação. O voto sempre muito cuidadoso. O Ministro Alexandre é um grande julgador, demonstra conhecimento, tanto do aspecto prático quanto ao conteúdo jurídico, mas Sua Excelência já sinaliza que esse, talvez, não seja um caso bom para formação de precedentes justamente porque ele próprio salienta as especificidades do caso relacionado à Câmara Municipal de São Paulo.
Além do mais, me preocupa aqui – e é esse o motivo pelo qual eu já adianto, com a vênia dos eminentes ministros, que vou pedir vista –, além do que, há aqui assentado, salvo engano da minha parte, na ação de improbidade, que houve efetivamente o trabalho – trabalho por parte dos servidores –, o que, em tese, afasta também – teoricamente, claro, tem que analisar as especificidades de cada caso –, mas afastaria o dano ao erário.
De qualquer modo, nesse tema específico, eu já vinha de prolatar uma decisão monocrática em sentido um tanto diferente daquele que agora externa o eminente relator, de modo que para fazer o cotejo, para poder trazer uma posição com substância para ser examinada pelo Colegiado, eu vou pedir licença, Presidente, para formular o pedido de vista.
ESCLARECIMENTO
O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO (presidente): O Ministro Luis Felipe Salomão pede vista. Indago dos demais ministros se aguardam a devolução da vista.
O SENHOR MINISTRO EDSON FACHIN: Presidente.
O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO (presidente): Ministro Edson Fachin pede a palavra.
Pois não.
VOTO
O SENHOR MINISTRO EDSON FACHIN: Muito obrigado, Presidente. Cumprimento, mais uma vez, Vossa Excelência. Cumprimento o eminente Ministro Relator, Ministro [inaudível] de vista e se propõe, o que trará luzes maiores para esse Colegiado, a um cotejo como decisões e compreensões de Sua Excelência. Cumprimento também o Doutor Renato Brill de Góes pela sustentação oral.
Senhor Presidente, eu ordinariamente aguardo o retorno da vista, não apenas por deferência e cordialidade, mas também porque esse é um julgamento colegiado, como todos os demais, que inicia e, ainda que não haja intensos debates, a escuta e depois da fala correspondem a um procedimento dialógico de construção de decisões. Por isso, não raro, sempre aguardo o exame desta matéria.
Nada obstante, nesse caso, eu, antes de tomar conhecimento da posição do Ministro Alexandre de Moraes, houvera feito um estudo precisamente sobre o ponto que chamou atenção do Ministro Luis Felipe Salomão – a configuração do dano ao erário – e me atreveria até a dizer, quiçá como contribuição ao ministro vistor, eu gostaria de, desde logo, Senhor Presidente – e apresentar a Vossas Excelências a declaração de voto que eu já houvera preparado –, adiantar meu voto, como disse, sem embargo, que o julgamento é um processo em construção, no sentido de que eu estou acompanhando integralmente o eminente Ministro Relator, Alexandre de Moraes, por dano ao erário.
No meu modo de ver, corporifica-se aí pelo conluio nos [inaudível] de uso de recursos públicos desde a origem da ordem de pagamento de pessoal, que é uma conduta que configura prática grave. Ou seja, examinei esta matéria, chegando precisamente às mesmas conclusões às quais chegou o eminente Ministro Alexandre de Moraes, a quem saúdo, que, dialeticamente, enfrentou todos os argumentos e argumentos contrapostos, portanto trabalhou a tese e a respectiva antítese, inclusive os limites do enunciado da Súmula 41 para evidenciar e estão presentes os requisitos caracterizadores da inelegibilidade e, por isso, Sua Excelência deu provimento ao recurso especial do Ministério Público para indeferir o registro de candidatura de Maria Helena Pereira Fontes.
Portanto, pedindo licença, Senhor Presidente, a Vossa Excelência e aos demais eminentes ministros que me precedem na votação pela ordem – quando é Relator o eminente Ministro Alexandre de Moraes –, pedindo também licença ao Ministro Vistor, eminente Ministro Luis Felipe Salomão, eu forneço humildemente os subsídios do exame que fiz e registro, desde logo, que estou acompanhando integralmente o Ministro Alexandre de Moraes, parabenizando-o, como fez também o eminente ministro, agora vistor, parabenizando-o pelo exame que fez, pelo estudo aprofundado que fez e pelo desate desta matéria, que é relevante para este caso: esse julgamento é urbi et orbi sobre o tema das rachadinhas.
Portanto, pedindo essa licença, Senhor Presidente e eminentes colegas, eu me permito, portanto, adiantar desde logo, estou acompanhando integralmente o eminente Ministro Relator, sem embargos de reexaminar ao retorno da pauta a julgamento.
Muito obrigado, Presidente.
DECLARAÇÃO DE VOTO
O SENHOR MINISTRO EDSON FACHIN: Senhor Presidente, trata-se de recurso especial interposto pelo Ministério Público Eleitoral em face de acórdão proferido pelo Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo que – reformou a sentença, afastando, consectariamente, a incidência da inelegibilidade contida no art. 1º, I, alínea l, da Lei Complementar nº 64/90 –, deferiu o pedido de registro de candidatura de Maria Helena Pereira Fontes ao cargo de vereador, no Município de São Paulo/SP, nas Eleições 2020.
O Regional paulistano assentou que a inelegibilidade contida no art. 1º, I, alínea l, da Lei Complementar nº 64/90 requer, concomitantemente, enriquecimento ilícito e prejuízo ao erário. Concluiu que o ato de improbidade imputado à candidata não importou prejuízo ao erário, afastando a incidência da inelegibilidade para deferir a candidatura. Citou precedente deste Tribunal para amparar o consignado. Eis a síntese do que decidido:
RECURSO ELEITORAL. REGISTRO DE CANDIDATURA. VEREADORA. ELEIÇÕES DE 2020. INDEFERIMENTO NA ORIGEM. A INELEGIBILIDADE PREVISTA PELO ART. 1º, I, “L”, DA LC Nº 64/90 EXIGE QUE O ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA SEJA DOLOSO E IMPORTE, CUMULATIVAMENTE, LESÃO AO PATRIMÔNIO PÚBLICO E ENRIQUECIMENTO ILÍCITO. HIPÓTESE EM QUE NÃO FICOU CONSTATADA LESÃO AO ERÁRIO. RECURSO PROVIDO PARA DEFERIR O PEDIDO DE REGISTRO DE CANDIDATURA.
Em face da decisão, o Ministério Público Eleitoral apresenta recurso especial asseverando violado o art. 1º, I, alínea l, da Lei Complementar nº 64/90.
Sustenta equivocado o pronunciamento do Regional, haja vista que deixou de reconhecer a inelegibilidade por considerar que o denominado ‘esquema das rachadinhas’ não é causador de dano ao erário e que, portanto, não teriam sido preenchidos cumulativamente os requisitos da inelegibilidade da alínea ‘l’.
Afirma que há no esquema das rachadinhas toda uma gama de danos ao erário: danos financeiros, danos consistentes na contratação de pessoal com menor qualificação técnica e danos decorrentes das deficiências éticas e morais de todos os envolvidos no ilícito.
Aduz configurados os requisitos específicos para incidência da inelegibilidade em comento. Requer o provimento do recurso para o indeferimento da candidatura de Maria Helena Pereira Fontes.
É o relatório necessário.
O recurso especial merece provimento.
De saída, averbo que a moldura fática contida no acórdão regional, tal como está, é suficiente para, segundo minha compreensão do tema, indeferir o requerimento de registro de candidatura.
Isso porque guardo a compreensão de que para a incidência da inelegibilidade prevista no art. 1º, I, l, da LC 64/90, é necessário que a condenação à suspensão dos direitos políticos pela prática de ato doloso de improbidade administrativa implique lesão ao patrimônio público ou enriquecimento ilícito.
Nessa quadra, peço licença para aqui reproduzir as razões do meu entendimento que foram expostas quando do julgamento do REspe 0600181-98/AL:
“Posto o que precede, cumpre registrar, à saída, que a jurisprudência deste Tribunal Superior, conquanto exija, para a incidência da inelegibilidade inscrita na alínea l do art. 1º, inciso I da LC nº 64/90, a presença concomitante de lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito, não assenta como suposto necessário a existência de condenação específica por ambas as transgressões.
Nesse diapasão, os precedentes iterativos caminham na direção de que à Justiça Eleitoral é dado reconhecer a existência de enriquecimento ilícito que não conste do decreto condenatório (ED-RO nº 060068793/SE, Rel. Min. Og Fernandes, publicado em sessão em 18.12.2018), designadamente porque os elementos em questão devem ser examinados tendo por referência os fundamentos adotados nas decisões da Justiça Comum (AgR-REspe nº 060271397/MG, Rel. Min. Admar Gonzaga, publicado em sessão em 4.12.2018).
Em síntese, dessume-se do repertório de julgados desta Corte Superior a adoção de uma linha clara, a reconhecer que a análise da configuração in concreto da prática enriquecimento ilícito pode ser realizada pela Justiça Eleitoral a partir do exame da fundamentação do decisum condenatório, ainda que tal reconhecimento não tenha constado expressamente do dispositivo daquele pronunciamento judicial (REspe nº 23.184/GO, Rel. Min. Luiz Fux, DJe de 12.3.2018).
(...)
Feitas essas considerações iniciais, a par de reconhecer que, em face da jurisprudência vigente, o presente feito, da forma como recebido, não comportaria solução diversa daquela proposta pelo eminente relator, rogo vênia para proferir um voto divergente, no sentido de acolher a proposta de viragem agitada pelo Ministério Público Eleitoral, partindo da premissa de que, à luz do que dita o art. 14, § 9º da Constituição Federal, a preservação da moralidade dos postulantes a cargos representativos cobra um enfoque prioritário na aferição judicial das hipóteses de inelegibilidade.
Assim como pontua a doutrina, as causas de inelegibilidade reconhecem como um de seus fundamentos éticos a preservação do regime democrático mediante o prestígio da moralidade dos agentes públicos (AGRA, Walber de Moura. Taxionomia das inelegibilidades. Estudos Eleitorais, v. 6., n. 2, maio/ago 2011, p. 45).
A restrição de direitos políticos, nesse contexto, é de todo justificada, pois, como ensina o eminente Min. Alexandre de Moraes, a finalidade do combate constitucional à improbidade administrativa é evitar que os agentes públicos atuem em detrimento dos interesses do Estado (MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 33. ed. São Paulo: Atlas, 2017, p. 278). Sob esse prisma, é dado perceber que combater o fenômeno da corrupção administrativa e eleitoral, antes de representar um mero anseio popular, é um imperativo constitucional, legal e internacional, havendo, inclusive, corrente doutrinária que defende o surgimento de um novo direito fundamental anticorrupção (PINHEIRO, Igor Pereira. Condutas vedadas aos agentes públicos em ano eleitoral. 3. ed. Leme: JH Mizuno, 2020, p. 28-29).
Dentro desse panorama, defende-se que sob o cenário constitucional em que estamos inseridos, não há mais espaço para raciocínio que não encontre na moralidade para o exercício do mandato eletivo uma contenção ao conteúdo normativo do direito de elegibilidade, haja vista que o art. 14, § 9º da Constituição da República veicula um comando definidor de um direito fundamental, qual seja o direito fundamental à moralidade das candidaturas que confere ao seu titular, vale dizer, ao povo, [...] uma posição ativa frente ao Estado, no sentido de impedir a participação no processo eleitoral de pessoas que não satisfaçam requisitos moralidade para o exercício do mandato (DIAS JÚNIOR, José Armando Pontes. Anverso e reverso das relações desencontradas entre elegibilidade e moralidade. In: FUX, Luiz; PEREIRA, Luiz Fernando Casagrande; AGRA, Walber de Moura. Tratado de Direito Eleitoral. Vol. 3. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 18 e 25).
Por esse raciocínio, segue-se que a manutenção do quadro de candidatos dentro do perfil objetivo tracejado pelas normas que veiculam restrições ao exercício dos direitos políticos demanda, efetivamente, o afastamento de concorrentes que hajam experimentado, em sua vida pregressa, condenações por atos de improbidade administrativa nos termos indicados pelo art. 1º, I, alínea l da LC 64/90. Assim sendo, cabe referir que:
[...] interpretar não é observar com olhar externo o texto da norma, e sim dar concretude a ela. A hermenêutica jurídica não é uma especulação isolada. Ela sempre está orientada para os fins da aplicação do direito. Se houvesse no plano geral uma hermenêutica desinteressada, o que não existe, ainda assim a interpretação jurídica seria diferente dela, porque reclama a si outro estatuto. A hermenêutica jurídica se faz em vista da aplicação, isto é, de questões concretas que são levantadas [...].
É também preciso ressaltar que a interpretação jurídica não é uma hermenêutica apenas da norma jurídica. A norma se insere num contexto amplo, total, e somente nessa totalidade situacional é possível desvendar os impulsos hermenêuticos e sua conformação. As normas surgem a partir de um emaranhado de outras normas, e elas se referem diretamente a fatos, circunstâncias, casos concretos que, em muitas vezes, não são exatamente conformes às previsões e estipulações legais, nem iguais às jurisprudências já consolidadas. [...]
[Dentro desse espectro, toca ao intérprete] [...] fechar hipóteses, tornar líquido o que é vago, restringir o que é amplo. (MASCARO, Alysson Leandro. Introdução ao estudo do Direito. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2019, p. 171.172)
O cerne da discussão, portanto, diz com o acerto – ou desacerto – da diretriz jurisprudencial sedimentada, que, primando pela literalidade da regra examinada, nega a concessão de uma hermenêutica teleológica, com forte na compreensão de que os óbices impostos ao exercício de direitos fundamentais não podem ser interpretados de maneira ampliativa.
Nessa esteira, compreendo que tal percepção, conquanto compreensível em termos dogmáticos, falha ao desconsiderar, na hipótese, a equivalente fundamentalidade de outros direitos e valores que assomam em antagonismo.
Sob esse ângulo, é indene de dúvidas que o correto equacionamento da discussão particular vindica que o direito à candidatura seja apreciado em perspectiva, tendo como referência inafastável um comando constitucional que se supõe efetivo, e que aponta na direção de que a defesa da probidade administrativa é de se realizar, também, no exame de condições prévias à postulação de mandatos representativos.
Não surpreende que avultem, por essa senda, numerosas opiniões doutrinárias em sentido inverso ao da jurisprudência vigente, bem ainda que sejam encontradas, em julgados deste Tribunal Superior, importantes ressalvas de entendimento.
Reproduzo, nesse diapasão e a título ilustrativo, considerações expostas, respectivamente, pelos eminentes Ministros Herman Benjamin e Rosa Weber, oportunamente rememoradas pela Procuradoria-Geral Eleitoral:
[...] o art. 1º, I, l da LC 64/90 deve ser objeto de interpretação teleológica e sistemática, levando-se em conta os valores ético-jurídicos que fundamentam o dispositivo, e de modo algum pode ser dissociado dos arts. 14, § 9º, e 37, caput e § 4º, da CF/88 (Min. Herman Benjamin, voto proferido no REspe nº 4.932, Rel. Min. Luciana Lóssio, publicado em sessão em 18.10.16).
[...] deferir candidatura de quem causa dano ao erário, mas não enriquece a si ou terceiros, ou, ao contrário, enriquece ilicitamente, porém não causa dano ao erário, é incompatível com princípios e valores constitucionais, desvirtuando o contaminando o próprio processo democrático (REspe nº 19.576, Rel. Min. Rosa Weber, DJe de 6.9.2017).
Em adição, importa considerar que a defesa da previsão de lesão ao patrimônio público e enriquecimento ao erário como elementos disjuntivos na quadra da alínea l grassa, por força de leituras finalísticas, sistemáticas e mesmo gramaticais, posição amplamente majoritária no seio da doutrina, embalada pelo reconhecimento de que a interpretação estrita debilita o alcance de uma regra destinada a afastar do jogo político atores que, em sua vida pregressa, tenham atuado de forma antirrepublicana no trato da coisa pública. Confiram-se, a propósito, as seguintes lições:
Aqueles que militam no foro sabem que nem sempre a condenação de agentes públicos em decorrência de prática de atos que causem prejuízo ao erário (art. 10) leva, ao mesmo tempo, ao reconhecimento do enriquecimento ilícito (art. 9º), podendo haver um sem o outro.
Tal circunstância chamou a atenção da comunidade jurídica, pois a interpretação literal de referido dispositivo reduz sensivelmente sua abrangência. Por certo, a interpretação teleológica seria a mais adequada – bastando a existência de dolo e a condenação por ato de improbidade administrativa em razão da lesão ao erário ou em decorrência de enriquecimento ilícito (JORGE, Flávio Cheim; LIBERATO, Ludgero; RODRIGUES, Marcelo Abelha. Curso de Direito Eleitoral. 3. ed. Salvador: JusPodivm, 2020, p. 161).
A conjuntiva e no texto da alínea l, I, do artigo 1º, da LC nº 64/90 deve ser entendida como disjuntiva, isto é, ou. Assim o exige uma interpretação sistemática comprometida com os valores presentes no sistema jurídico, notadamente a moralidade-probidade administrativa (CF, arts. 14, § 9º, e 37, caput e § 4º). E também porque, do ponto de vista lógico, é possível cogitar de lesão ao patrimônio público por ato doloso do agente sem que haja enriquecimento ilícito. Cuida-se, então, de falsa conjuntiva (GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2020, p. 320).
Embora o legislador tenha estabelecido a necessidade de lesão ao patrimônio público “e” enriquecimento ilícito, a melhor interpretação é a que permite o reconhecimento de inelegibilidade quando houver condenação por enriquecimento ilícito ou prejuízo ao erário. Dito de outro modo, basta a condenação em qualquer uma das hipóteses para a incidência da norma, não sendo necessária a condenação em ambos os artigos (arts. 9º e 10). Com efeito, tendo por base a diretriz constitucional da defesa da probidade administrativa e da moralidade para o exercício do mandato (art. 14, § 9º, da CF), entende-se suficiente para a configuração da causa de inelegibilidade quando houver condenação tanto por prejuízo doloso ao erário como por enriquecimento ilícito, ainda que de modo autônomo (ou seja, de forma não cumulativa). Revela-se incompatível com o desiderato da norma manter-se incólume a restrição ao direito de elegibilidade no caso de haver um reconhecimento judicial – por órgão colegiado ou por decisão definitiva – do cometimento de ato doloso de improbidade administrativa que importe prejuízo ao erário ou enriquecimento ilícito, inclusive com a determinação de suspensão dos direitos políticos do condenado (ZILIO, Rodrigo López. Direito Eleitoral. 7. ed. Salvador: JusPodivm, 2020, p. 312).
Não é necessário que concorram, a um só tempo e no mesmo caso concreto, a lesão e o enriquecimento, porque a conjunção “e”, posta no texto após a previsão da inelegibilidade decorrente da condenação por lesão ao erário, pretendeu apenas adicionar mais uma hipótese de prática ímproba que também atrai a inelegibilidade. Assim, incidirá no impedimento eleitoral aquele que for condenado por causar lesão ao patrimônio público, como também aquele que o for quando do enriquecimento ilícito (CASTRO, Edson de Resende. Curso de Direito Eleitoral. 9. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2018, p. 251).
O arranjo das inelegibilidades assenta-se em especial medida sobre a ética da preservação da moralidade para o exercício do mandato. Nesse guiar, o que não cabe na teleologia da norma é a ideia simplificadora de que a alínea l se resolve a partir do método de interpretação mais singelo e equívoco: o da literalidade da norma, literalidade, esta, muito questionada, haja vista que a partícula e, no cerne da celeuma, pode muito bem operar como elemento de conjunção aditiva: são espécies de improbidade que suprimem a capacidade passiva aquelas que ocasionam dano ao erário e (também) aquelas que produzem enriquecimento ilícito.
Escusado, contudo, insistir na gramática, pois não é nesse nível que o problema se resolve. Sabe-se que nessa área dois métodos hermenêuticos ganham relevo: pela técnica teleológica, é cristalina a pretensão legislativa no sentido de afastar da candidatura tanto o político que lesa o patrimônio público como aquele que transforma a máquina do Estado em usina de prosperidade para apaniguados em conchavo; pelo meios sistemático, a unidade lógica do microssistema restritivo impõe que se excluam do jogo eleitoral administradores condenados por atos nocivos. Há, no quadro das inelegibilidades, inúmeras restrições menos graves, sob o aspecto do dano social. Resguardar desvios de grande magnitude em um contexto que censura males menores, como, p. ex., condenações por furto ou uma simples demissão por abandono do cargo (alínea o) é forçar o sistema à incoerência. A hermenêutica literal dificulta a aplicação da norma e, como visto, subverte o seu real sentido (ALVIM, Frederico Franco. Curso de Direito Eleitoral. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2016, p. 167).
Parte da doutrina, à qual me filio, entende que os dois últimos requisitos – prejuízo ao erário e enriquecimento ilícito – não são cumulativos. Ao contrário, a inelegibilidade se verifica quando presente um ou outro. Assim, são duas as hipóteses de incidência do impedimento, cada uma com três requisitos: a) suspensão de direitos políticos + ato doloso de improbidade + prejuízo ao erário; b) suspensão de direitos políticos + ato doloso de improbidade + enriquecimento ilícito (PINHEIRO, Igor Pereira.
Em face do que se observa, concluo que a tese ventilada nas razões recursais encontra sólido respaldo na hermenêutica constitucional e, assim sendo, recomenda a superação do entendimento aplicado nos pleitos passados.
Com essas considerações, pedindo vênia ao eminente relator, voto pelo provimento do recurso especial interposto pelo Ministério Público Eleitoral, para reformar o acórdão regional em função da incidência da hipótese de inelegibilidade inscrita na alínea l do art. 1º, I, da LC nº 64/90.”
Ainda que assim não fosse, observa-se, a partir das circunstâncias fáticas delineadas no acórdão que, no caso concreto, afere-se, inequivocadamente, o dano ao erário.
Observe-se o que assentado no acórdão:
In casu, a recorrente foi condenada por ato de improbidade administrativa nos autos da Ação Civil Pública nº 0009260-40.2003.8.26.0053, dentre outras penalidades, à sanção de suspensão de direitos políticos por 8 anos, em decisão transitada em julgado no dia 21/01/2011 (ID nº 27155651).
Não consta dos autos cópia da sentença e do acórdão condenatórios, porém, da certidão de objeto e pé depreende-se que (ID nº 27155651): “Certifica ainda que a r. sentença de fls. 3962/3976 julgou procedente a ação para reconhecer os atos de improbidade praticados pela requerida Maria Helena Pereira Fontes, condenando-a, nos termos do art. 18 da Lei nº 8.429/92, ao perdimento, em favor do Município de São Paulo, no valor de R$ 146.311,67, devidamente atualizado, a partir de Janeiro de 1997 até o efetivo pagamento, incidentes juros de mora, à taxa de 6% ao ano, desde os fatos (artigo 398 do C.C.), até 09/09/2003 e, a partir daí, à taxa prevista no artigo 406 do Código Civil; suspendendo os direitos políticos da requerida, por oito anos (artigo 12, I, da Lei nº 8.429/92), condenando-a ao pagamento de multa civil em quantia equivalente ao dobro do montante mencionado, já atualizado, mas sem a incidência de juros de mora, estando ainda, impedida de contratar com o poder público ou de receber benefícios fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, pelo prazo de 10 anos e, por fim, arcando com os ônus da sucumbência. Certifica mais que na 3ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça, o v. Acórdão de fls. 4131/4135 negou provimento ao recurso interposto pela requerida, mantendo a r. sentença 'a quo', com trânsito em julgado em 27/01/11, conforme certidão de fls. 4138. Certifica finalmente que os autos se encontram em Cartório, em fase de execução”.
Nesse sentido, as penalidades aplicadas à recorrente correspondem à violação ao artigo 9º da Lei nº 8.429/92, ou seja, atos de improbidade que ensejam enriquecimento ilícito. Logo, a conduta ímproba não foi enquadrada no artigo 10 da aludida norma, que trata das hipóteses de improbidade administrativa que causam prejuízo ao erário.
Segundo consta do parecer da d. Procuradoria Regional Eleitoral (ID nº 32902901) que, a ora recorrente, agindo na qualidade de vereadora da Câmara Municipal de São Paulo “obrigou funcionários comissionados a lhe entregar parte da remuneração que recebiam, sob pena de exoneração. Com isso, ela arrecadou R$ 146,3 mil em vantagem patrimonial indevida. OU SEJA, MAIS UM CASO DE RACHADINHA”.
Todavia, não há notícia de que tenha havido lesão ao erário, na medida em que não há informação de que os pagamentos dos assessores não corresponderam à contraprestação do serviço. Com efeito, depreende-se da análise do conjunto probatório carreado aos autos que os danos não recaíram sobre o Erário, mas incidiram apenas sobre o patrimônio privado dos servidores.
Como se sabe, não compete à Justiça Eleitoral proceder ao reexame do mérito da decisão proferida pela Justiça Comum, nos termos da súmula nº 41 do TSE, verbis:
“Não cabe à Justiça Eleitoral decidir sobre o acerto ou desacerto das decisões proferidas por outros órgãos do Judiciário ou dos tribunais de contas que configurem causa de inelegibilidade”.
Nesses moldes, se o ato de improbidade administrativa não importou, concomitantemente, enriquecimento ilícito e prejuízo ao erário, a causa de inelegibilidade atribuída ao candidato não merece prevalecer.
Depreende-se que a candidata ao cargo de vereador foi condenada pela prática de ato de improbidade administrativa consubstanciado na coação de servidores públicos comissionados para que lhe repassassem parte de seus salários. Tal conduta revela desvio de finalidade na contratação para consubstanciar burla na relação financeira mantida entre o Estado e o servidor comissionado, uma vez que as verbas salariais dotadas de destinação legal específica foram retiradas dos cofres públicos para benefício da ora recorrida.
Nessa quadra, o dano ao erário corporifica-se pelo conluio no desvirtuamento do uso de recursos públicos, desde a origem da ordem de pagamento de pessoal, conduta que, como assinalado pelo recorrente configura prática grave, rechaçada pelo ordenamento e pelos conceitos mais básicos de moralidade, que deve ser coibida por todos os órgãos jurisdicionais.”.
Infere-se, ainda, que as contratações não decorreram, necessariamente, da necessidade ou da capacidade dos servidores, objetivavam, na verdade, proporcionar vantagem indevida ao agente político que os nomeou.
A nomeação desses servidores foi concretizada com inobservância do dever de probidade – haja vista não ter recaído nas pessoas mais qualificadas, mas sim, sobre aquelas que aderiram ao conluio para o desvio de verbas públicas por meio da divisão de seus vencimentos com a ora recorrida – e revela insuperável vício na formação do ato administrativo que acarreta o prejuízo à Administração, ou seja, concretiza o dano ao erário.
Frise-se, por necessário, que, ao examinar o REspe nº 0600197-54/RO, da minha relatoria, com decisão transitada em julgado em 19.11.2020, assentou-se configurados o dano ao erário e o repasse de dinheiro a outra pessoa de forma indevida, como no caso dos autos. Observe-se:
No caso, o Tribunal a quo, ao analisar os autos, hauriu do teor do decisum condenatório da Justiça Comum elementos que viabilizaram a conclusão de que o ato ímprobo – consubstanciado na coação de servidores públicos comissionados a promoverem contribuição em favor do PMBD, partido presidido por José Amauri dos Santos, primo do então gestor municipal – importou em enriquecimento ilícito e lesão ao Erário.
Observa-se que a Corte de origem inferiu que o dano ao Erário decorreu do repasse de dinheiro público a outrem de forma indevida e o enriquecimento ilícito próprio da autoridade nomeante ou de outra por ela indicado (ID 52150688, p. 4).
Extrai-se de trechos transcritos do julgado condenatório que os autos revelam que os descontos de contribuição partidária - prática que o Ministério Público alcunhou de Dízimo Partidário - foi uma regra presente ao longo de todo o mandato do apelado Jean Carlos (ex-prefeito), que agiu mancomunado com seu irmão Luiz Marcos (ex-secretário municipal) para implementar forçadamente os descontos nas folhas de pagamentos dos servidores comissionados, promovendo a transferência dos valores descontados para as contas do diretório do PMDB local, à época presidido pelo Sr. José Amauri dos Santos, primo do ex-prefeito Jean Carlos, e principal beneficiário dos valores angariados pelo esquema (ID 52150688, p. 3), afigurando-se concebível o reconhecimento do enriquecimento ilícito e da lesão ao Erário com base nessas premissas.
Registre-se, ademais, que a conclusão aqui exposta não desborda dos limites plasmados na Súmula nº 41/TSE, visto que não se decidiu sobre o acerto ou desacerto da decisão proferida na Justiça Comum, somente se depreenderam os requisitos caracterizadores da inelegibilidade, a partir do exame do teor do julgado condenatório.
Nessa ordem de ideias, compreendo configurados os requisitos necessários para incidência da inelegibilidade contida art. 1º, I, alínea l, da Lei Complementar nº 64/90.
Ante o exposto, dou provimento ao recurso especial do Ministério Público Eleitoral para indeferir o registro de candidatura de Maria Helena Pereira Fontes.
É como voto.
ESCLARECIMENTO
O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO (presidente): Indago dos demais colegas se aguardam a devolução da vista do Ministro Luis Felipe Salomão? Verifico que sim. Também eu vou aguardar a devolução da vista, porque na vida a gente sempre pode estar sujeito a uma mudança de opinião.
Devo dizer, no entanto, que, como os colegas sabem e o Ministro Fachin, particularmente, e o Ministro Alexandre também, eu já votei no Supremo Tribunal Federal na Ação Penal 864, originária do Amazonas, exatamente na mesma linha do Ministro Alexandre de Moraes, processo que teve o julgamento suspenso por pedido de vista do Ministro Cássio Nunes Marques, mas, na linha defendida pelo Doutor Renato Brill de Góes, entendo que "rachadinha" é um eufemismo para desvio de dinheiro público, para peculato e acho que nem faz diferença se é uma soma global ou se é uma divisão dos valores alocados fixamente a cargos, em última análise é o erário que é lesado.
Porém, eu ouvirei com a atenção devida e merecida as considerações do Ministro Luis Felipe Salomão, que é um juiz experiente, que eu conheço desde o início da carreira dele e que muitas vezes tem insights que podem não ter ocorrido aos demais julgadores. De modo que aguardaremos, então, a volta da vista do Ministro Luis Felipe Salomão.
EXTRATO DA ATA
REspEl nº 0600235-82.2020.6.26.0001/SP. Relator: Ministro Alexandre de Moraes. Recorrente: Ministério Público Eleitoral. Recorrida: Maria Helena Pereira Fontes (Advogada: Cynthia Helena Feitoza Pedrosa – OAB: 176666/SP).
Usou da palavra, pelo recorrente, Ministério Público Eleitoral, o Dr. Renato Brill de Góes.
Decisão: Após o voto do Ministro Alexandre de Moraes (relator), no sentido de dar provimento ao recurso especial eleitoral para indeferir o registro de candidatura de Maria Helena Pereira Fontes ao cargo de vereadora de São Paulo/SP, nas eleições de 2020, no que foi acompanhado pelo Ministro Edson Fachin, em adiantamento de voto, pediu vista o Ministro Luis Felipe Salomão.
Aguardam os Ministros Mauro Campbell Marques, Sérgio Banhos, Carlos Horbach e Luís Roberto Barroso (presidente).
Composição: Ministros Luís Roberto Barroso (presidente), Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Luis Felipe Salomão, Mauro Campbell Marques, Sérgio Banhos e Carlos Horbach. Ausência justificada do Senhor Ministro Tarcisio Vieira de Carvalho Neto.
Vice-Procurador-Geral Eleitoral: Renato Brill de Góes.
SESSÃO DE 8.4.2021.
VOTO-VISTA
O SENHOR MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO: Senhor Presidente, a hipótese cuida de recurso especial interposto pelo Ministério Público contra acórdão proferido pelo TRE/SP, que, reformando sentença, deferiu o registro de candidatura de Maria Helena Pereira Gomes – não eleita ao cargo de vereador de São Paulo/SP nas Eleições 2020 – por entender não configurada a inelegibilidade do art. 1º, I, l, da LC 64/90.
A recorrida, em mandato anterior na Câmara Municipal de São Paulo/SP, foi condenada pelo TJ/SP, mediante decisão com trânsito em julgado, à suspensão de seus direitos políticos por oito anos pela prática de ato de improbidade administrativa conhecido como “rachadinha”. De acordo com o TRE/SP, embora inequívoco o enriquecimento ilícito (art. 9º da Lei 8.429/92), não se fez presente no caso o dano ao erário (art. 10), essencial para a incidência da inelegibilidade.
Na sessão de 8.4.2021, o douto Ministro Alexandre de Moraes, Relator, deu provimento ao recurso especial para indeferir o registro, por entender preenchidos todos os requisitos, pois “o dano ao erário público consubstanciou-se justamente pelo desvio de finalidade no emprego de verba pública de utilização não compulsória para subsequente apropriação de parte dos valores correlatos em desrespeito à legislação municipal”. O eminente Ministro Edson Fachin acompanhou o Relator.
Pedi vista dos autos para melhor exame do caso.
2. Consoante o art. 1º, I, l, da LC 64/90, são inelegíveis, para qualquer cargo, “os que forem condenados à suspensão dos direitos políticos, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito, desde a condenação ou o trânsito em julgado até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena”.
3. Em relação às premissas teóricas envolvendo a inelegibilidade em questão, no contexto do caso dos autos, cabem de início algumas ponderações.
Em primeiro lugar, como é sabido, pode a Justiça Eleitoral “aferir, a partir da fundamentação do acórdão proferido pela Justiça Comum, a existência – ou não – dos requisitos exigidos para a caracterização da causa de inelegibilidade preconizada no art. 1º, I, l, da LC nº 64/1990” (AgR-AI 411-02/MG, Rel. Min. Edson Fachin, DJE de 7.2.2020), sem que isso implique usurpação de competência.
De outra parte, como bem delineou o eminente Ministro Alexandre de Moraes quando do julgamento do REspEl 0600181-98/AL, Rel. Min. Tarcisio Vieira de Carvalho Neto, publicado na sessão de 1º.12.2020,
[...] A estrutura da Lei de Improbidade não se confunde com a estrutura da Lei da Ficha Limpa. Isso é importante porque costumeiramente isso vem sendo confundido. E por que digo isso? [...]
A Lei de Improbidade, ela optou por três tipos muito diversos. No art. 9º, a Lei de Improbidade Administrativa prevê os atos ilícitos que acarretem enriquecimento ao agente público; no art. 10, atos que acarretem prejuízo à administração pública e, no art. 11, atos atentatórios a princípios.
[...]
Essa estrutura, como disse, não se confunde com a Lei da Ficha Limpa. A Lei da Ficha Limpa em momento algum exige, para sua incidência na inelegibilidade, que o agente público seja condenado pelo art. 9º e pelo art. 10. Não é isso que a Lei da Ficha Limpa exige. O art. 9º exige, obviamente, o enriquecimento ilícito, o art. 10 exige prejuízo ao erário. Mas a Lei da Ficha Limpa, ela exige que a hipótese ímproba traga, ao mesmo tempo, enriquecimento e prejuízo, não que traga ao mesmo tempo condenação pelo art. 9º e condenação pelo art. 10.
[...]
Esta Corte Superior também já definiu, em pleitos anteriores e nas Eleições 2020, que os requisitos de dano ao erário e de enriquecimento ilícito devem ser preenchidos de forma cumulativa. Veja-se precedente representativo da controvérsia:
ELEIÇÕES 2020. RECURSO ESPECIAL. REGISTRO DE CANDIDATURA. PREFEITO. DEFERIMENTO. INELEGIBILIDADE DO ART. 1º, I, L, DA LC Nº 64/90. NÃO CARACTERIZAÇÃO. REQUISITOS CUMULATIVOS. DANO AO ERÁRIO E ENRIQUECIMENTO ILÍCITO. DESPROVIMENTO.
1. A incidência da causa de inelegibilidade prevista no art. 1º, I, l, da LC nº 64/90 exige a presença dos seguintes requisitos: a) condenação à suspensão dos direitos políticos; b) decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado; c) ato doloso de improbidade administrativa; e d) que o ato tenha causado, concomitantemente, lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito.
[...]
4. Inviável a leitura disjuntiva dos requisitos da causa inelegibilidade – dano ao erário ou enriquecimento ilícito –, tendo em vista o óbice intransponível do princípio constitucional da separação de poderes, porquanto “a inserção da norma no mundo da vida não autoriza o julgador a reescrevê-la no afã de adaptá-la à sua percepção de justiça, pois tal atitude desborda da sua esfera de competência, um dos limites à autoridade do poder sobre a liberdade, seja ela individual ou coletiva” (RO nº 0600582-90/ES, Rel. Min. Tarcisio Vieira de Carvalho Neto, PSESS em 4.10.2018).
5. Reafirmada, para as eleições de 2020, a jurisprudência, já albergada em pleitos anteriores, no sentido da aplicação cumulativa dos requisitos do dano ao Erário e do enriquecimento ilícito para a incidência da causa de inelegibilidade disposta no art. 1º, I, l, da LC nº 64/90.
6. Recurso especial desprovido.
(REspEl 0600181-98/AL, Rel. Min. Tarcisio Vieira de Carvalho Neto, publicado na sessão de 1º/12/2020) (sem destaque no original)
Fixadas essas premissas, passo ao exame do caso dos autos.
4. Na hipótese, não se questiona que a recorrida, não eleita para o cargo de vereador de São Paulo/SP em 2020, fora condenada na Justiça Comum, mediante aresto do TJ/SP com trânsito em julgado, à suspensão dos direitos políticos pelo período de oito anos por improbidade administrativa. O édito condenatório decorreu da prática de ato conhecido como “rachadinha” – em que servidores comissionados repassam parte de suas remunerações a parlamentar em troca de manutenção do emprego – quando do exercício de mandato anterior na Câmara Municipal.
A Corte local, porém, deferiu o registro por entender que, apesar do enriquecimento ilícito (art. 9º da Lei 8.429/92), não teria havido dano ao erário (art. 10). Confira-se trecho do acórdão a quo, que por sua vez se reporta à certidão de objeto e pé relativa ao decreto condenatório na Justiça Comum (ID 97.564.738):
In casu, a recorrente foi condenada por ato de improbidade administrativa nos autos da Ação Civil Pública nº 0009260-40.2003.8.26.0053, dentre outras penalidades, à sanção de suspensão de direitos políticos por 8 anos, em decisão transitada em julgado no dia 21/01/2011 (ID nº 27155651).
Não consta dos autos cópia da sentença e do acórdão condenatórios, porém, da certidão de objeto e pé depreende-se que (ID nº 27155651): “Certifica ainda que a r. sentença de fls. 3962/3976 julgou procedente a ação para reconhecer os atos de improbidade praticados pela requerida Maria Helena Pereira Fontes, condenando-a, nos termos do art. 18 da Lei nº 8.429/92, ao perdimento, em favor do Município de São Paulo, no valor de R$ 146.311,67, devidamente atualizado, a partir de Janeiro de 1997 até o efetivo pagamento, incidentes juros de mora, à taxa de 6% ao ano, desde os fatos (artigo 398 do C.C.), até 09/09/2003 e, a partir daí, à taxa prevista no artigo 406 do Código Civil; suspendendo os direitos políticos da requerida, por oito anos (artigo 12, I, da Lei nº 8.429/92), condenando-a ao pagamento de multa civil em quantia equivalente ao dobro do montante mencionado, já atualizado, mas sem a incidência de juros de mora, estando ainda, impedida de contratar com o poder público ou de receber benefícios fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, pelo prazo de 10 anos e, por fim, arcando com os ônus da sucumbência. Certifica mais que na 3ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça, o v. Acórdão de fls. 4131/4135 negou provimento ao recurso interposto pela requerida, mantendo a r. sentença ‘a quo’, com trânsito em julgado em 27/01/11, conforme certidão de fls. 4138. Certifica finalmente que os autos se encontram em Cartório, em fase de execução”.
Nesse sentido, as penalidades aplicadas à recorrente correspondem à violação ao artigo 9º da Lei nº 8.429/92, ou seja, atos de improbidade que ensejam enriquecimento ilícito. Logo, a conduta ímproba não foi enquadrada no artigo 10 da aludida norma, que trata das hipóteses de improbidade administrativa que causam prejuízo ao erário.
Segundo consta do parecer da d. Procuradoria Regional Eleitoral (ID nº 32902901) que, a ora recorrente, agindo na qualidade de vereadora da Câmara Municipal de São Paulo “obrigou funcionários comissionados a lhe entregar parte da remuneração que recebiam, sob pena de exoneração. Com isso, ela arrecadou R$ 146,3 mil em vantagem patrimonial indevida. OU SEJA, MAIS UM CASO DE RACHADINHA”.
Todavia, não há notícia de que tenha havido lesão ao erário, na medida em que não há informação de que os pagamentos dos assessores não corresponderam à contraprestação do serviço. Com efeito, depreende-se da análise do conjunto probatório carreado aos autos que os danos não recaíram sobre o Erário, mas incidiram apenas sobre o patrimônio privado dos servidores.
(sem destaques no original)
Penso que os requisitos da inelegibilidade estão plenamente preenchidos, sendo indene de dúvida também o dano ao erário, na linha do voto do eminente Ministro Alexandre de Moraes.
Como se viu, constata-se sem maiores dificuldades que a recorrida foi condenada ao perdimento de R$ 146.311,67 em favor do Município de São Paulo/SP com supedâneo no art. 18 da Lei 8.429/92, segundo o qual “a sentença que julgar procedente ação civil de reparação de dano ou decretar a perda dos bens havidos ilicitamente determinará o pagamento ou a reversão dos bens, conforme o caso, em favor da pessoa jurídica prejudicada pelo ilícito”.
Essa circunstância, por si só, evidencia com clareza o dano ao erário, sendo ilógico cogitar-se de sua inexistência quando, na condenação judicial, se determina o ressarcimento dos respectivos valores aos cofres públicos.
No mais, no caso ora em exame há singularidades decorrentes da forma de remuneração dos Vereadores de São Paulo/SP, como constatado pelo douto Ministro Alexandre de Moraes em seu voto. Confira-se:
Da mesma maneira, a conduta dolosa da Recorrida acarretou grave prejuízo ao erário público, emergente justamente do desvio de finalidade no emprego de verba pública de utilização não compulsória para subsequente apropriação de parte dos valores correlatos em desrespeito à legislação municipal.
A Lei Municipal nº 13.637/03 prevê que os vereadores da capital paulista têm verba específica para ser gasta com a contratação de assessores comissionados, havendo limites máximos de valores e quantidade de funcionários; sem contudo, existir limites mínimos ou mesmo a obrigatoriedade do gasto total ou parcial da referida verba.
Diz-se a Lei Municipal que “cada Gabinete contará com 01 (um) Chefe de Gabinete e até 17 (dezessete) Assistentes Parlamentares.” (art. 6º, §1º) e que a gratificação de assessoria “... será atribuída aos servidores titulares dos cargos de provimento em comissão lotados em Gabinete de Vereador, de Membro da Mesa e das Lideranças, em valores fixos a serem definidos a critério do respectivo Vereador, Membro da Mesa ou Líder.” (art. 17 e respectivo § 1º, com a redação dada pela Lei Municipal nº 16.616/17):
[...]
Em outras palavras, não há número mínimo de assessores, nem tampouco remuneração específica para cada um deles, pois a legislação regente da matéria somente estabelece o número máximo de assessores (17) e a discricionariedade do vereador fixar suas respectivas remunerações. Dessa maneira, dentro do montante total da verba, cada gabinete poderá se organizar como melhor lhe aprouver, estipulando o número de assessores e seus respectivos vencimentos, sem a obrigatoriedade de comprometer toda verba estipulada.
Observados tais limites o próprio gabinete estabelece suas necessidades, não estando obrigado a utilizar todo o valor posto à disposição, tampouco contratar o máximo de funcionários autorizados.
Lamentavelmente, em algumas oportunidades, essa discricionariedade concedida ao vereador dá margem à realização da prática vulgarmente conhecida como “rachadinha”, que consiste no superfaturamento de valor remuneratório individual de cada assessor para posterior apropriação ilícita do agente público de hierarquia e comando na contratação, ou a contratação de funcionário sem efetiva necessidade relacionada à prestação do serviço, funcionando exclusivamente como “entreposto” à utilização da verba pública de forma desvirtuada, pois não voltada a remunerar contraprestação qualquer.
[...]
O vereador tem a discricionariedade para decidir se a verba integral é necessária para custear os serviços de assessoria ou se, somente com parte da verba, já conseguiria realizar os serviços necessários. Dessa maneira, se, artificiosamente, encontra espaço para locupletar-se com parte desta verba, havendo-a para si por meio de conluio ilícito com o servidor comissionado, iniludivelmente tal despesa não era necessária aos fins previstos na legislação que a instituiu, e deveria ser economizada.
[...]
Assim, está caracterizada a inelegibilidade do art. 1º, I, l, da LC 64/90.
5. Ante o exposto, acompanho o eminente Relator para dar provimento ao recurso especial e indeferir o registro de candidatura da recorrida ao cargo de vereador de São Paulo/SP nas Eleições 2020.
É como voto.
EXTRATO DA ATA
REspEl nº 0600235-82.2020.6.26.0001/SP. Relator: Ministro Alexandre de Moraes. Recorrente: Ministério Público Eleitoral. Recorrida: Maria Helena Pereira Fontes (Advogada: Cynthia Helena Feitoza Pedrosa – OAB: 176666/SP).
Decisão: O Tribunal, por unanimidade, deu provimento ao recurso especial para indeferir o registro de candidatura de Maria Helena Pereira Fontes ao cargo de Vereadora de São Paulo/SP nas eleições de 2020, nos termos do voto do relator.
Composição: Ministros Luís Roberto Barroso (presidente), Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Luis Felipe Salomão, Mauro Campbell Marques, Sérgio Banhos e Carlos Horbach.
Vice-Procurador-Geral Eleitoral: Paulo Gustavo Gonet Branco.
SESSÃO DE 19.8.2021.