TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL
Corregedoria-Geral da Justiça Eleitoral
AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL (11527) Nº 0601002-78.2022.6.00.0000 (PJe) - BRASÍLIA - DISTRITO FEDERAL
RELATOR: MINISTRO BENEDITO GONÇALVES
REPRESENTANTE: COLIGAÇÃO BRASIL DA ESPERANÇA
ADVOGADO: FERNANDA BERNARDELLI MARQUES - OAB/PR105327-A
ADVOGADO: GUILHERME QUEIROZ GONCALVES - OAB/DF37961
ADVOGADO: EDUARDA PORTELLA QUEVEDO - OAB/SP464676
ADVOGADO: VICTOR LUGAN RIZZON CHEN - OAB/SP448673
ADVOGADO: MARIA DE LOURDES LOPES - OAB/SP77513
ADVOGADO: VALESKA TEIXEIRA ZANIN MARTINS - OAB/SP153720
ADVOGADO: CRISTIANO ZANIN MARTINS - OAB/SP172730
ADVOGADO: MARIA EDUARDA PRAXEDES SILVA - OAB/DF48704
ADVOGADO: MIGUEL FILIPI PIMENTEL NOVAES - OAB/DF57469-A
ADVOGADO: MARCELO WINCH SCHMIDT - OAB/DF53599-A
ADVOGADO: ANGELO LONGO FERRARO - OAB/DF37922-S
ADVOGADO: EUGENIO JOSE GUILHERME DE ARAGAO - OAB/DF4935-A
ADVOGADO: GEAN CARLOS FERREIRA DE MOURA AGUIAR - OAB/DF61174-A
REPRESENTADO: JAIR MESSIAS BOLSONARO
REPRESENTADO: WALTER SOUZA BRAGA NETTO
REPRESENTADO: ANTONIO HAMILTON MARTINS MOURAO
REPRESENTADO: FABIO SALUSTINO MESQUITA DE FARIA
REPRESENTADO: ANDRE DE SOUSA COSTA
REPRESENTADA: KESIA NASCIMENTO FERREIRA
REPRESENTADO: SILAS LIMA MALAFAIA
REPRESENTADO: LUCIANO HANG
REPRESENTADO: JULIO AUGUSTO GOMES NUNES
REPRESENTADO: ANTONIO GALVAN
REPRESENTADO: JOAO ANTONIO FRANCIOSI
REPRESENTADO: VANDERLEI SECCO
REPRESENTADO: RENATO RIBEIRO DOS SANTOS
REPRESENTADO: VICTOR CEZAR PRIORI
REPRESENTADO: JACO ISIDORO ROTTA
REPRESENTADO: LUIZ WALKER
REPRESENTADO: MARCOS KOURY BARRETO
REPRESENTADO: GILSON LARI TRENNEPOHL
AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ELEIÇÕES 2022. PRESIDENTE. ABUSO DE PODER POLÍTICO E ECONÔMICO. USO INDEVIDO DE MEIOS DE COMUNICAÇÃO. BICENTENÁRIO DA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL. DESFILE CÍVICO-MILITAR. EVENTO OFICIAL. CUSTEIO COM RECURSOS PÚBLICOS. COBERTURA TELEVISIVA. TRECHOS CONTENDO PROMOÇÃO DE CANDIDATURA À REELEIÇÃO. USO DE IMAGENS DE ATOS DE CHEFE DE ESTADO EM PROPAGANDA ELEITORAL. QUEBRA DE ISONOMIA. PLAUSIBILIDADE. URGÊNCIA. REQUERIMENTO LIMINAR PARCIALMENTE DEFERIDO.
1. Trata-se de ação de investigação judicial eleitoral – AIJE destinada a apurar a ocorrência de abuso de poder político e econômico e de uso indevido dos meios de comunicação, ilícitos supostamente perpetrados em decorrência do desvio de finalidade das comemorações do Bicentenário da Independência em favor do candidato à reeleição para o cargo de Presidente, Jair Messias Bolsonaro.
2. A AIJE não se presta apenas à punição de condutas abusivas, quando já consumado o dano ao processo eleitoral. Assume também função preventiva, sendo cabível a concessão de tutela inibitória para prevenir ou mitigar danos à legitimidade do pleito.
3. Nesse sentido, prevê o art. 22, I, b da LC nº 64/90 que, ao receber a petição inicial, cabe ao Corregedor determinar “que se suspenda o ato que deu motivo à representação, quando for relevante o fundamento e do ato impugnado puder resultar a ineficiência da medida, caso seja julgada procedente”.
4. O exercício dessa competência deve se pautar pela mínima intervenção, atuando de forma pontual para conter a propagação e amplificação de efeitos potencialmente danosos. A fim de que essa finalidade preventiva possa ser atingida, a análise da gravidade, para a concessão da tutela inibitória, orienta-se pela preservação do equilíbrio da disputa ainda em curso. Esse exame não se confunde e não antecipa a conclusão final de mérito, momento no qual deverão ser avaliados in concreto os efeitos das condutas praticadas, a fim de estabelecer se são graves o suficiente para conduzir à cassação de registro ou diploma e à inelegibilidade.
5. No caso, a petição inicial narra que o primeiro réu, de forma deliberada e com o apoio dos demais investigados, direcionou o desfile cívico-militar realizado em 07/09/2022 na Esplanada dos Ministérios – Brasília/DF, evento oficial custeado com mais de R$3.000.00,00 de recursos públicos, para promover a imagem e a candidatura de Bolsonaro.
6. A inicial foi instruída com farta prova documental que comprova os valores envolvidos e demonstra que a associação entre a candidatura e o evento oficial foi iniciativa do próprio Presidente candidato à reeleição, que chegou a utilizar inserções de propaganda eleitoral para convocar o eleitorado a comparecer à comemoração do Bicentenário, em vinheta que confere destaque à sua presença em Brasília, pela manhã, e no Rio de Janeiro, à tarde.
7. Além disso, a íntegra da transmissão pela TV Brasil, emissora pertencente ao conglomerado de mídia governamental Empresa Brasil de Comunicação – EBC, permite constatar que parte relevante da cobertura se centrou na pessoa do Presidente.
8. Em entrevista que se justificaria por sua condição de Chefe de Estado, Jair Messias Bolsonaro optou por assumir o papel de candidato em campanha pela reeleição. Ao ser indagado sobre a importância do Bicentenário, preferiu exaltar atos e projetos de seu governo, como o “auxílio Brasil”, a redução do preço da gasolina e perdão de dívidas do FIES, associar o início de seu mandato ao ressurgimento do “patriotismo” e de valores cristãos, e comparar a situação do Brasil com vizinhos da América do Sul, dirigindo-se aos espectadores para dizer “o que está em jogo é a nossa liberdade, é o nosso futuro” e que “o Brasil é nosso”.
9. Encerrado o desfile, as câmeras da emissora governamental passaram a enfocar o primeiro réu, fora da tribunal de honra e já sem a faixa presidencial, caminhando próximo à população, rumo ao palanque em que iria realizar comício. É possível ouvir que foi aclamado por parte dos presentes como “mito”. Do estúdio, um dos militares convidados para comentar o evento finaliza sua fala com a mensagem “espero [...] que possamos decidir que tipo de nação queremos para o futuro”.
10. Em análise perfunctória, é possível concluir que os trechos destacados denotam o desvirtuamento, ao menos pontual, da participação do Presidente da República nas comemorações do Bicentenário da Independência e da cobertura televisiva, em vídeo que conta hoje com quase 400.000 visualizações. A continuidade da veiculação desse conteúdo é capaz de ferir a isonomia entre candidatos e candidatas da eleição presidencial, uma vez que redunda em vantagem, não autorizada pela legislação eleitoral, para o atual incumbente do cargo.
11. A tutela buscada não pode, todavia, acarretar medida desproporcional, que afete a legítima divulgação das comemorações do Bicentenário da Independência. Desse modo, sem prejuízo de posterior ampliação do escopo da medida, caso identificadas outras passagens desvirtuadas, cabe agir cirurgicamente para inibir a divulgação dos trechos específicos.
12. O uso de imagens da celebração oficial na propaganda eleitoral é tendente a ferir a isonomia, pois explora a atuação do Chefe de Estado, em ocasião inacessível a qualquer dos demais competidores, para projetar a imagem do candidato e fazer crer que a presença de milhares de pessoas na Esplanada dos Ministérios, com a finalidade de comemorar a data cívica, seria fruto de mobilização eleitoral em apoio ao candidato à reeleição.
13. Na hipótese, assentada a plausibilidade do direito em decorrência do indevido favorecimento à campanha do candidato à reeleição nos pontos destacados, conclui-se também pela urgência da concessão de medida que faça cessar os impactos anti-isonômicos da cobertura do Bicentenário da Independência e do aproveitamento de imagens oficiais pela campanha do primeiro e do segundo réus.
14. Tutela inibitória antecipada deferida, para determinar a supressão de trechos do vídeo contendo a cobertura do Bicentenário da Independência pela TV Brasil e proibir a utilização de imagens oficiais do evento na campanha do primeiro e do segundo réu, sob pena de multa.
DECISÃO LIMINAR
Trata-se de ação de investigação judicial eleitoral, por suposta prática de abuso de poder político e econômico e uso indevido dos meios de comunicação, ajuizada pela Coligação Brasil da Esperança (FE BRASIL/FEDERAÇÃO PSOL-REDE/PSB, SOLIDARIEDADE/AVANTE/AGIR/PROS) contra Jair Messias Bolsonaro, candidato à reeleição para o cargo de Presidente da República, Walter Souza Braga Neto, candidato a Vice-Presidente da República, Antônio Hamilton Martins Mourão, Fábio Salustiano Mesquita de Faria, André de Sousa Costa, Kelsia Nascimento Ferreira, Silas Lima Malafaia, Luciano Hang, Júlio Augusto Gomes Nunes, Antonio Galvan, João Antônio Franciosi, Gilson Lari Tennepohl, Vanderlei Secco, Victor Priori, Renato Ribeiro dos Santos, Jacó Isidoro Rotta, Luiz Walker e Marcos Koury Barreto.
A ação tem como causa de pedir fática o suposto desvio de finalidade das comemorações do Bicentenário da Independência, evento de caráter oficial, custeado com vultosos recursos públicos e transmitido ao vivo pela TV Brasil, em favor do primeiro réu, candidato à reeleição para o cargo de Presidente.
Narra a petição inicial, em síntese, que “a importância e o significado da data foram transformados pelos investigados, de maneira sub-reptícia, em pretexto para a promoção abusiva e ilícita da candidatura de JAIR MESSIAS BOLSONARO à reeleição ao cargo de Presidente da República”, o que ocorreu em quatro momentos:
Preparação de um contexto em que as comemorações oficiais do Bicentenário da Independência foram associadas à campanha do candidato à reeleição, a fim de demonstrar seu apoio popular, o que se fez por meio de:
a.1) live em que o candidato convoca apoiadores a comparecerem ao “evento para marcar posição”;
a.2) inserção de propaganda eleitoral informando que o Presidente estaria em Brasília e no Rio de Janeiro;
a.3) outdoors custeados por terceiros com dizeres como “é agora ou nunca”;
a.4) atuação do Movimento Brasil Verde e Amarelo junto ao Comando Militar do Planalto para incluir um desfile de tratores no evento em Brasília, a pedido do Presidente;
a.5) convite expresso de Jair Bolsonaro a empresários, alvo de medidas constritivas determinadas pelo Ministro Alexandre de Moraes na PET 10.543/DF, para acompanharem o mandatário durante as celebrações oficiais;
a.6) distribuição, pelo governo federal, de lotes de ingressos para servidores públicos de ministérios e estatais, por ordem do Secretário Especial de Comunicação, André de Sousa Costa, com o objetivo de inflar o público;
desvirtuamento do ato cívico-militar de 07/09/2022 realizado na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, que se convolou em ato político-eleitora de Jair Bolsonaro, Braga Neto e Hamilton Mourão, candidatos respectivamente a Presidente, Vice-Presidente e Senador, conforme ilustram os seguintes fatos:
b.1) dispêndio de recursos públicos 247% maior que os aplicados na organização e montagem do evento, alcançando a cifra de R$ 3.300.000,00, conforme documentação comprobatória do pregão eletrônico nº 8/2022 e do extrato de contrato nº 63/2022;
b.2) quebra de protocolo, havendo o Presidente da República cumprimentado apoiadores presentes;
b.3) ocupação da tribuna oficial por pessoas sem vinculação com o Poder Público (candidato a Vice-Presidente, candidato ao Senado e empresário);
b.4) inclusão dos tratores no desfile cívico-militar tradicionalmente protagonizado por veículos das Forças Armadas e das demais instituições do Estado, o que se fez à expensa de terceiros para marcar a proximidade do candidato Bolsonaro ao agronegócio, ao ponto de os veículos serem dirigidos por motoristas com camisetas em apoio a este;
b.5) transmissão ao vivo com duração de quase quatro horas, por emissora pertencente a empresa pública, potencializando o alcance da promoção da imagem do candidato à reeleição;
realização de ato de campanha na própria Esplanada dos Ministérios, logo na sequência do desfile cívico-militar, em palanque montado em trio elétrico custeado pelo Movimento Brasil Verde e Amarelo, o que permitiu ao candidato à reeleição beneficiar-se, “ainda que indiretamente, de toda a estrutura organizada oficialmente” e que havia atraído pessoas para comemorar o Bicentenário da Independência;
transformação do segundo evento previsto para celebrar o Bicentenário da Independência, no Rio de Janeiro, em comício eleitoral, custeado com recursos públicos e de terceiros, destacando-se:
d.1) veiculação de vídeo pela internet no qual o Presidente, durante o deslocamento para o Rio de Janeiro, afirma que a mobilização do dia 07/09/2022 ocorria “em apoio ao nosso governo, à nossa reeleição”;
d.2) mudança de local do desfile tradicionalmente realizado no centro daquela cidade para Copacabana, local em que apoiadores do primeiro réu tem realizado atos políticos;
d.3) colocação de palanque em trio elétrico custeado por Silas Malafaia a 100 metros do palco oficial do evento, possibilitando que o ato eleitoral ocorresse de forma contínua à suposta celebração da data cívica;
d.4) discurso do Presidente inteiramente voltado para eleitores e eleitoras, abordando realizações do seu governo, criticando adversários e o MST e silenciando sobre a Independência do Brasil.
A autora discorre sobre a tipicidade das condutas, vislumbrando “o uso da máquina pública e de ato institucional pelo atual presidente da República e os demais investigados para promover a campanha à reeleição de JAIR BOLSONARO”, valendo-se de evento oficial, custeado com recursos públicos e transmitido ao vivo pela TV Brasil, para influenciar o comportamento do eleitorado, em prejuízo da isonomia com os demais candidatos. Salienta ainda o emprego irregular de recursos privados para potencializar os benefícios ilícitos decorrentes da proposital confusão entre os papéis de Chefe de Estado e candidato.
Sustenta estarem demonstrados os requisitos para a concessão de medidas de urgência, a saber:
a plausibilidade do direito, ante os “fortíssimos indícios das condutas ilícitas dos investigados, que desvirtuaram a finalidade de atos institucionais para promover campanha à reeleição do Primeiro Investigado, o Sr. JAIR BOLSONARO, por meio de vultosa quantidade de recursos públicos”;
o perigo da demora, consubstanciado na “continuação da realização da campanha eleitoral – disfarçada de ato institucional - por meio dos vídeos disponíveis na internet, incutindo na mente do eleitor a associação clara entre o evento cívico-histórico e a campanha ao pleito deste ano, cujo primeiro turno acontecerá a menos de um mês”.
Assim, requer, liminarmente:
104.1. Que o Investigado JAIR MESSIAS BOLSONARO se abstenha de realizar qualquer campanha eleitoral com base nos vídeos dos eventos realizados em Brasília/DF e no Rio de Janeiro/RJ no dia 7 de setembro de 2022, haja vista serem objeto de investigação de abuso de poder político, econômico e de uso indevido dos meios de comunicação por este c. TSE;
104.2. Seja determinada a TV Brasil a remoção do vídeo constante no canal do YouTube da TV Brasil, na URL https://www.youtube.com/watch?v=_w6dF5MosV0, por servir de propaganda eleitoral ao candidato à reeleição, ferindo gravemente a paridade de armas do pleito.
Apresenta requerimentos de prova e pugna, ao final, pela “aplicação das sanções previstas no art. 22, inciso XIV, da Lei Complementar 64/1990 aos investigados e quantos mais tenham contribuído para os atos abusivos”. (ID 158047246).
Relatado o feito no que se faz necessário, passo a apreciar o requerimento liminar.
A ação de investigação judicial eleitoral – AIJE se destina a tutelar a legitimidade e a normalidade do pleito e a isonomia entre candidaturas, bens jurídicos severamente afetados por práticas abusivas que envolvam desvio de finalidade do poder político, o uso desproporcional de recursos públicos em desconformidade com a legislação eleitoral e a utilização indevida de meios de comunicação social, inclusive a internet, para beneficiar determinada candidatura (art. 22, caput, da LC nº 64/90).
As sanções previstas para a hipótese de procedência do pedido formulado na AIJE – cassação do registro ou diploma e inelegibilidade – têm não apenas dimensão punitiva, mas asseguram também a recomposição dos bens jurídicos, uma vez que impedem que os beneficiários logrem exercer mandato ilicitamente obtido e, ainda, alijam os responsáveis, por 8 anos, da possibilidade de disputar eleições.
Porém, a AIJE não tem por enfoque único a aplicação de sanções após a prática de condutas abusivas, quando já consumado o dano ao processo eleitoral. A máxima efetividade da proteção jurídica buscada por essa ação reclama atuação tempestiva, destinada a prevenir ou mitigar danos à legitimidade do pleito, desde que se tenha elementos suficientes para identificar o potencial lesivo de condutas que ainda estejam em curso.
Sob essa ótica, a AIJE assume também função preventiva, própria à tutela inibitória, modalidade de tutela específica voltada para a cessação de condutas ilícitas, independentemente de prova do dano ou da existência de culpa ou dolo. A técnica é prevista no parágrafo único do art. 497 do CPC, aplicável subsidiariamente às ações eleitorais, e que dispõe:
Art. 497. Na ação que tenha por objeto a prestação de fazer ou de não fazer, o juiz, se procedente o pedido, concederá a tutela específica ou determinará providências que assegurem a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente.
Parágrafo único. Para a concessão da tutela específica destinada a inibir a prática, a reiteração ou a continuação de um ilícito, ou a sua remoção, é irrelevante a demonstração da ocorrência de dano ou da existência de culpa ou dolo.
(sem destaques no original)
Note-se que essa diretriz, bem antes do Código de Processo Civil de 2015, já estava presente na disciplina da AIJE. Nesse sentido, prevê o art. 22, I, b da LC nº 64/90 que, ao receber a petição inicial, cabe ao Corregedor determinar “que se suspenda o ato que deu motivo à representação, quando for relevante o fundamento e do ato impugnado puder resultar a ineficiência da medida, caso seja julgada procedente”. Há, nessa previsão, o claro propósito de fazer cessar a conduta ilícita, prezando-se pela eficiência da tutela jurisdicional, sem prejuízo do prosseguimento do feito para apurar o cabimento das sanções acima mencionadas.
Assim, havendo indícios robustos da prática de condutas com potencial abusivo, não é necessário, para que se defira a tutela inibitória, verificar ao efetiva ocorrência de lesão grave aos bens jurídicos. Por esse motivo, a análise da gravidade, como elemento da decisão liminar em que se avalia o cabimento da suspensão de condutas que amparam a AIJE, deve ser orientada para verificar a necessidade conter a propagação e amplificação de efeitos potencialmente danosos, adotando-se a mínima intervenção necessária para preservar a legitimidade das eleições e o equilíbrio da disputa.
Nota-se, portanto, que esse exame não se confunde com aquele realizado no julgamento de mérito e não antecipa a conclusão final, que deverá avaliar in concreto os efeitos das condutas praticadas, a fim de estabelecer se são graves o suficiente para conduzir à cassação de registro ou diploma e à inelegibilidade.
Estabelecidas essas premissas, entendo que se encontram preenchidos os requisitos para antecipar a tutela inibitória buscada pela autora, ainda que em menor extensão do que foi requerida.
No que importa à concessão da liminar, a petição inicial narra que o primeiro réu, de forma deliberada e com o apoio dos demais investigados, direcionou o desfile cívico-militar em comemoração ao Bicentenário da Independência, realizado em 07/09/2022 na Esplanada dos Ministérios – Brasília/DF, evento oficial custeado com mais de R$3.000.00,00 de recursos públicos, para promover sua imagem e sua candidatura.
Constato que a ação foi instruída com farta prova documental que comprova os valores envolvidos e demonstra que a associação entre a candidatura e o evento oficial partiu da própria campanha do Presidente candidato à reeleição, que chegou a se utilizar de inserções de propaganda eleitoral para convocar o eleitorado a comparecer à comemoração do Bicentenário, em vinheta que confere destaque à presença do candidato (identificado com slogan e número) na comemoração oficial.
Com efeito, em peça de propaganda eleitoral veiculada em 06/09/2022 (ID 158046876), Jair Bolsonaro, valendo-se do alcance das inserções gratuitas destinadas à promoção de candidaturas, diz:
Nesse 07 de setembro, eu convido as famílias brasileiras para comemorar 200 anos da nossa independência.
Em paz e harmonia, vamos saudar a nossa Independência.
Pela manhã, estarei em Brasília, e à tarde em Copacabana, Rio de Janeiro.
O convite feito pelo candidato é intercalado por falas de apoiadores dizendo “com certeza nós estaremos lá”, “tamo junto”, “vamos?” e “vem com a gente”. Além disso, os horários mostrados na tela correspondem ao da programação oficial (8h30 em Brasília e 15h00 no Rio de Janeiro). Por fim, surgem na tela a identidade visual da campanha, com os dizeres “Presidente Bolsonaro – Vice Braga Neto – 22 – Pelo bem do Brasil”.
É o que basta, nesta análise inicial, para concluir que o próprio candidato à reeleição teve a iniciativa de atrair eleitores para evento no qual, na verdade, sua atuação deveria ser adstrita aos protocolos aplicáveis à sua condição de Chefe de Estado.
Passando ao exame da íntegra da transmissão das comemorações do Bicentenário da Independência pela TV Brasil, emissora pertencente ao conglomerado de mídia governamental Empresa Brasil de Comunicação – EBC, a partir do link disponibilizado na petição inicial (https://www.youtube.com/watch?v=_w6dF5MosV0), constato que parte relevante das 3h48min50seg de cobertura televisiva se centrou na pessoa do Presidente. Em especial, é possível identificar dois momentos em que, de forma inequívoca, o conteúdo se mostra potencialmente apto a produzir dividendos eleitorais para Bolsonaro.
O primeiro deles (17min07seg a 23min28seg do vídeo) se inicia com imagens do Presidente em conversas com interlocutores, narradas pelo repórter que aguardava para entrevistá-lo e que salienta a presença dos filhos de Bolsonaro e de muitas pessoas querendo tirar fotos com o mandatário. Esses flashes duram cerca de 2min30seg e, então, tem início a entrevista, que naturalmente se justificaria pela condição de Chefe de Estado do entrevistado.
As perguntas feitas pelo entrevistador buscam estimular comentários sobre a data cívica, de forma adequada. Indaga-se ao Presidente sobre a importância histórica do Bicentenário e, depois, referindo-se também ao marco dos 200 anos da Independência, se “o brasileiro tem isso no sangue, tem a percepção da importância histórica do momento que estamos vivendo”. O repórter ainda pede que seja deixada uma mensagem para o povo brasileiro.
Ocorre que Jair Messias Bolsonaro se aproveita das perguntas para, assumindo papel de candidato em campanha pela reeleição, tecer comentários à sua trajetória, exaltar atos e projetos de seu governo – como o “auxílio Brasil”, a redução do preço da gasolina e o perdão de dívidas do FIES –, alertar para a situação política de países vizinhos que em seu entendimento despertam preocupação, criticar o MST, associar o início de seu mandato ao ressurgimento do “patriotismo” e realizar referência indireta e inequívoca ao pleito próximo ao dizer que “o que está em jogo é a nossa liberdade, é o nosso futuro” e que “o Brasil é nosso, nós sabemos o que queremos”.
Transcrevo trechos da fala feitos entre 19min55seg e 23min28seg:
Mais que o Bicentenário, é a democracia, a liberdade de um povo. É só ver o que está acontecendo na América do Sul e também em outros países.
Mas obviamente, é uma data marcante pra nós, eu lembro do sesquicentenário, em 72, eu lá na longínqua Eldorado Paulista, e 50 anos passaram muito rápidos.
Então o povo brasileiro que hoje está indo às ruas, pra festejar 200 anos de independência e uma eternidade de liberdade. O que tá em jogo é a nossa liberdade, é o nosso futuro. E a população sabe que ela é aquela que nos dá o norte para as nossas decisões.
Então, a todos do Brasil, compareçam às ruas, dá tempo ainda, de verde e amarelo, as cores da nossa bandeira [...]
Brasil acima de tudo, Deus acima de todos.
[...]
Com a nossa chegada ao poder em 2019, ressurgiu o patriotismo no Brasil, ressurgiu o orgulho de você botar a camisa verde e amarela e se apresentar. Começou-se a se falar em Deus abertamente, coisa que era proibida aqui na Praça dos Três Poderes.
Então essa participação, cada vez maior, da nossa população nesses momentos é o que nos dá força, nos oxigena pra ganhar muito mais coragem ainda pra gente defender o futuro da nossa pátria.
E, cada vez mais estamos vendo o Brasil aqui, na economia, dar exemplo para o mundo. Temos hoje já uma das gasolinas mais barata do mundo, temos o maior projeto social do mundo, 600 reais do Auxílio Brasil, levamos água para o Nordeste, incluímos aqueles até a pouco tempo excluídos obviamente no mercado, com o PIX, o PIX mais de 100 milhões de pessoas tem o PIX.
Um governo que também deu uma carta de alforria a mais de um milhão de jovens que tinham dívidas com o FIES, perdoando 99% da sua dívida.
Um governo que acalmou o campo, titulando os assentados. Foram mais de 300 mil títulos dado ao campo. Eles conseguiram, outrora aprisionados pelo MST, eles conseguiram dignidade.
Ou seja, o governo cada vez mais se interessa pelo povo, mesmo passando por mais de dois anos de pandemia, uma seca e uma guerra lá fora.
Um governo que trabalha, não divulga muito o que faz, mas a população sabe o que está acontecendo.
Então eu só agradeço a Deus pela minha vida e pela missão que ele me deu de ser o chefe do Executivo dessa grande nação.
[...]
Olha, o Brasil é nosso, nós sabemos o que queremos, sabemos que aqui realmente é uma terra prometida, é um paraíso, lute pela sua pátria e pela sua liberdade. Com liberdade, você fica sem limites.
É patente que o teor da entrevista se desviou do enfoque institucional e cívico. A festividade do Bicentenário da Independência é deixada de lado, enquanto Bolsonaro faz uma defesa veemente de seu governo e, enfatizando uma de suas principais pautas de campanha, conclama os espectadores a lutar por sua liberdade, que estaria “em jogo” juntamente com “o futuro”. Mesmo a convocação para as pessoas irem para as ruas “de verde e amarelo” não pode ser dissociada do empenho do candidato, em sua propaganda eleitoral, em fazer o mesmo tipo de convite quando se dirigia ao eleitorado.
O segundo momento em que há indevida divulgação da figura de Bolsonaro ocorre após o final do evento. Aos 3h39min37seg é possível ouvir a mestre de cerimônias comunicar que está encerrado o desfile. Seria o caso, assim, de passar ao término da transmissão. No entanto, aos 3h40min24seg as câmeras da emissora governamental passam a enfocar o primeiro réu, depois de descer da tribuna de honra e sem a faixa presidencial.
Ele transita próximo à população, rumo ao palanque em que iria realizar seu comício. É possível ouvir o candidato ser aclamado por parte dos presentes como “mito”. Uma das apresentadoras aparenta estar desconcertada com o inusitado close na caminhada do candidato saudado por apoiadores, sem saber como narrar as imagens. Outro apresentador tenta remediar a situação dizendo que o Presidente estava se dirigindo para a Base Aérea, a fim de deslocar-se para o Rio de Janeiro – o que não corresponde aos fatos notoriamente sabidos, uma vez que teriam lugar os atos de campanha planejados pelos réus.
Somente aos 3h41min24seg a transmissão volta para o estúdio. Um dos militares convidados para comentar o evento finaliza sua fala participação com a mensagem “espero [...] que possamos decidir que tipo de nação queremos para o futuro” (3h44min18seg a 3h44min32seg).
Em análise perfunctória, é possível concluir que os trechos destacados denotam o desvirtuamento, ao menos pontual, da participação do Presidente da República nas comemorações do Bicentenário da Independência e da cobertura televisiva, em vídeo disponibilizado no canal de youtube da TV Brasil que conta hoje com quase 400.000 visualizações.
Há precedente desta Corte que alerta que “[o] caráter oficial de evento exige de qualquer agente público ou político redobrada cautela para que não descambe em propaganda eleitoral antecipada atos legitimamente autorizados como a inauguração e entrega de obras públicas” (RP 1406, Rel. Min. Joelson Dias, DJE de 10/05/2010). A advertência, que, com mais razão, se aplica ao curso da campanha eleitoral, deixou de ser observada nos momentos destacados.
O resultado é que, ainda que de forma não planejada, emissora governamental vem divulgando imagens que promovem a candidatura do primeiro réu, contrariando o disposto no art. 29, § 1º, II da Res.-TSE nº 23.610/2019, verbis:
Art. 29. Omissis.
§ 1º. É vedada, ainda que gratuitamente, a veiculação de propaganda eleitoral na internet em sítios. (Lei nº 9.504/1997, art. 57-C, § 1º, I e II);
[...]
II – oficiais ou hospedados por órgãos ou por entidades da administração pública direta ou indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Não se aborda a questão aqui sob a ótica estrita da propaganda eleitoral. A pertinência do ponto à presente AIJE está em que a continuidade da veiculação desse conteúdo é capaz de ferir a isonomia entre candidatos e candidatas da eleição presidencial, uma vez que redunda em vantagem, não autorizada pela legislação eleitoral, ao atual incumbente do cargo.
Pontuo, todavia, que a tutela buscada não pode acarretar medida desproporcional, que afete a legítima divulgação das comemorações do Bicentenário da Independência. Conforme visto, das quase quatro horas de cobertura, detectou-se, nesta primeira análise, oito minutos de indevido favorecimento eleitoral. Sem prejuízo de que o objeto da tutela provisória seja ampliado, caso se verifique que outras passagens possuem a mesma natureza, cabe agir cirurgicamente para inibir que decorram danos dos trechos já identificados.
Justifica-se, assim, não a retirada integral do vídeo de cobertura do evento oficial, difundido pela TV Brasil, como pleiteia a autora, mas sim que o material seja editado para excluir as passagens que resvalaram para a promoção da candidatura do primeiro réu.
Sob outro ângulo, verifica-se que a cobertura da TV Brasil registrou diversas imagens de Bolsonaro durante o evento oficial, em desfile em carro aberto e, depois, na tribuna de honra. Consta da petição inicial que essa gravação, realizada com recursos públicos e em evento em que Bolsonaro figurava como Chefe de Estado, inclusive com a faixa presidencial, está sendo explorada para a produção de material de campanha.
De fato, há, às fls. 55 da petição inicial, print de inserção de propaganda do candidato, em que é foi sobreposta a logomarca da campanha à imagem em que o presidente acena para o público.
A jurisprudência do TSE orienta que, em prestígio à igualdade de condições entre as candidaturas, a captura de imagens de bens públicos, para serem utilizadas na propaganda, deve se ater aos espaços que sejam acessíveis a todas às pessoas, vedando-se que os agentes públicos se beneficiem da prerrogativa de adentrar outros locais, em razão do cargo, e lá realizar gravações. Nesse sentido:
ELEIÇÕES 2018. RECURSO ORDINÁRIO. REPRESENTAÇÃO. CONDUTA VEDADA. ART. 73, INCISOS I, III E IV, B, DA LEI Nº 9.504/1997. GRAVAÇÃO DE PROPAGANDA ELEITORAL EM OBRA PÚBLICA. USO DE IMAGEM DE BEM PÚBLICO. NÃO CONFIGURAÇÃO DE CONDUTA VEDADA. RESTRIÇÃO DE ACESSO NÃO COMPROVADA. AUSÊNCIA DE DESVIO DE SERVIDORES PÚBLICOS. DESPROVIMENTO DO RECURSO ORDINÁRIO.
1. A conduta vedada prevista no art. 73, inciso I, da Lei nº 9.504/1997 somente se configura quando demonstrado o desvio de bem público do interesse coletivo para servir aos interesses da campanha eleitoral.
2. A mera utilização de imagem de bem público em propaganda eleitoral não configura conduta vedada, exceto na hipótese excepcional de imagem de acesso restrito ou de bem inacessível.
[...]
(RO 0602196-65, Rel. Min. Edson Fachin, DJE de 14/04/2020, sem destaques no original)
O raciocínio se aplica à hipótese, em que o primeiro réu, por sua condição de agente público, esteve à frente das comemorações do Bicentenário da Independência. De fato, o uso de imagens da celebração oficial na propaganda eleitoral é tendente a ferir a isonomia, pois utiliza a atuação do Chefe de Estado, em ocasião inacessível a qualquer dos demais competidores, para projetar a imagem do candidato e fazer crer que a presença de milhares de pessoas na Esplanada dos Ministérios, com a finalidade de comemorar a data cívica, seria fruto de mobilização eleitoral em apoio ao candidato à reeleição.
Assentada a plausibilidade do direito em decorrência do potencial favorecimento da campanha do candidato à reeleição pelo vídeo veiculado no canal de youtube da TV Brasil e pela utilização de imagens oficiais em sua propaganda eleitoral, conclui-se também pela urgência da adoção de medidas que evitem ou mitiguem danso ao processo eleitoral. Na hipótese, é indispensável a concessão de tutela inibitória que faça cessar os impactos anti-isonômicos da cobertura do Bicentenário da Independência e do aproveitamento de imagens oficiais pela campanha do primeiro e do segundo réus.
Desse modo, defiro parcialmente o requerimento liminar, para conceder a tutela inibitória antecipada e determinar:
a) seja intimada a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), para que:
a.1) edite o vídeo constante do canal de YouTube da TV Brasil, URL https://www.youtube.com/watch?v=_w6dF5MosV0, excluindo-se os trechos entre 17min07seg e 23min28seg; 3h40min24seg e 3h41min24seg; e 3h44min18seg e 3h44min32seg;
a.2) no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, e até que concluída a edição, suspenda a veiculação do vídeo citado, sob pena de multa diária de R$10.000,00, devendo diligenciar pela preservação do conteúdo até decisão final neste processo;
b) sejam intimados os candidatos Jair Messias Bolsonaro e Walter Souza Braga Neto para, no prazo de 24 horas, cessar a veiculação de todo e qualquer material de propaganda eleitoral, em todos os meios, que utilizem imagens do Presidente da República capturadas durante os eventos oficiais de comemoração do Bicentenário da Independência, atos realizados em Brasília/DF e no Rio de Janeiro/RJ no dia 07/09/2022, sob pena de multa diária de R$10.000,00, devendo ainda se abster de produzir novos materiais que explorem as citadas imagens.
Em prestígio à colegialidade, submeto a presente decisão a referendo, na primeira pauta disponível.
Por fim, determino a citação dos réus, para que apresentem defesa no prazo de 5 dias.
Após, voltem conclusos os autos.
Publique-se. Intimem-se.
Brasília (DF), 10 de setembro de 2022.
MINISTRO BENEDITO GONÇALVES
Relator