TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL

ACÓRDÃO

RECURSO ORDINÁRIO ELEITORAL Nº 0603975-98.2018.6.16.0000 – CURITIBA – PARANÁ

Relator: Ministro Luis Felipe Salomão

Recorrente: Ministério Público Eleitoral

Recorrido: Fernando Destito Francischini                           

Advogados: Gustavo Swain Kfouri – OAB: 35197/PR e outros

 

RECURSO ORDINÁRIO. ELEIÇÕES 2018. DEPUTADO ESTADUAL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL (AIJE). USO INDEVIDO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO SOCIAL. ABUSO DE PODER POLÍTICO E DE AUTORIDADE. ART. 22 DA LC 64/90. TRANSMISSÃO AO VIVO. REDE SOCIAL. DIA DO PLEITO. HORÁRIO DE VOTAÇÃO. FATOS NOTORIAMENTE INVERÍDICOS. SISTEMA ELETRÔNICO DE VOTAÇÃO. FRAUDES INEXISTENTES EM URNAS ELETRÔNICAS. AUDIÊNCIA DE MILHARES DE PESSOAS. MILHÕES DE COMPARTILHAMENTOS. PROMOÇÃO PESSOAL. IMUNIDADE PARLAMENTAR COMO ESCUDO PARA ATAQUES À DEMOCRACIA. IMPOSSIBILIDADE. GRAVIDADE. CASSAÇÃO DO DIPLOMA. INELEGIBILIDADE. PROVIMENTO.

1. Recurso ordinário interposto pelo Ministério Público contra acórdão prolatado pelo TRE/PR, que, por maioria de votos, julgou improcedente os pedidos em Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) proposta em desfavor de Deputado Estadual eleito pelo Paraná em 2018, afastando o abuso de poder político e o uso indevido dos meios de comunicação social (art. 22 da LC 64/90).

2. Rejeitada a preliminar de inovação recursal aduzida em contrarrazões. Os argumentos contidos no apelo apenas contrapõem a tese da Corte de origem de que a internet e as redes sociais não se enquadram como meios de comunicação.

3. A hipótese cuida de live transmitida ao vivo em rede social, quando em curso a votação no primeiro turno, para mais de 70 mil internautas, e que até 12/11/2018 teve mais de 105 mil comentários, 400 mil compartilhamentos e seis milhões de visualizações. O recorrido – que exercia o cargo de Deputado Federal – noticiou a existência de fraudes em urnas eletrônicas e outros supostos fatos acerca do sistema eletrônico de votação.

4. Sintetizam-se as principais declarações na transmissão: (a) “já identificamos duas urnas que eu digo ou são fraudadas ou adulteradas. [...], eu tô com toda a documentação aqui da própria Justiça Eleitoral”; (b) “nós estamos estourando isso aqui em primeira mão pro Brasil inteiro [...], urnas ou são adulteradas ou fraudadas”; (c) “nosso advogado acabou de confirmar [...], identificou duas urnas que eu digo adulteradas”; (d) “apreensão feita, duas urnas eletrônicas”; (e) “não vamos aceitar que uma empresa da Venezuela, que a tecnologia que a gente não tem acesso, defina a democracia no Brasil”; (f) “só aqui e na Venezuela tem a porcaria da urna eletrônica”; (g) “daqui a pouco nós vamos acompanhar [a apuração dos resultados], sem paradinha técnica, como aconteceu com a Dilma”; (h) “eu uso aqui a minha imunidade parlamentar, que ainda vai até janeiro, independente dessa eleição, pra trazer essa denúncia”. 

5. O teor do vídeo é inequívoco, residindo a controvérsia em questões de direito: legitimidade do pleito, possibilidade de enquadrar a conduta no art. 22 da LC 64/90 e gravidade dos fatos.

6. O sistema eletrônico de votação representa modelo de inegável sucesso implementado nas Eleições 1996 e internacionalmente reconhecido. O propósito dessa verdadeira revolução residiu na segurança e no sigilo do voto, sendo inúmeros os fatores que poderiam comprometer os pleitos realizados com urnas de lona, desde simples erros humanos na etapa de contagem, manipulações em benefício de candidatos e a execrável mercancia do sufrágio. Visou-se, ainda, conferir maior rapidez na apuração, o que possui especial relevância em país de dimensões continentais. 

7. Esta Justiça Especializada não atua de forma sigilosa ou numa espécie de redoma na organização do pleito. Ao contrário, busca sempre soluções construtivas com os atores do processo eleitoral tendo como fim maior aperfeiçoar continuamente as eleições e consolidar o regime democrático.

8. A parceria entre órgãos institucionais de ponta na área de tecnologia, a constante busca por inovação e o contínuo diálogo com a sociedade propiciaram a plena segurança do sistema eletrônico de votação no decorrer dos últimos 25 anos, sem nenhuma prova de fraude de qualquer espécie, conforme inúmeras auditorias internas e externas e testes públicos de segurança diuturnamente noticiados pela Justiça Eleitoral.

9. Hipótese inédita submetida a esta Corte Superior é se ataques ao sistema eletrônico de votação e à democracia, disseminando fatos inverídicos e gerando incertezas acerca da lisura do pleito, em benefício de candidato, podem configurar abuso de poder político ou de autoridade – quando utilizada essa prerrogativa para tal propósito – e/ou uso indevido dos meios de comunicação quando redes sociais são usadas para esse fim.

10. Os arts. 1º, II e parágrafo único, e 14, § 9º, da CF/88, além dos arts. 19 e 22 da LC 64/90 revelam como bens jurídicos tutelados a paridade de armas e a lisura, a normalidade e a legitimidade das eleições. Não há margem para dúvida de que constitui ato abusivo, a atrair as sanções cabíveis, a promoção de ataques infundados ao sistema eletrônico de votação e à própria democracia, incutindo-se nos eleitores a falsa ideia de fraude em contexto no qual candidato sobrevenha como beneficiário dessa prática.

11. O abuso de poder político configura-se quando a normalidade e a legitimidade do pleito são comprometidas por atos de agentes públicos que, valendo-se de sua condição funcional, beneficiam candidaturas em manifesto desvio de finalidade. Precedentes.

12. Inviável afastar o abuso invocando-se a imunidade parlamentar como escudo. No caso de manifestações exteriores à Casa Legislativa a que pertence o parlamentar, “há necessidade de verificar se as declarações foram dadas no exercício, ou em razão do exercício, do mandato parlamentar; ou seja, se o denunciado expressou suas opiniões, sobre questões relacionadas a políticas governamentais; e se essas opiniões se ativeram aos parâmetros constitucionalmente aceitos, ou se teriam extrapolado eventuais parâmetros das imunidades materiais” (voto do Min. Alexandre de Moraes no Inquérito 4.694/DF, DJE de 1º/8/2019).

13. A internet e as redes sociais enquadram-se no conceito de “veículos ou meios de comunicação social” a que alude o art. 22 da LC 64/90. Além de o dispositivo conter tipo aberto, a Justiça Eleitoral não pode ignorar a realidade: é notório que as Eleições 2018 representaram novo marco na forma de realizar campanhas, com claras vantagens no uso da internet pelos atores do processo eleitoral, que podem se comunicar e angariar votos de forma mais econômica, com amplo alcance e de modo personalizado mediante interação direta com os eleitores.

14. No caso, constata-se sem nenhuma dificuldade que todas as declarações do recorrido durante sua live, envolvendo o sistema eletrônico de votação, são absolutamente inverídicas.

15. Quanto às urnas eletrônicas de seções eleitorais do Paraná, o recorrido atribuiu-lhes a pecha de “fraudadas”, “adulteradas” e “apreendidas” e apontou que “eu tô com toda a documentação aqui da própria Justiça Eleitoral”. Todavia, (a) inexistiu apreensão, mas mera substituição por problemas pontuais; (b) além da já enfatizada segurança das urnas eletrônicas, a Corte de origem realizou auditoria antes do segundo turno – na presença de técnicos da legenda do candidato – e nada constatou; (c) é falsa a narrativa de que a suposta fraude estaria comprovada na “documentação aqui da própria Justiça Eleitoral”, não havendo nenhuma menção a esse respeito nas atas das respectivas seções.

16. No tocante à declaração de que “nós não vamos aceitar que uma empresa da Venezuela, que a tecnologia que a gente não tem acesso, defina a democracia no Brasil”, trata-se de inverdades refutadas inúmeras vezes: (a) sendo a Justiça Eleitoral criadora e desenvolvedora da urna eletrônica, seria no mínimo contraditório dizer que não há acesso à tecnologia de sistemas; (b) a empresa que produz as urnas não é venezuelana – o que, aliás, por si só, não representaria qualquer problema se fosse verdade. 

17. É falsa a afirmativa de que apenas Brasil e Venezuela empregam urnas eletrônicas. Segundo o Instituto Internacional para a Democracia e a Assistência Social, 23 países as utilizam em eleições gerais e outros 18 em pleitos regionais, incluídos Canadá, França e algumas localidades nos Estados Unidos, o que também já foi esclarecido pela Justiça Eleitoral.

18. Inexistiu fraude nas Eleições 2014. Para além das inúmeras ocasiões em que a Justiça Eleitoral cumpriu com transparência seu dever de informação, houve auditoria externa conduzida pela grei derrotada naquele pleito, nada se identificando como irregular.

19. Os dividendos angariados pelo recorrido são incontroversos. A live ocorreu quando a votação ainda estava aberta no Paraná, ao passo que o acesso à internet ocorre de qualquer lugar por dispositivos móveis, reiterando-se que a transmissão foi assistida por mais de 70 mil pessoas, afora os compartilhamentos do vídeo.

20. O recorrido valeu-se das falsas denúncias para se promover como uma espécie de paladino da justiça, de modo a representar eleitores inadvertidamente ludibriados que nele encontraram uma voz para ecoar incertezas sobre algo que, em verdade, jamais aconteceu. Também houve autopromoção ao mencionar que era Deputado Federal e que a imunidade parlamentar lhe permitiria expor os hipotéticos fatos.

21. Gravidade configurada pela somatória de aspectos qualitativos e quantitativos (art. 22, XVI, da LC 64/90). O ataque ao sistema eletrônico de votação, noticiando-se fraudes que nunca ocorreram, tem repercussão nefasta na legitimidade do pleito, na estabilidade do Estado Democrático de Direito e na confiança dos eleitores nas urnas eletrônicas, utilizadas há 25 anos sem nenhuma prova de adulterações. Além disso, reitere-se a audiência de mais de 70 mil pessoas e, até 12/11/2018, mais de 400 mil compartilhamentos, 105 mil comentários e seis milhões de visualizações.

22. Na linha do parecer ministerial, “a transmissão ao vivo de conteúdo em rede social, no dia da eleição, contendo divulgação de notícia falsa e ofensiva por parlamentar federal, em prol de seu partido e de candidato, configura abuso de poder de autoridade e uso indevido de meio de comunicação”, sendo grave a afronta à “legitimidade e normalidade do prélio eleitoral”.

23. Recurso ordinário provido para cassar o diploma do recorrido e declará-lo inelegível (art. 22, XIV, da LC 64/90), com imediata execução do aresto, independentemente de publicação, e recálculo dos quocientes eleitoral e partidário.

 

Acordam os ministros do Tribunal Superior Eleitoral, por maioria, em dar provimento ao recurso ordinário para julgar procedentes os pedidos formulados na ação de investigação judicial eleitoral, cassar o diploma do recorrido e declarar sua inelegibilidade por oito anos, contados das Eleições de 2018, determinando a imediata comunicação ao Tribunal Regional para que, independentemente da publicação do acordão, proceda à retotalização das eleições para o cargo de deputado estadual do Paraná, computando-se como anulados os votos atribuídos ao recorrido, nos termos do voto do relator.

 

Brasília, 28 de outubro de 2021.

 

MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO  –  RELATOR

 

RELATÓRIO

 

O SENHOR MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO: Senhor Presidente, trata-se de recurso ordinário interposto pelo Parquet contra aresto proferido pelo TRE/PR, nos termos da seguinte ementa (ID 21.646.688):

ELEIÇÕES 2018. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. DIVULGAÇÃO DE “LIVE”, EM REDE SOCIAL, FACEBOOK POR DEPUTADO FEDERAL E CANDIDATO A DEPUTADO ESTADUAL, DURANTE O HORÁRIO DA VOTAÇÃO DO PRIMEIRO TURNO, CONTENDO A AFIRMAÇÃO DE QUE ESTAVA COMPROVADO QUE DUAS URNAS ESTAVAM FRAUDADAS OU ADULTERADAS, ALÉM DE OUTRAS CRÍTICAS E CONTEÚDOS FALSOS PROFERIDOS EM TOM SENSACIONALISTA E OFENSIVO. USO INDEVIDO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO NÃO CONFIGURADO. ABUSO DE AUTORIDADE. CONFIGURAÇÃO. IMUNIDADE PARLAMENTAR MATERIAL QUE NÃO AUTORIZA ATAQUES ÀS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS.  PUNIÇÃO EXCEPCIONALMENTE AFASTADA EM VIRTUDE DO ENTENDIMENTO DA MAIORIA DA CORTE DE QUE NÃO HÁ PROVA CABAL DE QUE A CONDUTA DO INVESTIGADO TENHA RESULTADO EM BENEFÍCIO À CANDIDATO NA ELEIÇÃO DE 2018. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE.

1. Uso indevido dos meios de comunicação não configurado, uma vez que este requer a comprovação da utilização de veículos de imprensa, como rádio, jornal ou televisão, em benefício de determinado candidato, seja pela concessão, em seu favor, de espaço privilegiado na mídia, ou pela crítica abusiva aos demais concorrentes. Aplicativos de mensagens e contas pessoais em redes sociais não se enquadram no conceito legal.

2. Eventual falha de funcionamento das urnas eletrônicas não implica fraude no sistema de votação, inclusive porque fraude exige atuação humana intencional, neste caso, voltada a manipulação do resultado eleitoral.

3. Não se questiona o direito de repassar, por meio das redes sociais, informações sobre relatos de eleitores que estavam enfrentando eventuais problemas técnicos de funcionamento com as urnas eletrônicas, sendo que, inclusive é de se reconhecer a utilidade pública desse tipo de informação e principalmente de quais seriam as medidas que os eleitores poderiam tomar ao se depararem com eventual falha de funcionamento da urna ou qualquer outro problema no momento da votação, de maneira serena e responsável.

4. Um parlamentar não pode propagar irresponsavelmente fatos deturpados, notícias falsas, e teorias conspiratórias sobre fraudes, agentes infiltrados e golpe, com inquestionável potencial de desacreditar instituições e promover a desordem social.

5. A imunidade parlamentar material não é absoluta e “não confere aos parlamentares o direito de empregar expediente fraudulento, artificioso ou ardiloso, voltado a alterar a verdade da informação, com o fim de desqualificar ou imputar fato desonroso à reputação de terceiros”. Precedentes STF. 

6. Conduta que não pode ser tolerada, independentemente de quem a pratique, pois atenta contra o Poder Judiciário Eleitoral, colocando em risco a independência e a harmonia dos Poderes da República Federativa do Brasil e o próprio Estado Democrático de Direito.

7. Punição que deve ser, excepcionalmente, afastada no caso concreto em virtude do entendimento, pela maioria da Corte, quanto a fragilidade da prova nos autos de que a conduta do investigado foi em benefício de candidato, partido político ou coligação, no pleito eleitoral de 2018.

9. Ação de investigação judicial eleitoral julgada improcedente.

Na origem, o Ministério Público ajuizou Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) em desfavor de Fernando Destito Francischini, Deputado Estadual pelo Paraná eleito em 2018 (obteve 427.749 votos, ou 7,51% do total), e detentor do cargo de Deputado Federal na data do pleito, por suposto uso indevido dos meios de comunicação e abuso de autoridade, nos termos do art. 22 da LC 64/90.

 Aduziu que, no dia 7/10/2018 (primeiro turno das eleições), enquanto ainda decorria o pleito, o então candidato transmitiu ao vivo live no facebook, na qual: (a) divulgou notícias falsas e sabidamente inverídicas acerca da lisura do pleito; (b) fez propaganda pessoal e partidária, o que é vedado no dia da eleição (art. 39, § 5º, III, da Lei 9.504/97).

Em anexo à inicial, dentre outros documentos, constam três vídeos da live impugnada (IDs 21.636.688, 21.636.738 e 21.636.788), vídeo com matéria veiculada na TV (ID 21.636.838) e cópia do acórdão de improcedência da impugnação às urnas eletrônicas apresentada em 7/10/2018 (ID 21.637.238).

Já à contestação foram anexados: cópia de parte do mesmo procedimento de investigação trazido com a inicial; documento intitulado “elenco de notícias sobre fraudes que orientou o debate público” (ID 21.637.988); cópia de ofício enviado pelo Deputado Fernando Francischini à Presidência do TSE antes do primeiro turno das Eleições 2018 (ID 21.638.038); cópia de acórdãos de Tribunais Regionais Eleitorais; laudo do perito do PSL que acompanhou a auditoria das urnas impugnadas (ID 21.638. 638).

O TRE/PR, por maioria, julgou improcedentes os pedidos (ID 21.656.988), nos seguintes termos: (a) dois julgadores reconheceram o abuso de poder e votaram pela procedência; (b) um dos membros também assentou o abuso, mas entendeu incabível qualquer sanção por força do princípio da anualidade (art. 16 da CF/88); (c) três membros reputaram atípica a conduta, dois deles por falta de prova do benefício eleitoral auferido e um por entender que não havia qualquer ilícito. Houve unanimidade quanto à impossibilidade de se enquadrar as redes sociais como meio de comunicação social, e, por conseguinte, analisar seu eventual uso indevido na forma do art. 22 da LC 64/90.

No recurso ordinário, o Parquet alegou que (ID 21.646.888):

a) “os três votos declarados pelo julgamento de improcedência adotaram fundamentos distintos e, em certa medida, incompatíveis entre si, para a adoção de tal conclusão” (fls. 6-7), os quais serão impugnados individualmente;

b) as redes sociais devem ser incluídas no conceito de meios de comunicação, pois “a informação publicada na rede mundial de computadores não se volta às relações interpessoais simples” e “tem alcance muito mais difundido do que o de certas modalidades de mídia tradicional” (fl. 8); 

c) “patente está o mau uso da rede social Facebook cometido pelo investigado, porquanto este utilizou-se de seu perfil parlamentar para disseminar notícias falsas acerca da segurança das eleições para promover sua atuação e a de seu partido” (fl. 9);

d) não se sustenta o argumento de que inaplicabilidade de sanção no caso por força do art. 16 da CF/88 (princípio da anualidade), porquanto “a divulgação de notícias falsas em períodos eleitorais não é matéria nova” (fls. 9-10) e não se trata de mudança de jurisprudência, já que o abuso de poder e de autoridade sempre foram coibidos;

e) no que se refere ao benefício eleitoral, “basta a análise do discurso proferido pelo investigado na transmissão ao vivo feita pela rede social Facebook para constatar que, longe de atender às orientações de seu partido e meramente divulgar informações ou mesmo tecer comentários a respeito de sua opinião pessoal acerca da segurança das urnas eletrônicas, o recorrido distorceu as falhas técnicas noticiadas e a substituição de duas urnas no Colégio Positivo Júnior para evidente promoção pessoal e partidária, nos moldes vedados pelo art. 22, caput, da Lei das Inelegibilidades” (fl. 12);

f) “o investigado também extrapolou toda e qualquer imunidade parlamentar que possui, abusando de suas prerrogativas parlamentares e em claro mau uso de poder de autoridade” (fl. 17);

g) além do fato de que “o próprio recorrido alega que teria agido como parlamentar ao realizar a transmissão ao vivo”, “a live foi veiculada na página Delegado Francischini, webpage profissional do investigado onde este divulga suas opiniões e trabalhos de membro do Poder Legislativo, que atualmente conta com 1.758.910 curtidas e 2.069.134 seguidores, e não no perfil pessoal do recorrido (Fernando D. Francischini)” (fl. 18).

Requereu, ao final, a reforma do aresto a quo, “reconhecendo-se a infração ao artigo 22 da Lei Complementar nº 64 de 1990, e aplicando-se, por consequência, a cassação do diploma de Fernando Destito Francischini e declarando-se sua inelegibilidade” (fl. 20).

Fernando Destito Francischini apresentou contrarrazões, nas quais aduziu, em síntese (ID 21.647.188):

a) preliminarmente, que não podem ser apreciados pela instância superior “fundamentos de fatos não arguidos e discutidos na primeira instância, [que] tão pouco guardam relação com as razões expostas no v. Acórdão recorrido” (fl. 12), no que tange aos “dados e informações alusivas ao uso da internet pelos brasileiros” e ao “compromisso assumido pela Justiça Eleitoral com o combate às Fake news e da inaplicabilidade do princípio da anualidade” (fl. 13);

b) “o uso indevido dos meios de comunicação requer a comprovação da utilização de veículos de imprensa, tais como rádio, jornal ou televisão, em benefício de determinado candidato” (fl. 16), o que, como já se assentou em julgados de outros Tribunais Regionais Eleitorais, não abrange as redes sociais;

c) “para a caracterização do instituto do uso indevido dos meios de comunicação social se faz necessária ‘exposição massiva de um candidato nos meios de comunicação em detrimento de outros, de forma a afeta a legitimidade e a normalidade das eleições’, fato não verificado nos autos” (fl. 19);

d) não pode ser considerado grave, como exigem o art. 22 da LC 64/90 e a jurisprudência para que se configure o abuso, “o único vídeo postado pelo Deputado Federal às 16:38min (ou seja, há (sic) 22 minutos do término das eleições)”, como se “pudesse comprometer a legitimidade da eleição para Presidente da República (único candidato citado na live), a partir do rompimento da isonomia entre aqueles candidatos” (fl. 21);

e) “a maioria das testemunhas ouvidas em juízo declararam que desconhecem o teor do vídeo objeto desta ação e ou que o assistiram após o pleito eleitoral”, o que permite concluir que “não teve o condão de interferir nem mesmo minimamente no pleito eleitoral” (fl. 22);

f) “[d]esde que em nenhum momento da live o Recorrido se colocou na posição de candidato, em circunstância de que pudesse auferir proveito eleitoral para si ou a favor do PSL, ausente o benefício eleitoral” (fl. 24);

g) “a postagem não exerceu a mínima influência no pleito, dado que a expectativa de votos se consolidou percentualmente como se apontava nas pesquisas de opinião pública realizadas no período anterior e no curso do pleito” (fl. 25);

h) “[e]stamos neste caso diante de fato atípico, ainda acobertado pelas garantias constitucionais quanto à liberdade de expressão e imunidade parlamentar; que justamente se presta à proteção em face do abuso de poder” (fl. 27);

i) “o móvel do recorrido para a veiculação do fato investigado se dirigiu a informar os seus eleitores da obtenção de provas para a consequente perícia. Portanto, não houve finalidade eleitoral do ato” (fls. 35-36);

j) “restringir-se a liberdade de expressão crítica e da manifestação do pensamento, justamente durante um ambiente de anormalidade causado pela instabilidade do sistema eletrônico de votação, é negar vigência aos arts. 10 e 53, da Constituição Federal” (fl. 38).

A d. Procuradoria-Geral Eleitoral opinou pelo provimento do recurso ordinário (ID 26.472.988).

É o relatório.

 

VOTO

 

O SENHOR MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO (relator): Senhor Presidente, a controvérsia cinge-se à prática de abuso de poder político e de autoridade e, ainda, de uso indevido dos meios de comunicação social pelo recorrido, eleito Deputado Estadual pelo Paraná em 2018, nos termos do art. 22 da LC 64/90.

Em apertada síntese, a hipótese cuida de live transmitida ao vivo na rede social facebook, quando em curso a votação no primeiro turno, para mais de 70 mil internautas, e que até 12/11/2018 teve mais de 105 mil comentários, 400 mil compartilhamentos e seis milhões de visualizações. 

Na oportunidade, o recorrido – que exercia o cargo de Deputado Federal – noticiou a existência de fraudes em urnas eletrônicas e outros supostos fatos sobre o sistema eletrônico de votação.

3. Antes de adentrar o contexto fático e jurídico acerca do mérito, anoto que nas contrarrazões ao recurso ordinário se aduziu preliminar de inovação recursal.

Segundo o recorrido, o Ministério Público “trouxe [...] fundamentos de fatos não arguidos e discutidos na primeira instância, tão pouco guardam relação com as razões expostas no v. Acórdão recorrido”, relativos aos “dados e informações alusivas ao uso da internet pelos brasileiros” e ao “compromisso assumido pela Justiça Eleitoral com o combate às Fake news e da inaplicabilidade do princípio da anualidade” (ID 21.647.188, p. 11).

Todavia, tais argumentos objetivaram unicamente contrapor a tese sufragada pela Corte de origem de que as redes sociais não seriam meios de comunicação social. Trata-se, portanto, de matéria amplamente debatida nos autos.

Ademais, na linha do parecer da d. Procuradoria-Geral Eleitoral, trata-se de decorrência lógica do princípio da dialeticidade (ID 26.472.988, fls. 11-12): 

Um dos fundamentos utilizados pelo acórdão recorrido para julgar improcedentes os pedidos formulados pelo recorrente em sua inicial foi o de que as redes sociais não se enquadram no conceito de uso indevido de meio de comunicação, constante do art. 22, XIV, da LC nº 64/90. Logo, a tese exposta no recurso ordinário de que as redes sociais configuram meio de comunicação de massa, com a apresentação de dados objetivos nesse sentido, se encontra albergada nos princípios da dialeticidade e do contraditório.

Além disso, aplica-se ao recurso ordinário, por analogia, a regra do recurso de apelação prevista no art. 1.013, § 1º, do CPC/2015, segundo o qual “serão, porém, objeto de apreciação e julgamento pelo tribunal todas as questões suscitadas e discutidas no processo, ainda que não tenham sido solucionadas, desde que relativas ao capítulo impugnado”.

Na lição de Renato Montans de Sá, “a profundidade, que decorre do princípio inquisitivo, será sempre integral, pois dentro da extensão devolvida, todo material pertinente a ela (profundidade) será levado ao Tribunal” (Manual de Direito Processual Civil. 6. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021, p. 1.562).

Rejeito, portanto, a preliminar.

4. Quanto ao tema de fundo, é incontroverso que o recorrido promoveu live na rede social facebook, transmitida ao vivo durante o primeiro turno das Eleições 2018, noticiando a existência de hipotética fraude no sistema eletrônico de votação. 

A solução da questão é eminentemente jurídica, com destaque para o eventual enquadramento da conduta no art. 22 da LC 64/90 – abuso de poder econômico e de autoridade, além de uso indevido dos meios de comunicação social –, passando pela legitimidade do pleito e pela gravidade dos fatos.

4.1. De fato, para melhor compreensão do caso, entendo fundamental delimitar desde logo as principais declarações do recorrido na multicitada live, que, como se viu, teve grande repercussão: audiência aproximada de 70 mil pessoas e, ao menos até 12/11/2018, mais de 105 mil comentários, 400 mil compartilhamentos e seis milhões de visualizações.

O recorrido deu início à transmissão e de pronto noticiou que “já identificamos duas urnas que eu digo ou são fraudadas ou adulteradas. Agora é real o que eu tô passando pra vocês, eu tô com toda a documentação aqui da própria Justiça Eleitoral”.

Após descrever a suposta fraude – eleitores não estariam conseguindo votar em um dos candidatos ao cargo de Presidente da República –, o recorrido reforçou que “o que vocês relataram era verdade, nós estamos estourando isso aqui em primeira mão pro Brasil inteiro, pra vocês, urnas ou são adulteradas ou fraudadas e [...] a gente tá trazendo essa denúncia gravíssima antes do final [da votação]”.

A tônica é a mesma no decorrer de toda a transmissão, mencionando-se direta ou indiretamente a hipotética fraude em inúmeras outras passagens, como se observa a seguir:

[...] nosso advogado acabou de confirmar, de conseguir, identificou duas urnas que eu digo adulteradas [...].

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[...] No final do processo, o voto para Presidente não aparece a opção confirmar, em seguida apareceu a tela gravando, ou seja, está adulterada e fraudada, duas urnas estão apreendidas. Eu achei que podia ser problema técnico, uma, duas, três urnas, pelo Brasil, são centenas de urnas no Brasil inteiro com problema, nós não vamos aceitar esse resultado, não vamos aceitar.

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[...] Eu tô até engasgado aqui, gente, tá aqui o nosso documento, Justiça Eleitoral, a apreensão feita, duas urnas eletrônicas, até que enfim agora a gente tem uma ação concreta, até agora eram ações que a gente buscava provas. [...]

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[...] Duas urnas eletrônicas! Imagine as milhares que existem aí? Eu tô desde de manhã recebendo denúncia sobre isso, desde de manhã [...]

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[...] em todo lugar funcionário puxa a gente no canto, fala: “tá estranho, é muita urna com problema”. Não dá pra votar só pra Presidente, gente? É só pra Presidente que não pode votar nesse país? [...]

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[...] Eu vi um videozinho, esse eu não sei se é verdadeiro ou não, mas eu vi, e aqui eu não tenho papa na língua porque eu tenho uma merda que chama imunidade parlamentar pra falar.  Vota 1, aparece o nome do Haddad, se for um fake, depois eu volto e me retrato, mas eu não vou deixar de falar. Se você viu esse vídeo, você também tá p da cara como eu [...]

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[...] a minha é a voz pra denunciar como deputado federal, que é delegado da Polícia Federal, a minha voz é a voz de vocês nesse momento pra explodir no Brasil inteiro. [...]

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[...] mas você do Brasil inteiro sabe que nós não podemos numa democracia é... aceitar esse tipo de coisa. [...]

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[...] Aí, graças a Deus, equipe, parabéns, da Justiça Eleitoral, o juiz eleitoral, o Ministério Público Eleitoral foram pra cima, tentaram reiniciar a urna, viram os lacres, apreenderam as duas urnas [...].

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[...] Isso é escancaradamente uma vergonha que nós estamos vendo e pode ser um golpe contra a democracia, que nós não vamos aceitar. [...]

Declarações adicionais, também relativas ao sistema eletrônico de votação, visaram reforçar a ideia de fraude para o grande público que assistiu, curtiu e compartilhou a transmissão.

O recorrido destacou que as urnas eletrônicas eram desenvolvidas e gerenciadas por empresa venezuelana, sem que a Justiça Eleitoral tivesse acesso ao sistema. Salientou que (a) “nós não queremos mais essa [...] empresa da Venezuela tocando urna eletrônica no Brasil”; (b) “se isso está acontecendo no Brasil inteiro é uma sem-vergonhice, nós vamos botar pra correr essa empresa da Venezuela”; (c) “como é que uma coisa de segurança nacional, que é a definição da democracia, do governo dum país, está na mão duma empresa da Venezuela que tá em frangalhos lá?”; (d) “nós não vamos aceitar que uma empresa da Venezuela, que a tecnologia que a gente não tem acesso, defina a democracia no Brasil”.

Ademais, disse que “só aqui e na Venezuela tem a porcaria da urna eletrônica”.

De outra parte, mencionou que a disputa das eleições presidenciais de 2014 também estaria eivada de fraude, nos seguintes termos:

[...] daqui a pouco nós vamos acompanhar [a apuração dos resultados], sem paradinha técnica, como aconteceu com a Dilma lá atrás. [...]

Por fim, em mais de uma oportunidade, o recorrido, à época Deputado Federal, deixou claro que “eu uso aqui a minha imunidade parlamentar, que ainda vai até janeiro, independente dessa eleição, pra trazer essa denúncia”. O mesmo ocorreu em outras ocasiões na live: “eu tenho uma m...da que chama imunidade parlamentar pra falar”; “se existe qualquer porcaria chamada imunidade parlamentar pra mim [sic] fazer essa denúncia”. 

4.2. Convém desde logo salientar que são absolutamente falsas as declarações do recorrido quanto às urnas eletrônicas de seções eleitorais do Paraná, às quais atribuiu a pecha de “fraudadas”, “adulteradas” e “apreendidas”, além de aduzir que “eu tô com toda a documentação aqui da própria Justiça Eleitoral”, levando a erro milhões de eleitores.

Da análise das provas dos autos, observo que inexistiu qualquer apreensão, mas apenas substituição de poucas urnas por problemas pontuais. Cabe lembrar que o recorrido, delegado de polícia licenciado do cargo, inequivocamente conhece a terminologia técnica do vocábulo “apreensão” e os reflexos dessa afirmativa naquele contexto fático.

Quanto à fraude ou adulteração, além da notória segurança das urnas eletrônicas (o que será visto em detalhes adiante), a Corte de origem teve o cuidado de realizar auditoria nos equipamentos antes do segundo turno – inclusive com participação de técnicos da legenda pela qual o recorrido se elegeu – e nada constatou. Destaco o seguinte trecho do relatório conclusivo (ID 21.637.238, fl. 11):

Nesse contexto é que, ao apreciar o pedido de impugnação das urnas, não obstante não tenha verificado um lastro probatório mínimo a indicar a ocorrência de fraude, em homenagem ao princípio democrático e à transparência no processo eleitoral, deferi a realização da auditoria.

Realizados todos os procedimentos tal como relatado, presentes os peritos designados por esta Corte e pelo Tribunal Regional Eleitoral de Santa Catarina e os assistentes técnicos designados pelo requerente, Partido Social Liberal – PSL, pelo Partido Democrático Trabalhista – PDT e pelo Partido dos Trabalhadores – PT, realizou-se a perícia, que verificou, por meio da análise dos boletins de urna, que todos os votos captados pelas urnas auditadas foram devidamente computados.

Os procedimentos técnicos adotados pelos peritos estão minuciosamente descritos no Diário de Auditoria anexo ao Relatório Final (ID 328.920).

Ao final dos trabalhos, não obstante a ausência do assistente técnico nomeado pelo PSL, que retirou-se mais cedo do recinto sob alegação de “motivo de ordem pessoal”, os peritos “(...) observadas as restrições do escopo do trabalho, em especial a indisponibilidade do código fonte, chegaram às seguintes conclusões: a) os sistemas instalados nas urnas auditadas são os mesmos que foram lacrados pelo TSE; b) as urnas estavam em perfeitas condições de uso e funcionamento; c) não há indícios de qualquer espécie de fraude no sistema ou no funcionamento das urnas”.

(sem destaques no original)

Também é inverídica a narrativa segundo a qual a suposta fraude – repita-se, inexistente – foi comprovada com base em “toda a documentação aqui da própria Justiça Eleitoral”, que estaria em posse do recorrido.

Ao contrário, nas atas das respectivas seções não consta nenhuma menção de que o promotor e o juiz eleitoral observaram algum tipo de fraude, sendo que, na primeira delas, o relato da eleitora foi apenas de que “teve dúvida sobre a confirmação do voto para Presidente da República” (IDs 21.636.888, fls. 89-92, e 21.637.088, fl. 13).

Ademais, em reunião no TRE/PR em 10/10/2018 para tratar da auditoria, o Juiz Eleitoral da 1ª Zona de Curitiba esclareceu “que as urnas impugnadas estão lacradas e disponíveis para auditoria. Disse que foram substituídas por alegação de erro da urna, sobrecarga e não por fraude. Reforçou que em nenhum momento admitiu fraude e por isso substituiu a urna, sendo uma inverdade dita no vídeo [do recorrido]” (ID 21.637.138).

5. É essencial salientar o papel extremamente relevante da Justiça Eleitoral para a manutenção e a garantia do Estado Democrático de Direito em nosso País.

A Constituição Federal enuncia, já no caput de seu art. 1º, que “[a] República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito”. 

Tal como previsto no art. XXI da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 e no art. 25, b, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966 (promulgado no Brasil por meio do Decreto 592/92), assegura-se a todo cidadão o direito “de votar e de ser eleito em eleições periódicas, autênticas, realizadas por sufrágio universal e igualitário e por voto secreto, que garantam a manifestação da vontade dos eleitores”. 

Nesse contexto, José Jairo Gomes ensina que “para que esse regime se concretize, é preciso que exista um sistema eleitoral confiável, que confira segurança e legitimidade ao exercício da democracia e capte imparcialmente a vontade do povo” (Direito Eleitoral. 16. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2020, p. 77).

Diogo Rais et al, por sua vez, esclarecem que “[o] escrutínio normal e legítimo é aquele no qual candidatos, partidos, coligações e demais atores do jogo eleitoral respeitam todas as regras e procedimentos legais, e no qual há busca para garantir a todos os candidatos a equiparação de armas e a igualdade de oportunidades para que, assim, o eleitor possa fazer a melhor escolha” (Direito Eleitoral Digital. 2. ed. atual. e ampl. São Paulo: Thomas Reuters Brasil, 2020, p. 25).

Diante desse arcabouço jurídico e nesse panorama de ideias, cumpre à Justiça Eleitoral o múnus de organizar as etapas necessárias para que se realizem eleições transparentes, equânimes e com segurança.

Como tenho destacado ao longo de minha passagem por esta Corte, esse papel tem sido desempenhado há décadas com esmero, consolidando a curva ascendente da Justiça Eleitoral como instituição chave para a democracia, seja organizando as eleições ou, na seara jurisdicional, intervindo pontualmente nos casos concretos que revelem afronta aos aludidos pilares.

Particularmente no que se refere ao sistema eletrônico de votação, cabe traçar rápido histórico do inegável modelo de sucesso implementado em nosso País há 25 anos, nas Eleições 1996, reconhecido pela comunidade internacional.

O desenvolvimento das urnas eletrônicas resultou da atuação de grupo de especialistas em informática, eletrônica e comunicações da Justiça Eleitoral, das Forças Armadas e dos Ministérios da Ciência e Tecnologia e das Comunicações.

O propósito dessa verdadeira revolução nas eleições brasileiras residiu em primeiro lugar na segurança e no sigilo do voto. Inúmeros eram os fatores que poderiam comprometer os pleitos realizados com urnas de lona, desde simples erros humanos na etapa de contagem, passando por manipulações em benefício de candidatos, além da sempre execrável mercancia do sufrágio.

Ademais, o desenvolvimento das urnas eletrônicas visou conferir maior rapidez na apuração dos resultados, o que possui especial relevância em nosso País de dimensões continentais. 

O sucesso foi imediato. Nas Eleições 1996, quase um terço do eleitorado brasileiro registrou seu voto nessa modalidade, percentual que se elevou para quase 60% nas Eleições 1998 e que alcançou 100% nas Eleições 2000, apenas quatro anos depois de sua estreia.

A experiência bem sucedida não significou que a Justiça Eleitoral ficou parada no tempo. Novas tecnologias foram e continuam a ser desenvolvidas, destacando-se, a título demonstrativo, o leitor biométrico de impressão digital do eleitor (modelo UE 2006), o leitor de smart card e o display com foto do eleitor para o mesário (modelo UE 2009), a troca do sistema operacional para garantir aperfeiçoamento mais amplo dos sistemas das urnas (também modelo UE 2009), a evolução do sistema de biometria (modelos UE 2011 e 2013), dentre inúmeras outras.

Essa conquista permite que os 150 milhões de eleitores brasileiros possam exercer seu direito ao voto com segurança, sigilo e celeridade.

De mais a mais, a Lei 9.504/97 prevê ampla publicidade quanto ao desenvolvimento e à fiscalização do voto eletrônico, com participação ativa dos partidos políticos e demais atores do processo eleitoral, que podem impugnar os pontos que entenderem cabíveis. Confira-se o disposto no art. 66 desse diploma:

Art. 66. Os partidos e coligações poderão fiscalizar todas as fases do processo de votação e apuração das eleições e o processamento eletrônico da totalização dos resultados.

§ 1º Todos os programas de computador de propriedade do Tribunal Superior Eleitoral, desenvolvidos por ele ou sob sua encomenda, utilizados nas urnas eletrônicas para os processos de votação, apuração e totalização, poderão ter suas fases de especificação e de desenvolvimento acompanhadas por técnicos indicados pelos partidos políticos, Ordem dos Advogados do Brasil e Ministério Público, até seis meses antes das eleições.

§ 2º Uma vez concluídos os programas a que se refere o § 1º, serão eles apresentados, para análise, aos representantes credenciados dos partidos políticos e coligações, até vinte dias antes das eleições, nas dependências do Tribunal Superior Eleitoral, na forma de programas-fonte e de programas executáveis, inclusive os sistemas aplicativo e de segurança e as bibliotecas especiais, sendo que as chaves eletrônicas privadas e senhas eletrônicas de acesso manter-se-ão no sigilo da Justiça Eleitoral. Após a apresentação e conferência, serão lacradas cópias dos programas-fonte e dos programas compilados.

§ 3º No prazo de cinco dias a contar da data da apresentação referida no § 2º, o partido político e a coligação poderão apresentar impugnação fundamentada à Justiça Eleitoral.

§ 4º Havendo a necessidade de qualquer alteração nos programas, após a apresentação de que trata o § 3º, dar-se-á conhecimento do fato aos representantes dos partidos políticos e das coligações, para que sejam novamente analisados e lacrados.

§ 5º A carga ou preparação das urnas eletrônicas será feita em sessão pública, com prévia convocação dos fiscais dos partidos e coligações para a assistirem e procederem aos atos de fiscalização, inclusive para verificarem se os programas carregados nas urnas são idênticos aos que foram lacrados na sessão referida no § 2º deste artigo, após o que as urnas serão lacradas.

§ 6º No dia da eleição, será realizada, por amostragem, auditoria de verificação do funcionamento das urnas eletrônicas, através de votação paralela, na presença dos fiscais dos partidos e coligações, nos moldes fixados em resolução do Tribunal Superior Eleitoral. 

§ 7º Os partidos concorrentes ao pleito poderão constituir sistema próprio de fiscalização, apuração e totalização dos resultados contratando, inclusive, empresas de auditoria de sistemas, que, credenciadas junto à Justiça Eleitoral, receberão, previamente, os programas de computador e os mesmos dados alimentadores do sistema oficial de apuração e totalização.

Ademais, há previsão normativa desta própria Corte Superior de que candidatos, partidos e coligações fiscalizem as atividades de votação e apuração dos resultados, como se extrai da Res.-TSE 23.554/2017, aplicável às Eleições 2018:

Art. 151. Os candidatos registrados, os delegados e os fiscais de partidos políticos e de coligações serão admitidos pelas mesas receptoras a fiscalizar a votação, formular protestos e fazer impugnações, inclusive sobre a identidade do eleitor (Código Eleitoral, art. 132).

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Art. 171. Cada partido político ou coligação poderá credenciar, perante as juntas eleitorais, até três fiscais, que se revezarão na fiscalização dos trabalhos de apuração (Código Eleitoral, art. 161, caput).

Acrescento que este Tribunal e as Cortes Regionais Eleitorais realizam campanhas permanentes de esclarecimento a respeito de diversas temáticas afetas às eleições, dispõem de ouvidorias para demandas dos eleitores e desenvolvem parcerias com órgãos de imprensa e terceiros, sempre com intuito de promover e assegurar a máxima transparência nas atividades da Justiça Eleitoral.  

No ponto, faço um rápido apanhado visando reforçar o empenho do Tribunal Superior Eleitoral e dos Ministros desta Casa em informar e esclarecer a sociedade.

A título de exemplo, menciono a mais recente campanha, de agosto de 2021, com slogan “Urna Eletrônica: é segura, é fácil de checar, é do Brasil”, estrelada pela professora, filósofa e escritora Djamila Ribeiro, com ampla divulgação no rádio, na televisão e nas redes sociais. A publicidade mostra de forma didática os fatores que comprovam a segurança das urnas eletrônicas, informa a possibilidade de auditorias, noticia que qualquer pessoa pode checar os resultados pelo boletim de urna, além de esclarecer fatos inverídicos divulgados por terceiros sobre o sistema de votação.

Também nessa linha, dentre tantas outras, a campanha “por dentro da urna eletrônica”. Nela, o ilustre Presidente, Ministro Luís Roberto Barroso, enfatiza as etapas da votação e explicita a tecnologia de sistemas que acompanha as urnas eletrônicas, resultando na segurança e na confiabilidade do voto. 

Como se vê de modo claro – e nunca é demais enfatizar –, esta Justiça Especializada não atua de forma sigilosa ou numa espécie de redoma na organização do pleito. Ao contrário, busca sempre o diálogo construtivo com os atores do processo eleitoral tendo como fim maior aperfeiçoar continuamente as eleições e consolidar o regime democrático.

Assim, a parceria entre órgãos institucionais de ponta na área de tecnologia, a constante busca por inovação e o sólido diálogo com a sociedade propiciaram a plena segurança do sistema eletrônico de votação no decorrer dos últimos 25 anos, sem nenhuma prova de fraude de qualquer espécie, conforme inúmeras auditorias internas e externas e testes públicos de segurança diuturnamente noticiados pela Justiça Eleitoral.

6. O caso ora em julgamento apresenta hipótese inédita e extremamente relevante submetida ao Tribunal Superior Eleitoral, como dito, se ataques ao sistema eletrônico de votação e à democracia, disseminando-se fatos inverídicos e gerando incertezas acerca da lisura do pleito, em benefício de candidato, são em tese aptos a configurar abuso de poder político ou de autoridade – quando utilizada essa prerrogativa para tal propósito – e/ou uso indevido dos meios de comunicação quando redes sociais são usadas para esse fim.

6.1. Como ponto de partida para delinear o ato abusivo em sentido amplo, é essencial compreender quais são os bens jurídicos tutelados pela Constituição e pela legislação infraconstitucional.

Sob o plano constitucional, José Jairo Gomes preleciona que o processo eleitoral há de se desenvolver em harmonia com os valores, princípios e direitos fundamentais plasmados na Constituição Republicana:

Em uma de suas dimensões, o processo eleitoral constitui sistema lógico-normativo, formado por princípios e regras, devendo estar em harmonia com os valores e direitos fundamentais contemplados na Constituição Federal.

Entre suas funções, destaca-se a de regular as regras do jogo da disputa pelo exercício do poder político-estatal. Para ser democrático, é preciso que o processo eleitoral possibilite que haja verdadeira competição entre todas as forças políticas presentes na comunidade, sobretudo as minoritárias. Também é preciso que a disputa do pleito ocorra de forma efetiva, livre e – na medida do possível – em igualdade de condições, ideia essa bem traduzida pela expressão “paridade de armas”. Só assim se poderá afirmar que as eleições são autênticas e ocorreram normalmente, sendo, pois, legítimos os mandatos conquistados.

(Os bens jurídicos protegidos pelo art. 14, § 9º, da Constituição de 1988 e a revisão da decisão das urnas. In: FUX, Luiz; PEREIRA, Luiz Fernando Casagrande; AGRA, Walber de Moura (Coords.). Tratado de Direito Eleitoral. t. 7. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 22)

Na mesma senda, Roberto Moreira de Almeida elenca três dos principais dispositivos norteadores das eleições democráticas. Extraem-se do art. 1º, II e seu respectivo parágrafo único, e do art. 14, § 9º, da Constituição a imperativa observância às garantias de lisura, de cidadania e de paridade de armas:

As eleições em um regime verdadeiramente democrático devem ser pautadas pela igualdade de oportunidades entre todos os candidatos em disputa.

A garantia da lisura nas eleições no Brasil está calcada na ideia de cidadania, de origem popular do poder e no combate à influência do poder econômico ou político nas eleições.

Com efeito, na Constituição Federal de 1988 há diversos dispositivos voltados ao tema, dentre os quais se podem elencar, a título meramente exemplificativo:

a) a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como um de seus fundamentos a cidadania (art. 1º, inc. II); e

b) todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente nos termos desta Constituição (art. 1º, parágrafo único); e

c) lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessão, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta (art. 14, § 9º, com redação dada pela ECR nº 4/94).

(Curso de Direito Eleitoral. 13. ed. atual. e ampl. Salvador: JusPODIVM, 2019, p. 60) (sem destaques no original)

Como se sabe, o art. 14, § 9º, foi regulamentado pela Lei de Inelegibilidades, diploma que deu concretude aos referidos princípios, fundamentos e garantias. 

Da leitura conjunta dos arts. 19 e 22 da LC 64/90, extrai-se que os atos atentatórios contra a liberdade do voto serão apurados e punidos visando proteger a normalidade e a legitimidade do pleito, coibindo-se o uso desmedido do poder político ou dos meios de comunicação em favor de candidatos. Veja-se:

Art. 19. As transgressões pertinentes à origem de valores pecuniários, abuso do poder econômico ou político, em detrimento da liberdade de voto, serão apuradas mediante investigações jurisdicionais realizadas pelo Corregedor-Geral e Corregedores Regionais Eleitorais.

Parágrafo único. A apuração e a punição das transgressões mencionadas no caput deste artigo terão o objetivo de proteger a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou do abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta, indireta e fundacional da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

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Art. 22. Qualquer partido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleitoral poderá representar à Justiça Eleitoral, diretamente ao Corregedor-Geral ou Regional, relatando fatos e indicando provas, indícios e circunstâncias e pedir abertura de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político [...]

Ademais, a configuração dos ilícitos também pressupõe benefício a candidato ou legenda. Nesse sentido, dentre outros, o RO 1803-55/SC, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, DJE de 14/12/2018 e o RO 2230-37/AP, Rel. Min. Rosa Weber, DJE de 6/4/2018.

Assim, emerge de forma clara, a meu juízo, que os bens jurídicos protegidos pela Constituição Federal e pelas normas infraconstitucionais concentram-se na paridade de armas e na lisura, na normalidade e na legitimidade das eleições. A afronta a quaisquer desses postulados ensejará o reconhecimento do ilícito.

Como consectário lógico, penso não haver margem para dúvida de que constitui ato abusivo, a atrair as sanções eleitorais cabíveis, a promoção de ataques infundados ao sistema eletrônico de votação e à própria democracia, incutindo-se no eleitorado a falsa ideia de fraude e em contexto no qual determinado candidato sobrevenha como beneficiário dessa prática.

6.2. Especificamente quanto ao abuso de poder político e de autoridade, o ilícito se configura “no momento em que a normalidade e a legitimidade das eleições são comprometidas por condutas de agentes públicos que, valendo-se de sua condição funcional, beneficiam candidaturas, em manifesto desvio de finalidade” (RCED 661/SE, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, DJE de 16/2/2011). No mesmo sentido: AgR-REspe 0000220-27/RN, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJE de 14/10/2021; AgR-RO 0608809-63/RJ, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJE de 4/12/2020; AgR-AI 518-53/MA, Rel. Min. Sérgio Banhos, DJE de 6/3/2020, dentre outros.

Na mesma linha, a abalizada doutrina de José Jairo Gomes, para quem o abuso se caracteriza quando o poder político interfere ou manipula indevidamente a escolha do eleitor, em claro excesso dessa prerrogativa:

[...] a expressão abuso de poder de autoridade deve ser compreendida como a realização de ações que consubstanciam uso indevido do aludido poder ou ascendência pessoal com a finalidade de manipular indevidamente a formação da vontade política dos cidadãos, interferir indevidamente em seus comportamentos quando do exercício do sufrágio, determinando o sentido de seus votos, em proveito ou detrimento de candidaturas.

(Direito Eleitoral. 16. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2020, p. 737)

Por conseguinte, o candidato que promove ataques descabidos ao sistema eletrônico de votação e à democracia, utilizando-se de seu poder político ou sendo beneficiário da conduta de terceiros, pode vir a ser apenado pela Justiça Eleitoral no exame de caso concreto.

Ainda a respeito do abuso de poder político, na hipótese de sua configuração, é primordial assentar que não cabe afastá-lo invocando-se a imunidade parlamentar como escudo para a prática de ilícitos. 

A abrangência e as limitações desse instituto jurídico são relevantes para a solução do caso em análise, uma vez que o recorrido era Deputado Federal à época dos fatos e mais de uma vez declarou ao longo da transmissão que estava se utilizando dessa prerrogativa para denunciar as supostas fraudes.

Principio por rememorar as palavras de Rui Barbosa. A despeito da importância e da essencialidade dessa prerrogativa conferida aos congressistas, imprescindível ao desempenho de suas atribuições institucionais, “[a]s imunidades parlamentares não são apanágio das pessoas, mas propriedade da nação e defesa sua”.

Em nosso ordenamento jurídico, tem-se no art. 53 da CF/88 que “[o]s Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”.

O c. Supremo Tribunal Federal, interpretando o mencionado dispositivo, possui remansosa jurisprudência reconhecendo que a inviolabilidade só é integral quanto aos pronunciamentos realizados no ambiente da Casa Legislativa a que pertence o parlamentar. E não poderia ser diferente, pois, como se sabe, não há direitos de natureza absoluta em nosso ordenamento jurídico.

Nos demais casos, como bem esclareceu o douto Ministro Alexandre de Moraes em voto proferido no Inquérito 4.694/DF (Rel. Min. Marco Aurélio, DJE de 1º/8/2019), “há necessidade de verificar se as declarações foram dadas no exercício, ou em razão do exercício, do mandato parlamentar; ou seja, se o denunciado expressou suas opiniões, sobre questões relacionadas a políticas governamentais; e se essas opiniões se ativeram aos parâmetros constitucionalmente aceitos, ou se teriam extrapolado eventuais parâmetros das imunidades materiais”. 

No mesmo sentido:

Nessas condições, a jurisprudência desta Suprema Corte é firme no sentido de que a inviolabilidade parlamentar material requer a existência de liame entre as declarações e o exercício do mandato, ou seja, imprescindível “a existência do necessário nexo de implicação recíproca entre as declarações moralmente ofensivas, de um lado, e a prática inerente ao ofício congressional, de outro”. (Inq 1024 QO, Rel. Min. Celso de Mello). A restrição tem sua razão de ser porque a imunidade visa a resguardar a independência do parlamentar no exercício de seu mandato, vitaminando sua representatividade com um plus de liberdade de expressão, sem, contudo, constituir-se privilégio pessoal do congressista. Nesse sentido: Inq. 4.177, Rel. Min. Edson Fachin, 1ª Turma, DJE de 16/6/2016; Inq. 3925, Rel. Min. Marco Aurélio, Primeira Turma, DJE 22/4/2016; AO 2.002, Rel. Min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, DJE de 26/02/2016; Inq. 3672, 1ª Turma, de minha relatoria, DJE de 20/11/2014.

(STF, AP 926, Rel. Min. Rosa Weber, 1ª Turma, DJE de 2/12/2016) (sem destaques no original)

Assim, a imunidade parlamentar, ainda que ampla e necessária, não se reveste de caráter absoluto e não alberga manifestações exteriores à Casa Legislativa sem liame com o mandato, notadamente quando se convertem em verdadeira agressão aos princípios e fundamentos contidos na Constituição Federal.   

6.3. À semelhança do abuso de poder, penso ser plenamente viável enquadrar ataques infundados ao sistema eletrônico de votação e à democracia como uso indevido dos meios de comunicação social.

Rememoro que o ilícito em apreço caracteriza-se por se expor desproporcionalmente um candidato em detrimento dos demais, ocasionando desequilíbrio na disputa (AgR-REspe 1-76/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, DJE de 15/8/2019; REspe 477-36/MG, Rel. Min. Admar Gonzaga; DJE de 25/9/2018; AgR-RO 2240-11/AL, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJE de 18/12/2017; RO 4573-27/MG, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJE de 26/9/2016; REspe 4709-68/RN, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJE de 20/6/2012, dentre outros).

7. A hipótese, porém, demanda exame um pouco mais analítico, pois a conduta imputada ocorreu em live transmitida na rede social facebook. Por isso, é necessário que se responda ao seguinte questionamento: a internet – e, mais especificamente, as redes sociais – enquadra-se no conceito de “veículos ou meios de comunicação social” a que alude o art. 22 da LC 64/90?

A resposta, a meu sentir, é afirmativa.

Não se ignora que, tradicionalmente, o uso indevido dos meios de comunicação social está associado a veículos como a televisão, o rádio, além de jornais e revistas. 

Trata-se de dedução a princípio totalmente lógica, pois o caput do art. 22 da Lei de Inelegibilidades conserva seu texto originário há 31 anos, quando a internet ainda caminhava em seus primórdios nos países de primeiro mundo. Da mesma forma, ao longo de inúmeras eleições após a reabertura democrática, as campanhas eram desenvolvidas tendo como foco o rádio e a televisão em especial, haja vista a possibilidade de alcance em massa de eleitores.

Todavia, a evolução tecnológica proporcionou ao ser humano a internet e, com ela, admirável mundo novo de possibilidades, com comunicação em tempo real e alcance ainda mais expressivo face aos meios tradicionais outrora dominantes.

Ademais, no contexto eleitoral, é fato notório que as Eleições 2018 constituíram verdadeira ruptura na forma de realizar campanhas.

Sem emitir juízo de mérito acerca das estratégias de candidatos e legendas, tenho que as últimas eleições gerais representaram marco que se pode denominar como digitalização das campanhas. As vantagens são evidentes: os atores do processo eleitoral, utilizando-se dos mais diversos instrumentos que a internet propicia, podem se comunicar e angariar votos de forma mais econômica, com alcance ainda mais amplo e de modo personalizado mediante interação direta com os eleitores.

Esse marco temporal foi bem delineado na obra de Francisco Brito Cruz, prefaciada por Fernando Henrique Cardoso, de onde se extrai a síntese a seguir:

Nesse registro, as eleições brasileiras de 2018 carregaram uma boa dose de ineditismo e anomalia. Se as inovações na comunicação política “batiam à porta” em 2014, em 2018 a porta estava aberta. O resultado apareceu fora da curva e as campanhas vitoriosas emplacaram maneiras muito diversas de se articularem.

Em vista de seus resultados, a anomalia do processo eleitoral de 2018 é patente se consideradas as outras eleições da Nova República. [...] Em resumo, após quatro anos de crise política intensa, do segundo processo de impeachment da Nova República à marcha da Operação Lava Jato, candidaturas com os recursos de sempre – tempo no HPEG [horário público eleitoral gratuito] e acesso a maior quantidade de verbas – foram deixadas para trás.

[...] Esse resultado se construiu a partir de uma comunicação política com um forte componente digital, o que inclui muitos dos aspectos discutidos nos outros pontos deste capítulo e, ainda, insere outros, se considerados os dados sobre a chegada do fator internet no ambiente de mídia do país.

(Novo jogo, velhas regras: democracia e direito na era da nova propaganda política e das fake news. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020, p. 243-244) (sem destaques no original)

Além das questões acima postas, de notável relevo, impende destacar que, na lição de Uadi Lammêgo Bulos, a norma prevista no art. 220 da CF/88 – “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição” – também abarca a internet, considerada a amplitude do dispositivo:

A liberdade de comunicação social é um corolário da livre manifestação do pensamento, em suas imbricações mais profundas. Abrange a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo. 

[...]

- Liberdade de comunicação social (CF, art. 220) – é uma das formas de exteriorização do próprio ato de manifestar o pensamento. Concretiza-se por meio das parafernálias antigas e modernas, dos engenhos tecnológicos que encurtam distâncias e transmitem pensamentos. Exemplos: rádio, televisão, fax, revistas, jornais, periódicos, internet, [...].

(Curso de Direito Constitucional. 13. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 1.644) (sem destaques no original)

Na mesma linha, cumpre rememorar que o caput do art. 22 da LC 64/90 claramente fornece conceito aberto de meios de comunicação social, sem restrições de enquadramento quanto a formato ou eventual autorização do poder público para seu funcionamento ou operação, como se vê:

Art. 22. Qualquer partido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleitoral poderá representar à Justiça Eleitoral, diretamente ao Corregedor-Geral ou Regional, relatando fatos e indicando provas, indícios e circunstâncias e pedir abertura de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político, obedecido o seguinte rito: [...]

Em outras palavras, ao trazer tipo aberto e se referir de modo expresso a “meios de comunicação social”, a Lei de Inelegibilidades permite enquadrar como ilícitas condutas praticadas por intermédio de instrumentos de comunicação de difusão em massa.

No campo doutrinário, apesar de algumas divergências, autores como Frederico Franco Alvim perfilham da mesma compreensão aqui externada. 

Em amplo estudo a respeito da influência do poder midiático e dos impactos das novas tecnologias, afirma que “não há negar que a subsunção das variadas estratégias de manipulação informativa no seio da rede à hipótese de uso indevido dos meios de comunicação social é tecnicamente tranquila, cabendo apenas assentar, no enfrentamento de casos concretos, a gravidade relativa aos artifícios tecnológicos postos em questão para que se legitimem eventuais decisões de cassação” (Abuso de poder nas competições eleitorais, Curitiba: Juruá Editora, 2019, p. 338). 

De outra parte, no campo jurisprudencial, anoto que não identifiquei no âmbito desta Corte debate mais verticalizado sobre a matéria.

Ainda assim, entendo pertinente destacar voto do ilustre Presidente, o Ministro Luís Roberto Barroso, prolatado no ano de 2019 em feito relativo às Eleições 2016, na mesma linha ora propugnada:

[...] a interpretação do art. 22 da Lei Complementar nº 64/90 deve ter seu sentido e alcance adaptados às inovações tecnológicas advindas da criação da Internet, tal como já consta da redação da Resolução TSE nº 23.551/2017, que tratou da propaganda eleitoral para as eleições de 2018 e incluiu expressamente a Internet entre os meios de comunicação social. 

Nesse contexto, é possível, em tese, que o abuso dos meios de comunicação social ocorra pela veiculação nas diversas ferramentas virtuais disponibilizadas na Internet.

(REspe 31-02/RS, redator para acórdão Min. Tarcisio Vieira de Carvalho Neto, DJE de 27/6/2019) (sem destaques no original)

Já no julgamento da AIJE 0601862-21/DF (Rel. Min. Jorge Mussi, DJE de 26/11/2019), relativa às Eleições 2018, restou consignado que “[a]penas os casos que extrapolem o uso normal das ferramentas virtuais é que podem configurar o uso indevido dos meios de comunicação social [...]”. 

Ademais, parece não se aplicar ao caso o AgR-REspe 392-52/SP, redator para acórdão Min. Edson Fachin, DJE de 28/11/2018, das Eleições 2016, quando se assentou que o uso indevido dos meios de comunicação social demandaria conteúdo veiculado por “órgãos de produção da informação”, aí incluídos jornais, revistas, livros e boletins. Nesse precedente, a hipótese era diversa sob o plano fático, envolvendo informativos publicados por partidos políticos.

Em acréscimo, pontuo que tanto o c. Superior Tribunal de Justiça como a c. Suprema Corte possuem precedentes – ainda que não em matéria eleitoral – assentando que a internet é meio de comunicação, como se vê adiante:

[...]

9. O fato de a violação à moral correr o risco de se materializar por intermédio da Internet não modifica as conclusões quanto à impossibilidade de prévia censura da imprensa. A rede mundial de computadores se encontra sujeita ao mesmo regime jurídico dos demais meios de comunicação.

[...]

(STJ, REsp 1.388.994/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, DJE de 29/11/2013) (sem destaque no original)

------------------------------------

[...] 

2. Em se tratando de ofensa irrogada por meios de comunicação – como no caso, que foi por postagem em rede social na internet –, ‘a retratação dar-se-á, se assim desejar o ofendido, pelos mesmos meios em que se praticou a ofensa’ (art. 143, parágrafo único, do CP; grifei).

[...]

(STJ, APn 912/RJ, Rel. Min. Laurita Vaz, Corte Especial, DJE de 23/3/2021) (sem destaque no original)

------------------------------------

[...]

8. Fixa-se a seguinte tese: “É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais”.

[...]

(STF, RE 1.010.606/RJ, Rel. Min. Dias Toffoli, Plenário, DJE de 20/5/2021) (sem destaque no original)

Assim, a meu juízo, a internet enquadra-se perfeitamente no conceito de meio de comunicação social e pode desaguar na conduta do art. 22 da LC 64/90 estando presentes os demais requisitos do ilícito.

8. Em suma, a exacerbação do poder político e o uso de redes sociais para promover infundadas agressões contra a democracia e o sistema eletrônico de votação podem configurar abuso do poder político e uso indevido dos meios de comunicação social, nos termos do art. 22 da LC 64/90.

No caso concreto, constata-se sem nenhuma dificuldade ou margem para dúvidas, como antes já demonstrado, que todas as afirmativas do recorrido durante sua live, envolvendo o sistema eletrônico de votação, são absolutamente inverídicas.

No início deste voto, já se assentou que são falsas as declarações de que urnas eletrônicas de seções do Paraná teriam sido “fraudadas”, “adulteradas” e “apreendidas”, sendo também inverídica a afirmação de que os documentos da Justiça Eleitoral teriam demonstrado a violação.

No ponto, acrescento que sendo o recorrido político experiente, é de seu conhecimento que o processo de substituição de urnas em caso de raras falhas técnicas constitui prática habitual e em nada indica a existência de fraude. 

Ainda assim, com inegável má-fé, distorceu os fatos ao mencionar que dois equipamentos teriam sido apreendidos e que isso provaria a fraude.

Além dessas, houve outras declarações falsas.  

Quanto à declaração de que “nós não vamos aceitar que uma empresa da Venezuela, que a tecnologia que a gente não tem acesso, defina a democracia no Brasil”, há mais duas claras inverdades.

Ora, sendo esta Justiça Especializada a criadora e a desenvolvedora da urna eletrônica, seria no mínimo contraditório – para não dizer fantasioso – dizer que o órgão eleitoral brasileiro não teria acesso à tecnologia de sistemas.

Ademais, a empresa que produz as urnas não é venezuelana – o que, aliás, por si só, não representaria qualquer problema se fosse verdade. 

Conforme nota deste Tribunal veiculada em diversos meios de comunicação ainda no ano de 2018, inclusive pela internet, tem-se que

A empresa mencionada não é venezuelana e atuou em eleições anteriores apenas como transportadora de urnas, em poucos locais. Ela recebia as urnas devidamente lacradas nos Tribunais Regionais Eleitorais e as entregava lacradas nos locais de votação. Em localidades de difícil acesso, como em algumas aldeias indígenas, a empresa fez a instalação de antenas para transmissão dos resultados, sempre via chips criptografados da Justiça Eleitoral. Em nenhum momento a referida empresa teve acesso a quaisquer dados de programação e nunca foi responsável pela fabricação das urnas brasileiras. Cabe enfatizar que essa empresa não está participando, de forma alguma, das Eleições 2018.

(https://www.tse.jus.br/hotsites/esclarecimentos-informacoes-falsas-eleicoes-2018/empresa-venezuelana-e-responsavel-pelas-urnas-eletronicas.html) 

De outra parte, mais uma vez é falsa a afirmativa do recorrido de que apenas Brasil e Venezuela utilizam urnas eletrônicas, servindo apenas para acirrar os ânimos e gerar incertezas descabidas quanto ao sistema eletrônico de votação.

Segundo o Instituto Internacional para a Democracia e a Assistência Social (IDEA Internacional), 23 países usam urnas com tecnologia eletrônica para eleições gerais e outros 18 as utilizam em pleitos regionais, incluídos Canadá, França e algumas localidades nos Estados Unidos, o que também já foi esclarecido pela Justiça Eleitoral em diversas ocasiões.

No que toca à apuração das eleições presidenciais de 2014, é fato notório que não houve qualquer fraude, ao contrário do que afirmou o recorrido.

Para além das inúmeras oportunidades em que a Justiça Eleitoral cumpriu com transparência seu dever de informar o eleitorado sobre o sistema eletrônico de votação, impende salientar que também houve auditoria externa conduzida pela legenda derrotada naquele pleito.

Mais uma vez, como é de conhecimento geral, não se comprovou nem mesmo mera suspeita de fraude. O douto Ministro Dias Toffoli, à época Presidente desta Corte, submeteu ao Plenário os resultados da auditoria e assentou que

[...] o objetivo da auditoria era verificar a lisura das Eleições 2014, ou seja, averiguar a integridade das urnas eletrônicas e sistemas adjacentes, buscando evidências que comprovassem alguma suspeita ou tese de fraude, e volto a dizer que não foi encontrada nenhuma evidência em tal sentido.

9. Os dividendos angariados pelo recorrido são incontroversos.

De início, é fato inequívoco que a live ocorreu quando a votação ainda estava aberta no Paraná. Essa circunstância, aliada ao fato de que o acesso à internet dá-se de qualquer lugar mediante dispositivos móveis, por si já evidenciam o benefício, não custando reiterar que a transmissão foi assistida por mais de 70 mil pessoas, segundo afirmou o próprio recorrido, afora os compartilhamentos do vídeo.

Ainda nesse contexto, é notório que o recorrido se valeu das falsas denúncias de fraude para se autopromover como uma espécie de paladino da justiça, de modo a representar os eleitores inadvertidamente ludibriados que encontraram no candidato uma voz para ecoar suas incertezas sobre fatos que, em verdade, jamais aconteceram.

A autopromoção e o benefício também ocorreram quando o recorrido procurou dar credibilidade às suas falsas afirmações mencionando que era Deputado Federal e que a imunidade parlamentar lhe permitiria expor os hipotéticos fatos.

A busca de votos do recorrido na data do pleito, em verdadeira autopromoção, possui tamanho grau de censura que a princípio se enquadra também nos crimes do art. 39, § 5º, II a IV, da Lei 9.504/97, in verbis:

Art. 39. [omissis]

[...]

§ 5º Constituem crimes, no dia da eleição, puníveis com detenção, de seis meses a um ano, com a alternativa de prestação de serviços à comunidade pelo mesmo período, e multa no valor de cinco mil a quinze mil UFIR:

[...]

II – a arregimentação de eleitor ou a propaganda de boca de urna;             

III – a divulgação de qualquer espécie de propaganda de partidos políticos ou de seus candidatos;

IV – a publicação de novos conteúdos ou o impulsionamento de conteúdos nas aplicações de internet de que trata o art. 57-B desta Lei, podendo ser mantidos em funcionamento as aplicações e os conteúdos publicados anteriormente.

Desse modo, sendo incontroversa a ilicitude, impõe-se aferir a gravidade da conduta para definir suas consequências jurídicas.

10.  Nos termos do art. 22, XVI, da LC 64/90, para se configurar o ato abusivo não se requer “a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição”, mas sim “a gravidade das circunstâncias que o caracterizam”, de acepção mais ampla. Veja-se:

Art. 22 [omissis]

[...]

XVI – para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam. 

Na AIJE 0601754-89/DF, Rel. Min. Jorge Mussi, DJE de 20/3/2019, este Tribunal reafirmou a compreensão de que a gravidade deve ser aferida a partir de aspectos qualitativos e quantitativos da conduta, que, em linhas gerais, residem no seu grau de reprovabilidade e na magnitude da influência na disputa, desequilibrando-a em favor do beneficiado pelo abuso. Confira-se:

AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ELEIÇÕES DE 2018. PRESIDENTE E VICE-PRESIDENTE DA REPÚBLICA. [...] ABUSO DO PODER ECONÔMICO. ELEMENTOS. CARACTERIZAÇÃO. USO. RECURSOS PÚBLICOS OU PRIVADOS. GRAVIDADE. DESEQUILÍBRIO DO PLEITO. [...].

[...]

5. Para se caracterizar o abuso de poder, impõe-se a comprovação, de forma segura, da gravidade dos fatos imputados, demonstrada a partir da verificação do alto grau de reprovabilidade da conduta (aspecto qualitativo) e de sua significativa repercussão a fim de influenciar o equilíbrio da disputa eleitoral (aspecto quantitativo). A mensuração dos reflexos eleitorais da conduta, não obstante deva continuar a ser ponderada pelo julgador, não se constitui mais em fator determinante para a ocorrência do abuso de poder, sendo agora revelado, substancialmente, pelo desvalor do comportamento. 

[...] 

Conforme se assentou no REspe 2-98/AM, Rel. Min. Luiz Fux, DJE de 8/8/2017, “o fato de as condutas abusivas ostentarem potencial para influir no resultado do pleito é relevante, mas não essencial. Há um elemento substantivo de análise que não pode ser negligenciado: o grau de comprometimento aos bens jurídicos tutelados pela norma eleitoral causado por essas ilicitudes, circunstância revelada, in concrecto, pela magnitude e pela gravidade dos atos praticados”.

Na mesma linha dessa análise qualitativa e quantitativa, Rodrigo López Zilio fornece com precisão alguns dos critérios que podem ser verificados caso a caso para aferir a gravidade dos fatos:

Como já assentado outrora, é possível fixar algumas diretrizes para uma adequada conformação da gravidade das circunstâncias. Assim, a conduta do agente é um aspecto essencial a ser avaliado para aferição da gravidade das circunstâncias, sendo útil a adoção do seguinte raciocínio: se o próprio candidato cometeu o ilícito ou teve uma participação direta no ato, estabelecendo-se uma identidade entre autor e beneficiário, essa conduta apresenta um grau maior de reprovação; [...]. A forma ou natureza do ato praticado também é um critério a ser considerado para a configuração do ilícito. [...] Da mesma sorte, o uso de órgãos públicos ou governamentais para fins eleitoreiros é, a priori, um indicativo de maior reprovabilidade no agir ilícito se comparado com o emprego de uma estrutura privada para a consecução do mesmo fim vedado. [...] Por fim, os efeitos e a extensão do ato abusivo também podem (ou devem) ser medidos pelos critérios cronológico, quantitativo e em relação ao eleitor. Desse modo, a gravosidade do ato é maior quando ele é de caráter permanente (pelos efeitos que se prolongam temporalmente) ou, ainda, se cometido em momento mais próximo à eleição (pela inviabilidade de uma reversão desse ato em face à data do pleito). [...]

(Cassação de mandato e decisão sancionatória eleitoral. In: FUX, Luiz; PEREIRA, Luiz Fernando Casagrande; AGRA, Walber de Moura (Coords.). Abuso de poder e perda de mandato. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 459) (sem destaques no original)

No caso, uma série de fatores exaustivamente tratados neste voto revela que a conduta praticada pelo recorrido reveste-se de extrema gravidade, a atrair a cassação do diploma e a inelegibilidade.

O primeiro desses fatores possui natureza qualitativa e encontra-se representado pela conduta em si mesma. 

O ataque às instituições pelo candidato, noticiando fraudes no sistema eletrônico de votação que jamais ocorreram, possui repercussão nefasta na estabilidade do Estado Democrático de Direito e na confiança depositada pelos eleitores nas urnas eletrônicas, que, reitere-se, são utilizadas há 25 anos nas eleições brasileiras sem nenhuma prova de manipulações ou adulterações.

Também sob esse viés, ganha relevo a circunstância de que o cerne do ilícito residiu na veiculação de notícias inverídicas, atingindo diretamente os eleitores que assistiram à transmissão e que foram levados a acreditar naqueles fatos. Tudo isso, é importante reiterar, com o recorrido afirmando sucessivas vezes que assim o fazia porque estava protegido pela imunidade parlamentar. 

Trata-se de aspecto de extrema relevância para o deslinde do caso, já que, nas palavras de José Jairo Gomes, “a manipulação midiática também se faz por meios simbólicos, pela colonização das consciências, interpretações tortas, distorções da realidade e construções enviesadas de sentido na esfera pública. A violência simbólica perpetrada sequer é percebida pelos destinatários, pois tudo se passa como se fosse verdadeiro convencimento; conteúdos distorcidos, tendenciosos, são veiculados como se fossem informação de interesse público” (Direito Eleitoral. 16. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2020, p. 742).

Ademais, numa conjugação de aspectos qualitativos e quantitativos, anoto que a conduta do recorrido propiciou benefício não apenas próprio – ou seja, a obtenção de votos para o cargo de deputado estadual –, mas de terceiros, haja vista o efeito multiplicador das práticas ocorridas na internet.

Com efeito, na indigitada live na rede social facebook, a transmissão, segundo o próprio recorrido, iniciou-se com audiência de 30 mil pessoas e encerrou-se com mais de 70 mil espectadores. 

Para além dessa elevada audiência, causa espécie o fato de que, até 12/11/2018, o vídeo postado teve mais de 105 mil comentários, 400 mil compartilhamentos e seis milhões de visualizações.

Como bem se ressaltou no AgR-AC 1384-43/DF, Rel. Min. Henrique Neves, DJE de 17/8/2020, “ao contrário dos demais meios de comunicação social, a transmissão de dados pela Internet não se exaure no momento em que se realiza. Nos rádios e nas televisões, uma vez divulgada a notícia, o espaço de divulgação passa a ser ocupado pela programação que se segue. A internet, neste aspecto, é estática. A manutenção da informação em sítio da rede permite o acesso contínuo, a qualquer hora, de qualquer lugar do mundo [...]” (sem destaque no original).

O fato de se tratar de um vídeo, com duração aproximada de 18 minutos, em nada beneficia o recorrido no caso. Como já se explicitou, os demais fatores aqui considerados assumem expressiva preponderância frente a esse aspecto, haja vista a natureza da conduta, os massivos dados de audiência e sua ocorrência na data do pleito, durante a votação.

Por todas essas razões, a gravidade dos fatos também se encontra presente no caso dos autos, configurando-se assim o uso indevido dos meios de comunicação social e o abuso de poder político e de autoridade.  

11. Ainda no tocante à configuração do ilícito, não incide na espécie o princípio da anualidade, invocado em um dos votos na Corte de origem como único fundamento para a improcedência dos pedidos.

Referido princípio encontra-se previsto no art. 16 da CF/88, segundo o qual “[a] lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”, também se aplicando a mudanças repentinas de jurisprudência.

O caso em apreço, contudo, não representa qualquer viragem jurisprudencial e versa sobre tema – seja no plano fático ou jurídico – que ainda não havia sido enfrentado por este Tribunal.

Além disso, conforme ressaltou com maestria o douto Ministro Carlos Horbach no recente julgamento do AgR-REspe 0000634-06/MG em 7/10/2021, descabe invocar a segurança jurídica para suprimir direitos fundamentais. Aplicando-se essa ratio ao caso concreto, importa dizer que o referido instituto jurídico jamais poderá representar licença para a prática de reprováveis e infundados ataques à democracia e ao sistema eletrônico de votação. Destaco do voto de Sua Excelência:

[...]

Da leitura desse acórdão [STF, RE 637.485] e de outros precedentes sobre o tema, exsurge na minha compreensão como manifesta uma premissa, qual seja: a premissa da natureza instrumental da segurança jurídica, que não existe por si só, mas como meio de proteção [...] de situações jurídicas consolidadas, cujo desfazimento importaria em violação a direitos fundamentais.

Em outras palavras, a segurança jurídica em matéria eleitoral existe para preservar a higidez do sistema constitucional dos direitos políticos, que são [...] direitos fundamentais.

[...]

Nesse contexto, a invocação da segurança jurídica como razão para se negar provimento ao agravo interno e ao recurso especial sob julgamento caracteriza um desvio finalístico de tal referencial normativo exatamente porque acarretaria não a preservação do direito fundamental, mas sim sua ablação, sua limitação.     

Em conclusão, o reconhecimento dos ilícitos na espécie não encontra nenhuma barreira quanto à segurança jurídica.

A d. Procuradoria-Geral Eleitoral, em substancioso parecer, bem sintetizou todos os pontos aqui tratados, assentando a natureza gravíssima da conduta, nos termos da seguinte passagem:

- Os casos que extrapolem o uso normal das mídias sociais podem configurar o uso indevido dos meios de comunicação social.

- As palavras dos parlamentares somente são acobertadas pela imunidade material se guardarem pertinência com a atividade parlamentar. Precedentes.

- A transmissão ao vivo de conteúdo em rede social, no dia da eleição, contendo divulgação de notícia falsa e ofensiva por parlamentar federal, em prol de seu partido e de candidato, configura abuso de poder de autoridade e uso indevido de meio de comunicação.

- A configuração da gravidade dos fatos, conforme assentado pela jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral, estará presente sempre que houver ofensa aos “cânones fundamentais da igualdade de chances e da legitimidade e normalidade do prélio eleitoral”.

- A vedação à aplicação de novo entendimento jurisprudencial no mesmo pleito eleitoral em que ocorreu a modificação alcança apenas  novas teses jurídicas, e não situação fática, mormente se tipificada por dispositivos legais há muito existentes.

12. Delineada a procedência dos pedidos, cabe aferir as consequências jurídicas na hipótese.

Anoto que esta Corte, no julgamento do RO-El 0601403-89/AC (Rel. Min. Edson Fachin, DJE de 4/12/2020) e do RO-El 0603900-65/BA (Rel. Min. Sérgio Banhos, DJE de 26/11/2020), definiu que a cassação de mandato por ilícitos eleitorais acarreta a nulidade dos votos do candidato, não se admitindo seu cômputo para a legenda na forma do art. 175, § 4º, do Código Eleitoral. Extrai-se da ementa do segundo aresto: 

ELEIÇÕES 2018. RECURSO ORDINÁRIO. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ABUSO DO PODER ECONÔMICO. FILANTROPIA. ASSISTENCIALISMO. PRESTAÇÃO DE SERVIÇO MÉDICO GRATUITO À POPULAÇÃO CARENTE EM ANO ELEITORAL. EXALTAÇÃO DA FIGURA DO MÉDICO, TAMBÉM DEPUTADO ESTADUAL E PRÉ-CANDIDATO. VEÍCULO DE TRANSPORTE DE PASSAGEIROS PLOTADO COM A FOTO E O NOME DO PRÉ-CANDIDATO. DESIGUALDADE NA DISPUTA. DESEQUILÍBRIO DO PLEITO. REFORMA DO ARESTO REGIONAL. PROCEDÊNCIA DA AIJE. CASSAÇÃO DO DIPLOMA E DECLARAÇÃO DE INELEGIBILIDADE. ART. 22, XIV, DA LC 64/90. 

[...]

28. Cassado o registro ou diploma de candidato eleito sob o sistema proporcional, em razão da prática das condutas descritas nos arts. 222 e 237 do Código Eleitoral, devem ser considerados nulos, para todos os fins, os votos a ele atribuídos, sendo inaplicável à espécie o disposto no art. 175, § 4º, do mesmo diploma legal. Decisão tomada por maioria, tendo a corrente minoritária se manifestado pela aplicação prospectiva da referida orientação, em decorrência do princípio da segurança jurídica e do disposto no art. 218, II, e no art. 219, IV, da Res.-TSE 23.554.

(RO-El 0603900-65/BA, Rel. Min. Sérgio Banhos, DJE de 26/11/2020) 

Assim, considerando que referida interpretação foi firmada em feitos relativos às Eleições 2018, que vem a ser o caso dos autos, entendo cabível aplicar-se idêntica solução in casu.

Por fim, a hipótese é de execução imediata deste acórdão, independentemente de publicação, também na linha da jurisprudência: AREspE 0600402-70/SC, Rel. Min. Sérgio Banhos, DJE de 20/9/2021; RCED 0604062-54/PR, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJE de 20/9/2021; RO-El 0601403-89/AC, Rel. Min. Edson Fachin, DJE de 4/12/2020, dentre outros.

13. Ante o exposto, dou provimento ao recurso ordinário, na linha do parecer ministerial, para cassar o diploma do recorrido e declarar sua inelegibilidade, nos termos do art. 22, XIV, da LC 64/90. Determino a imediata execução do aresto, independentemente de publicação, recalculando-se os quocientes eleitoral e partidário.

Comunique-se, com urgência, ao TRE/PR.

É como voto.

O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO (presidente): Muito obrigado, Ministro Luis Felipe Salomão, que, em alentado voto, dá provimento ao recurso ordinário e julga procedentes os pedidos para cassar o diploma do recorrido e declarar a sua inelegibilidade, com a imediata comunicação ao Tribunal de origem e demais consectários.

Como vota o eminente Ministro Mauro Campbell Marques?

 

VOTO

 

O SENHOR MINISTRO MAURO CAMPBELL MARQUES: Senhor Presidente, conforme informado pelo relator, Ministro Luis Felipe Salomão, o Ministério Público ajuizou Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) em desfavor de Fernando Destito Francischini, Deputado Estadual pelo Paraná eleito em 2018 e detentor do cargo de Deputado Federal na data do pleito, por suposto uso indevido dos meios de comunicação e abuso de autoridade, nos termos do art. 22 da LC nº 64/1990.

O TRE/PR julgou improcedentes os pedidos formulados.

O relator apresenta voto no sentido de dar provimento ao recurso ordinário para cassar o diploma do recorrido e declará-lo inelegível (art. 22, XIV, da LC nº 64/1990), com imediata execução do aresto, independentemente de publicação, e recálculo dos quocientes eleitoral e partidário.

A controvérsia, no resumo preciso feito por Sua Excelência, cinge-se a saber se caracteriza ou não uso indevido dos meios de comunicação a realização de live pelo Facebook, no dia da eleição, e quando em curso a votação, por candidato que, ocupando cadeira de deputado federal naquele pleito, disputava vaga de deputado estadual.

O conteúdo dessa live foi a divulgação de fake news a respeito de “episódios confirmados de fraude” em urnas eletrônicas.

Tem-se nos autos, ainda, a informação de que 70 mil pessoas acompanharam a manifestação do recorrido no dia da eleição, tendo essa transmissão gerado 105 mil comentários, 400 mil compartilhamentos e 6 milhões de visualizações.

Adianto que subscrevo integralmente o voto do relator.

Passo, de maneira sumarizada, a expor as razões que me levaram a acompanhar sua excelência.

Quanto à preliminar de inovação recursal trazida pelo recorrido, também entendo pela sua completa improcedência.

Não há inovação recursal, porquanto o recurso interposto pelo Parquet não acrescenta nenhum elemento novo à discussão.

Como afirmado pelo relator, os argumentos trazidos pelo Ministério Público Eleitoral em seu recurso ordinário: “[...] objetivaram unicamente contrapor a tese sufragada pela Corte de origem de que as redes sociais não seriam meios de comunicação social [...]”.

Como disse Sua Excelência: “[...] Trata-se, portanto, de matéria amplamente debatida nos autos [...]”.

Quanto ao mérito, considero inafastável a conclusão de que houve o uso indevido e abusivo dos meios de comunicação social.

Desde logo, assento que me filio ao entendimento trazido pelo relator de que a internet, da qual fazem uso as redes sociais, pode sim ser enquadrada como “meio de comunicação social” nos termos do que descrito no art. 22 da LC nº 64/1990. 

Além de subscrever integralmente os argumentos trazidos por Sua Excelência, acrescento que, nas últimas eleições, a internet tem sido o meio de comunicação social mais usado nas campanhas eleitorais.

É de se destacar, ainda, o quão poderosa é essa ferramenta no prélio.

Prova disso é que as ações que ainda tramitam nesta Casa referentes ao pleito de 2020 têm por alvo, justamente, o abuso no uso da internet e das redes sociais.

Fixada essa premissa, detenho-me à análise dos elementos fáticos existentes.

Tem-se, no caso dos autos, parlamentar federal que, no dia da eleição, fez live em sua rede social, com a participação de milhares de pessoas, voltada a promover ataques à Justiça Eleitoral e ao sistema eletrônico de votação.

Como se sabe, a legislação eleitoral autoriza a realização de propaganda eleitoral até a antevéspera da eleição.

No Brasil, a propaganda eleitoral, tradicionalmente, era voltada à exaltação das qualidades pessoais do candidato e, não raro, a críticas aos seus adversários na disputa.

No entanto, tragicamente, a propaganda eleitoral mudou de rumo.

Não são poucos os candidatos que têm por foco de sua campanha os ataques às instituições e à própria democracia.

Nesse contexto, o argumento para a obtenção do voto é o ódio.

Essa era a plataforma do recorrido, de acordo com os fatos descritos nos autos, mais precisamente o alvo era a própria Justiça Eleitoral.

Nesse contexto, temos então o seguinte quadro: candidato ao cargo de deputado estadual pelo Estado do Paraná realizou grande evento, que contou com a participação de milhares de pessoas, no dia da eleição, quando não é mais permitido propaganda, em que divulgou sua “plataforma eleitoral” de ódio ao sistema eletrônico de votação.

Mais que isso, o fez por meio de fake news.

Nesse ponto, recolho de nossa jurisprudência que “[...] 2. O uso indevido dos meios de comunicação social caracteriza-se por se expor desproporcionalmente um candidato em detrimento dos demais, ocasionando desequilíbrio na disputa eleitoral. [...]” (AgR-REspEl nº 442-48/GO, rel. Min. Luis Felipe Salomão.

Esse é justamente o caso dos autos.

Tem-se a realização, no dia da eleição, quando não é mais dado a nenhum candidato fazer qualquer movimento em favor da captação de votos, como verdadeiro ato de propaganda do recorrido, consubstanciado no ataque covarde à Justiça Eleitoral por meio de supostas notícias, que o recorrido sabia inverídicas.

Destaco que o desequilíbrio pretendido pelo candidato não era apenas do pleito de deputado estadual do Estado do Paraná, mas a própria eleição ocorrida em 2018.

Portanto, a gravidade do fato, a meu sentir, está mais que comprovada.

Afasto, ainda, a alegação do recorrido de que suas palavras estariam de alguma forma protegidas pela imunidade parlamentar que dispunha, considerando ser à época dos fatos deputado federal.

Isso porque, conforme também afirmado pelo relator, sua fala não tinha relação alguma com seu mandato.

Tratava-se, como já expus em meu voto, de deletéria forma de exposição de sua plataforma de atuação.

Ademais, como se sabe, diante da Justiça Eleitoral, os candidatos detentores de cargo público se despem da quase totalidade de suas prerrogativas para a disputa da eleição, sob pena de violação da isonomia da disputa.

Finalmente, também acompanho o relator no tocante à nulidade dos votos e à execução imediata da decisão, caso se confirme a procedência da AIJE, nos termos de nossa jurisprudência para o pleito de 2018.

Isso posto, por essas brevíssimas razões, acompanho, integralmente, o relator, no sentido de dar provimento ao recurso ordinário e, consequentemente, cassar o diploma do recorrido, declarar sua inelegibilidade e determinar o recálculo dos quocientes partidário e eleitoral, independentemente da publicação deste acórdão.

É como voto.

O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO (presidente): Muito obrigado, Ministro Mauro Campbell Marques.

Como vota o Ministro Sérgio Banhos?

 

VOTO

 

O SENHOR MINISTRO SÉRGIO BANHOS: Senhor Presidente, trata-se de recurso ordinário interposto pelo Ministério Público Eleitoral em face do acórdão do Tribunal Regional Eleitoral do Paraná, que julgou improcedente a ação de investigação judicial eleitoral, nos termos da seguinte ementa (ID 21646688):

ELEIÇÕES 2018. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. DIVULGAÇÃO DE “LIVE”, EM REDE SOCIAL, FACEBOOK, POR DEPUTADO FEDERAL E CANDIDATO A DEPUTADO ESTADUAL, DURANTE O HORÁRIO DA VOTAÇÃO DO PRIMEIRO TURNO, CONTENDO A AFIRMAÇÃO DE QUE ESTAVA COMPROVADO QUE DUAS URNAS ESTAVAM FRAUDADAS OU ADULTERADAS, ALÉM DE OUTRAS CRÍTICAS E CONTEÚDOS FALSOS PROFERIDOS EM TOM SENSACIONALISTA E OFENSIVO. USO INDEVIDO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO NÃO CONFIGURADO. ABUSO DE AUTORIDADE. CONFIGURAÇÃO. IMUNIDADE PARLAMENTAR MATERIAL QUE NÃO AUTORIZA ATAQUES ÀS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS.  PUNIÇÃO EXCEPCIONALMENTE AFASTADA EM VIRTUDE DO ENTENDIMENTO DA MAIORIA DA CORTE DE QUE NÃO HÁ PROVA CABAL DE QUE A CONDUTA DO INVESTIGADO TENHA RESULTADO EM BENEFÍCIO À CANDIDATO NA ELEIÇÃO DE 2018. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE.

1. Uso indevido dos meios de comunicação não configurado, uma vez que este requer a comprovação da utilização de veículos de imprensa, como rádio, jornal ou televisão, em benefício de determinado candidato, seja pela concessão, em seu favor, de espaço privilegiado na mídia, ou pela crítica abusiva aos demais concorrentes. Aplicativos de mensagens e contas pessoais em redes sociais não se enquadram no conceito legal.

2. Eventual falha de funcionamento das urnas eletrônicas não implica fraude no sistema de votação, inclusive porque fraude exige atuação humana intencional, neste caso, voltada a manipulação do resultado eleitoral.

3. Não se questiona o direito de repassar, por meio das redes sociais, informações sobre relatos de eleitores que estavam enfrentando eventuais problemas técnicos de funcionamento com as urnas eletrônicas, sendo que, inclusive é de se reconhecer a utilidade pública desse tipo de informação e principalmente de quais seriam as medidas que os eleitores poderiam tomar ao se depararem com eventual falha de funcionamento da urna ou qualquer outro problema no momento da votação, de maneira serena e responsável.

4. Um parlamentar não pode propagar irresponsavelmente fatos deturpados, notícias falsas, e teorias conspiratórias sobre fraudes, agentes infiltrados e golpe, com inquestionável potencial de desacreditar instituições e promover a desordem social.

5. A imunidade parlamentar material não é absoluta e “não confere aos parlamentares o direito de empregar expediente fraudulento, artificioso ou ardiloso, voltado a alterar a verdade da informação, com o fim de desqualificar ou imputar fato desonroso à reputação de terceiros”. Precedentes STF.

6. Conduta que não pode ser tolerada, independentemente de quem a pratique, pois atenta contra o Poder Judiciário Eleitoral, colocando em risco a independência e a harmonia dos Poderes da República Federativa do Brasil e o próprio Estado Democrático de Direito.

7. Punição que deve ser, excepcionalmente, afastada no caso concreto em virtude do entendimento, pela maioria da Corte, quanto a fragilidade da prova nos autos de que a conduta do investigado foi em benefício de candidato, partido político ou coligação, no pleito eleitoral de 2018.

9. Ação de investigação judicial eleitoral julgada improcedente.

O eminente relator, em voto profundo, denso e paradigmático, preconizou o provimento do recurso ordinário, a fim de julgar procedente a AIJE, para cassar o diploma do recorrido e declarar sua inelegibilidade, nos termos do art. 22, XIV, da LC 64/90. Eis a ementa proposta pelo relator:

RECURSO ORDINÁRIO. ELEIÇÕES 2018. DEPUTADO ESTADUAL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL (AIJE). USO INDEVIDO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO SOCIAL. ABUSO DE PODER POLÍTICO E DE AUTORIDADE. ART. 22 DA LC 64/90. TRANSMISSÃO AO VIVO. REDE SOCIAL. DIA DO PLEITO. HORÁRIO DE VOTAÇÃO. FATOS NOTORIAMENTE INVERÍDICOS. SISTEMA ELETRÔNICO DE VOTAÇÃO. FRAUDES INEXISTENTES EM URNAS ELETRÔNICAS. AUDIÊNCIA DE MILHARES DE PESSOAS. MILHÕES DE COMPARTILHAMENTOS. PROMOÇÃO PESSOAL. IMUNIDADE PARLAMENTAR COMO ESCUDO PARA ATAQUES À DEMOCRACIA. IMPOSSIBILIDADE. GRAVIDADE. CASSAÇÃO DO DIPLOMA. INELEGIBILIDADE. PROVIMENTO.

1. Recurso ordinário interposto pelo Ministério Público contra acórdão prolatado pelo TRE/PR, que, por maioria de votos, julgou improcedente os pedidos em Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) proposta em desfavor de Deputado Estadual eleito pelo Paraná em 2018, afastando o abuso de poder político e o uso indevido dos meios de comunicação social (art. 22 da LC 64/90).

2. Rejeitada a preliminar de inovação recursal aduzida em contrarrazões. Os argumentos contidos no apelo apenas contrapõem a tese da Corte de origem de que a internet e as redes sociais não se enquadram como meios de comunicação.

3. A hipótese cuida de live transmitida ao vivo em rede social, quando em curso a votação no primeiro turno, para mais de 70 mil internautas, e que até 12/11/2018 teve mais de 105 mil comentários, 400 mil compartilhamentos e seis milhões de visualizações. O recorrido – que exercia o cargo de Deputado Federal – noticiou a existência de fraudes em urnas eletrônicas e outros supostos fatos acerca do sistema eletrônico de votação.

4. Sintetizam-se as principais declarações na transmissão: (a) “já identificamos duas urnas que eu digo ou são fraudadas ou adulteradas. [...], eu tô com toda a documentação aqui da própria Justiça Eleitoral”; (b) “nós estamos estourando isso aqui em primeira mão pro Brasil inteiro [...], urnas ou são adulteradas ou fraudadas”; (c) “nosso advogado acabou de confirmar [...], identificou duas urnas que eu digo adulteradas”; (d) “apreensão feita, duas urnas eletrônicas”; (e) “não vamos aceitar que uma empresa da Venezuela, que a tecnologia que a gente não tem acesso, defina a democracia no Brasil”; (f) “só aqui e na Venezuela tem a porcaria da urna eletrônica”; (g) “daqui a pouco nós vamos acompanhar [a apuração dos resultados], sem paradinha técnica, como aconteceu com a Dilma”; (h) “eu uso aqui a minha imunidade parlamentar, que ainda vai até janeiro, independente dessa eleição, pra trazer essa denúncia”.

5. O teor do vídeo é inequívoco, residindo a controvérsia em questões de direito: legitimidade do pleito, possibilidade de enquadrar a conduta no art. 22 da LC 64/90 e gravidade dos fatos.

6. O sistema eletrônico de votação representa modelo de inegável sucesso implementado nas Eleições 1996 e internacionalmente reconhecido. O propósito dessa verdadeira revolução residiu na segurança e no sigilo do voto, sendo inúmeros os fatores que poderiam comprometer os pleitos realizados com urnas de lona, desde simples erros humanos na etapa de contagem, manipulações em benefício de candidatos e a execrável mercancia do sufrágio. Visou-se, ainda, conferir maior rapidez na apuração, o que possui especial relevância em país de dimensões continentais.

7. Esta Justiça Especializada não atua de forma sigilosa ou numa espécie de redoma na organização do pleito. Ao contrário, busca sempre soluções construtivas com os atores do processo eleitoral tendo como fim maior aperfeiçoar continuamente as eleições e consolidar o regime democrático.

8. A parceria entre órgãos institucionais de ponta na área de tecnologia, a constante busca por inovação e o contínuo diálogo com a sociedade propiciaram a plena segurança do sistema eletrônico de votação no decorrer dos últimos 25 anos, sem nenhuma prova de fraude de qualquer espécie, conforme inúmeras auditorias internas e externas e testes públicos de segurança diuturnamente noticiados pela Justiça Eleitoral.

9. Hipótese inédita submetida a esta Corte Superior é se ataques ao sistema eletrônico de votação e à democracia, disseminando fatos inverídicos e gerando incertezas acerca da lisura do pleito, em benefício de candidato, podem configurar abuso de poder político ou de autoridade – quando utilizada essa prerrogativa para tal propósito – e/ou uso indevido dos meios de comunicação quando redes sociais são usadas para esse fim.

10. Os arts. 1º, II e parágrafo único, e 14, § 9º, da CF/88, além dos arts. 19 e 22 da LC 64/90 revelam como bens jurídicos tutelados a paridade de armas e a lisura, a normalidade e a legitimidade das eleições. Não há margem para dúvida de que constitui ato abusivo, a atrair as sanções cabíveis, a promoção de ataques infundados ao sistema eletrônico de votação e à própria democracia, incutindo-se nos eleitores a falsa ideia de fraude em contexto no qual candidato sobrevenha como beneficiário dessa prática.

11. O abuso de poder político configura-se quando a normalidade e a legitimidade do pleito são comprometidas por atos de agentes públicos que, valendo-se de sua condição funcional, beneficiam candidaturas em manifesto desvio de finalidade. Precedentes.

12. Inviável afastar o abuso invocando-se a imunidade parlamentar como escudo. No caso de manifestações exteriores à Casa Legislativa a que pertence o parlamentar, “há necessidade de verificar se as declarações foram dadas no exercício, ou em razão do exercício, do mandato parlamentar; ou seja, se o denunciado expressou suas opiniões, sobre questões relacionadas a políticas governamentais; e se essas opiniões se ativeram aos parâmetros constitucionalmente aceitos, ou se teriam extrapolado eventuais parâmetros das imunidades materiais” (voto do Min. Alexandre de Moraes no Inquérito 4.694/DF, DJE de 1º/8/2019).

13. A internet e as redes sociais enquadram-se no conceito de “veículos ou meios de comunicação social” a que alude o art. 22 da LC 64/90. Além de o dispositivo conter tipo aberto, a Justiça Eleitoral não pode ignorar a realidade: é notório que as Eleições 2018 representaram novo marco na forma de realizar campanhas, com claras vantagens no uso da internet pelos atores do processo eleitoral, que podem se comunicar e angariar votos de forma mais econômica, com amplo alcance e de modo personalizado mediante interação direta com os eleitores.

14. No caso, constata-se sem nenhuma dificuldade que todas as declarações do recorrido durante sua live, envolvendo o sistema eletrônico de votação, são absolutamente inverídicas.

15. Quanto às urnas eletrônicas de seções eleitorais do Paraná, o recorrido atribuiu-lhes a pecha de “fraudadas”, “adulteradas” e “apreendidas” e apontou que “eu tô com toda a documentação aqui da própria Justiça Eleitoral”. Todavia, (a) inexistiu apreensão, mas mera substituição por problemas pontuais; (b) além da já enfatizada segurança das urnas eletrônicas, a Corte de origem realizou auditoria antes do segundo turno – na presença de técnicos da legenda do candidato – e nada constatou; (c) é falsa a narrativa de que a suposta fraude estaria comprovada na “documentação aqui da própria Justiça Eleitoral”, não havendo nenhuma menção a esse respeito nas atas das respectivas seções.

16. No tocante à declaração de que “nós não vamos aceitar que uma empresa da Venezuela, que a tecnologia que a gente não tem acesso, defina a democracia no Brasil”, trata-se de inverdades refutadas inúmeras vezes: (a) sendo a Justiça Eleitoral criadora e desenvolvedora da urna eletrônica, seria no mínimo contraditório dizer que não há acesso à tecnologia de sistemas; (b) a empresa que produz as urnas não é venezuelana – o que, aliás, por si só, não representaria qualquer problema se fosse verdade.

17. É falsa a afirmativa de que apenas Brasil e Venezuela empregam urnas eletrônicas. Segundo o Instituto Internacional para a Democracia e a Assistência Social, 23 países as utilizam em eleições gerais e outros 18 em pleitos regionais, incluídos Canadá, França e algumas localidades nos Estados Unidos, o que também já foi esclarecido pela Justiça Eleitoral.

18. Inexistiu fraude nas Eleições 2014. Para além das inúmeras ocasiões em que a Justiça Eleitoral cumpriu com transparência seu dever de informação, houve auditoria externa conduzida pela grei derrotada naquele pleito, nada se identificando como irregular.

19. Os dividendos angariados pelo recorrido são incontroversos. A live ocorreu quando a votação ainda estava aberta no Paraná, ao passo que o acesso à internet ocorre de qualquer lugar por dispositivos móveis, reiterando-se que a transmissão foi assistida por mais de 70 mil pessoas, afora os compartilhamentos do vídeo.

20. O recorrido valeu-se das falsas denúncias para se promover como uma espécie de paladino da justiça, de modo a representar eleitores inadvertidamente ludibriados que nele encontraram uma voz para ecoar incertezas sobre algo que, em verdade, jamais aconteceu. Também houve autopromoção ao mencionar que era Deputado Federal e que a imunidade parlamentar lhe permitiria expor os hipotéticos fatos.

21. Gravidade configurada pela somatória de aspectos qualitativos e quantitativos (art. 22, XVI, da LC 64/90). O ataque ao sistema eletrônico de votação, noticiando-se fraudes que nunca ocorreram, tem repercussão nefasta na legitimidade do pleito, na estabilidade do Estado Democrático de Direito e na confiança dos eleitores nas urnas eletrônicas, utilizadas há 25 anos sem nenhuma prova de adulterações. Além disso, reitere-se a audiência de mais de 70 mil pessoas e, até 12/11/2018, mais de 400 mil compartilhamentos, 105 mil comentários e seis milhões de visualizações.

22. Na linha do parecer ministerial, “a transmissão ao vivo de conteúdo em rede social, no dia da eleição, contendo divulgação de notícia falsa e ofensiva por parlamentar federal, em prol de seu partido e de candidato, configura abuso de poder de autoridade e uso indevido de meio de comunicação”, sendo grave a afronta à “legitimidade e normalidade do prélio eleitoral”.

23. Recurso ordinário provido para cassar o diploma do recorrido e declará-lo inelegível (art. 22, XIV, da LC 64/90), com imediata execução do aresto, independentemente de publicação, e recálculo dos quocientes eleitoral e partidário.

Louvo, ainda com mais ênfase, a manifestação de Sua Excelência a respeito do papel da Justiça Eleitoral na realização da democracia e do caso de sucesso alusivo à informatização do processo de votação e de apuração, provavelmente o passo mais relevante do Estado brasileiro no combate à fraude, na tutela da liberdade de voto e da legitimidade e fidedignidade das eleições. Alinho-me à escorreita afirmação do relator de que as urnas eletrônicas representam um modelo exitoso, reconhecido em todo o mundo.

Feito esse registro, adianto que igualmente rejeito a matéria preliminar suscitada em contrarrazões uma vez que a argumentação lançada no recurso ordinário – de que a internet seria uma das principais fontes de informação de massa – tem correlação direta com o fundamento do acórdão recorrido a respeito de esse meio de comunicação não ser objeto de tutela pelo art. 22 da Lei Complementar 64/90.

Da mesma forma, a indicação no apelo de casos antigos e recentes em que foram apreciadas as ditas notícias falsas decorreu de um dos fundamentos do aresto atacado, de que a punição seria incabível em razão do ineditismo do tema.

Ausente a inovação recursal, voto no sentido de rejeitar a preliminar.

Com relação ao tema de fundo, adoto a estrutura de análise posta no voto do relator.

A primeira questão que se apresenta é saber se uma live transmitida em redes sociais, na qual foram disseminadas notícias falsas sobre o processo de votação, pode ser considerada evento típico do uso indevido dos meios de comunicação.

No ponto, reconheço que a discussão a respeito da amplitude do termo “meio de comunicação social”, para os fins do art. 22 da Lei Complementar 64/90, realmente é fecunda.

Como se percebe das citações constantes do acórdão recorrido e do voto do ilustre relator, assim como do exame da literatura especializada, a doutrina não é uníssona a respeito desse tema.

Mesmo nesta Corte Superior, a maioria do colegiado, em caso diverso do ponto de vista fático e similar sob o aspecto jurídico, chegou a assentar que “a distribuição de material publicitário informativo por órgão partidário, que não possui nenhuma obrigação de imparcialidade ou mesmo de assegurar, em seus impressos, espaço para os candidatos adversários não se confunde com meio de comunicação social” (AgR-REspe 392-52, red. para o acórdão Min. Edson Fachin, DJE de 28.11.2018).

Naquela oportunidade, constou do voto condutor o seguinte:

Para que seja possível analisar a caracterização de uso indevido de meios de comunicação social há necessariamente que se verificar a princípio se houve uso de meio de comunicação social.

Segundo esclarece Luiz Carlos dos Santos Gonçalves, os veículos de comunicação social incluem a imprensa escrita, “como os jornais, as revistas, livros e boletins” (Direito Eleitoral. 31 Ed. São Paulo: Atlas, 2018. p. 299). A referência é, portanto, aos “órgãos de produção de informação”, e à possibilidade, vedada em nossa legislação, do “uso incisivo dos veículos de imprensa como instrumentos de condução dirigista do eleitorado, ocultando a finalidade de promoção ou descredenciamento de alternativas políticas em medida suficiente a comprometer a plena lisura de todo o processo”, conforme explana Frederico Alvim (O peso da imprensa na balança eleitoral Efeitos, estratégias e parâmetros para o exame da gravidade das circunstâncias em hipóteses de uso indevido dos meios de comunicação social. In: Resenha Eleitoral. V. 20. N. 2 (mai/17). Florianópolis, p. 41)

Não há que se falar em uso indevido dos meios de comunicação social em decorrência da distribuição de material publicitário por órgão partidário, que não possui nenhuma obrigação de imparcialidade ou mesmo de assegurar, em seus impressos, espaço para os candidatos adversários.

Afastada, portanto, a caracterização de uso indevido dos meios de comunicação social, não reconheço a dissidência jurisprudencial indicada no Recurso Especial.

Registre-se, porém, que o referido precedente tinha contornos fáticos peculiares, porquanto a conduta tida por ilícita envolvia a distribuição de informativo publicitário pelo próprio partido, circunstância que levou a douta maioria a assentar a inexistência de uso indevido dos meios de comunicação naquele caso.

Por outro lado, mais recentemente, esta Corte Superior, mesmo sem discutir especificamente a matéria, tem analisado em tese a possibilidade de o uso indevido se caracterizar a partir de mensagens oriundas de agentes não vinculados a veículos de imprensa.

Por exemplo, no REspe 31-02, red. para o acórdão Min. Tarcisio Vieira de Carvalho Neto, assentou-se a impossibilidade de revisão acerca da ausência de gravidade, juízo que é logicamente posterior ao exame do cabimento da ação, questionado nas razões recursais pelo fato de que a conduta apurada envolvia postagens na internet, não vinculadas a veículos de imprensa.

Já na AIJE 0601782-57, de relatoria do Min. Luis Felipe Salomão, ficou registrado diretamente que não haveria prova robusta do uso indevido, novamente sem analisar se a contratação de empresas de marketing digital e o uso anormal de telefones de pessoas físicas poderiam ser apurados em AIJE sob o signo do “uso indevido dos meios de comunicação”. De toda sorte, mesmo à míngua de discussão, o avanço ao mérito sugere que houve superação da condição da ação alusiva ao interesse-adequação.

Como bem apontou o relator, os meios de comunicação sofreram inegável transformação nos últimos anos, não apenas pela maior presença dos veículos de comunicação na internet – inclusive nas redes sociais –, mas também pela fragmentação da produção de conteúdo jornalístico, por meio da profusão de formas de comunicação de massa.

Para o bem ou para o mal, qualquer cidadão pode, em tese, veicular manifestação típica dos veículos de comunicação social, com aparência de verdade e hipotético dever de mínima imparcialidade. Não são incomuns, no ambiente informatizado, as transmissões em tempo real (ditas lives), com toda a estética jornalística.

No caso, entendo que a transmissão ao vivo levada a efeito pelo parlamentar, para milhares de pessoas, com referências a supostos documentos oficiais e com o desiderato de denunciar supostas fraudes nas urnas eletrônicas, muito se assemelha a uma das funções tradicionais dos meios de comunicação, a de supervisão e controle das ações estatais, de sorte que pode, de forma análoga, ser sindicada em sede de ação de investigação judicial eleitoral, sob o vocábulo do uso indevido dos meios de comunicação.

De qualquer maneira, ainda que se controverta acerca do ponto, considero presente o interesse-adequação, seja porque também há alegação de abuso do poder político, seja porque o uso indevido de comunicação pode ser considerado uma espécie de abuso do poder econômico.

Superada essa questão, outro ponto suscitado pelas partes envolve saber se foram utilizadas prerrogativas do mandato parlamentar, com desvio de finalidade, em benefício de candidato, partido político e coligação, ou se a manifestação se situaria albergada pela imunidade parlamentar material.

A esse respeito, destaco inicialmente que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é iterativa no sentido de que “a imunidade material parlamentar quanto a palavras e opiniões emitidas fora do espaço do Congresso Nacional pressupõe a presença de nexo causal entre a suposta ofensa e a atividade parlamentar” (Pet 6268, rel. Min. Rosa Weber, DJE de 17.4.2018).

Na mesma linha: “O afastamento da imunidade material prevista no art. 53, caput, da Constituição da República só se mostra cabível quando claramente ausente vínculo entre o conteúdo do ato praticado e a função pública parlamentar exercida ou quando as ofensas proferidas exorbitem manifestamente os limites da crítica política” (Inq 3677, red. para o acórdão Min. Teori Zavascki, DJE de 30.10.2014).

Portanto, para o exame do caráter abusivo do ato ou da eventual incidência da imunidade parlamentar material, afigura-se necessário analisar trechos da degravação do vídeo, que foi veiculado no perfil Delegado Francischini, perfil oficial do parlamentar e dedicado à sua atuação profissional:

Urgente, pessoal, acabamos de pegar o primeiro caso grave

[...]

e já identificamos duas urnas que eu digo ou são fraudadas ou adulteradas, agora é real porque eu tô passando pra vocês, eu tô com toda a documentação da própria Justiça Eleitoral, uma ata da mesa receptora da Justiça Eleitoral, é grave o que eu to passando pra vocês todos

[...]

e nós estamos estourando isso aqui em primeira mão pro Brasil inteiro para vocês urnas ou são adulteradas ou fraudadas e com a ajuda do Juiz Eleitoral e do Promotor eleitoral a gente tá trazendo essa denúncia gravíssima antes do final

[...]

ou vamos chegar mais longe eu uso aqui a minha imunidade parlamentar que ainda vai até janeiro independente dessa eleição pra tá dize pra trazer essa denúncia com documentos da Justiça Eleitoral nosso advogado acabou de confirmar de conseguir identificou duas urnas que eu digo adulteradas

[...]

no final do processo o voto para presidente não aparece a opção confirmar em seguida apareceu a tela gravando ou seja está adulterada e fraudada, duas urnas estão apreendidas

[...]

são centenas de urnas no Brasil inteiro com problema, nós não vamos aceitar esse resultado

[...]

Nós queremos uma auditoria externa, empresa externa, não empresa da Venezuela tocando urna eletrônica gente, não queremos empresinha da Venezuela não;

[...]

gente tá aqui nosso documento Justiça Eleitoral apreensão feita duas urnas eletrônicas até que enfim agora a gente tem uma ação concreta até agora eram ações que a gente buscava provas agora nós temos o Ministério Público testando a urna

[...]

Nós não queremos mais essa merda dessa empresa da Venezuela tocando urna eletrônica no Brasil, o PT já acabou aqui no Brasil, não tem mais, instituição é Estado, não é de Governo. Que porcaria, que sem vergonhice é essa? Duas urnas eletrônicas! Imagine as milhares que existem aí;

[...]

Quer dizer, todo mundo que passou antes ou depois naquela urna não votou no Bolsonaro pra Presidente. Se isso está acontecendo no Brasil inteiro é uma sem vergonhice, nós vamos botar pra correr essa empresa da Venezuela, ou por bem ou o povo se cansa

[...]

O que tá acontecendo? Vocês vão querer ganhar agora no tapetão essa ... de eleição?

[...]

Bom tá aqui pra você 50.000 pessoas ao vivo boletim apreendido finalmente duas urnas se a gente não apreende as centenas porque desaparecem os vestígios que ficam de fraudes eletrônicas duas

[...]

Mas principalmente os funcionários da Justiça Eleitoral que estão revoltados onde a gente vai, em todo lugar funcionário puxa a gente no canto e fala tá estranho, é muita urna com problema, não dá para votar...

[...]

e aqui eu não tenho papa na língua porque eu tenho uma merda que chama imunidade parlamentar pra falar, vota 17 e aparece o nome do Haddad (...), se for um fake, depois eu volto e me retrato, mas eu não vou deixar de falar

[...]

falta pouco pra fechar a apuração das votações e se tiver paradinha técnica dessa vez também nós vamos berrar, não vai ficar desse jeito, paradinha técnica na apuração para voltar o senhor Haddad na frente nós não vamos querer, nós vamos aceitar não

[...]

duas urnas que não se podia votar para Jair Bolsonaro apreendidas e agora nós queremos perícia externa

[...]

até agora todo mundo dizia pra mim, ficavam me ligando aqui, fique quieto”, não, isso é um problema pontual, não, gente, a urna é segura... Segura o escambal, é o escambal!

[...]

Se o pessoalzinho de imprensa de esquerda, se os que estão infiltrado em instituições querem calar o povo brasileiro não vão calar na eleição não vão calar na eleição nós vamos acompanhar passo a passo a apuração agora essas duas urnas

[...]

nós queremos agora que o nosso advogado do PSL conseguiu a apreensão dessas duas urnas eletrônicas;

[...]

já falei pro Dr Gustavo durma com as urnas vá atrás onde elas forem nós queremos saber se são as mesmas que estão apreendidas nós agora vamos até o fim dessa situação

[...]

mas eram muitos casos eu nunca vi tanto caso com problemas no Brasil inteiro nunca vi foi a primeira vez que explodiu realmente a população fiscalizando agora duas urnas apreendidas de verdade com o próprio juiz, o próprio Ministério Público Eleitoral, vendo na hora o funcionamento, que ela não tinha a tecla, não aceitava o confirma... Isso é escancaradamente uma vergonha e pode ser um golpe contra a democracia, que nós não vamos aceitar. Se existe qualquer porcaria chamada imunidade parlamentar, pra mim fazer essa denúncia que eu sei que vai doer num monte de gente

[...]

Estou aqui, façam o que quiser, metam um processo em mim, porrada o que for. Principalmente o pessoalzinho que não aceita as diferenças, que já fizeram com o Bolsonaro. Mas ficar quieto e calado não vou ficar. Tá terminando o período eleitoral, o período de voto e daqui a pouco nós vamos acompanhar sem paradinha técnica, como aconteceu com a Dilma lá atrás, quero ver o resultado agora. Pode ter sido avassalador o resultado e isso aqui não influenciar tanto, mas eu quero ver se não fizeram algum cambalacho pro Jair Bolsonaro não ganhar essa eleição no primeiro turno. É isso que eu quero ver

[...]

Mas nós não vamos aceitar que uma empresa da Venezuela, que a tecnologia que a gente não tem acesso defina a democracia no Brasil. [grifos nossos]

Reitero que essa live foi transmitida no canal oficial do parlamentar antes do término da votação e, em determinado momento, chegou a contar com aproximadamente 70.000 participantes.

A meu sentir, a utilização do cargo e o desvio de finalidade são evidentes a partir do momento em que é utilizado o canal oficial do mandatário para propagar notícia que, segundo a prova dos autos:

a) apresenta aparência de credibilidade quanto à origem, por ser oriunda de um parlamentar;

b) estava alinhada com a estratégia política do partido do então candidato, o PSL;

c) era incompatível com a conduta esperada do agente público em face de fatos supostamente criminosos, que seria dar notícia do fato às autoridades competentes (promotor e juiz eleitoral), e/ou aos órgãos correicionais.

Aliás, registre-se que a existência em tese de desvio de finalidade foi assentada pela maioria da Corte de origem, ficando a controvérsia restrita a saber se o uso do poder do cargo foi em benefício de candidato, partido ou coligação.

Assim como o ilustre Ministro Luis Felipe Salomão e o relator da ação na origem, entendo presente esse benefício, pois:

a) ficou provado nos autos que o ataque direto às urnas, com estética de denúncias em tempo real, era estratégia da campanha do então candidato à presidência pelo Partido Social Liberal (PSL);

b) há trechos das mensagens indicativos de que o objetivo da denúncia era assegurar o êxito eleitoral do candidato de preferência do recorrido, bem como garantir que o seu principal opositor não fosse eleito com base em urnas alegadamente fraudadas. Exemplos de tais passagens:

i) “Nós não queremos mais essa merda dessa empresa da Venezuela tocando urna eletrônica no Brasil, o PT já acabou aqui no Brasil, não tem mais, instituição é Estado, não é de Governo. Que porcaria, que sem vergonhice é essa? Duas urnas eletrônicas! Imagine as milhares que existem aí”;

ii) “Quer dizer, todo mundo que passou antes ou depois naquela urna não votou no Bolsonaro pra Presidente. Se isso está acontecendo no Brasil inteiro é uma sem vergonhice, nós vamos botar pra correr essa empresa da Venezuela, ou por bem ou o povo se cansa”;

iii) “O que tá acontecendo? Vocês vão querer ganhar agora no tapetão essa ... de eleição?”

iv) “e aqui eu não tenho papa na língua porque eu tenho uma merda que chama imunidade parlamentar pra falar, vota 17 e aparece o nome do Haddad”;

v) “falta pouco pra fechar a apuração das votações e se tiver paradinha técnica dessa vez também nós vamos berrar, não vai ficar desse jeito, paradinha técnica na apuração para voltar o senhor Haddad na frente nós não vamos querer, nós vamos aceitar não”;

vi) “duas urnas que não se podia votar para Jair Bolsonaro apreendidas e agora nós queremos perícia externa”;

vii) “Tá terminando o período eleitoral, o período de voto e daqui a pouco nós vamos acompanhar sem paradinha técnica, como aconteceu com a Dilma lá atrás, quero ver o resultado agora. Pode ter sido avassalador o resultado e isso aqui não influenciar tanto, mas eu quero ver se não fizeram algum cambalacho pro Jair Bolsonaro não ganhar essa eleição no primeiro turno. É isso que eu quero ver”;

c) o discurso de ataque institucional, inclusive à Justiça Eleitoral e às urnas eletrônicas, foi utilizado em 2018 como mecanismo de propaganda eleitoral em favor de candidatos ditos outsiders, contrários ao status quo político estabelecido, o qual, segundo esse viés, estaria comprometido pela corrupção, pela fraude e por toda sorte de vícios.

Portanto, entendo presentes tanto o desvio de finalidade quanto o benefício de candidato, partido ou coligação, elementos do abuso do poder político.

Por fim, com relação ao juízo de gravidade, adiro integralmente aos fundamentos do relator, assim lançados:

10.  Nos termos do art. 22, XVI, da LC 64/90, para se configurar o ato abusivo não se requer “a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição”, mas sim “a gravidade das circunstâncias que o caracterizam”, de acepção mais ampla. Veja-se:

Art. 22 [omissis]

[...]

XVI – para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam.

Na AIJE 0601754-89/DF, Rel. Min. Jorge Mussi, DJE de 20/3/2019, este Tribunal reafirmou a compreensão de que a gravidade deve ser aferida a partir de aspectos qualitativos e quantitativos da conduta, que, em linhas gerais, residem no seu grau de reprovabilidade e na magnitude da influência na disputa, desequilibrando-a em favor do beneficiado pelo abuso. Confira-se:

AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ELEIÇÕES DE 2018. PRESIDENTE E VICE-PRESIDENTE DA REPÚBLICA. [...] ABUSO DO PODER ECONÔMICO. ELEMENTOS. CARACTERIZAÇÃO. USO. RECURSOS PÚBLICOS OU PRIVADOS. GRAVIDADE. DESEQUILÍBRIO DO PLEITO. [...].

[...]

5. Para se caracterizar o abuso de poder, impõe-se a comprovação, de forma segura, da gravidade dos fatos imputados, demonstrada a partir da verificação do alto grau de reprovabilidade da conduta (aspecto qualitativo) e de sua significativa repercussão a fim de influenciar o equilíbrio da disputa eleitoral (aspecto quantitativo). A mensuração dos reflexos eleitorais da conduta, não obstante deva continuar a ser ponderada pelo julgador, não se constitui mais em fator determinante para a ocorrência do abuso de poder, sendo agora revelado, substancialmente, pelo desvalor do comportamento.

[...]

Conforme se assentou no REspe 2-98/AM, Rel. Min. Luiz Fux, DJE de 8/8/2017, “o fato de as condutas abusivas ostentarem potencial para influir no resultado do pleito é relevante, mas não essencial. Há um elemento substantivo de análise que não pode ser negligenciado: o grau de comprometimento aos bens jurídicos tutelados pela norma eleitoral causado por essas ilicitudes, circunstância revelada, in concrecto, pela magnitude e pela gravidade dos atos praticados”.

Na mesma linha dessa análise qualitativa e quantitativa, Rodrigo López Zilio fornece com precisão alguns dos critérios que podem ser verificados caso a caso para aferir a gravidade dos fatos:

Como já assentado outrora, é possível fixar algumas diretrizes para uma adequada conformação da gravidade das circunstâncias. Assim, a conduta do agente é um aspecto essencial a ser avaliado para aferição da gravidade das circunstâncias, sendo útil a adoção do seguinte raciocínio: se o próprio candidato cometeu o ilícito ou teve uma participação direta no ato, estabelecendo-se uma identidade entre autor e beneficiário, essa conduta apresenta um grau maior de reprovação; [...]. A forma ou natureza do ato praticado também é um critério a ser considerado para a configuração do ilícito. [...] Da mesma sorte, o uso de órgãos públicos ou governamentais para fins eleitoreiros é, a priori, um indicativo de maior reprovabilidade no agir ilícito se comparado com o emprego de uma estrutura privada para a consecução do mesmo fim vedado. [...] Por fim, os efeitos e a extensão do ato abusivo também podem (ou devem) ser medidos pelos critérios cronológico, quantitativo e em relação ao eleitor. Desse modo, a gravosidade do ato é maior quando ele é de caráter permanente (pelos efeitos que se prolongam temporalmente) ou, ainda, se cometido em momento mais próximo à eleição (pela inviabilidade de uma reversão desse ato em face à data do pleito). [...]

(Cassação de mandato e decisão sancionatória eleitoral. In: FUX, Luiz; PEREIRA, Luiz Fernando Casagrande; AGRA, Walber de Moura (Coords.). Abuso de poder e perda de mandato. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 459) (sem destaques no original)

No caso, uma série de fatores exaustivamente tratados neste voto revela que a conduta praticada pelo recorrido reveste-se de extrema gravidade, a atrair a cassação do diploma e a inelegibilidade.

O primeiro desses fatores possui natureza qualitativa e encontra-se representado pela conduta em si mesma.

O ataque às instituições pelo candidato, noticiando fraudes no sistema eletrônico de votação que jamais ocorreram, possui repercussão nefasta na estabilidade do Estado Democrático de Direito e na confiança depositada pelos eleitores nas urnas eletrônicas, que, reitere-se, são utilizadas há 25 anos nas eleições brasileiras sem nenhuma prova de manipulações ou adulterações.

Também sob esse viés, ganha relevo a circunstância de que o cerne do ilícito residiu na veiculação de notícias inverídicas, atingindo diretamente os eleitores que assistiram à transmissão e que foram levados a acreditar naqueles fatos. Tudo isso, é importante reiterar, com o recorrido afirmando sucessivas vezes que assim o fazia porque estava protegido pela imunidade parlamentar.

Trata-se de aspecto de extrema relevância para o deslinde do caso, já que, nas palavras de José Jairo Gomes, “a manipulação midiática também se faz por meios simbólicos, pela colonização das consciências, interpretações tortas, distorções da realidade e construções enviesadas de sentido na esfera pública. A violência simbólica perpetrada sequer é percebida pelos destinatários, pois tudo se passa como se fosse verdadeiro convencimento; conteúdos distorcidos, tendenciosos, são veiculados como se fossem informação de interesse público” (Direito Eleitoral. 16. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2020, p. 742).

Ademais, numa conjugação de aspectos qualitativos e quantitativos, anoto que a conduta do recorrido propiciou benefício não apenas próprio – ou seja, a obtenção de votos para o cargo de deputado estadual –, mas de terceiros, haja vista o efeito multiplicador das práticas ocorridas na internet.

Com efeito, na indigitada live na rede social facebook, a transmissão, segundo o próprio recorrido, iniciou-se com audiência de 30 mil pessoas e encerrou-se com mais de 70 mil espectadores.

Para além dessa elevada audiência, causa espécie o fato de que, até 12/11/2018, o vídeo postado teve mais de 105 mil comentários, 400 mil compartilhamentos e seis milhões de visualizações.

Como bem se ressaltou no AgR-AC 1384-43/DF, Rel. Min. Henrique Neves, DJE de 17/8/2020, “ao contrário dos demais meios de comunicação social, a transmissão de dados pela Internet não se exaure no momento em que se realiza. Nos rádios e nas televisões, uma vez divulgada a notícia, o espaço de divulgação passa a ser ocupado pela programação que se segue. A internet, neste aspecto, é estática. A manutenção da informação em sítio da rede permite o acesso contínuo, a qualquer hora, de qualquer lugar do mundo [...]” (sem destaque no original).

O fato de se tratar de um vídeo, com duração aproximada de 18 minutos, em nada beneficia o recorrido no caso. Como já se explicitou, os demais fatores aqui considerados assumem expressiva preponderância frente a esse aspecto, haja vista a natureza da conduta, os massivos dados de audiência e sua ocorrência na data do pleito, durante a votação.

Por todas essas razões, a gravidade dos fatos também se encontra presente no caso dos autos, configurando-se assim o uso indevido dos meios de comunicação social e o abuso de poder político e de autoridade.

De todo o exposto, assim como Sua Excelência, entendo presentes o abuso do poder político e o uso indevido dos meios de comunicação, sendo de rigor a imposição das seguintes sanções: a cassação do diploma e a inelegibilidade.

Também me alinho com o relator acerca da inaplicabilidade do princípio da anualidade. Afinal, o que o Supremo Tribunal Federal assentou no RE 637.485 foi que as mudanças na interpretação das regras eleitorais e constitucionais com impacto na elegibilidade é que não se aplicariam de imediato. Não se tutela o fato inédito, ou a condenação inédita.

Por fim, estou de acordo com a proposta de anulação dos votos atribuídos ao recorrido, na linha do voto que proferi no RO-El 0603900-65/BA, de minha relatoria, cujo acórdão foi publicado no DJE em 26.11.2020.

Por essas razões, acompanho o relator e voto no sentido de dar provimento ao recurso ordinário interposto pelo Ministério Público Eleitoral, para cassar o diploma do recorrido e declarar sua inelegibilidade, nos termos do art. 22, XIV, da Lei Complementar 64/90, anulando-se os votos conferidos ao recorrido.

Do mesmo modo, em observância à colegialidade, voto no sentido da imediata execução do aresto, independentemente de publicação.

O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO (presidente): Muito obrigado, Ministro Sérgio Banhos.

Como vota o Ministro Carlos Horbach?

 

PEDIDO DE VISTA

 

O SENHOR MINISTRO CARLOS HORBACH: Senhor Presidente, peço vista dos autos.

O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO (presidente): Muito obrigado, Ministro Carlos Horbach, que pede vista regimental.

Indago dos demais ministros se aguardarão a devolução da vista? Presumo que sim.

 

PROCLAMAÇÃO DO RESULTADO (provisório)

 

O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO (presidente): Proclamo, portanto, o resultado provisório: iniciado o julgamento, o relator deu provimento ao recurso para julgar procedentes os pedidos formulados na Aije, cassar o diploma do recorrido e declarar sua inelegibilidade por oito anos, contados das eleições de 2018. Foi acompanhado pelos Ministros Mauro Campbell Marques e Sérgio Banhos. Na sequência, pediu vista o Ministro Carlos Horbach. Aguardam os demais.

 

EXTRATO DA ATA

 

RO-EL nº 0603975-98.2018.6.16.0000/PR. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Recorrente: Ministério Público Eleitoral. Recorrido: Fernando Destito Francischini (Advogados: Gustavo Swain Kfouri – OAB: 35197/PR e outros).

Usou da palavra, pelo recorrido, Fernando Destito Francischini, o Dr. Gustavo Swain Kfouri.

Decisão: Após o voto do relator, no sentido de dar provimento ao recurso para julgar procedentes os pedidos formulados na AIJE, cassar o diploma do recorrido e declarar sua inelegibilidade por oito anos, contados das eleições de 2018, no que foi acompanhado pelos Ministros Mauro Campbell Marques e Sérgio Banhos, pediu vista o Ministro Carlos Horbach.

Composição: Ministros Luís Roberto Barroso (presidente), Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Luis Felipe Salomão, Mauro Campbell Marques, Sérgio Banhos e Carlos Horbach.  

Vice-Procurador-Geral Eleitoral: Paulo Gustavo Gonet Branco.

SESSÃO DE 19.10.2021.

 

VOTO-VISTA

 

O SENHOR MINISTRO CARLOS HORBACH: Senhor Presidente, trata-se de recurso ordinário interposto pelo Ministério Público Eleitoral contra acórdão do Tribunal Regional Eleitoral do Paraná (TRE/PR) pelo qual foi julgada improcedente a ação de investigação judicial eleitoral (AIJE) proposta em face de Fernando Destito Francischini, deputado estadual eleito pelo Estado do Paraná no pleito de 2018 e, na data da eleição, detentor do cargo de deputado federal.

Sustenta-se, na inicial e no recurso ordinário, que o recorrido teria incorrido em uso indevido de meios de comunicação e abuso de autoridade, nos termos do art. 22 da LC nº 64/90, por, no dia 7.10.2018, data do primeiro turno das eleições, ainda no transcurso do pleito, ter realizado transmissão ao vivo no Facebook em que disseminou notícias falsas acerca da segurança das eleições para promover sua atuação e a de seu partido.

Em sessão ocorrida no dia 19.10.2021, o ministro relator prolatou voto pelo provimento do recurso ordinário, com as consequentes cassação do diploma do recorrido e declaração de sua inelegibilidade por 8 (oito) anos, no que foi acompanhado pelos Ministros Mauro Campbell Marques e Sérgio Banhos, ocasião em que pedi vista do feito.

O pedido de vista dos presentes autos, como expus na sessão do dia 19.10.2021, decorreu da existência de diversos questionamentos interessantes e complexos atinentes ao caso, dentre eles a definição do exato alcance da imunidade parlamentar do recorrido, a caracterização das redes sociais como meio ou veículo de comunicação social para os fins do art. 22 da LC nº 64/90 e, em especial, a aferição da gravidade e do benefício ao candidato no caso concreto diante do real impacto da conduta no pleito, cuja lisura se busca preservar.

De início, acompanho o relator no que concerne ao afastamento da preliminar suscitada em contrarrazões ao recurso ordinário por igualmente não vislumbrar inovação recursal na espécie, uma vez que as argumentações lançadas pelo Ministério Público a partir de dados sobre o uso de internet por brasileiros, bem como o enaltecimento do compromisso assumido pela Justiça Eleitoral no combate às informações falsas, são temas voltados a contrapor as razões que levaram o TRE/PR a julgar improcedente a ação e, por isso, amplamente debatidos na origem.

No mérito, rememoro que a imunidade parlamentar material, real ou substancial do art. 53 da Constituição Federal, extensível a deputados estaduais por força do art. 27, § 1º, do mesmo diploma, tem por escopo proteger suas manifestações, que constituem o próprio cerne da atribuição do cargo, desde que haja “conexão com o desempenho da função legislativa ou que sejam proferidas em razão desta, não sendo possível utilizá-la como verdadeiro escudo protetivo para a prática de atividades ilícitas” (STF, Pleno, Pet nº 9456/DF, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJe de 21.6.2021).

Em manifestação doutrinária, o eminente Ministro Alexandre de Moraes, comparando as concepções de dois autores britânicos – Blackstone e Stuart Mill – acerca da inviolabilidade parlamentar, faz as seguintes considerações, que explicitam o sentido do julgado do STF acima citado, in verbis:

“Por outro lado, em outras hipóteses, nosso Direito Constitucional também admite a teoria iniciada por Stuart Mill, em relação a palavras, opiniões e expressões manifestadas fora do Parlamento, ou seja, quando ausente a ‘cláusula espacial’. Nessas hipóteses, é necessário para a constatação da inviolabilidade a presença de determinados requisitos: nexo causal entre o que foi dito, expressado ou criticado e o exercício do mandato, ou ainda, derivado da própria condição de parlamentar, principalmente, há necessidade de análise se a manifestação guardou relação com as funções parlamentares ligadas à crítica política, prestação de contas ou informação do cidadão.

A riqueza da obra nos permite verificar que Stuart Mill difere de Blackstone exatamente porque entende que, independentemente do local onde estiver – ausência da cláusula espacial –, incidirá a imunidade se as manifestações parlamentares pretendem levar ao cidadão suas posições em relação a questões importantes da vida nacional, da vida pública, da vida governamental; se houver essa intenção, incidirá a imunidade, independe do local onde as palavras e opiniões foram proferidas” (“Prefácio”, Inviolabilidade Parlamentar, de José Levi Mello do Amaral Júnior, São Paulo: Quartier Latin, 2020, p. 15-16).

A imunidade, repise-se, permanece produzindo seus efeitos protetivos mesmo que o parlamentar não esteja no Parlamento, especialmente quando suas palavras, proferidas em qualquer veículo, digam com “informação do cidadão” ou “questões importantes da vida nacional”.

No âmbito do Tribunal Superior Eleitoral, é tranquilo o entendimento de que “essa garantia constitucional abarca apenas os fatos cometidos em razão do mandato, e não aqueles relacionados à campanha eleitoral” (AgR-REspe nº 9-68/PB, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe de 16.9.2021), compreensão que espelha praticamente duas décadas de sólida jurisprudência desta Corte (HC nº 92-14/SP, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 13.9.2002).

Essa orientação jurisprudencial, porém, não leva à conclusão óbvia e inafastável de que qualquer discurso proferido em contexto eleitoral esteja automaticamente desprotegido pela inviolabilidade parlamentar. Esta seguirá hígida se, para além do intuito estritamente eleitoral, o discurso do parlamentar promover a “informação do cidadão” ou abordar “questões importantes da vida nacional”, circunstâncias nas quais se verifica o que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal denomina “nexo de implicação recíproca”.

A partir de tal concepção, “a inviolabilidade parlamentar pressupõe que as palavras e opiniões tenham sido proferidas no exercício do mandato (prática in officio) ou em razão do mandato (prática propter officio), devendo haver entre as manifestações e o mandato ‘necessário nexo de causalidade’”, como ensina José Levi Mello do Amaral Júnior, meu colega no Largo de São Francisco, autor da mais moderna e atualizada obra sobre o tema na doutrina brasileira (cf. Inviolabilidade Parlamentar, p. 208-209).

Assim, é possível cogitar de um discurso de parlamentar, no dia da eleição, em diferentes veículos de comunicação, denunciando fraudes eleitorais de que tenha tomado conhecimento, exatamente por ser esse tema uma “questão importante da vida nacional”, sobre o qual deve ser oportunizada a “informação do cidadão”.

É possível encontrar, na jurisprudência do STF, precedente em que reconhecida a imunidade parlamentar ante manifestação de Senador da República, em que era denunciada a prática de captação ilícita de sufrágio por parte de adversário político. Esse é o caso do Inq 2.674, rel. Min. Ayres Britto, DJe de 26.02.2010, cujo acórdão, na parte aqui interessante, foi assim ementado:

“2. No caso, as palavras proferidas pelo querelado (Senador da República) estão acobertadas pela inviolabilidade parlamentar, descrita no art. 53 da Constituição Federal de 1988. E passa ao largo de qualquer dúvida a compreensão de que tal inviolabilidade significa insusceptibilidade de cometimento de crime. Noutros termos: os fatos objeto da queixa-crime se encontram imbricados com a função parlamentar do Senador da República acionado. Fatos que, de imediata percepção, se enquadram no contexto da disputa política, por ocasião das eleições para o Senado Federal, no Estado do Amapá. Em suma: o quadro fático-probatório demonstrou o deliberado intento do querelado de defender a legitimidade de sua própria investidura no cargo de Senador da República, fazendo para os seus eleitores em particular e o público em geral um amplo retrospecto da disputa eleitoral do ano de 2002. Muito mais para o efeito de registro histórico do que propriamente externar propósito violador da honra do querelante”.

Portanto, o contexto da campanha política e os objetivos eleitorais do discurso não desnaturam, sempre e necessariamente, a inviolabilidade parlamentar, já que pode haver manifestação com tal conteúdo que venha a consubstanciar o múnus de fiscalização do regime democrático investido nos membros do Poder Legislativo.

Por outro lado, mesmo que reconhecido o caráter estritamente eleitoral da manifestação analisada nos autos, não haveria espaço para o provimento do recurso ordinário. É que se entende que “o abuso do poder político ou de autoridade insculpido no art. 22, caput, da LC nº 64/90, caracteriza-se quando o agente público, valendo-se de sua condição funcional e em manifesto desvio de finalidade, compromete a igualdade e a legitimidade da disputa eleitoral em benefício de candidatura própria ou de terceiros” (REspe nº 408-98/SC, Rel. Min. Edson Fachin, DJe de 6.8.2019).

No caso específico dos autos, em que pese o recorrido identificar-se como delegado da Polícia Federal licenciado para o exercício do cargo de deputado federal, fato é que sua condição funcional não foi elemento essencial no contexto dos fatos narrados, uma vez que o mesmo vídeo, com o mesmo conteúdo, poderia ter sido feito por um candidato não ocupante de cargo público.

Poder-se-ia cogitar que seu cargo permitiu a maior difusão das ideias propagadas na transmissão ocorrida na rede social. Ainda assim, a abrangência do vídeo é elemento que tem ligação mais estreita com a análise da gravidade e do proveito – a serem esmiuçados adiante – do que com a condição funcional necessária à configuração do abuso de autoridade.

Em suma, o simples fato de o recorrido ocupar o cargo de deputado federal à época dos fatos não atrai, por si só, a configuração do abuso do poder político ou de autoridade, uma vez que essa condição não foi essencial à prática do ato narrado.

Aliás, o próprio recurso interposto escora-se na tese segundo a qual o recorrente distorceu as falhas técnicas noticiadas e a substituição de urnas da localidade para promoção pessoal e partidária, ou seja, na condição de candidato e em proveito da candidatura, praticou os fatos narrados, circunstância que a um só tempo afastaria a imunidade material, mas impediria também, no caso concreto, a configuração da hipótese do art. 22 da LC nº 64/90 pela ótica do uso indevido, desvio ou abuso do poder de autoridade.

Nesse sentido, remanesce a análise da conduta narrada pela ótica da utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social em benefício de candidato ou de partido político, o que implica perquirição do meio empregado no caso concreto e sua subsunção ou não ao disposto na Lei de Inelegibilidades.

No tópico, não vejo como afastar a tese há pouco fixada por esta Corte, no julgamento das AIJEs 0601968-80 e 0601771-28, rel. Min. Luis Felipe Salomão, por meio da qual se estendeu consideravelmente o conceito de “meios de comunicação social”, para fins de aplicação da LC nº 64/90. Ainda que discorde dessa tese, como amplamente explicitado no voto proferido nos mencionados feitos, passo a adotar as premissas teóricas da maioria para apreciação do presente caso em julgamento.

Todavia, parece-me que seria imprudente englobar as redes sociais como plataforma passível de cometimento do ilícito disposto no art. 22 da LC nº 64/90 sem se atentar para duas peculiaridades substanciais inerentes ao caso, pois, apesar de serem um meio de comunicação, como há pouco decidido, são também um meio pelo qual se exerce a liberdade de expressão. Além disso, a dinâmica da busca de informação na internet demanda postura ativa do cidadão quando comparada à passividade ínsita aos meios de comunicação tradicionais.

Atento a esses substanciosos detalhes, este Tribunal já afirmou que “a atuação da Justiça Eleitoral em hipóteses que envolvam os meios de comunicação social deve ser realizada com a menor interferência possível no debate democrático, de modo a prevalecer a livre manifestação do pensamento e o direito à informação”. Ademais, na internet, “a busca pela informação fica na dependência direta da vontade e da iniciativa do próprio eleitor” (AIJE nº 0601862-21/DF, Rel. Min. Og Fernandes, Rel. designado Min. Jorge Mussi, DJe de 26.11.2019).

No mesmo sentido do julgado acima colacionado, registro o voto que proferi na Rp nº 0601298-42/DF (Rel. Min. Carlos Horbach, Rel. designado Min. Edson Fachin, PSESS de 25.10.2018) e menciono os seguintes precedentes: REspe nº 926-67/PB, Rel. Min. Luciana Lóssio, DJe de 25.4.2016; AgR-RO nº 758-25/SP, Rel. Min. Luiz Fux, DJe de 13.9.2017; e AgR-REspe nº 14-42/PE, Rel. Min. Tarcisio Vieira de Carvalho Neto, DJe de 3.12.2018.

Em resumo, a análise da gravidade das condutas que utilizem indevidamente redes sociais em benefício de candidato ou de partido político, para os fins do art. 22 da LC nº 64/90, não pode descurar as balizas afetas à livre manifestação do pensamento e a dinâmica de consumo da informação na plataforma, vetores que devem ser considerados na gradação da conduta.

Outro ponto a ser considerado na difusão de informações em redes sociais – e que é objeto de preocupação da doutrina que esquadrinha os novos campos da inteligência artificial e da desinformação nas sociedades de massas – é o induzimento de conteúdo a partir do perfil dos usuários (cf. Maja Brkan. Artificial Intelligence and Democracy: The Impact of Disinformation, Social Bots and Political Targeting. Disponível em: https://doi.org/10.21552/delphi/2019/2/4, acesso em 20.10.2021), ou seja, o encontro de informações em redes sociais não costuma ser objetivo e espontâneo, mas antecipado a partir das características do leitor (Katarina Kertysova. Artificial Intelligence and Disinformation. How AI Changes the Way Disinformation is Produced, Disseminated, and Can Be Countered. Disponível em: https://doi.org/10.1163/18750230-02901005, acesso em 20.10.2021).

Ao empregar esse pressuposto teórico ao caso concreto, analiso a conduta descrita à luz da sua gravidade e do benefício ao candidato ou ao partido político.

Como incontroverso nos autos, consta que o recorrido transmitiu vídeo ao vivo na rede social Facebook, quando ainda em curso a votação no primeiro turno, para mais de 70.000 (setenta mil) internautas, ao passo que o conteúdo alcançou a cifra de 105.000 (cento e cinco mil) comentários, 400.000 (quatrocentos mil) compartilhamentos e 6.000.000 (seis milhões) de visualizações.

Em uma leitura desarmada, os números impactam. Contudo, após análise detida do feito, verifiquei que tais quantitativos foram obtidos em 12.11.2018, ou seja, após o encerramento do primeiro turno. É de se notar também que a referida transmissão teve início às 16h38min do dia 7.10.2018, em um pleito que se findou às 17h, conforme o art. 141 da Res.-TSE nº 23.554/2017 e os arts. 144 e 153 do Código Eleitoral.

Nesse contexto e diante do fato de que o candidato ora em julgamento disputava o pleito ao cargo de deputado estadual, deve-se perscrutar a gama de eleitores do Estado do Paraná que, pendentes 22min para o término da votação, ainda não tinham comparecido às urnas e que, após visualizarem o conteúdo publicado nas redes sociais, alteraram sua convicção e empregaram seu voto no recorrente, sem descuidar do induzimento de conteúdo ínsito às plataformas de redes sociais, o que enseja a conclusão, não leviana, de que grande parte daqueles que visualizaram a transmissão já eram simpatizantes do candidato.

Das vultosas cifras trazidas na inicial e reproduzidas no acórdão recorrido, é preciso decotar as visualizações referentes a todos os demais estados brasileiros, uma vez que estas não trazem benefício pessoal para o candidato que concorre ao cargo de deputado estadual. Há de se subtrair, também, o quantitativo de pessoas que, às 16h38min, já haviam votado. Por fim, é necessário desconsiderar todos aqueles que, após as 17h, visualizaram o conteúdo.

É certo que, nos termos do art. 22, XVI, da LC nº 64/90, para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam. Não obstante, a normalidade e a legitimidade das eleições é que devem ser o objeto de tutela do dispositivo, diante do disposto no art. 14, § 9º, da Constituição Federal.

Logo, aferir o número de eleitores daquele estado que ainda não tinham comparecido às urnas e que receberam as informações propagadas pelo candidato é elemento indissociável da análise da gravidade no caso concreto, mesmo porque não caberia a condenação do recorrido em sede de AIJE caso o vídeo tivesse sido veiculado após as eleições, pelo simples fato de que não seria possível afetar a normalidade e a legitimidade de um pleito já encerrado.

A conclusão lançada pela corrente vencida no TRE/PR, de que “é perfeitamente possível que pode ele [o investigado] ter sido beneficiado diretamente da disputa pela Assembleia Legislativa do Estado do Paraná” (ID nº 21657138), subverte o ônus probatório inerente às ações eleitorais, incumbência que repousa sobre o acusador, razão pela qual não pode prevalecer nesta instância, a meu ver.

Para se chegar a tal raciocínio, deve-se presumir que o espectador da transmissão era apto a votar no Estado do Paraná, não tinha ainda exercido o sufrágio, assistiu ao vídeo e, a partir do conteúdo veiculado, convenceu-se a votar no candidato investigado. Trata-se de um exercício de diversas presunções diante das gravíssimas consequências advindas desse ato, que é a cassação de um deputado estadual que obteve 427.749 (quatrocentos e vinte e sete mil, setecentos e quarenta e nove) votos, além da declaração de sua inelegibilidade por 8 (oito) anos.

Nesse sentido, diante “da gravidade das sanções impostas em AIJE por abuso de poder, exige-se prova robusta e inconteste para que haja condenação” (REspe nº 501-20/MG, Rel. Min. Admar Gonzaga, Rel. designado Min. Luís Roberto Barroso, DJe de 26.6.2019), ou seja, “é necessário que haja a demonstração cabal de quebra da isonomia, da legitimidade e da normalidade das eleições, não sendo suficientes meras presunções relativas aos eventuais efeitos que os atos tidos como irregulares poderiam causar” (REspe nº 397-92/SC, Rel. Min. Henrique Neves da Silva, DJe de 20.10.2015).

Na mesma linha de intelecção, menciono o AgR-RO nº 0601590-31/SE (Rel. Min. Sérgio Silveira Banhos, DJe de 29.6.2020), que, em reiteração de entendimento firmado no REspe nº 225-04/BA, Rel. Min. Jorge Mussi, DJe de 26.6.2018, expôs que “o uso indevido dos meios de comunicação social não pode ser presumido e requer que se demonstre a gravidade em concreto da conduta, com mácula à lisura do pleito”.

Destaco, ainda, a compreensão deste Tribunal no sentido de que, para “se caracterizar o abuso de poder, impõe-se a comprovação, de forma segura, da gravidade dos fatos imputados, demonstrada a partir da verificação do alto grau de reprovabilidade da conduta (aspecto qualitativo) e de sua significativa repercussão a fim de influenciar o equilíbrio da disputa eleitoral (aspecto quantitativo)” (AIJE nº 601862-21/DF, Rel. Min. Og Fernandes, Rel. designado Min. Jorge Mussi, DJe de 26.11.2019).

Nesse contexto, apesar de a potencialidade de alteração do resultado eleitoral ser desimportante para a configuração da gravidade, o número de pessoas atingidas pela conduta é elemento que permite atestar a relevância da conduta em relação à lisura eleitoral, bem como o proveito angariado pelo candidato.

Cito, nessa linha, precedentes em que o número reduzido de fiéis presentes no culto (RO nº 0603879-89/BA, Rel. Min. Sergio Silveira Banhos, DJe de 4.8.2021), o reduzido número de periódicos distribuídos gratuitamente (AgR-REspe nº 586-87/RJ, Rel. Min. Rosa Weber, DJe de 10.8.2018), o reduzido quantitativo de munícipes beneficiados (REspe nº 397-92/SC, Rel. Min. Henrique Neves da Silva, DJe de 20.10.2015), ou mesmo o reduzido número de eleitores que estiveram em contato com determinado artista (AgR-REspe nº 563-65/GO, Rel. Min. Luciana Lóssio, DJe de 1º.12.2014) foram elementos que corroboraram a constatação da ausência de gravidade em diversas situações de alegado abuso.

Ademais, conforme compreensão deste Tribunal, para “que se comprove o uso indevido dos meios de comunicação social, é essencial que se analise o número de programas veiculados, o período de veiculação, o teor deles e outras circunstâncias relevantes, que evidenciem a gravidade da conduta a que se refere o art. 22, XVI, da LC 64/90” (AgR-RO nº 0601590-31/SE, Rel. Min. Sérgio Silveira Banhos, DJe de 29.6.2020).

Deixo claro que endosso, integralmente e sem nenhum reparo, toda a preocupação externada pelo relator no sentido de que ataques ao sistema eletrônico de votação e à democracia são atos perniciosos e podem, a depender do contexto, configurar abuso do poder político ou de autoridade, bem como uso indevido dos meios de comunicação, abarcadas as redes sociais.

Sem dúvida, a disseminação de fatos inverídicos causa inseguranças e, de forma covarde e sem amparo em provas nem sequer indiciárias, gera incertezas relativas à lisura do pleito. Não é possível, nesse cenário, valer-se da propagação de fatos sabidamente falsos, em tom sensacionalista dolosamente voltado à célere difusão do conteúdo, para se criar artificialmente um grave problema e, a partir desse macabro teatro, vender para o eleitor como o pretenso candidato não medirá esforços para que a justiça seja feita.

Por outro lado, todo o arcabouço teórico atinente ao caso em julgamento não pode ignorar o fato de que se está a decidir o futuro de um parlamentar estadual eleito, a partir de um contexto fático delineado nos autos pela acusação, cenário do qual esta Corte não pode se afastar, sob pena de se firmar a tese à custa da sua inadequação ao caso concreto.

O disposto no art. 22 da LC nº 64/90 demanda, no que é pertinente ao caso dos autos, a análise da gravidade na utilização indevida do meio de comunicação social, conduta que deve retornar benefício ao candidato ou ao partido político. Sem a verificação de qualquer desses elementos, não é possível subsumir a conduta à previsão legal, como ocorre no caso concreto, em que a inconteste gravidade do conteúdo das informações veiculadas não refletiu na gravidade para fins eleitorais, ou seja, não foi capaz de abalar a normalidade e a legitimidade das eleições para deputado estadual no pleito de 2018, naquela localidade.

Some-se a tal constatação a ausência de benefício relevante para o candidato no contexto dos autos, em que a transmissão do vídeo nas redes sociais ocorreu a 22min do término das votações, em plataforma que, diferentemente dos meios tradicionais de comunicação, a busca pela informação fica na dependência direta da vontade e da iniciativa do próprio eleitor, cujo perfil de usuário também é fator determinante do conteúdo a ser ofertado.

Outro aspecto que considero importante destacar, Senhor Presidente, é o relativo à segurança jurídica, imperativo constitucional que impede a alteração arbitrária de entendimentos estatais e proporciona, em consequência, previsibilidade, conferindo ao cidadão uma percepção de certeza quanto aos atos do poder público (cf. J.J. Gomes Canotilho. Direito constitucional, Coimbra: Almedina, 1993, p. 380).

Em função da segurança jurídica, já há algum tempo, o Supremo Tribunal Federal fixou os efeitos prospectivos das alterações jurisprudenciais na Justiça Eleitoral. Trata-se do precedente no RE 637.485, rel. Min. Gilmar Mendes, DJe de 21.05.2013, em que se discutia – em sede de repercussão geral – a questão dos chamados “prefeitos itinerantes”. O acórdão desse julgado, na parte ora relevante, foi assim ementado:

“II. MUDANÇA DA JURISPRUDÊNCIA EM MATÉRIA ELEITORAL. SEGURANÇA JURÍDICA. ANTERIORIDADE ELEITORAL. NECESSIDADE DE AJUSTE DOS EFEITOS DA DECISÃO. Mudanças radicais na interpretação da Constituição devem ser acompanhadas da devida e cuidadosa reflexão sobre suas consequências, tendo em vista o postulado da segurança jurídica. Não só a Corte Constitucional, mas também o Tribunal que exerce o papel de órgão de cúpula da Justiça Eleitoral devem adotar tais cautelas por ocasião das chamadas viragens jurisprudenciais na interpretação dos preceitos constitucionais que dizem respeito aos direitos políticos e ao processo eleitoral. Não se pode deixar de considerar o peculiar caráter normativo dos atos judiciais emanados do Tribunal Superior Eleitoral, que regem todo o processo eleitoral. Mudanças na jurisprudência eleitoral, portanto, têm efeitos normativos diretos sobre os pleitos eleitorais, com sérias repercussões sobre os direitos fundamentais dos cidadãos (eleitores e candidatos) e partidos políticos. No âmbito eleitoral, a segurança jurídica assume a sua face de princípio da confiança para proteger a estabilização das expectativas de todos aqueles que de alguma forma participam dos prélios eleitorais. A importância fundamental do princípio da segurança jurídica para o regular transcurso dos processos eleitorais está plasmada no princípio da anterioridade eleitoral positivado no art. 16 da Constituição. O Supremo Tribunal Federal fixou a interpretação desse artigo 16, entendendo-o como uma garantia constitucional (1) do devido processo legal eleitoral, (2) da igualdade de chances e (3) das minorias (RE 633.703). Em razão do caráter especialmente peculiar dos atos judiciais emanados do Tribunal Superior Eleitoral, os quais regem normativamente todo o processo eleitoral, é razoável concluir que a Constituição também alberga uma norma, ainda que implícita, que traduz o postulado da segurança jurídica como princípio da anterioridade ou anualidade em relação à alteração da jurisprudência do TSE. Assim, as decisões do Tribunal Superior Eleitoral que, no curso do pleito eleitoral (ou logo após o seu encerramento), impliquem mudança de jurisprudência (e dessa forma repercutam sobre a segurança jurídica), não têm aplicabilidade imediata ao caso concreto e somente terão eficácia sobre outros casos no pleito eleitoral posterior”.

Considero presentes no caso dos autos os requisitos para aplicação desse precedente do STF, com plena valorização da segurança jurídica. É inegável que havia, sim, no passado, dúvida quanto à extensão do conceito de meios de comunicação social, como indicam os julgados que citei no voto proferido, ainda nesta assentada, nas AIJEs 0601968-80 e 0601771-28. Tanto se teve uma alteração do entendimento do TSE quanto ao tema, que foi necessária a fixação de uma tese, no dia de hoje, 28 de outubro de 2021, ampliando o conceito de meios de comunicação social, para fins de incidência da LC nº 64/90.

Igualmente, caso verificada maioria no sentido da cassação do mandato, tem-se igualmente uma modificação da jurisprudência do TSE em relação à admissão da presunção do benefício político do candidato nos casos de abuso de poder, o que não se admitia até o presente momento, como indicam os precedentes há pouco citados.

Nesse quadro, parece-me que, de fato, há uma viragem jurisprudencial cujos efeitos devem ser diferidos no tempo, na linha da orientação do Supremo em repercussão geral, tudo em honra da segurança jurídica, que opera – no caso – em favor da cidadania passiva, que é direito fundamental do recorrido, e da cidadania ativa dos mais de 400 mil eleitores paranaenses que sufragaram nas urnas o nome do recorrido.

Ante o exposto, rogando as mais respeitosas vênias ao relator e aos colegas que o acompanharam, nego provimento ao recurso ordinário.

É como voto.

O SENHOR MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO (relator): Presidente.

O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO (presidente): Então, o Ministro Carlos Horbach diverge do relator e nega provimento ao recurso, mantendo o julgamento de improcedência. Abre, portanto, divergência.

Ouço o relator, o Ministro Luis Felipe Salomão.

 

ESCLARECIMENTO

 

O SENHOR MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO (relator): Muito brevemente, Presidente, é apenas um esclarecimento quanto à matéria de fato, inclusive eu cumprimento o Ministro Carlos Horbach e esclareço, Presidente, que a premissa em que se baseou Sua Excelência, no sentido de que o vídeo, malgrado a sua gravidade, que ele reconheceu, mas que o vídeo só estaria disponível alguns minutos antes do fim da votação, essa premissa, eu creio que ela é inadequada para os autos, com a devida vênia, por quê?

Porque o autor desse vídeo, a partir do momento em que foi descoberta a troca das urnas, que foi com que ele se baseou para fazer o vídeo, a partir dali começa – e isso se extrai por dedução de tudo que está nos autos –, ele começa a angariar os eleitores e chamar a atenção dos eleitores como se ele fosse o paladino da notícia das urnas falsas. Tanto isso é verdade que o vídeo começa com mais de 30 mil, 30 mil comparecentes naquele vídeo. Então, ele vinha fazendo as chamadas ao longo do dia, ele vinha sinalizando que aquilo ia ser divulgado naquele vídeo, que acabou sendo cerca de meia hora antes do final da votação.

Então, essa leitura um tanto enviesada dos fatos, com o devido respeito, não encontra amparo aqui porque ele se valeu, sim – o que não seria nem necessário diante da gravidade do vídeo, como eu mencionei –, mas ele se valeu, sim, para buscar os eleitores, respeitando, claro, a posição divergente do Ministro Horbach.

Obrigado.

O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO (presidente): Muito obrigado, Ministro Luis Felipe Salomão. Há um pedido de esclarecimento, certamente de situação de fato, feito pelo Doutor Gustavo Kfouri.

Indago do eminente relator se posso conceder a palavra ao advogado?

O SENHOR MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO (relator): Se for matéria de fato, sim.

O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO (presidente): Evidentemente. Doutor Gustavo, Vossa Senhoria tem a palavra.

 

MATÉRIA DE FATO

 

O DOUTOR GUSTAVO SWAIN KFOURI (advogado): Excelentíssimo Senhor Ministro Presidente desta colenda Corte. [inaudível] questão [inaudível] em razão, com todo respeito, da premissa equivocada pela qual parte o voto, que se propõe, principalmente porque justifica-se inexistir alegação e arguição de fraude naquele momento, ao contrário, [inaudível] de eleitores com base na arguição de fraude.

E, naquele momento, o parlamentar [inaudível] resposta a respeito dessas questões. No processo entende-se que o Ministério Público, inclusive, traz uma situação excepcionalíssima, a partir da qual a Justiça Eleitoral acaba parte deste processo, em razão de elevada questão constitucional, está sendo em razão de preceitos fundamentais, requer [inaudível] se conhecer aqui a possibilidade de desaforamento do feito com [inaudível] do CPC...

O SENHOR MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO (relator): Presidente.

O DOUTOR GUSTAVO SWAIN KFOURI (advogado): ...vinculado com o art. 427 do CPP para o [inaudível] Supremo Tribunal Federal.

Questões que não foram debatidas, são incompetência do juízo, que gostaria de submeter-se à [inaudível] da falta de [inaudível]...

O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO (presidente): Doutor Gustavo.

O DOUTOR GUSTAVO SWAIN KFOURI (advogado): ...[inaudível] beneficiários...

O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO (presidente): Doutor Gustavo, Vossa Senhoria, desculpe.

O DOUTOR GUSTAVO SWAIN KFOURI (advogado): Senhor Presidente.

O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO (presidente): Essa é uma arguição de natureza jurídica, teses que não foram até aqui debatidas, nós estamos em plena votação, mas muito obrigado pela sua intervenção.

O DOUTOR GUSTAVO SWAIN KFOURI (advogado): [inaudível].

O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO (presidente): Muito obrigado pela sua intervenção.

O DOUTOR GUSTAVO SWAIN KFOURI (advogado): Obrigado.

O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO (presidente): Portanto, já votaram o Ministro Relator, Luis Felipe Salomão, votou o Ministro Mauro Campbell Marques, votou o Ministro Sérgio Banhos, abriu divergência o Ministro Carlos Horbach.

Como vota o Ministro Edson Fachin?

 

VOTO

 

O SENHOR MINISTRO EDSON FACHIN: Senhor Presidente, cumprimento novamente Vossa Excelência, e reitero meus cumprimentos aos eminentes pares e, de modo especial, Sua Excelência o Relator Ministro Luis Felipe Salomão; cumprimento as sustentações orais que aqui aportaram e, de modo especial, me permito cumprimentar, em nome da advocacia que aqui comparece, o Doutor Gustavo Kfouri, ilustre advogado, combativo advogado, que conheço de longa data na advocacia paranaense, e que honra as lides briosas da advocacia.

Senhor Presidente, eminentes pares, creio que os dois universos de compreensão desta matéria estão essencialmente postos, o que, de algum modo, pode, quiçá, simplificar o caminho a ser andado neste momento, pelo menos no meu modo de ver, nada obstante é preciso, claro, ter em conta que nós estamos a tratar de um mandato parlamentar e da expressão da soberania popular.

Portanto, toda cautela, toda verificação se mostra necessária e imprescindível, até porque é fundamental trazer este universo à colação, uma vez que a atuação da Justiça Eleitoral, em circunstâncias que tais, deve ser uma atuação efetivamente excepcional e quando a legislação assim propicia e permita.

Quero, nada obstante, ao mesmo tempo que estamos a tratar do futuro de um mandato parlamentar – como aqui disse na bancada o eminente Ministro Carlos Horbach, que me antecedeu –, o futuro do mandato parlamentar, que é obviamente essencial, o parlamento, a política, os políticos e os partidos são essenciais para a democracia. Agora, eles se situam no estado de direito democrático, portanto, a essencialidade é o futuro das próprias eleições e o futuro da própria democracia.

Portanto, é nesse contexto que entendo que essa matéria pode e deva ser vista e não é possível avançar, de qualquer sorte, para qualquer tipo de circunstância que represente uma invalidação do espaço da crítica, venha ela em que tom vier.

Nada obstante o chamado free speech ou a liberdade de expressão encontra, como nós sabemos, um conjunto de debates interessantes. Um deles iniciou – pelo menos teve uma visibilidade muito grande em 1919, portanto, mais de cem anos – quando Justice Oliver Holmes, em um dos famosos casos apreciados pela justiça, pela Suprema Corte Norte-Americana, foi o caso Schenck versus Estados Unidos. Neste caso ele utilizou uma expressão, que depois certamente serviu a muitas compreensões, nem todas na mesma direção, “que a mais forte proteção da liberdade de expressão, não protege o homem que falsamente grita fogo em um teatro lotado”.

Isso corresponde, portanto, a dizer que estas circunstâncias precisam ser também apreendidas no seu devido contexto, que há de ser lido à luz do que a Constituição expressamente prevê no § 9º do seu art. 14. A Constituição se refere à normalidade e legitimidade das eleições, eis aqui, pelo menos a minha compreensão, o que me conduz a apreciar essa sensível, delicada e importante matéria, a Constituição atribui à Justiça Eleitoral o dever de zelar pela normalidade e legitimidade das eleições.

Eleições compreende o dia do pleito, eleições compreende o processo eleitoral, eleições compreende um conjunto de providências que antecedem, que são contemporâneas e que sucedem o dia do peito. O que, no meu modo de ver, portanto, singulariza isso é que precisamente a Justiça Eleitoral, no Brasil, realiza ela mesma todas essas funções de organizar as eleições, de administrar as eleições, de realizar a prestação jurisdicional e ainda de responder a consultas que orientem os candidatos nesta dimensão.

Portanto, claro que chama atenção a postagem desta comunicação pelo então candidato às 16h38, como também esse escandir, esse escrutínio que pode ser feito dos dados acerca da audiência de 70 mil pessoas, 400 mil compartilhamentos, 105 mil comentários e 6 milhões de visualizações.

A questão, neste momento, em meu modo de ver, é – à luz inclusive do que acabamos de decidir, para manter coerência – se a crítica nada obstante preste um desserviço à democracia, se a crítica nada obstante seja deplorável, se a crítica nada obstante seja pouco afeita à verdade e à correta informação, gera uma grave ofensa às eleições e não apenas a gravidade aferida especificamente no conceito esgarçado e restrito do pleito.

O que está provado nos autos e à saciedade pelo acutíssimo e robusto voto de Sua Excelência o eminente Ministro Relator?

Houve atribuição da pecha de que as urnas eletrônicas foram fraudadas, adulteradas e apreendidas. Não há dúvida que isso se fez, não há dúvida de que houve uma falsa narrativa de que a suposta fraude estaria comprovada na documentação da própria Justiça Eleitoral. Também é falsa a afirmativa do emprego de urnas eletrônicas venezuelanas. Também há falsas denúncias.

E, portanto, entre o relevante e imprescindível mandato popular mais as eleições como condição de possibilidade da democracia, a questão está em saber que resposta nós encontramos. E, no meu modo de ver, o parecer ministerial, acolhido por Sua Excelência o Relator, confere a resposta que neste caso me parece correta.

Disse a Procuradoria-Geral Eleitoral:

[...]

a transmissão ao vivo de conteúdo em rede nacional, no dia da eleição, contendo divulgação de notícia falsa e ofensiva por parlamentar federal em prol do seu partido e de candidato configura abuso de poder de autoridade e uso indevido de meio de comunicação, sendo grave afronta à legitimidade e normalidade do prélio eleitoral.

[...]

Por isso, Senhor Presidente, eminentes pares, nada obstante o reconhecimento que tenho da excepcionalidade desta forma de apreciação e conclusão quanto à Justiça Eleitoral, suas funções diante da soberania popular e do mandato popular, estando em questão mais que o futuro de um mandato, o próprio futuro das eleições e da democracia, acompanho Sua Excelência o eminente Ministro Relator.

É como voto, Presidente.

O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO (presidente): Muito obrigado, Ministro Edson Fachin.

Como vota o Ministro Alexandre de Moraes?

 

VOTO

 

O SENHOR MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES: Senhor Presidente, trata-se de Ação de Investigação Judicial Eleitoral (Aije) proposta contra o então Deputado Federal Fernando Destito Francischini (eleito, em 2018, ao cargo de Deputado Estadual com 427.749 votos), consubstanciada na prática de abuso de poder de autoridade e de utilização indevida dos meios de comunicação social (art. 22 da LC 64/1990), em razão da transmissão de vídeo, ao vivo, no primeiro turno (7/10/2018) e ainda dentro do horário previsto para a votação, em seu perfil na rede social Facebook, noticiando a ocorrência de supostas fraudes nas urnas eletrônicas.

Em linhas gerais, a inicial narra que o investigado buscava angariar dividendos eleitorais mediante a divulgação de fatos inverídicos e notícias sabidamente falsas, os quais colocavam em dúvida não apenas a higidez das urnas eletrônicas, mas de todo o sistema eleitoral (ID 21647288).

Após o Tribunal Regional do Paraná (TRE/PR), por maioria, julgar improcedente a ação (ID 21646538), seguiu-se a interposição de Recurso Ordinário pelo Ministério Público Eleitoral,  no qual alega, em síntese, que (ID 21646888): (a) o candidato deturpou fatos relacionados com falhas de natureza técnica para promover sua candidatura e o partido pelo qual filiado (PSL), difundindo a enganosa ideia de que as eleições brasileiras estavam sendo fraudadas; (b) o investigado era acompanhado por um público de mais de 70 mil usuários no momento da live, os quais foram instigados insistentemente a compartilhá-la; (c) a auditoria promovida pelo TRE/PR constatou que as urnas eletrônicas estavam em perfeito funcionamento; (d) o investigado agiu na qualidade de parlamentar, valendo-se expressamente das prerrogativas e imunidades inerentes ao cargo e veiculando o conteúdo exibido em sua “webpage profissional”, a qual conta com mais de 2 milhões de seguidores;  (e) o candidato proclamou seus correligionários e a si próprio como “incansáveis defensores da democracia, responsáveis pela apreensão de urnas da Venezuela que foram fraudadas em desfavor do presidente eleito, perante seus milhares de espectadores”; (f) a internet e as redes sociais se inserem no conceito de meios de comunicação social previsto no art. 22, XIV, da LC 64/1990; (g) a reforma do acórdão recorrido não viola a segurança jurídica e a anualidade eleitoral, porque inexiste alteração de entendimento jurisprudencial.

Em contrarrazões (ID 21647188), o Recorrido suscita, preliminarmente, inovação recursal e, quanto ao mérito, defende que as redes sociais não são tuteladas pelo art. 22 da LC 64/1990. Assevera que os atos praticados não possuem gravidade suficiente para atingir a legitimidade das eleições e afirma que não veiculou pedido de voto ou promoção pessoal, estando amparado pelo direito à livre manifestação do pensamento, o qual lhe garante, entre outros, a possibilidade de tecer críticas. Por fim, argumenta se tratar de fato atípico e esclarece que não atentou “contra nenhuma pessoa em específico, nem mesmo contra a instituição da Justiça Eleitoral, se limitando a proferir críticas ao sistema eletrônico de votação”.

O Vice-Procurador-Geral Eleitoral opinou pelo provimento do Recurso Ordinário (ID 26472988).

Na Sessão Plenária de 19/10/2021, o e. Relator deu provimento ao Recurso para, reformando o acórdão regional, julgar procedente a Aije, impondo a cassação do diploma e a inelegibilidade do Recorrido (art. 22, XIV, da LC 64/90).

Reconheceu a ocorrência de abuso de poder de autoridade e o uso indevido dos meios de comunicação, inafastável pela imundade parlamentar do investigado, consubstanciado na “promoção de ataques infundados ao sistema eletrônico de votação e à própria democracia, incutindo-se no eleitorado a falsa ideia de fraude e em contexto no qual determinado candidato sobrevenha como beneficiário dessa prática”.

Entendeu, ainda, que a internet, notadamente o ambiente das redes sociais, enquadra-se no conceito de “veículos ou meios de comunicação social” descrito no art. 22 da LC 64/1990. Assim, o uso indevido da plataforma, para ataques ao sistema eletônico de votação, com “repercussão nefasta na legitimidade do pleito, na estabilidade do Estado Democrático de Direito e na confiança dos eleitores nas urnas eletrônicas”, possibilita a incidência das graves sanções previstas na Lei Complementar 64/1990, entre as quais, a cassação do diploma e inelegibilidade.

O e. Relator foi acompanhado pelos Ministros MAURO CAMPBELL MARQUES e SÉRGIO BANHOS. Pediu vista o Ministro CARLOS HORBACH (ID 156959800).

É a síntese do necessário.

 

I – Inovação recursal

 

Inicialmente, não caracteriza inovação recursal a mera menção a dados sobre o percentual de brasileiros com acesso à internet ou acerca do poder de influência das plataformas digitais. Trata-se de argumentação fundada em dados públicos, colocada em abono à tese de que as redes sociais configuram hipótese para incidência do art. 22 da LC 64/1990.

A temática foi exaustivamente tratada no acórdão regional, o qual decidiu que “os aplicativos de mensagens e contas pessoais em redes sociais não se enquadram no conceito legal” (ID 21657138). Assim, o Recorrente não inova ao simplesmente confrontar os fundamentos do aresto recorrido.

O mesmo se verifica em relação à alegada ofensa à segurança jurídica e à anualidade eleitoral, também objeto de amplo debate na Corte Regional. No ponto, o Recorrente apenas se esforça para demonstrar que a JUSTIÇA ELEITORAL já tratou da temática, razão porque, na sua visão, não haveria surpresa ou virada jurisprudencial em ano eleitoral.

Desse modo, acompanho o Relator e rejeito a preliminar.

 

II – Mérito

 

Quanto ao mérito, esta CORTE enfrenta a tese do abuso de poder de autoridade e do uso indevido dos meios de comunicação consubstanciada na disseminação de fake news, por meio das redes sociais, prática que infelizmente se tornou costumeira a partir das eleições de 2018, com reflexos nefastos na campanha de 2020, cujo nítido objetivo é tumultuar, dificultar, frustrar ou impedir o processo eleitoral, a partir de ataques institucionais ao TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL.

A conduta descrita nos autos, assemelha-se em muito ao modus operandi identificado no Inquérito 4.828/DF, que tramitou no Supremo Tribunal Federal,  instaurado, por requerimento da Procuradoria-Geral da República, para a apuração de fatos ocorridos no dia 19 de abril de 2020 e seus antecedentes, em virtude da ocorrência de aglomerações de indivíduos diante de quartéis do Exército brasileiro, das quais foram noticiadas pretensões de animosidade entre as Forças Armadas e as instituições nacionais, surgiram fortes indícios e significativas provas apresentadas pela investigação realizada pela Polícia Federal, em que foi apontada a existência de semelhante e coincidente organização criminosa, de forte atuação digital e com núcleos de produção, publicação, financiamento e político absolutamente semelhantes àqueles identificados no Inquérito 4781, com a nítida finalidade de atentar contra as Instituições, a Democracia e o Estado de Direito.

O material apreendido e analisado no Inquérito 4828 trouxe importantes elementos probatórios a demonstrar uma possível organização criminosa, que tem por um de seus fins desestabilizar as instituições republicanas, principalmente aquelas que possam contrapor-se de forma constitucionalmente prevista a atos ilegais ou inconstitucionais, utilizando-se de uma rede virtual de apoiadores que atuam, de forma sistemática, para criar ou compartilhar mensagens que tenham por mote final a derrubada da estrutura democrática e o Estado de Direito no Brasil.

Na presente hipótese, não há dúvida de que a transmissão ao vivo na rede Facebook, pela qual disseminados fatos graves e notoriamente inverídicos (fake news), configura abuso do poder e uso indevido dos meios de comunicação social, com gravidade suficiente para incidência das sanções previstas na LC 64/1990.

 

III – Abuso de poder de autoridade

 

O abuso de poder de autoridade se perfaz com a “realização de ações que consubstanciam uso indevido do aludido poder ou ascendência pessoal com a finalidade de manipular indevidamente a formação da vontade política dos cidadãos, interferir indevidamente em seus comportamentos quando do exercício do sufrágio, determinando o sentido de seus votos, em proveito ou detrimento de candidaturas. Assim, o abuso pressupõe que a atuação da autoridade seja realizada em desconformidade com o que dela normalmente se poderia esperar à vista das normas, convenções sociais, tradições e costumes. Sob as vestes da ascendência e do status social granjeados, passa a autoridade a agir como militante político-partidário em prol de determinada candidatura” (GOMES, JOSÉ JAIRO. Direito Eleitoral. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2021, p. 742-743).

O conceito de autoridade engloba o “ato emanado de pessoa que exerce cargo, emprego ou função que excede aos limites da legalidade ou de competência” (ZILIO, RODRIGO LÓPEZ. Direito Eleitoral. 5. ed. Porto Alegre, Verbo Jurídico: 2016, p. 645).

A partir dessas premissas, afigura-se incontestável, a subsunção da condição exercida pelo Recorrido ao conceito de autoridade, porque Delegado de Polícia e, à época dos fatos, Deputado Federal (eleito em 2018 ao cargo de Deputado Estadual).

Não fosse o histórico profissional, o teor do discurso certifica que o candidato, naquele momento, buscou se valer do cargo efetivo de Delegado e das prerrogativas de Deputado Federal para conferir força e legitimidade à narrativa apresentada, chegando a afirmar expressamente que, naquele momento, estava em franco uso da sua imunidade parlamentar:

“[...] ou vamos chegar mais longe eu uso aqui a minha imunidade parlamentar que ainda vai até janeiro independente dessa eleição pra tá dize pra trazer essa denúncia com documentos da Justiça Eleitoral nosso advogado acabou de confirmar de conseguir identificou duas urnas que eu digo adulteradas [...] e aqui eu não tenho papa na língua porque eu tenho uma merda que chama imunidade parlamentar pra falar, vota 1 e aparece o nome do Haddad (...), se for um fake, depois eu volto e me retrato, mas eu não vou deixar de falar [...] a minha voz é a voz pra denunciar como Deputado Federal, que é delegado de polícia federal, a minha voz é a voz de vocês nesse momento pra explodir no Brasil inteiro [...]”

No caso, o farto acervo probatório produzido sob o crivo do devido processo legal atesta que o agente investido na função pública, e valendo-se dessa posição, dedicou-se a difundir informações absurdamente falsas, sobre as quais passo ao exame.

Na transmissão ao vivo, o Deputado afirma peremptoriamente a apreensão de urnas “adulteradas ou fraudadas”, o que sabidamente não ocorreu. Por certo e óbvio, problemas técnicos em equipamentos eletrônicos são ocorrências comuns no ambiente atual, regido e movido pela tecnologia.

As urnas eletrônicas não refogem a tal condição. Contudo, na data do pleito, o que se realiza é a mera substituição, inclusive ínfima, de aparelhos, pela própria JUSTIÇA. Segundo dados extraídos do Sistema Ocorrências da Justiça Eleitoral (OcorrJE), no primeiro turno das eleições de 2018, foram substituídas apenas 4.675 (quatro mil, seiscentos e setenta e cinco) urnas eletrônicas, equivalente a 0,90% do universo de equipamentos utilizados:  

Assim, diferentemente do que se anuncia, além de ser um procedimento comum ao pleito, não se cogita que Juízes, Promotores e serventuários da JUSTIÇA ELEITORAL tenham lacrado urnas fraudadas, tampouco levado a cabo ao parlamentar denúncias sob tais condições. Vê-se que, no caso, mesmo que oportunizado o contraditório e a ampla defesa, o Deputado não apresentou nenhum agente público que tenha confirmado, em juízo, tal providência.

Além disso, a Corte de origem se prontificou à realização de auditoria das urnas, tão logo impugnado o processo de votação eletrônica. A auditagem contou com a presença de peritos do TRE/PR e do TRE/SC, além de assistentes técnicos designados pelos partidos PSL, PDT e PT, tendo identificado que os votos captados pelas urnas foram devidamente contabilizados, concluindo que: “a) os sistemas instalados nas urnas auditadas são os mesmos que foram lacrados pelo TSE; b) as urnas estavam em perfeitas condições de uso e funcionamento; c) não há indícios de qualquer espécie de fraude no sistema ou no funcionamento das urnas”.

Não por isso, ainda, as urnas eletrônicas utilizadas nas eleições nunca foram criadas, desenvolvidas nem produzidas por suposta “empresa Venezuelana” (https://www.tse.jus.br/hotsites/esclarecimentos-informacoes-falsas-eleicoes-2018/empresa-venezuelana-e-responsavel-pelas-urnas-eletronicas.html) e o sistema de votação eletrônica não é utilizado apenas por Brasil e Venezuela, mas por diversos outros países (https://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2021/Maio/fato-ou-boato-alem-do-brasil-outros-46-paises-utilizam-urnas-eletronicas-nas-eleicoes).

Também não é verdade que houve fraude na apuração das eleições presidenciais de 2014, conforme certificado, inclusive, por auditoria externa conduzida pelo Partido derrotado e corroborado pela checagem dos fatos oficialmente esclarecida pelo TSE (https://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2021/Julho/fato-ou-boato-e-falso-que-a-urna-eletronica-foi-fraudada-em-2014).

Ressalto novamente que tanto a conduta noticiada quanto sua posterior divulgação por meio das redes sociais se assemelham ao modus operandi  detalhado e investigado nos autos do Inquérito 4.781/DF, bem como no Inquérito 4.874/DF, no qual se revela a existência de uma verdadeira organização criminosa, de forte atuação digital e com núcleos de produção, publicação, financiamento e político, com a nítida finalidade de atentar contra as Instituições, a Democracia e o Estado de Direito.

Apurou-se que diversos investigados integrariam um complexo esquema de disseminação de notícias falsas por intermédio de publicações em redes sociais, atingindo um público diário de milhões de pessoas, expondo a perigo de lesão, com suas notícias ofensivas e fraudulentas, a independência dos poderes, o Estado de Direito e a Democracia.

Nessa linha, observa-se que o discurso feito no dia e hora marcados para o primeiro turno das eleições (7/10/2018), transmitido ao vivo para mais de 70 (setenta mil) telespectadores, contando com 400.000 (quatrocentos mil) compartilhamentos, 105.000 (cento e cinco mil) comentários e 6.000,000 (seis milhões) de visualizações até o dia 12/11/2018, teve o objetivo de ofender a JUSTIÇA ELEITORAL e imputar-lhe fraude ao sistema eletrônico de votações, repercutindo negativamente na confiança dos eleitores e, de modo não menos grave, no equilíbrio do Estado Democrático de Direito.

O investigado proferiu uma série de ofensas, agressões e ameaças, instigando o público que o acompanhava a não aceitar o resultado das urnas “por ser um golpe contra a democracia”, em claro benefício de sua candidatura, do partido pelo qual filiado e do candidato aliado que concorria à Presidência da República.

A Constituição Federal não autoriza, a partir de ofensas e de ideias contrárias à ordem constitucional, a propagação de inverdades que atentem contra a lisura, a normalidade e a legitimidade das eleições. A liberdade do eleitor depende da tranquilidade e da confiança nas instituições democráticas e no processo eleitoral.

No caso, há nítida percepção de que os falsos acontecimentos divulgados objetivavam persuadir o eleitorado a acreditar na existência de fraude sistêmica, gerando, assim, benefícios diretos ao candidato e a terceiros, especialmente ao candidato à Presidência da República. Nesse sentido, o anúncio feito pelo investigado sobre eventual “cambalacho” ocorrido nas eleições:

[...] estou aqui, façam o que quiser, metam um processo em mim, porrada o que for. Principalmente o pessoalzinho que não aceita as diferenças, que já fizeram com o Bolsonaro. Mas ficar quieto e calado não vou ficar. Tá terminando o período eleitoral, o período de voto e daqui a pouco nós vamos acompanhar sem paradinha técnica, como aconteceu com a Dilma lá atrás, quero ver o resultado agora. Pode ter sido avassalador o resultado e isso aqui não influenciar tanto, mas eu quero ver se não fizeram algum cambalacho pro Jair Bolsonaro não ganhar essa eleição no primeiro turno. É isso que eu quero ver [...].

O sensacionalismo e a insensata disseminação de conteúdo inverídico objetivava incutir na população a crença errônea do comprometimento de todo o processo eleitoral, ferindo valores, princípios e garantias constitucionalmente asseguradas, notadamente a liberdade do voto e o exercício da cidadania.

A liberdade de expressão e o pluralismo de ideias são valores estruturantes do sistema democrático, não permitindo, entretanto, sua utilização como verdadeiro escudo protetivo para a prática de atividades ilícitas, discursos de ódio e incitação contra as Instituições democráticas.

A livre discussão, a ampla participação política e o princípio democrático estão interligados com a liberdade de expressão, tendo por objeto não somente a proteção de pensamentos e ideias, mas também opiniões, crenças, realização de juízo de valor e críticas a agentes públicos, no sentido de garantir a real participação dos cidadãos na vida coletiva, sempre com responsabilidade e com a possibilidade de futura responsabilização por crimes contra a honra e demais práticas ilícitas.

Dessa maneira, tanto são inconstitucionais as condutas e manifestações que tenham a nítida finalidade de controlar ou mesmo aniquilar a força do pensamento crítico, indispensável ao regime democrático quanto aquelas que pretendam enfraquecê-lo, juntamente com suas instituições republicanas; pregando a depreciação do processo democrático, com ataques à lisura do sistema de votação e à JUSTIÇA ELEITORAL, sem um mínimo de provas que lastreiem a sua manifestação.

A hipótese revela a existência de atos concretos, não meras conjecturas ou presunções, aptos a caracterizarem abuso de poder, revestindo-se de gravidade suficiente a afetar a legitimidade e normalidade do pleito. Consoante Jurisprudência desta CORTE SUPERIOR ELEITORAL, a gravidade dos fatos é abstraída da violação dos bens jurídicos tutelados pela norma: normalidade e lisura do pleito, de modo a garantir a vontade livre e consciente do eleitor (REspe 552-16, Rel. Min. ALEXANDRE DE MORAES, DJe de 5/8/2021).

O Recorrido alega que apenas se manifestou sobre fato que já era objeto de investigação no âmbito da Câmara dos Deputados. Contudo, observa-se que o Ofício 037.2018/LID/PSL enviado por ele, na qualidade de líder do PSL, à Min. ROSA WEBER (então Presidente do TSE), não tratava das inverdades alardeadas na transmissão. No documento, o Deputado solicitou tão somente providências genéricas para viabilizar o acompanhamento, em tempo real, da apuração por peritos da Polícia Federal e por determinado corpo técnico das Forças Armadas. Não há remissão a nenhum problema técnico ou fraude específica.

Assim, a gravidade dos fatos é inconteste, porque a conduta revela a vontade livre e consciente de ofender e colocar em dúvida a integridade da democracia e do sistema eleitoral, gerando ruptura no equilíbrio das eleições que estavam em pleno curso no momento da transmissão.

Nesse contexto, sendo incontroverso o ilícito e indiscutível a “gravidade das circunstâncias que o caracterizam” (art. 22, XVI, da LC 64/1990), impõe-se a procedência da Aije.

Nesse ponto, conforme pontuado pelo e. Relator, o reconhecimento do abuso de poder não implica ofensa aos princípios da anualidade ou da segurança jurídica, pois não há falar em mudança de entendimento jurisprudencial.

 

IV - Não incidência da imunidade parlamentar prevista no caput do art. 53 da Constituição Federal

 

Em que pese o investigado afirmar que agia acobertado pela prerrogativa funcional, importante afastar sua incidência, pois, na espécie, suas condutas e declarações não estão abrangidas pela imunidade material – inviolabilidade (art. 53, caput, CF) – enquanto espécie qualificada do gênero "liberdade de expressão".

Quanto ao ponto, reputo de extrema importância tecer algumas considerações a respeito da evolução histórica do conceito, da abrangência e da aplicabilidade desse instituto, nos mesmos moldes em que fiz constar nos votos que proferi no Inq 4.694/DF (Rel. Min. MARCO AURÉLIO, DJe de 1º/8/2019), na Pet 7.174/DF (DJe de 28/9/2020) e na Pet. 9.456 (DJe de 21/6/2021), as duas últimas de minha relatoria.

Na independência harmoniosa que rege o princípio da Separação de Poderes, as imunidades parlamentares são institutos de vital importância, haja vista buscarem, prioritariamente, a proteção dos parlamentares, no exercício de suas nobres funções, contra os abusos e as pressões dos demais poderes, constituindo-se, pois, um direito instrumental de garantia de liberdade de opiniões, palavras e votos dos membros do Poder Legislativo, bem como de sua proteção contra afastamentos ou prisões arbitrárias e processos temerários. Essas imunidades, como destacado por PAOLO BISCARETTI DI RUFFIA, não dizem respeito à figura do parlamentar, mas à função por ele exercida, no intuito de resguardá-la da atuação do Executivo ou do Judiciário, consagrando-se como garantia de sua independência perante outros poderes constitucionais (Introduzione al diritto costituzionale comparato. 2. ed. Milão: Giuffrè, 1970, pp. 303-305).

Nessa linha, já lecionava RUY BARBOSA, nos idos de 1898:

O privilégio de que se trata é, portanto, um privilégio a favor do povo, um privilégio a favor da lei, um privilégio a favor da Constituição. Sempre se entendeu assim desde BLACKSTONE até BRUNIALTI, o mais recente dos tractadistas, que o qualifica de tão necessário quanto, nas Monarchias, a inviolabilidade do Monarcha... (...) longe de polos em situação privilegiada, a prerrogativa parlamentar, de facto, não fez mais que nivelar a deles à dos outros cidadãos (...)  Assim se tem pronunciado, em toda a parte, na Inglaterra, na França, na Itália, nos Estados Unidos, em resoluções e sentenças que poderíamos citar, a jurisprudência dos parlamentares e Tribunaes, desde THOMAZ JEFFERSON, que disse: O privilégio não pertence aos membros da Camara, mas à Assembléa (Commentários à constituição federal brasileira. Vol. II. Saraiva: 1933, p. 41/42).

A criação das imunidades parlamentares como corolário da defesa da livre existência e independência do Parlamento remonta ao século XVII e tem no sistema constitucional inglês sua origem, por meio da proclamação do duplo princípio da freedom of speech (liberdade de palavra) e da freedom from arrest (imunidade à prisão arbitrária), no Bill of Rights de 1689. Ressalte-se, porém, que a declaração inglesa de direitos de 1688, Estatuto I, de Guilherme III e Maria II, no ato declaratório dos direitos e das liberdades do súdito, já previa a autonomia dos membros do Parlamento, ao afirmar que as eleições deveriam ser livres, e a liberdade de expressão, os debates e procedimentos no Parlamento não poderiam ser impedidos ou contestados em qualquer tribunal ou em qualquer lugar fora do Parlamento.

Posteriormente, tal previsão foi acolhida pela Constituição norte-americana em 1787, que previu que os parlamentares não poderão ser incomodados ou interrogados, em qualquer outro lugar, por discursos ou opiniões emitidas em uma ou outra Câmara (art. 1º, seção 6).

No Brasil, a Constituição Imperial de 1824 concedia aos membros do Parlamento as inviolabilidades pelas opiniões, palavras e votos que proferissem no exercício de suas funções, bem como a garantia de o parlamentar não ser preso durante a legislatura, por autoridade alguma, salvo por ordem de sua respectiva Câmara, menos em flagrante delito de pena capital. Além disso, previa-se a necessidade de licença da casa respectiva para o prosseguimento da ação penal. Assim, textualmente, previa a Constituição de 25/3/1824:

Art. 26. Os Membros de cada uma das Camaras são invioláveis pelas opiniões, que proferirem no exercício das suas funcções.

Art. 27. Nenhum Senador, ou Deputado, durante a sua deputação, pode ser preso por Autoridade alguma, salvo por ordem da sua respectiva Camara, menos em flagrante delicto de pena capital.

Art. 28. Se algum Senador, ou Deputado for pronunciado, o Juiz, suspendendo todo o ulterior procedimento, dará conta à sua respectiva Camara, a qual decidirá, se o processo deva continuar, e o Membro ser, ou não suspenso no exercício das suas funções.

A Constituição da República de 1891 previa, em seus arts. 19 e 20, as imunidades material e formal, pois os parlamentares eram invioláveis pelas opiniões, palavras e votos, bem como não poderiam ser presos nem processados criminalmente, sem prévia licença de sua Câmara, salvo caso de flagrante em crime inafiançável. Era o seguinte o texto da Constituição de 24/2/1891:

Art. 19. Os deputados e senadores são invioláveis por suas opiniões, palavras e votos no exercício do mandato.

Art. 20. Os deputados e os senadores, desde que tiverem recebido diploma até à nova eleição, não poderão ser presos, nem processados criminalmente, sem prévia licença de sua Camara, salvo caso de flagrância em crime inafiançável. Neste caso, levado o processo até pronuncia exclusive, a autoridade processante remetterá os autos á Câmara respectiva, para resolver sobre a procedência da acusação, si o acusado não optar pelo julgamento immediato.

O capítulo II, seção I, da Constituição de 1934, em seu art. 31, previa a inviolabilidade do parlamentar por suas opiniões, palavras e votos, no exercício do mandato, enquanto o art. 32 previa imunidades relacionadas à prisão e ao processo. Curiosamente, essas imunidades formais eram estendidas ao suplente imediato do Deputado em exercício. O texto da Constituição de 16/7/1934 determinava:

Art. 31. Os deputados são invioláveis por suas opiniões, palavras e votos no exercício das funções do mandato.

Art. 32. Os deputados, desde que tiverem recebido diploma até a expedição dos diplomas para a legislatura subsequente, não poderão ser processados criminalmente, nem presos, sem licença da Câmara, salvo caso de flagrância em crime inafiançável. Esta immunidade é extensiva ao suplente immediato do Deputado em exercício.

§1º A prisão em flagrante de crime inafiançável será logo communicada ao Presidente da Câmara dos deputados, com a remessa do auto e dos depoimentos tomados, para que Ella resolva sobre a sua legitimidade e conveniência, e autorize, ou não, a formação de culpa.

§2º Em tempo de guerra, os deputados, civis ou militares, incorporados às forças armadas por licença da Camara dos deputados, ficarão sujeitos às leis e obrigações militares.

A Carta de 1937 alterou o tratamento das imunidades parlamentares, pois, apesar de prevê-las, tanto a material quanto a formal, possibilitava a responsabilização do parlamentar por difamação, calúnia, injúria, ultraje à moral pública ou provocação pública ao crime.

Os arts. 42 e 43 da Constituição de 10/11/1937 estipulavam, respectivamente, que, durante o prazo em que estivesse funcionando o Parlamento, nenhum de seus membros poderia ser preso ou processado criminalmente, sem licença da respectiva Câmara, salvo caso de flagrância em crime inafiançável; e que só perante sua respectiva Câmara responderiam os membros do Parlamento Nacional pelas opiniões e votos que emitissem no exercício de suas funções; não estariam, porém, isentos de responsabilidade civil e criminal por difamação, calúnia, injúria, ultraje à moral pública ou provocação pública ao crime. Em seu parágrafo único, o art. 43 ainda estabelecia que, em caso de manifestação contrária à existência ou independência da Nação ou incitamento à subversão violenta da ordem política ou social, poderia quaisquer das Câmaras, por maioria de votos, declarar vago o lugar do deputado ou membro do Conselho Federal, autor da manifestação ou incitamento.

Em 1946, a Constituição brasileira, consagrando regras mais democráticas, previa as clássicas prerrogativas parlamentares. Assim, a imunidade material foi prevista no art. 44 e as imunidades formais foram previstas no art. 45, determinando-se que os deputados e senadores eram invioláveis no exercício do mandato, por suas opiniões, palavras e votos (art. 44), e que, desde a expedição do diploma até a inauguração da legislatura seguinte, os membros do Congresso Nacional não poderiam ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável, nem processados criminalmente, sem prévia licença de sua Câmara. No caso de flagrante de crime inafiançável, os autos seriam remetidos, dentro de 48 horas, à Câmara respectiva para que resolvesse sobre a prisão e autorizasse, ou não, a formação de culpa.

A Câmara interessada deveria deliberar sempre pelo voto da maioria de seus membros. A Carta ainda previa que, em se tratando de crime comum, se a licença para o processo criminal não estivesse resolvida em 120 (cento e vinte) dias, contados da apresentação do pedido, esse seria incluído em ordem do dia, para ser discutido e votado, independentemente de parecer (acrescentado pela EC nº 9, de 22/7/1964).

Em 1967, a Constituição Federal consagrou as imunidades material e formal no art. 34. Afirmava textualmente que os deputados e senadores eram invioláveis no exercício do mandato, por suas opiniões, palavras e votos. Além disso, desde a expedição do diploma até a inauguração da legislatura seguinte, os membros do Congresso Nacional não poderiam ser presos, salvo flagrante de crime inafiançável, nem processados criminalmente, sem prévia licença de sua Câmara. No § 2º do art. 34, porém, estabelecia que, se no prazo de 90 (noventa) dias, a contar do recebimento, a respectiva Câmara não deliberasse sobre o pedido de licença, seria esse incluído automaticamente em ordem do dia e assim permaneceria durante 15 (quinze) sessões ordinárias consecutivas, tendo-se como concedida a licença se, nesse prazo, não ocorresse a deliberação.

A Emenda 1, de 17/10/1969, denominada corretamente pelo Min. CELSO DE MELLO como a Carta envergonhada, e, posteriormente, a Emenda 11, de 13/10/1978, à Constituição Federal de 1967 alteraram a regulamentação das imunidades parlamentares, prevendo, em regra, que os deputados e senadores eram invioláveis no exercício do mandato, por suas opiniões, palavras e votos, porém, excepcionalmente, poderiam ser responsabilizados, no caso de crime contra a Segurança Nacional.

Também era prevista a impossibilidade (I) de prisão do parlamentar, desde a expedição do diploma até a inauguração da legislatura seguinte, salvo no caso de flagrante de crime inafiançável, e (II) de que fossem processados, criminalmente, sem prévia licença de sua Câmara, e que, se esta não se pronunciasse sobre o pedido, dentro de 40 (quarenta) dias a contar de seu recebimento, se teria como concedida a licença. No caso de flagrante de crime inafiançável, os autos deveriam ser remetidos, dentro de 48 horas, à Câmara respectiva, para que resolvesse sobre a prisão e autorizasse, ou não, a formação de culpa.

A constituição anterior, porém, excetuava das imunidades os crimes contra a Segurança Nacional, para os quais o processo independia de licença da respectiva Câmara, podendo o Procurador-Geral da República, recebida a denúncia e analisando a gravidade do delito, requerer a suspensão do exercício do mandato parlamentar, até a decisão final de sua representação pelo SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (EC 1, de 17/10/1969).

A redação original da Constituição Federal de 1988 previa as imunidades material e formal no art. 53, § 1º, § 2º e § 3º, determinando que os deputados e senadores fossem invioláveis por suas opiniões, palavras e votos, bem como, desde a expedição do diploma, não poderiam ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável, nem processados criminalmente, sem prévia licença de sua Casa. Ainda, disciplinava que, no caso de flagrante de crime inafiançável, os autos seriam remetidos, dentro de vinte e quatro horas, à Casa respectiva, para que, pelo voto secreto da maioria de seus membros, resolvesse sobre a prisão e autorizasse, ou não, a formação de culpa.

Essa opção consciente do legislador constituinte originário na definição dessa imunidade formal em relação à prisão dos membros do Congresso Nacional poderia ter sido rediscutida na Revisão Constitucional de 1993/1994, mas, em que pese a apresentação de 143 propostas revisionais em relação ao art. 53, que prevê o conjunto de garantias e prerrogativas parlamentares, entre elas a relativa à prisão de parlamentares, como destacado pelo então relator da Revisão Constitucional e, posteriormente, Ministro do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, NELSON JOBIM:

"a grande maioria das propostas revisionais, referentes ao art. 53, tem como escopo manter o instituto da imunidade parlamentar no tocante às inviolabilidades (imunidade material), fixando no próprio texto constitucional seu alcance também para a área civil. As várias alterações propostas foram no sentido de substituição da então necessária ‘licença prévia’ para iniciar os processos contra parlamentares pela possibilidade posterior de sustação da ação penal por maioria absoluta da Casa respectiva". (CONGRESSO REVISOR – Relatoria da Revisão Constitucional. Pareceres produzidos. Histórico. Tomo I, Brasília, 1994).

O Parecer 12 foi apresentado pelo Relator em 17/1/1994, porém não foi apreciado, e o texto do art. 53 foi mantido integralmente.

Em 2001, as garantias dos congressistas foram rediscutidas pelo Congresso Nacional, resultando na aprovação da EC 35, de 20/12/2001, que alterou substancialmente a redação do art. 53, acrescentou expressamente a "inviolabilidade civil e penal" para a imunidade material e substituiu a imunidade processual em relação ao processo, nos termos anteriormente sugeridos pela Revisão Constitucional, ou seja, revogando a necessidade de licença prévia para o processo de parlamentares e possibilitando, somente para os crimes praticados após a diplomação, a sustação da ação penal por maioria absoluta dos membros da casa, desde que devidamente provocada por iniciativa de partido político nela representada. Não houve alteração em relação à imunidade formal quanto à prisão dos congressistas.

No Brasil, a análise histórica demonstra que somente em momentos de exceção, com o afastamento da plena Democracia, as imunidades parlamentares foram cerceadas pelas Cartas de 1937 e 1969 (EC 1).

Esta SUPREMA CORTE, da mesma forma, de longa data, tem se defrontado com a apreciação de embates jurídicos em torno da aplicação do instituto sob análise. Nesse sentido, em julgamento histórico, no ano de 1914, em habeas corpus impetrado por RUY BARBOSA, em causa própria e em defesa da imunidade material dos parlamentares, mesmo no Estado de Sítio, o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL reafirmou a importância da referida prerrogativa, então sob ataque do Poder Executivo, e a necessidade de sua manutenção para o "equilíbrio do regimento político da federação brasileira" (HC 3.536/RJ, Rel. Min. OLIVEIRA RIBEIRO, Tribunal Pleno, julgado em 5/6/1914).

Já sob a égide da Carta de 1946, o Min. SAMPAIO COSTA, convocado para relatar o HC 34.467/DF, em acórdão de 1956, advertiu que:

(...) a verdade é que as imunidades parlamentares assentam em razões de ordem pública e política, no interesse geral da coletividade. Não são um privilégio pessoal do deputado ou do senador. Tampouco um direito subjetivo, ou mesmo uma garantia individual. São atributos inerentes a função do cargo legislativo (…). (HC 34.467/SE, Rel. Min. SAMPAIO COSTA, convocado, Plenário, j. em 24/9/1956, DJ de 17/1/1957).

O debate, longe de despertar interesse meramente histórico-literário, permanece atual nesta CORTE, que tem sido constantemente provocada a se manifestar sobre os limites da imunidade material dos parlamentares hospedada no art. 53, caput, da Carta da República; especialmente, sobre o caráter absoluto ou relativo das imunidades parlamentares materiais.  Cada vez mais, na Turma, cada um de nós tem casos relacionados a parlamentares, o que nos traz a importante questão sobre qual é a natureza jurídico-política das inviolabilidades e a análise evolutiva dessa natureza jurídica que foi se alterando, e sua aplicabilidade, ao longo das nossas Constituições, consolidada na Constituição de 1988.

É essencial, na presente hipótese, analisar a conciliação realizada pelo texto de nossa Constituição em relação a duas grandes teorias sobre inviolabilidades parlamentares: a Blackstoniana e a de STUART MILL.

Em um excelente estudo monográfico sobre as imunidades parlamentares, o professor JOSÉ LEVI MELLO DO AMARAL JÚNIOR discorre sobre ambas as teorias e como balizaram as previsões de imunidades em diversos ordenamentos jurídicos (Inviolabilidade parlamentar. São Paulo: FDUSP, 2018. p. 23-43).

Em meu entendimento, a Constituição de 1988 fez uma síntese dessas teorias, aplicando uma ou outra, dependendo da hipótese de incidência.

A primeira – Blackstoniana – foi inicial e surgiu com a previsão do art. 9º do Bill of Rights, de 1689: "a liberdade de discurso e debates de procedimentos no Parlamento não deve ser contestada ou questionada em qualquer Corte ou lugar fora do Parlamento". Analisando essa disciplina legal, o art. 9º, do Bill of Rights, WILLIAM BLACKSTONE afirmava – e a partir daí se construiu toda uma teoria sobre as inviolabilidades – que não competia aos juízes determinar qual a amplitude dessa previsão, não competia ao Judiciário estabelecer a definição dessa inviolabilidade, a limitação, ou seja, estabelecer os próprios limites a essa inviolabilidade. Essa competência seria do próprio Parlamento, porque a verdadeira razão dessas inviolabilidades era impedir a ingerência dos demais Poderes e dos demais órgãos na atividade parlamentar. Na feliz expressão de BLACKSTONE, garantir ao Parlamento, enquanto elemento democrático da Constituição, a necessária proteção; proteção de manifestação, proteção de palavra, proteção de conduta parlamentar.

Essa concepção Blackstoniana estava intimamente ligada a uma cláusula espacial, ou uma cláusula geográfica, ou seja, a proteção de atuação dentro do Parlamento. E, dentro do Parlamento, seria absoluta a inviolabilidade das palavras, dos votos, das opiniões, obviamente, proferidos enquanto discussão parlamentar.

O SUPREMO TRIBUNAL possui sólido entendimento, múltiplas vezes reiterado, no sentido de que tal prerrogativa é absoluta quanto aos pronunciamentos efetuados no ambiente da respectiva Casa Legislativa (Pet 6.156/DF, Rel. Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, DJe de 28/9/2016; Inq 3.814/DF, Rel. Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, DJe de 20/10/2014; RE 299.109 AgR/RJ, Rel. Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, DJe de 1º/6/2011; RE 576.074 AgR/RJ, Rel. Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, DJe de 25/5/2011; Inq 1.958/AC, Rel. Min. CARLOS VELLOSO, Rel. p/ o acórdão Min. CARLOS BRITTO, Plenário, DJe de 18/2/2006).

Nessas hipóteses, a presença da "cláusula espacial" ou "cláusula geográfica" consagraria uma inviolabilidade absoluta.

Em seu voto, no Inquérito 3.814/DF, a eminente Relatora, Min. ROSA WEBER, afastou a necessidade de análise do nexo de causalidade, afirmando que: "quando a ofensa é irrogada no recinto da Casa Legislativa esta Suprema Corte tem entendido ser absoluta a inviolabilidade".

Com isso não se está a legitimar a ideia de uma total irresponsabilidade do mandatário popular, quando confrontado, na dialética política própria dos parlamentos, com o teor de suas manifestações.

O congressista está sujeito à censura política de seus pares e pode ser responsabilizado por eventuais excessos pela Casa Legislativa que o abriga, em consonância com o disposto no art. 55, § 1º, da Constituição Federal (Pet 6.587/DF, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, DJe de 18/8/2017; Pet 6.156/DF, Rel. Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, DJe de 28/9/2016; Pet 5.647/DF, Rel. Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, DJe de 26/11/2015; RE 600.063/SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, Redator p/ o acórdão Min. ROBERTO BARROSO, Plenário, DJe de 15/5/2015).

Por outro lado, em outras hipóteses, nosso Direito Constitucional também admite a teoria iniciada com STUART MILL, em relação às palavras, opiniões e expressões manifestadas fora do Parlamento, ou seja, quando ausente a "cláusula espacial".

Nessas hipóteses, é necessária, para a constatação da inviolabilidade, a presença de determinados requisitos, principalmente, o nexo causal entre o que foi dito, expressado ou criticado e o exercício do mandato, ou ainda, derivado da própria condição de parlamentar, principalmente, há a necessidade de análise se a manifestação guardou relação com as funções parlamentares ligadas à crítica política, prestação de contas ou informação do cidadão.

STUART MILL difere de BLACKSTONE exatamente porque entende que, independentemente do local onde estiver "ausência da cláusula espacial", incidirá a imunidade se as manifestações parlamentares pretendem levar ao cidadão, suas posições em relação a questões importantes da vida nacional, da vida pública, da vida governamental, se houver essa intenção, incidirá a imunidade, independentemente do local onde as palavras e opiniões forem proferidas.

Nessas hipóteses, há necessidade da análise da existência de nexo das finalidades das palavras e opiniões proferidas pelo parlamentar e o exercício de seu mandato. Ou seja, ausente a "cláusula espacial ou geográfica", a imunidade se relativiza. Dessa maneira, quando a declaração for feita em espaço extraparlamentar, a cláusula imunizante só é atraída nos pronunciamentos externados propter officium (Inq 2.874 AgR/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Plenário, DJe de 1º/2/2013).

Há vários precedentes da SUPREMA CORTE adotando esse posicionamento, iniciado após longos debates no Inquérito 390/RO, de relatoria do Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, detalhados, no Inquérito 1.024/PR, de relatoria do Min. CELSO DE MELLO e, mais recentemente, expostos no RE 600.063/SP, de relatoria do Min. MARCO AURÉLIO, Redator p/ o acórdão Min. ROBERTO BARROSO, Plenário, DJe de 15/5/2015.

A interpretação realizada pelo SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, ao longo desses 33 anos da Constituição de 1988, compatibilizou as duas importantes teorias aplicadas no tema da inviolabilidade parlamentar, em defesa da importante questão da liberdade de expressão qualificada que têm os deputados e os senadores para se expressar em palavras e opiniões dentro ou fora do Congresso Nacional.

Em alguns casos, bastará a presença da "cláusula geográfica"; em outros, exige-se o que a SUPREMA CORTE denominou de "nexo de implicação recíproca". E, nesta última hipótese, incluo a necessidade não só desse nexo, mas, nos termos expostos pela teoria de STUART MILL, a presença de determinada finalidade das manifestações parlamentares, qual seja, levar ao eleitor sua prestação de contas, suas críticas a políticas governamentais, sua atuação de fiscalização, informações sobre sua atitude perante o Governo.

Na presente hipótese, é fato incontroverso que as palavras, as opiniões e as expressões trazidas na petição inicial pelo Ministério Público Eleitoral foram proferidas em ambiente virtual, fora do recinto parlamentar e sem a presença dos requisitos imprescindíveis para caracterização da inviolabilidade constitucional: (a) “nexo de implicação recíproca” e (b) “parâmetros ligados à própria finalidade da liberdade de expressão qualificada do parlamentar”.

As condutas em análise não se enquadram, nem de longe, entre as hipóteses atrativas da incidência da referida imunidade, pois é clarividente não serem manifestações que guardam conexão com o desempenho da função legislativa ou que seja proferida em razão desta.

Efetivamente, nem sequer há "nexo de implicação recíproca", uma vez que as opiniões e as palavras proferidas pelo parlamentar foram externadas em local diverso da sua Casa Legislativa e sem qualquer relação com o exercício do mandato parlamentar.

O parlamentar, em publicação videofonográfica em plataforma digital ("facebook"), por mais de uma vez, usurpou da sua imunidade parlamentar para divulgar falsamente notícias e relatos extremamente graves, atacando frontalmente a JUSTIÇA ELEITORAL, o sistema eletrônico de votação e a democracia, bem como espalhando execráveis incertezas a cerca da higidez das eleições.

Aliás, a esse respeito, a SUPREMA CORTE já teve a oportunidade de decidir que:

"a veiculação dolosa de vídeo com conteúdo fraudulento, para fins difamatórios, conferindo ampla divulgação (rede social) a conteúdo sabidamente falso, não encontra abrigo na nobre garantia constitucional da imunidade parlamentar, insculpida no artigo 53 da Lei Maior, e que protege a liberdade e independência dos eleitos para defender suas opiniões mediante suas palavras e votos." (AP 1.024/DF, Rel. Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, DJe de 21/10/2020).

A jurisprudência do STF, portanto, é pacífica no sentido de que a garantia constitucional da imunidade parlamentar material somente incide no caso de as manifestações guardarem conexão com o desempenho da função legislativa ou que sejam proferidas em razão desta, não sendo possível utilizá-la como verdadeiro escudo protetivo da prática de atividades ilícitas, não incidindo, portanto, em relação às condutas praticadas pelo investigado FERNANDO DESTITO FRANCISCHINI.

 

V – Utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social (redes sociais x mídia)

 

Por fim, também está caracterizada a “utilização indevida dos veículos ou meios de comunicação social” (art. 22, caput, da LC 64/90). A redação ampla do dispositivo não impede a atuação da JUSTIÇA ELEITORAL quando o abuso for veiculado nas redes sociais.

Conforme definição dada por CARLOS ALBERTO RABAÇA e GUSTAVO GUIMARÃES BARBOSA, o meio de comunicação é o “canal ou cadeia de canais que liga a fonte ao receptor” ou ainda o “sistema (constituído por elementos físicos) onde ocorre a transmissão de mensagens” (Dicionário de Comunicação. Rio de Janeiro: Campus, 2001, p. 479).

A expressão meio de comunicação, no Dicionário Houaiss, de Comunicação e Mídia, significa a “Faculdade ou conjunto de técnicas que dá aos homens a possibilidade de se comunicarem entre si” (Eduardo Neiva. Instituto Antônio HOUAISS. São Paulo: Publifolha, 2013, p. 360).

Nesse cenário, afigura-se intuitiva a inclusão das redes sociais virtuais no gênero “meio de comunicação”, na medida em que formam não apenas canais de ligação entre pessoas, mas verdadeiras cadeias multifacetadas de comunicação e informação.

Além disso, deve ser lembrado que a hermenêutica constitucional admite a utilização de todos os métodos interpretativos, inclusive o teleológico ou finalístico. Como se sabe, toda norma “enfeixa um conjunto de providências, protetoras, julgadas necessárias para satisfazer a certas exigências econômicas e sociais. Deve ser interpretada “de modo que melhor corresponda àquela finalidade e assegura plenamente a tutela do interesse para a qual foi regida, [...] impera a presunção de que o legislador haja pretendido editar um meio razoável e, entre os meios possíveis, escolhido o mais simples, adequado e eficaz” (MAXIMILIANO, CARLOS. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 125).

Desse modo, para fins eleitorais, deixar a internet e as redes sociais fora do âmbito de incidência do art. 22, caput, da LC 64/90 – especialmente quando a literalidade do dispositivo não contempla essa restrição – desprestigia o propósito idealizado pelo legislador constitucional, o qual conferiu à Ação de Investigação Judicial (Aije) especial tratamento no art.14, § 9º, da CF, como forma de proteger a “normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta”.

Não se trata de dar uma interpretação ampla e irrestrita para alargar o preceito normativo. Ao contrário, cuida-se apenas de garantir ao instituto uma aplicação conectada com a sua própria razão de ser, a partir de um critério teleológico/finalístico.

Como se sabe, as novas tecnologias surgidas na vida contemporânea têm influenciado e modificado, profundamente, a forma como a qual as pessoas se relacionam e buscam informações. É indiscutível que as plataformas digitais, desenvolvidas e popularizadas no início deste século, vêm ampliando o trato social e permitindo novas formas de comunicação.

Atualmente, as redes sociais são fontes de informação primária para milhões de usuários em todo o mundo.

Os candidatos não precisam mais disputar o espaço na mídia tradicional para angariar votos, pois as plataformas digitais permitem que, no período eleitoral, tenham voz ativa para difundir seus pensamentos e ideias para milhares de pessoas, permitindo uma rede infinita de interação.

Não se pode desconsiderar que grande parte dos usuários utilizam os perfis criados para transmitir notícias e informações de caráter institucional, como é exatamente o caso do investigado.

Pesquisa realizada pelo Instituto DataSenado, em novembro de 2019, abordando a temática das redes sociais, notícias falsas e a privacidade de dados na internet, dá uma dimensão exata sobre o poder de influência dessas novas tecnologias.

Os números apresentados são bastante expressivos: (a) o WhatsApp é utilizado por 79% dos entrevistados como fonte de informação; enquanto o Facebook é utilizado por outros 44%; (b) quanto ao engajamento dos usuários, 41% afirmaram curtirem as publicações, enquanto 20% sempre compartilham; (c) 83% dos entrevistados acreditam que o conteúdo das redes sociais influencia na opinião das pessoas; (d) mais de 40% dos participantes decidiram o voto com base em informações provenientes de alguma rede social (Facebook 31% e WhatsApp 29%); (e) 82% já identificaram notícias falsas em redes sociais; (f) para 77% dos ouvidos, as notícias falsas ganham mais visibilidade que verdadeiras; e (g) 96% dos entrevistados acreditam que quem cria ou compartilha conteúdo falso deve ser punido (https://www12.senado.leg.br/institucional/datasenado/publicacaodatasenado?id=mais-de-80-dos-brasileiros-acreditam-que-redes-sociais-influenciam-muito-a-opiniao-das-pessoas).

É certo que as novas mídias sociais contribuem para o exercício da democracia, uma vez que esse novo modelo de comunicação permite que pessoas publiquem suas impressões, crenças, interpretações de mundo. Os indivíduos começam a criar o seu próprio conteúdo, externando uma visão subjetiva de determinado assunto.

Contudo, deve ser lembrado que a liberdade de expressão e opinião, assim como qualquer outro direito fundamental, não tem caráter absoluto. Não se pode dar um salvo conduto aos usuários das redes sociais para a propagação de informações sem o mínimo de verificação sobre a origem e a verdade dos fatos.

As manifestações feitas no âmbito dessas novas plataformas de mídia social (WhatsApp, Facebook, Twitter, Instagram) também estão sujeitas, assim como os meios tradicionais (televisão, rádio, jornais e revistas), ao binômio liberdade com responsabilidade. Uma vez que ofendam, tentem desconstituir o regime democrático ou instigar discursos de ódio, devem ser responsabilizadas.

Por tais motivos, entendo que a internet e as redes sociais, para fins eleitorais, enquadram-se perfeitamente no conceito de “veículos ou meios de comunicação” previsto no art. 22, caput, da LC 64/90.

 

VI – Conclusão

 

Ante o exposto, acompanho integralmente o e. Relator para DAR PROVIMENTO ao Recurso Ordinário, cassar o diploma do Recorrido e declarar a sua inelegibilidade (art. 22, XIV, da LC 64/90).

É o voto.

O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO (presidente): Muito obrigado, Ministro Alexandre de Moraes.

 

VOTO

 

O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO (presidente): Senhores Ministros, também eu vou pedir vênia à divergência para acompanhar o relator.

Nós vivemos um momento crucial na vida brasileira, que é um esforço de restabelecer um mínimo de veracidade e de compromisso com o que se fala. As palavras têm sentido, as palavras têm poder, as pessoas têm liberdade de expressão, mas elas precisam ter responsabilidade pelo que falam.

A parte da estratégia mundial de ataque à democracia é procurar minar a credibilidade do processo eleitoral e das autoridades que conduzem o processo eleitoral. Acusar inverazmente a ocorrência de fraude e a Justiça Eleitoral de estar mancomunada com a fraude é um precedente muito grave, que pode comprometer todo o processo eleitoral.

Aliás, uma das razões pelas quais o Tribunal Superior Eleitoral se opôs ao voto impresso nas circunstâncias brasileiras atuais era precisamente o risco de que acontecesse o seguinte: o indivíduo daria o seu voto eletrônico, depois apareceria na tela o voto a ser imprimido, e ele poder dizer que o voto que apareceu para ser impresso não correspondia ao seu voto eletrônico.

Então, imagine que não uma, mas mil ou 10 mil ou 50 mil aliados do candidato que vai perder façam a mesma coisa. Você compromete o processo eleitoral. Aqui, com esse precedente, imagine-se que no dia das eleições uma grande quantidade de pessoas, com responsabilidade política, fosse para as redes sociais para dizer “o sistema é fraudado”, “a urna não está colocando como resultado a vontade do eleitor”, e com isso você compromete um processo eleitoral.

E, no caso específico, periciadas as urnas, constatou-se que era mentira, as urnas foram auditadas e se constatou que era mentira, mas imagina esse tipo de comportamento difundido por quem queira tirar a credibilidade do sistema, imagina uma articulação, no dia das eleições, de centenas, milhares de pessoas que apoiam um eventual candidato que tema a derrota, dizendo que o sistema é fraudado. Isso comprometeria gravemente o processo eleitoral.

Esse é um precedente grave. O Direito, tanto o Direito Penal quanto o Direito Civil e o Direito Eleitoral tem como um dos seus principais papéis o que se chama “a função de prevenção geral”, que é, muitas vezes, a punição prevista para que as pessoas não tenham um incentivo errado de adotarem aquele comportamento. E, portanto, nós precisamos passar a mensagem clara de que não é possível, no dia das eleições, se difundir falsamente a informação de que as urnas são fraudadas, comprometendo o processo democrático, tirando a credibilidade das eleições e atacando a Justiça Eleitoral.

Portanto, é um precedente grave. Preferiria que nós não tivéssemos que estabelecê-lo, mas se nós passarmos pano na possibilidade de um agente público representativo ir às mídias sociais dizer que o modelo é fraudado, que o candidato está sendo derrotado por manipulação da Justiça Eleitoral, e ficar por isso mesmo, o sistema perde a credibilidade. E, como disse, parte da estratégia antidemocrática é tirar a credibilidade das autoridades eleitorais e do processo eleitoral.

De modo que, sem alegria, mas achando que esse é o papel que cabe à Justiça Eleitoral, firmar um exemplo do que é um comportamento que não pode ser aceito, eu estou acompanhando o relator.

Claramente, nós já estabelecemos no julgamento anterior que as mídias sociais se equiparam aos meios de comunicação social para o fim de identificação do uso indevido dos meios de comunicação social. E aqui eu tenho também a visão de que, especialmente essa fala que destacou o Ministro Alexandre de Moraes, o abuso dos meios de comunicação social ou o uso indevido dos meios de comunicação social, não teria dúvida, tive um pouco de dúvida da questão do abuso do poder político, mas aqui, esta passagem, me fez inclinar pela posição do relator e eu vou pedir vênia ao público e aos ministros para ser textual. Disse o parlamentar cujo processo está aqui em julgamento:

[...]

E aqui eu não tenho papa na língua, porque eu tenho uma merda que chama imunidade parlamentar para falar. Vota um e aparece o nome do Haddad. Se for um fake, depois eu volto e me retrato, mas eu não vou deixar de falar.

[...]

Portanto, aqui claramente se invoca uma condição especial do parlamentar, que é feito para proteger a sua liberdade de expressão e que é utilizado como escudo para difundir uma falsidade, uma mentira e, portanto, a imunidade parlamentar não pode acobertar a mentira deliberada.

Pedindo todas as vênias à divergência, também eu estou acompanhando o eminente relator nesse particular, porque acho que a condescendência com esse tipo de comportamento poderia comprometer o processo eleitoral do próximo ano.

 

PROCLAMAÇÃO DO RESULTADO

 

O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO (presidente): Proclamo, então, o resultado: o Tribunal, por maioria, deu provimento ao recurso para julgar procedentes os pedidos formulados na Aije, cassar o diploma do recorrido e declarar sua inelegibilidade por oito anos, contados das Eleições de 2018, determinando a imediata comunicação ao Tribunal Regional para que, independentemente da publicação do acórdão, proceda à retotalização das eleições para o cargo de deputado estadual do Paraná, computando-se como anulados os votos atribuídos ao recorrido, nos termos do voto do relator. Vencido o Ministro Carlos Horbach, que votou pela manutenção da decisão de origem, que era pela improcedência do pedido.

Esse é o resultado.

 

EXTRATO DA ATA

 

RO-EL nº 0603975-98.2018.6.16.0000/PR. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Recorrente: Ministério Público Eleitoral. Recorrido: Fernando Destito Francischini (Advogados: Gustavo Swain Kfouri – OAB: 35197/PR e outros).

Decisão: O Tribunal, por maioria, deu provimento ao recurso ordinário para julgar procedentes os pedidos formulados na ação de investigação judicial eleitoral, cassar o diploma do recorrido e declarar sua inelegibilidade por oito anos, contados das Eleições de 2018, determinando a imediata comunicação ao Tribunal Regional para que, independentemente da publicação do acordão, proceda à retotalização das eleições para o cargo de deputado estadual do Paraná, computando-se como anulados os votos atribuídos ao recorrido, nos termos do voto do relator. Vencido o Ministro Carlos Horbach.

Composição: Ministros Luís Roberto Barroso (presidente), Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Luis Felipe Salomão, Mauro Campbell Marques, Sérgio Banhos e Carlos Horbach.  

Vice-Procurador-Geral Eleitoral: Paulo Gustavo Gonet Branco.

SESSÃO DE 28.10.2021.