TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL

ACÓRDÃO

RECURSO ORDINÁRIO ELEITORAL  Nº 0601407-70.2022.6.16.0000 – CURITIBA – PARANÁ
 

Relator: Ministro Benedito Gonçalves

Recorrente: Federação Brasil da Esperança – Fé Brasil (PT/PCdoB/PV) – Estadual

Advogados: Luiz Eduardo Peccinin – OAB: 58101/PR e outros

Recorrente: Partido da Mobilização Nacional (PMN) – Estadual

Advogados: Michel Saliba Oliveira – OAB: 18719/PR e outros

Recorrido: Deltan Martinazzo Dallagnol

Advogados: Leandro Souza Rosa – OAB: 30474/PR e outro

Recorrido: Podemos (PODE) – Estadual

Advogado: Paulo Roberto Gongorra Ferraz  – OAB: 37315/PR

 

RECURSOS ORDINÁRIOS. ELEIÇÕES 2022. DEPUTADO FEDERAL. REGISTRO DE CANDIDATURA. INELEGIBILIDADES. ART. 1º, I, G E Q, DA LC 64/90.

1. Recursos ordinários interpostos contra acórdão por meio do qual o TRE/PR rejeitou as impugnações dos ora recorrentes e deferiu o registro de candidatura do recorrido, eleito Deputado Federal pelo Paraná nas Eleições 2022.

2. A controvérsia cinge-se a duas causas de inelegibilidade: (a) art. 1º, I, q, da LC 64/90, alegando-se, dentre outros fatos, que o recorrido antecipou seu pedido de exoneração do cargo de procurador da República para contornar a concreta possibilidade de que 15 procedimentos administrativos de natureza diversa fossem convertidos em processos administrativos disciplinares (PAD); (b) art. 1º, I, g, da LC 64/90, pois o recorrido, como coordenador da Operação Lava Jato, teve contas públicas rejeitadas pelo Tribunal de Contas da União por irregularidades no pagamento de diárias e passagens a membros do Ministério Público Federal que atuaram na referida força-tarefa.

INELEGIBILIDADE. ART. 1º, I, Q, DA LC 64/90. ANTECIPAÇÃO. PEDIDO. EXONERAÇÃO. CARGO. PROCURADOR. FRAUDE À LEI. CONFIGURAÇÃO.

3. Consoante o art. 1º, I, q, da LC 64/90, são inelegíveis “os magistrados e os membros do Ministério Público que forem aposentados compulsoriamente por decisão sancionatória, que tenham perdido o cargo por sentença ou que tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar, pelo prazo de 8 (oito) anos”.

4. O art. 1º, I, q, da LC 64/90 prevê três hipóteses distintas de inelegibilidade. As duas primeiras advêm de sanções concretas, quais sejam, aposentadoria compulsória ou perda do cargo. Já na terceira, não é necessário haver penalidade, bastando que exista pedido de exoneração ou de aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar (PAD) que possa, hipoteticamente e a princípio, levar àquelas consequências.

5. A fraude à lei (fraus legis) caracteriza-se pela prática de conduta que, à primeira vista, consiste em regular exercício de direito amparado pelo ordenamento jurídico, mas que, na verdade, configura burla com o objetivo de atingir finalidade proibida pela norma jurídica. Em outras palavras, é ato com aparência de legalidade, porém dissimulado, cuja ilicitude emerge a partir da conjugação das circunstâncias específicas no exame de um caso concreto. Doutrina e jurisprudência.

6. Nos termos do art. 187 do CC/2002, “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

7. O Supremo Tribunal Federal, em emblemático precedente, reconheceu fraude à lei na hipótese em que membro de tribunal, visando contornar a causa de inelegibilidade do art. 102 da LOMAN – segundo a qual é inelegível, para presidente, quem ocupou cargos de direção por dois biênios –, renunciou ao cargo de vice-presidente cinco dias antes de completar quatro anos no desempenho de funções diretivas (Rcl 8.025/SP, Rel. Min. Eros Grau, Plenário, DJE de 6/8/2010). Assim, quem pretensamente renuncia a um cargo (direito a princípio conferido pelo ordenamento jurídico), para, de forma escusa, contornar inelegibilidade estabelecida em lei (disputa de eleição para o cargo de presidente de tribunal), incorre no ilícito em tela.

8. Matéria também já decidida por esta Corte, que, a título demonstrativo, assentou a fraude à lei no registro de candidato sabidamente inelegível, “puxador de votos”, substituído apenas na véspera do pleito (art. 13, § 1º, da Lei 9.504/97), sem que assim houvesse tempo para retirar seu nome da urna eletrônica, garantindo-se votos para o seu substituto (AgR-AI 12-11/SP, Rel. Min. Luciana Lóssio, DJE de 17/11/2016).

9. Na espécie, a somatória de cinco elementos, devidamente concatenados e contextualizados, revela de forma cristalina que o recorrido exonerou-se do cargo de procurador da República em 3/11/2021 com intuito de frustrar a incidência da inelegibilidade do art. 1º, I, q, da LC 64/90 e, assim, disputar as Eleições 2022. A manobra impediu que 15 procedimentos administrativos em trâmite no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), em seu desfavor, viessem a gerar processos administrativos disciplinares (PAD) que poderiam ensejar aposentadoria compulsória ou perda do cargo.

10. Os aspectos caracterizadores da fraude, entrelaçados de forma temporal, fática e jurídica, podem ser assim resumidos: (a) existência de dois processos administrativos disciplinares (PAD), com trânsito em julgado, nos quais o CNMP aplicou ao recorrido advertência e censura, por sua vez aptas a caracterizar maus antecedentes para fim de imposição de sanções mais gravosas em procedimentos posteriores (arts. 239 e 241 da LC 75/93); (b) tramitavam contra o recorrido outros 15 procedimentos de natureza diversa (tais como reclamações), que, em virtude de sua exoneração, foram arquivados, extintos ou paralisados, cabendo salientar que: (b.1) conforme dispositivos constitucionais e legais aplicáveis ao CNMP, esses procedimentos poderiam vir a ser convertidos ou dar azo a processos administrativos disciplinares; (b.2) os fatos a princípio se enquadram em hipóteses legais de demissão por quebra do dever de sigilo, de decoro e pela prática de improbidade administrativa na Operação Lava Jato; (c) um dos procuradores da República que atuou com o recorrido na Operação Lava Jato foi apenado com demissão pelo CNMP em 18/10/2021, em processo administrativo disciplinar instaurado a partir de anterior reclamação, por contratar e instalar outdoor em homenagem à força-tarefa, com fotografia na qual o recorrido também aparece (ato de improbidade administrativa); (d) apenas 16 dias depois, em 3/11/2021, o recorrido pediu exoneração; (e) essa exoneração, ainda onze meses antes das Eleições 2022, causou espécie diante desses fatores e, ainda, pelo fato de que membros do Ministério Público apenas precisam se afastar do cargo faltando seis meses para o pleito (art. 1º, II, j, da LC 64/90; o que para as Eleições 2022 recairia apenas em 2/4/2022).

11. Segundo o art. 23 da LC 64/90, de constitucionalidade reconhecida pela Suprema Corte, “o Tribunal formará sua convicção pela livre apreciação dos fatos públicos e notórios, dos indícios e presunções e prova produzida, atentando para circunstâncias ou fatos, ainda que não indicados ou alegados pelas partes, mas que preservem o interesse público de lisura eleitoral”.

12. O conjunto probatório demonstra que o recorrido, visando não incidir na inelegibilidade do art. 1º, I, q, da LC 64/90, antecipou sua exoneração em fraude à lei.

13. A inelegibilidade aplica-se ao caso não com base em hipótese não prevista na LC 64/90, o que não se admite na interpretação de normas restritivas de direitos. O óbice incide porque o recorrido, em fraude à lei, utilizou-se de subterfúgio para se esquivar da regra da alínea q, vindo a se exonerar do cargo de procurador da República antes do início de processos administrativos envolvendo fatos da Operação Lava Jato.

14. Inaplicabilidade do princípio da segurança jurídica, por ausência de similitude fática, quanto ao REspEl 0600957-30/PR, Rel. Min. Raul Araújo, de 15/12/2022, no qual esta Corte decidiu que a inelegibilidade da alínea q requer tenha havido “processo administrativo disciplinar”, a ele não se equiparando outros procedimentos como reclamações ou sindicâncias. O caso dos autos possui duas distinções fundamentais: (a) não se pretende revisitar esse entendimento, pois a presente controvérsia diz respeito a fato anterior (pedido antecipado de exoneração) cujo intuito era evitar a instauração de processos administrativos disciplinares que pudessem atrair a inelegibilidade, em fraude à lei; (b) no acórdão paradigma, o candidato pediu exoneração da magistratura para exercer cargo na equipe de transição do presidente da República eleito em 2018 e, depois, assumir titularidade de Ministério, sem notícia de qualquer manobra para burlar o óbice à capacidade eleitoral passiva.

INELEGIBILIDADE. REJEIÇÃO DE CONTAS. ART. 1º, I, G, DA LC 64/90. SUSPENSÃO. EFEITOS. NÃO CONFIGURAÇÃO.

15. Consoante o art. 1º, I, g, da LC 64/90, são inelegíveis “os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se esta houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário [...]”.

16. No caso, o recorrido teve contas públicas rejeitadas, em tomada de contas especial do Tribunal de Contas da União, na condição de coordenador da Operação Lava Jato, por irregularidades no pagamento de diárias e passagens a membros do Ministério Público que atuaram na referida força-tarefa, o que teria gerado dano ao erário de R$ 2.831.808,53.

17. É indene de dúvida, porém, que os efeitos desse pronunciamento foram suspensos mediante tutela de urgência concedida na data de 18/9/2022 em demanda proposta perante a 6ª Vara Federal de Curitiba. Incidência do art. 11, § 10, da Lei 9.504/97 e da Súmula 41/TSE.

CONCLUSÃO. PROVIMENTO.

18. Recursos ordinários a que se dá provimento para indeferir o registro de candidatura do recorrido ao cargo de deputado federal, comunicando-se de imediato ao TRE/PR para imediata execução do acórdão (precedentes), mantendo-se o cômputo dos votos em favor da legenda (art. 20, III c/c § 2º, da Res.-TSE 23.677/2021 e ADI 4.513, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, PV de 31/3/2023 a 12/4/2023).

 

Acordam os ministros do Tribunal Superior Eleitoral, por unanimidade, em dar provimento aos recursos ordinários para indeferir o registro de candidatura do recorrido ao cargo de deputado federal, mantendo o cômputo dos votos em favor da legenda, e determinando a comunicação ao TRE/PR para imediata execução do acórdão, independentemente de publicação, nos termos do voto do relator.

 

Brasília, 16 de maio de 2023.

 

MINISTRO BENEDITO GONÇALVES  –  RELATOR

 

RELATÓRIO

 

O SENHOR MINISTRO BENEDITO GONÇALVES: Senhor Presidente, trata-se de recursos ordinários interpostos separadamente pela Federação Brasil da Esperança – Fé Brasil (PT/PCdoB/PV) – Estadual e pelo Partido da Mobilização Nacional (PMN) – Estadual contra acórdão proferido pelo TRE/PR assim ementado (ID 158.592.525):

REGISTRO DE CANDIDATURA. AÇÕES DE IMPUGNAÇÃO. ARTIGO 1º, INCISO I, ALÍNEA “G”, DA LEI COMPLEMENTAR N. 64/1990. REJEIÇÃO DE CONTAS PELO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. ACÓRDÃO SUSPENSO POR DECISÃO LIMINAR PROFERIDA PELA JUSTIÇA FEDERAL. AUSENTE REQUISITO OBRIGATÓRIO. INELEGIBILIDADE AFASTADA. ARTIGO 1º, INCISO I, ALÍNEA “Q”, DA LEI COMPLEMENTAR N. 64/90. NORMA RESTRITIVA. INTERPRETAÇÃO ESTRITA. AUSÊNCIA DE PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR STRICTO SENSU NO MOMENTO DO PEDIDO DE EXONERAÇÃO. INELEGIBILIDADE AFASTADA. ARTIGO 14, §9º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. EFICÁCIA LIMITADA. NORMA NÃO AUTOAPLICÁVEL. INELEGIBILIDADE AFASTADA. CONDENAÇÃO EM LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. PEDIDO INDEFERIDO. AÇÕES DE IMPUGNAÇÃO AO REGISTRO DE CANDIDATURA JULGADAS IMPROCEDENTES. REGISTRO DE CANDIDATURA DEFERIDO.

1. O artigo 1º, inciso I, alínea “g”, da Lei Complementar n. 64/1990 exige, para a sua configuração, a presença cumulativa dos seguintes requisitos: a) exercício de cargo ou função pública; b) rejeição das contas pelo órgão competente; c) insanabilidade da irregularidade verificada; d) ato doloso de improbidade administrativa; e) irrecorribilidade do pronunciamento de desaprovação das contas; e f) inexistência de suspensão ou anulação judicial do aresto de rejeição das contas.

2. O provimento liminar de suspensão dos efeitos do acórdão desaprovador de contas afasta a inelegibilidade prevista no artigo 1º, inciso I, alínea “g”, da Lei Complementar n. 64/1990, eis que ausente um dos pressupostos essenciais para sua caracterização, sendo desnecessária aferir a presença dos demais requisitos.

3. Para configuração da inelegibilidade prevista no artigo 1º, inciso I, alínea “q”, da Lei Complementar n. 64/1990 é necessário que, ao tempo do pedido de exoneração do cargo, o membro do Ministério Público esteja respondendo a processo administrativo disciplinar stricto sensu, entendido como aquele do qual possa resultar aplicação de sanção administrativa legalmente prevista, com garantia do devido processo legal.

4. As normas que restringem direitos fundamentais, como é o caso das inelegibilidades, que limitam a capacidade eleitoral, devem ser interpretadas de modo estrito, a fim de que alcancem, tão somente, as situações expressamente positivadas, garantindo a máxima efetividade do respectivo direito.

5. O artigo 14, §9º, da Constituição Federal é norma constitucional de eficácia limitada, na medida em que não produz efeitos concretos, enquanto o legislador ordinário não estabelecer outras causas de inelegibilidade por meio de lei complementar.

6. Incabível a análise da incidência dos parâmetros abstratos postos no artigo 14, §9º, da Constituição Federal, como a moralidade e a probidade, com o suposto intuito de configurar possível causa de inelegibilidade, pois cumpre a esta Justiça Especializada tão somente subsumir os fatos apresentados às hipóteses objetivas de inelegibilidade previstas na Lei Complementar n. 64/1990.

7. Não há se falar em litigância de má-fé, em razão do exercício do direito de petição, a partir de premissa jurídica equivocada, de modo que não merece acolhimento o pedido de condenação a esse título.

8. Ações de impugnação ao registro de candidatura julgadas improcedentes. Registro de candidatura deferido.

Na origem, o pedido de registro de candidatura de Deltan Martinazzo Dallagnol ao cargo de deputado federal pelo Paraná nas Eleições 2022 foi impugnado por ambos os ora recorrentes e por Oduwaldo de Souza Calixto, candidato ao mesmo cargo, com fundamento no art. 1º, I, g e q, da LC 64/90, além de falta de moralidade e probidade para o exercício do cargo (art. 14, § 9º, da CF/88).

Apontou-se, em suma, que o candidato:

a) teve contas rejeitadas pelo Tribunal de Contas da União em decorrência de sua responsabilidade pelo pagamento irregular de diárias, passagens e gratificações a membros do Ministério Público Federal relativamente a atos da Operação Lava Jato (alínea g);

b) requereu sua exoneração do cargo de procurador da República enquanto figurava no polo passivo de processos administrativos disciplinares que poderiam levar à sua demissão, e, ainda, de outros procedimentos administrativos (alínea q);

c) perpetrou inúmeras ilegalidades no âmbito da Operação Lava Jato, tal como reconhecido, a título demonstrativo, pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC 164.493/PR, julgado em 23/3/2021 (art. 14, § 9º, da CF/88).

O TRE/PR, por unanimidade, julgou improcedentes os pedidos nas impugnações e deferiu o registro de candidatura. Assentou que “[o] provimento liminar de suspensão dos efeitos do acórdão desaprovador de contas afasta a inelegibilidade prevista no artigo 1º, inciso I, alínea ‘g’, da Lei Complementar n. 64/1990” e, no tocante à inelegibilidade da alínea q, “que, ao tempo do pedido de exoneração do cargo, o membro do Ministério Público esteja respondendo a processo administrativo disciplinar stricto sensu”, o que não ocorreu no caso.

O candidato ora recorrido interpôs embargos declaratórios, os quais foram rejeitados.

Nas razões de seu recurso ordinário, a Comissão Provisória da Federação Brasil da Esperança no Paraná alegou em síntese (ID 158.592.532):

a) deve incidir na espécie a inelegibilidade do art. 1º, I, q, da LC 64/90, pois, na data em que o recorrido se exonerou do cargo de procurador da República (03/11/2021), estavam pendentes de julgamento no Supremo Tribunal Federal dois processos administrativos disciplinares [PADs 1.00898/2018-99 (Pet 8614/STF) e 1.00982/2019-48 (Pet 9068/STF)], além de outros dezesseis feitos disciplinares, destinados à apuração de irregularidades graves, perante o Conselho Nacional do Ministério Público, que só foram posteriormente extintos ou arquivados devido à exoneração;

b) é necessária interpretação sistemática do ordenamento jurídico eleitoral, o que deve ser feito considerando que o Supremo Tribunal Federal já estabeleceu, no julgamento da ADI 4578, um paralelo entre as alíneas q (caso dos autos) e k (que prevê inelegibilidade dos detentores de cargos eletivos que renunciarem a seus mandatos desde o oferecimento de representação ou petição capaz de autorizar a abertura de processo) do art. 1º, I, da LC 64/90;

c) “inexiste motivo ou fim maior que justifique a adoção de interpretação diversa para quem se enquadra no mesmo espectro” (fl. 8), já que o bem jurídico tutelado em ambas as alíneas é idêntico;

d) “sempre que a exoneração de membro do Ministério Público vise escapar ‘ao crivo de procedimento de controle de responsabilidade política ou disciplinar’ (nas palavras do STF), haverá incidência da hipótese de inelegibilidade, mesmo que ocorra antes da instauração efetiva de procedimento administrativo disciplinar stricto sensu” (fl. 8);

e) “[o]u seja, incorreria sim em inelegibilidade ‘o membro do Ministério Público que, prevendo a possibilidade de instauração de processo administrativo disciplinar que culminaria, dada a gravidade de sua conduta, na aplicação de sanção, antecipa-se à inevitável consequência e pede exoneração de seu cargo’” (fl. 12);

f) cabe à Justiça Eleitoral aferir a gravidade dos fatos disciplinares apurados em todos os procedimentos e não apenas nos processos administrativos disciplinares (PADs);

g) “[a] possibilidade de se adotar as diretrizes interpretativas e cognitivas previamente fixadas pela recorrente decorre justamente das definições do próprio Regimento Interno Conselho Nacional do Ministério Público, o qual estabelece verdadeira ‘escada processual-probatória’ para cada feito administrativo disciplinar” (fl. 15) – pedido de providências, notícia de fato, reclamação, sindicância e PAD, verificando-se que “o que separa um procedimento e outro, portanto, é tão somente a materialidade das provas (até então) produzidas – não a penalidade porventura aplicável” (fl. 17);

h) “não há sentido em não aplicar a alínea ‘q’ quando, inobstante não instaurado procedimento administrativo disciplinar, outros feitos disciplinares ostentem (1) gravidade suficiente para ensejar a perda do cargo ou a aposentadoria compulsória, e haja (2) indícios de manobra de escape ‘ao crivo de procedimento de controle de responsabilidade política ou disciplinar”, mediante exoneração’” (fl. 18);

i) o objetivo do recorrido ao ajuizar ações com pedido liminar perante o Supremo Tribunal Federal, questionando a regularidade dos PADs que tramitavam contra ele foi evidentemente “deixar pendente” a eficácia desses feitos, “[a]ssim, em ambos os casos, inobstante tenha havido encerramento no âmbito administrativo (com a condenação de Deltan), o mérito das infrações foi questionado pelo impugnado perante o judiciário, estando pendente de julgamento. No caso do PAD 1.00898/2018-99 (Pet. 8614/STF), há, inclusive, medida liminar vigente que sustou a aplicabilidade das penalidades infracionais ao assento funcional de Deltan (ID 43059374), conforme se viu”(fl. 22);

j) “em todos os feitos foi oportunizado o contraditório ao impugnado, havendo notória possibilidade de comparação com a obrigatoriedade que permeia os Procedimentos Administrativos Disciplinares stricto sensu relativamente às garantias da ampla defesa, pois Deltan já estava plenamente ciente das acusações e dos fatos que lhe eram imputados” (fl. 46);

k) quanto à inelegibilidade do art. 1º, I, g, da LC 64/90, “da liminar obtida por Deltan, foi interposto agravo de instrumento com pedido de efeito suspensivo pela União Federal, em 24 de outubro de 2022, o qual aguarda do Tribunal Regional Federal da 4ª Região” (fl. 50). Assim, “enquanto há possibilidade de reversão da tutela antecipada e julgamento pelo TCU antes da diplomação do postulante, resta necessário reiterar perante esta C. Corte Superior, os demais fundamentos que denotam a incidência da alínea ‘g’ no caso” (fl. 51);

l) “da fundamentação da rejeição das contas, extrai-se de forma indelével a improbidade e a insanabilidade inerentes às irregularidades constatadas, bem como o dolo dos agentes por elas responsáveis, incluindo o Sr. Deltan Dallagol” (fl. 52).

A Comissão Provisória do Partido da Mobilização Nacional (PMN) no Paraná, por sua vez, aduziu, em seu apelo, em suma (ID 158.592.544):

a) “[d]entre os abusos e ilegalidades supostamente praticados por (sic) Recorrido, alguns foram reconhecidos em decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal. Vide, exemplificativamente, o acórdão proferido no HC nº 164.493/PR julgado pela 2ª Turma do STF em 23/03/2021, que reconheceu a suspeição do ex-Juiz Sérgio Moro em razão, dentre outros motivos, de mensagens que indicavam ‘cooperação espúria’ do então chefe da força-tarefa Deltan Dallagnol com Sérgio Fernando Moro na condução dos processos visando a construção de um ‘projeto de poder’” (fl. 6);

b) “[o]s métodos adotados pelo Recorrido no comando da Operação Lava Jato, à margem do devido processo legal e dos deveres funcionais como Procurador da República, motivaram também condenações ao pagamento de indenizações em âmbito cível. Tanto em função de militância política contra político determinado (vedada aos membros do Ministério Público), como no caso da sentença proferida nos Autos nº 0727538-80.2020.8.02.0001, pela 1ª Vara Cível de Maceió/AL, como em razão de abuso de direito e extrapolação dos limites de suas funções ao conceder entrevista acerca dos fatos investigados pela Operação Lava Jato, tal como reconheceu o STJ no REsp nº 1842613/SP” (fl. 8);

c) “o Tribunal de Contas da União, no TC nº 006.470/2022-0, julgou irregulares as contas do ora Impugnado e de outros gestores, ‘em razão de prática de atos antieconômicos, ilegais e ilegítimos consubstanciados em condutas que, em tese, podem caracterizar atos dolosos de improbidade administrativa, a serem examinados em ação própria pelos órgãos competentes’, condenando-o ‘solidariamente ao ressarcimento ao erário no valor total histórico de R$ 2.597.536,39’” (fl. 9);

d) “[c]onsiderando todo o contexto de atuação funcional acima delineado, o Recorrido teve distribuídos contra si diversos procedimentos disciplinares perante o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), em fases diversas de andamento. Em consulta ao Sistema ELO – CNMP, desde 2016, em nome do Recorrido, encontram-se 52 (cinquenta e dois) feitos administrativos, todos eles destinados à apuração de faltas disciplinares praticadas durante o exercício da função de Procurador da República no Ministério Público Federal” (fl. 9);

e) “[s]e efetivamente a intenção do Recorrido fosse a exoneração para fins eleitorais, não o faria em novembro de 2021 – logo após a demissão de seu colega Sr. Diogo Mattos Castor –, mas sim às vésperas do marco dos seis meses que antecedem às eleições. Há de se cogitar a factível tese de que o Recorrido teria se exonerado ainda em novembro de 2021 porque tinha plena ciência do risco da punição disciplinar que poderia levá-lo à pena de demissão do Ministério Público Federal – sobretudo quando já aplicadas [...] as penas de censura e advertência” (fls. 10-11);

f) “as reclamações disciplinares e pedidos de providências [...] em desfavor do Impugnado – e pendentes de análise até novembro/2021 – também inviabilizam o deferimento do pedido de Registro de Candidatura, igualmente nos termos da alínea q” (fls. 13-14);

g) da análise das definições trazidas no Regimento Interno do Conselho Nacional do Ministério Público, “é possível depreender que tanto as Reclamações Disciplinares/Sindicâncias Pedidos de Providências como os Processos Administrativos Disciplinares se destinam à apuração de falta/infração disciplinar, existindo em seu bojo, ao contrário do que fundamentado no acórdão, a possibilidade de ser realizado o contraditório e a ampla defesa” (fl. 17);

h) “todos os feitos analisados apresentavam fundamentação e conjunto probatório suficiente para terem sido conhecidos, recebidos, encaminhados para investigação” (fl. 18);

i) “[n]ão se desconhece a vedação à interpretação extensiva das normas atinentes à imposição de inelegibilidade. Todavia, exatamente em razão dos fundamentos acima expostos, é possível a aplicação da alínea q, especificamente para o caso concreto, em que é evidente a má-fé, extraída da combinação do momento da exoneração e das alegações realizadas no âmbito da Operação Spoofing” (fl. 23).

Em suas contrarrazões aos recursos ordinários, o candidato recorrido aduziu, em suma (ID 158.592.595):

a) a “contextualização dos fatos debatidos” apresentada no recurso do Partido da Mobilização Nacional (PMN) é irrelevante para o deslinde da controvérsia e se trata de ardil usado para disseminar inverdades e desferir ataques;

b) certidões expedidas pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), acostadas aos autos, comprovam que o recorrido não tinha processo administrativo disciplinar pendente de julgamento ao tempo de sua exoneração do cargo de procurador da República, o que afasta a incidência da inelegibilidade do art. 1º, I, q, da LC 64/90;

c) “desde 16.09.2022, o TRE/PR, ao julgar o registro de candidatura de Sérgio Fernando Moro (Autos n. 0600957- 30.2022.6.16.0000), no período eleitoral de 2022, concluiu por unanimidade de votos, que ‘Processo Administrativo Disciplinar, para fins de atração da inelegibilidade descrita na mencionada alínea ‘q’, é aquele instaurado para apuração de descumprimento de dever funcional, submetido ao devido processo legal, em que sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa, e do qual possa resultar aplicação de penalidade administrativa legalmente prevista, pelo órgão competente’” (fls. 8-9), decisão posteriormente confirmada pelo TSE;

d) trata-se da mesma situação do recorrido, “já que, no âmbito do Ministério Público (MP), a autoridade responsável pelo controle do cumprimento dos deveres funcionais de seus membros, segundo a norma constitucional, é o CNMP”, como se verifica no art. 130-A, § 2º, III, da CF/88 (fl. 19);

e) “é inarredável a mesma conclusão outrora adotada pela Justiça Eleitoral, em caso idêntico e recente, de que as classes processuais de sindicância e reclamação (noticiadas pelos Recorrentes, além dos arquivados PADs) não se prestam a aplicar penalidade administrativa ao membro do MP, já que servem como instrumento investigativo que podem ou não gerar um PAD” (fl. 21);

f) não houve irregularidade no pedido de exoneração do recorrido, que se deu por razões pessoais e políticas, não competindo à recorrente decidir a respeito da conveniência ou não de fazê-lo em determinada data (fl. 22);

g) “muito antes de sua saída do MP, só existiram 2 (dois) PADs contra o Recorrido, relacionados exclusivamente ao exercício da liberdade de expressão, os quais já estavam arquivados antes de seu pedido de exoneração” (fl. 22), sendo irrelevante se ele propusera ou não ações perante o Supremo Tribunal Federal acerca de tais casos;

h) “a leitura da mencionada alínea ‘q’ não deve ser descuidada, porquanto não é qualquer processo administrativo disciplinar que atrai a inelegibilidade, mas sim aquele que tenha potencialidade de gerar a sanção de demissão” (fl. 30);

i) não cabe equiparar a alínea q à k, pois, “se objetivo do legislador fosse aplicar de forma igual tais alíneas, elas estariam reunidas e não separadas” e, ademais, o procedimento que resulta na inelegibilidade é diverso;

j) “deve-se registrar que o art. 172 da Lei n. 8.112/1990, ao dispor sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais, proíbe o afastamento voluntário do acusado enquanto em pendência processo administrativo” (fl. 33), motivo pelo qual “o Recorrido não poderia nem mesmo ter sido exonerado na pendência de PAD” (fl. 33);

k) “os procedimentos diversos dos PADs não tinham potencialidade de gerar a sanção de demissão. E, nem mesmo os Recorrentes demonstraram efetivamente qual seria a gravidade dos ditos feitos disciplinares” (fl. 34);

l) quanto à inelegibilidade da alínea g, “já foi informado nestes autos que, aos 18.09.2022, nos autos de Procedimento Comum n. 5053024-83.2022.4.04.7000 (id. 43170470), que tramita perante a 6ª Vara Federal de Curitiba, foi proferida decisão liminar que suspendeu o ‘Acórdão n. 4117/2022-2ª Câmara, complementado pelo Acórdão 5040/2022-2ª Câmara e de seus efeitos, inclusive do prazo para a elaboração do Recurso, até o julgamento desta ação’” (fl. 44).

A d. Procuradoria-Geral Eleitoral opinou pelo desprovimento dos recursos ordinários (ID 158.651.420).

Em 13/3/2023, a Comissão Provisória da Federação Brasil da Esperança no Paraná protocolou petição, na qual aduz, em síntese (ID 158.782.774):

a) foi proferida decisão de improcedência na Pet 8.614, em trâmite no Supremo Tribunal Federal, feito em que o recorrido obtivera liminar para impedir que as sanções aplicadas pelo CNMP no PAD 1.00898/18-99 fossem consideradas na análise das penalidades cabíveis em outros processos administrativos disciplinares;

b) a prolação desse decisum comprova a tese recursal de que “o recorrido possuía processos administrativos em pendência de julgamento de mérito em relação aos PAD’s n. 1.00898/2018-99 (Pet. n. 8.614/STF) e 1.00982/2019-48 (Pet. n. 9.068/STF)” (fls. 3-4), já que o reconhecimento de eventuais vícios poderia alterar o resultado do próprio processo administrativo disciplinar;

c) “considerando que a Pet. n. 8.614 poderia anular a sanção aplicada pelo PAD n. 1.00898/2018-99 é evidente que o recorrido pediu exoneração do MPF ‘na pendência de processo administrativo disciplinar’” (fl. 5).

Intimado para se manifestar a respeito do teor dessa petição, o candidato recorrido refutou os argumentos nela apresentados e ratificou os termos das contrarrazões (ID 158.824.308).

É o relatório.

 

VOTO

 

O SENHOR MINISTRO BENEDITO GONÇALVES (relator): Senhor Presidente,  consoante se relatou, a hipótese cuida de recursos ordinários interpostos contra acórdão por meio do qual o TRE/PR rejeitou as impugnações ofertadas pelos ora recorrentes e, por conseguinte, deferiu o registro de candidatura de Deltan Martinazzo Dallagnol, eleito Deputado Federal pelo Paraná nas Eleições 2022.

Nos recursos ordinários ora em julgamento, discute-se se o candidato incide em dois óbices à sua capacidade eleitoral passiva, os quais se encontram previstos na Lei de Inelegibilidades (LC 64/90).

A primeira irresignação reside na inelegibilidade do art. 1º, I, q, da LC 64/90, tendo como ponto central o pedido de exoneração do recorrido do cargo de procurador da República, conduta esta que teria sido praticada com o intuito de contornar a incidência do mencionado dispositivo.   

O segundo ponto é a inelegibilidade do art. 1º, I, g, da LC 64/90, porquanto o recorrido, como coordenador da Operação Lava Jato, teve contas públicas rejeitadas pelo Tribunal de Contas da União em tomada de contas especial, diante de irregularidades no pagamento de diárias e passagens a membros do Ministério Público Federal que atuaram na referida força-tarefa, o que teria ocasionado dano ao erário.

Considerando que os recursos ordinários preenchem todos os requisitos de admissibilidade e que não há questões preliminares alegadas nas razões recursais ou nas contrarrazões, passo ao exame, separadamente, das duas causas de inelegibilidade aduzidas.

1. Inelegibilidade do Art. 1º, I, q, da LC 64/90: Pedido de Exoneração do Recorrido do Cargo de Procurador da República

A previsão de causas de inelegibilidade na Lei Complementar 64/90 decorre do mandamento constitucional trazido no § 9º do art. 14 da CF/88.

Estabelece o dispositivo constitucional em apreço que “lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta”.

Evidencia-se, assim, que, de acordo com a Constituição Federal, as hipóteses de inelegibilidade devem funcionar como filtros para obstar o acesso a cargos públicos eletivos daqueles que tenham desrespeitado valores primordiais da ordem democrática, tais como a moralidade e a probidade administrativas.

Nesse contexto, e nos termos do art. 1º, I, q, da LC 64/90, são inelegíveis para qualquer cargo eletivo, pelo período de oito anos, os membros do Ministério Público e do Poder Judiciário que, alternativamente, tenham sido aposentados compulsoriamente por decisão sancionatória, tenham perdido o cargo por sentença ou, ainda, tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar. Confira-se o dispositivo:

Art. 1º São inelegíveis:

I – para qualquer cargo:

[...]

q) os magistrados e os membros do Ministério Público que forem aposentados compulsoriamente por decisão sancionatória, que tenham perdido o cargo por sentença ou que tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar, pelo prazo de 8 (oito) anos;

[...]  

A alínea q foi introduzida na LC 64/90 pela Lei da Ficha Limpa (LC 135/2010) como parte de notável esforço legislativo de dar maior concretude à exigência constitucional e da própria sociedade no sentido de que os candidatos sejam suficientemente probos e estejam aptos a exercer cargos eletivos.

Do referido dispositivo, extraem-se três hipóteses em que cabe reconhecer a inelegibilidade em tela. As duas primeiras advêm de sanções concretas, quais sejam, aposentadoria compulsória ou perda do cargo. Já na terceira, não é necessário haver penalidade, bastando que exista pedido de exoneração ou de aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar (aqui considerado em sua acepção técnica: PAD) que possa, hipoteticamente e a princípio, levar a uma daquelas consequências.

De fato, essa terceira alternativa, conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 4.578, ampara-se no propósito de evitar que, antes mesmo da aposentadoria compulsória ou da perda do cargo, o pretenso candidato venha a pedir exoneração e consiga impedir a incidência de tais sanções.

No ponto, é esclarecedora a seguinte passagem do voto proferido pelo eminente Ministro Luiz Fux, Relator do precedente:

Ambas as previsões [alíneas k e q] configuram hipóteses em que se furta o acusado ao crivo de procedimento de controle de responsabilidade política ou disciplinar, por ato eminentemente voluntário.

Como já ressaltei no RE nº 630.147/DF e no RE 631.102/PA, a imputação da inelegibilidade ao candidato que renunciou anteriormente a mandato eletivo não ofende, a meu ver, a cláusula constitucional da presunção de inocência, por se tratar de ato voluntário e unilateral do agente, que refoge da previsão de cláusula de garantia, instalada necessariamente em sede de processo judicial ou administrativo.

Não poderia se beneficiar eternamente da presunção de inocência o cidadão que renuncia, já que fica prejudicado o procedimento de apuração de responsabilidade tendente à sua expulsão do quadro de agentes políticos. Mormente porque uma das consequências da procedência de sua exclusão seria a inelegibilidade prevista constitucionalmente.

(ADI 4.578, Rel. Min. Luiz Fux, DJE de 29/6/2012) (sem destaques no original)

No caso dos autos, a título preliminar, trago à colação dois fatos de natureza incontroversa que não são objeto de impugnação por quaisquer das partes.

Em primeiro lugar, na linha do que assentou o TRE/PR, é de conhecimento público que “o candidato impugnado é ex-integrante dos quadros do Ministério Público, exonerado, a pedido, em 3/11/2021, conforme Portaria PGR/MPF n. 688, de 4 de novembro de 2021” (ID 158.592.521, fl. 19).

Ademais, também é inequívoco que o recorrido, quando de sua exoneração a pedido, já havia sido condenado às penas de advertência e censura em dois processos administrativos disciplinares findos, e que, ainda, tinha contra si 15 procedimentos diversos em trâmite no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) para apurar outras infrações funcionais.  

Nesse ínterim, uma das teses dos recorrentes é a de que o pedido de exoneração do recorrido, efetuado antes que os 15 procedimentos acima pudessem gerar ou ser convertidos em processos administrativos disciplinares (PAD), visou contornar a inelegibilidade da alínea q, frustrando por completo sua incidência.

Dito de outro modo, segundo os recorrentes, embora via de regra essa causa de inelegibilidade pressuponha a existência de processo administrativo disciplinar (PAD) que possa acarretar aposentadoria compulsória ou perda do cargo, aduz-se que o recorrido antecipou seu pedido de exoneração de forma proposital exatamente para evitar que os outros 15 procedimentos diversos que tramitavam contra ele fossem convertidos ou dessem origem aos PADs.

Assim, analiso o caso sob o contexto do que se vem a denominar, na doutrina e na jurisprudência, fraude à lei.

1.1. Fraude à lei: doutrina, legislação e jurisprudência

A fraude à lei, também denominada fraus legis, é vício apto a invalidar atos e negócios jurídicos. Caracteriza-se pela prática de conduta que, à primeira vista, tem amparo legal e consistiria em regular exercício de direito, mas que, na verdade, configura burla com o objetivo de atingir finalidade proibida pela norma jurídica.    

Tem-se, assim, uma prática revestida de aparência de legalidade, porém dissimulada, e que ao fim e ao cabo se revela ilícita a partir da conjugação de diversas circunstâncias específicas a serem verificadas no exame de um caso concreto.

Nas precisas palavras de Pontes de Miranda,

[A] fraude à lei consiste, portanto, em ser aplicada outra regra jurídica e deixar de ser aplicada a regra jurídica fraudada. Aquela não incidiu porque incidiu esta; a fraude à lei põe diante do juiz o suporte fáctico, de modo tal que pode o juiz errar. A fraude à lei é infração da lei, confiando o infrator em que o juiz erre. O juiz aplica a sanção, por seu dever de respeitar a incidência da lei (= de não errar).

(Tratado de Direito Privado, t. 1, Borsoi, Rio de Janeiro, 1954, p. 51. Apud: STF, Rcl 8025, Rel. Min. Eros Grau) (sem destaques no original)

Na legislação vigente, verifica-se no art. 166, VI, do CC/2002 a previsão expressa de que é nulo o negócio jurídico quando tiver por objetivo fraudar lei imperativa. Como ensina Flávio Tartuce, “na fraude à lei, há uma infringência oblíqua ou indireta da norma proibitiva” (Manual de Direito Civil: volume único. 11. ed. Rio de Janeiro, Forense; Método, 2021, p. 276).

A fraude à lei, de igual forma, guarda estreito liame com o disposto no art. 187 do CC/2002, segundo o qual “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. Aqui se revela, novamente de acordo com a doutrina de Flávio Tartuce, uma das três prerrogativas da boa-fé objetiva no Código Civil, qual seja, a função de controle (idem, p. 590).

No mesmo sentido, os Tribunais Superiores, em inúmeras oportunidades, têm assentado a inadmissibilidade de condutas que importem violação indireta à lei, frustrando sua aplicação. 

Um dos casos mais emblemáticos foi julgado pelo Supremo Tribunal Federal na Reclamação 8.025/SP, Rel. Min. Eros Grau, Plenário, DJE de 6/8/2010.

Naquele caso, reconheceu-se fraude à lei na situação em que membro de tribunal, na tentativa de contornar a causa de inelegibilidade do art. 102 da LOMAN – segundo a qual é inelegível, para presidente, quem ocupou cargos de direção por dois biênios –, renunciou ao cargo de vice-presidente cinco dias antes de completar quatro anos no desempenho de funções diretivas.

Confira-se a ementa do julgado:

RECLAMAÇÃO. IMPUGNAÇÃO. ATO DO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL [...]. ELEIÇÃO PARA O CARGO DE PRESIDENTE. ALEGAÇÃO DE NULIDADE DECORRENTE DA NÃO OBSERVÂNCIA DO UNIVERSO DOS ELEGÍVEIS. ALEGAÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DA DECISÃO DA ADI N. 3.566. FRAUDE À LEI. FRAUDE À CONSTITUIÇÃO. NORMAS DEFINIDORAS DO UNIVERSO DE MAGISTRADOS ELEGIVÉIS PARA OS ÓRGÃOS DIRETIVOS DOS TRIBUNAIS. NECESSIDADE DE RENOVAÇÃO DOS QUADROS ADMINISTRATIVOS DOS TRIBUNAIS. DETERMINAÇÃO CONTIDA NA SEGUNDA PARTE DO ARTIGO 102 DA LOMAN. CONDIÇÃO DE ELEGIBILIDADE E CAUSA DE INEGIBILIDADE. RECLAMAÇÃO JULGADA PROCEDENTE.

[...]

2. Discussão a propósito da possibilidade de desembargador que anteriormente ocupou cargo diretivo por dois biênios [...] ser eleito Presidente.

[...]

4. Desembargador que exerceu cargo de Corregedor-Geral no biênio 2003-2005 e eleito Vice-Presidente para o biênio 2005-2007. Situação de inelegibilidade decorrente da vedação do art. 102, da LOMAN, segunda parte.

5. A incidência do preceito da LOMAN resulta frustrada. A fraude à lei importa, fundamentalmente, frustração da lei. Mais grave se é à Constituição, frustração da Constituição. Consubstanciada a autêntica fraus legis.

6. A fraude é consumada mediante renúncia, de modo a ilidir-se a incidência do preceito.

[...]

9. O artigo 102 da LOMAN traça o universo de magistrados elegíveis para esses cargos, fixando condição de elegibilidade (critério de antiguidade) e causa de inelegibilidade (quem tiver exercido quaisquer cargos de direção por quatro anos, ou o de Presidente). O universo de elegíveis é delimitado pela presença da condição de elegibilidade e, concomitantemente, pela ausência da causa de inelegibilidade. Normas regimentais de Tribunais que, de alguma forma, alterem esses critérios violam o comando veiculado pelo artigo 102 da LOMAN. Pedido julgado procedente.

(sem destaques no original)

Em seu voto, o Relator extraiu da doutrina de Alvino Lima (A fraude no Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 1965, p. 33) definição esclarecedora e que permanece atual:

Inúmeros são os meios ou processos de que lançam mão os infratores das normas jurídicas, a fim de se subtraírem ao seu império, a sanções que lhe são impostas no caso de transgressões. Estes meios ou processos vão da violação direta, pura e simples, sem rodeios ou subterfúgios, às formas mais sutis, disfarçadas, ocultas e mascaradas, adrede preparadas, de maneira a dificultar a aplicação da lei, e consequentemente, subtrair se o infrator à sanção legal (...) Agem contra a lei os que a violam abertamente, de forma ‘quase brutal’, na expressão de FERRARA. Agem in fraudem legis, os que frustram a sua aplicação procurando atingir, por via indireta, o mesmo resultado material contido num preceito legal proibitivo.

(sem destaques no original)

Como se vê, decidiu a Suprema Corte que a prática de um ato em tese legal e conforme o Direito – renúncia a cargo diretivo em tribunal – assume caráter de fraude à lei quando se verifica que a conduta, em verdade, visou burlar impedimento previsto na legislação de regência, a saber, a inelegibilidade, para o cargo de presidente, de quem exerceu funções diretivas nos dois biênios anteriores.

Em outras palavras, quem pretensamente renuncia a um cargo (direito a princípio conferido pelo ordenamento jurídico), para, de forma dissimulada, contornar vedação estabelecida em lei (impossibilidade de disputar eleição para o cargo de presidente de tribunal), incorre em fraude à lei.

A matéria, ademais, também não é inédita nesta Corte Superior, que já reconheceu a invalidade de atos a princípio lícitos, porém praticados com o intuito de frustrar a aplicação da lei eleitoral. Menciono, a título exemplificativo:

(a) o registro de candidatas mulheres – ato lícito não apenas garantido, como também mandatório na lei – para na verdade dissimular o lançamento de candidaturas femininas, em fraude ao art. 10, § 3º, da Lei 9.504/97 (AgR-AREspEl 0600651-94/BA, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJE de 30/6/2022, dentre inúmeros outros);

(b) o registro de candidato sabidamente inelegível, “puxador de votos”, que vem a ser substituído pela legenda apenas na véspera do pleito (o que antes se permitia no art. 13, § 1º, da Lei 9.504/97), sem que assim houvesse tempo para se retirar seu nome da urna eletrônica, garantindo-se assim votos para o seu substituto (AgR-AI 12-11/SP, Rel. Min. Luciana Lóssio, DJE de 17/11/2016);

(c) o candidato que retira propaganda irregular de bem comum (caso em que não incide multa imediata do art. 37, § 1º, da Lei 9.504/97), mas que logo a seguir fixa o material em outro bem da mesma espécie (REspEl 469-53/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, DJE de 10/3/2014).

Assim, seja de acordo com a doutrina, com a legislação ou com a jurisprudência, não há óbice a que o Tribunal Superior Eleitoral reconheça, na prática de determinado ato aparentemente revestido de licitude, fraude à lei praticada com o propósito de contornar vedação prevista na norma jurídica.

1.2. Elementos caracterizadores da fraude no caso dos autos

No caso dos autos, a somatória de cinco elementos, devidamente concatenados e contextualizados, revela de forma cristalina que o recorrido exonerou-se do cargo de procurador da República em 3/11/2021 com propósito de frustrar a incidência da inelegibilidade do art. 1º, I, q, da LC 64/90.

Referida manobra, como se verá neste tópico, impediu que os 15 procedimentos administrativos em trâmite no CNMP em seu desfavor viessem a gerar processos administrativos disciplinares (PAD) que poderiam ensejar a pena de aposentadoria compulsória ou de perda do cargo.

Esses cinco elementos configuradores da fraude à lei, entrelaçados nos seus aspectos temporal, fático e jurídico, podem ser assim resumidos:

(a) a anterior existência de dois processos administrativos disciplinares (PAD), com trânsito em julgado, nos quais o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) aplicou ao recorrido as penalidades de censura e advertência, que por sua vez eram aptas a caracterizar maus antecedentes para fins de imposição de sanções mais gravosas em procedimentos posteriores (arts. 239 e 241 da LC 75/93);

(b) tramitavam contra o recorrido, no CNMP, 15 procedimentos administrativos de natureza diversa (tais como reclamações), os quais, depois de sua exoneração a pedido, foram arquivados, extintos ou paralisados. Há ainda de se considerar dois fatores: (b.1) conforme disposições constitucionais e legais, esses procedimentos poderiam vir a ser convertidos ou darem azo a processos administrativos disciplinares (PAD); (b.2) os fatos a princípio se enquadram em hipóteses legais de demissão por quebra do dever de sigilo, do decoro e pela prática de improbidade administrativa na Operação Lava Jato;

(c) um dos procuradores da República que atuou com o recorrido na Operação Lava Jato sofreu penalidade de demissão em 18/10/2021, em processo administrativo disciplinar instaurado pelo CNMP a partir de anterior reclamação, por contratar e instalar outdoor em homenagem à força-tarefa, contendo fotografia na qual o recorrido também aparece (ato de improbidade administrativa);

(d) logo em seguida, apenas 16 dias após esse fato, o candidato recorrido pediu sua exoneração do cargo de procurador da República;

(e) a exoneração do recorrido em 3/11/2021, onze meses antes das Eleições 2022, causou espécie tanto pelos fatores acima como também porque, nos termos do art. 1º, II, j, da LC 64/90, os membros do Ministério Público apenas precisam se afastar do cargo faltando seis meses para o pleito, isto é, somente em 2/4/2022.

Detalho cada uma dessas nuances.

Em primeiro lugar, a partir de informações fornecidas pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), não refutadas, verifica-se que o recorrido, ao tempo em que exercia o cargo de procurador da República, sofreu duas penalidades em 2019 no âmbito de dois processos administrativos disciplinares (PADs 1.00898/2018-99 e 1.00982/2019-48; IDs 158.592.466 e 158.592.465).

Nos processos em comento, já com trânsito em julgado, o CNMP aplicou duas sanções, uma de advertência e uma de censura.

Trata-se do primeiro elo da cadeia que culminou no pedido de exoneração do recorrido com o intuito de contornar a inelegibilidade da alínea q.

Com efeito, as sanções disciplinares aplicáveis aos membros do Ministério Público estão elencadas no art. 239 da LC 75/93 (Lei Orgânica do Ministério Público) e consistem, em ordem crescente de gradação, em advertência, censura, suspensão, demissão e cassação de aposentadoria ou de disponibilidade.

Tem-se, ainda, no art. 241 da LC 75/93, que “[n]a aplicação das penas disciplinares, considerar-se-ão os antecedentes do infrator, a natureza e a gravidade da infração, as circunstâncias em que foi praticada e os danos que dela resultaram ao serviço ou à dignidade da Instituição ou da Justiça”.

Desse modo, a partir do momento em que o recorrido foi inicialmente apenado com advertência e, logo a seguir, com censura (esta mais grave), não há dúvida de que, por expressa determinação legal, elas passariam a ser consideradas para futuros sancionamentos em processos administrativos de outras infrações disciplinares, aproximando-o da pena de demissão.

Aliás, após essas penalidades, o candidato ajuizou duas ações perante o Supremo Tribunal Federal visando revertê-las e, assim, evitar que fossem consideradas na apuração de outras condutas. Os pedidos nessas demandas foram julgados improcedentes (Pets 8.614 e 9.068), destacando-se a seguinte passagem da decisão monocrática da primeira delas, de relatoria do eminente Ministro Dias Toffoli:

[...] Assim, não havendo qualquer comprovação de inobservância do devido processo legal, de exorbitância das competências do CNMP e de injuridicidade ou de manifesta irrazoabilidade do ato impugnado, afigura-se totalmente descabida a tentativa de sua anulação (vide AO nº 1.789, da relatoria do Min. Roberto Barroso).

Ainda neste primeiro ponto, mencione-se que o recorrido não formulou pedido de desistência dessas ações e que, no andamento processual da Pet 8.614, consta a interposição de agravo interno em 31/3/2023 – mais de um ano após os fatos e, inclusive, depois de o recorrido ter sido eleito – contra essa decisão monocrática.

Em segundo lugar, observa-se que, ao tempo do pedido de exoneração do cargo de procurador da República, em novembro de 2021, tramitavam contra o recorrido 15 procedimentos administrativos de natureza diversa no CNMP, sendo nove Reclamações Disciplinares, uma Sindicância, um Pedido de Providências, três Recursos Internos em Reclamações Disciplinares e, ainda, uma Revisão de Decisão Monocrática de Arquivamento em Reclamação Disciplinar.

Todos esses procedimentos, como consequência do pedido de exoneração, foram arquivados, extintos ou mesmo paralisados, e, como se verá, a legislação e os fatos apurados poderiam perfeitamente levá-lo à inelegibilidade da alínea q do inciso I do art. 1º da LC 64/90.

Com efeito, de um lado, embora não se cuidassem de processos administrativos disciplinares (PAD) em sua acepção técnica, tem-se que, a partir das apurações nesses procedimentos, a posterior conversão ou instauração de PADs era a medida seguinte, consoante a legislação regulamentadora do CNMP.

De acordo com o art. 130-A, § 2º, da CF/88, incumbe ao CNMP “receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Ministério Público da União ou dos Estados, [...] podendo avocar processos disciplinares em curso, determinar a remoção ou a disponibilidade e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla defesa”.

Já o art. 77 do Regimento Interno do CNMP dispõe, quanto à revisão disciplinar (nove processos no caso dos autos), que o Corregedor Nacional poderá determinar a instauração de processo administrativo disciplinar, isto é, exatamente o procedimento que ensejaria a inelegibilidade caso o recorrido viesse a pedir exoneração durante sua pendência.

Quanto à sindicância, tal como acontece com a reclamação disciplinar, o Corregedor Nacional pode decidir pela instauração de processo administrativo disciplinar após encerrada a instrução e elaborado relatório conclusivo (art. 84 do RI-CNMP).

Ademais, importa salientar a previsão do art. 139 do RI-CNMP, de que, “[v]erificando-se que o objeto do procedimento se adéqua a outro tipo processual, o Relator solicitará a sua reautuação, seguindo o procedimento de conformidade com a nova classificação”.

Além disso, e sem nenhuma margem de dúvida, constata-se a gravidade dos fatos imputados ao ora recorrido nesses procedimentos. Não se cuida, aqui, de invadir a competência de outros órgãos e firmar a materialidade e a ilicitude das condutas, mas de reforçar que o pedido de exoneração teve propósito claro e específico de burlar a incidência da inelegibilidade.

Menciono, dentre os fatos constantes dos 15 procedimentos administrativos, alguns deles:

(a) procedimentos que versavam sobre infração do dever de guardar segredo sobre tema sigiloso de que se conheça em razão do cargo ou função (art. 236, II, da LC 75/93), punível com demissão, nos termos do art. 240, V, f, da LC 75/93:

(a.1) Reclamação Disciplinar 1.00441.2020-90: instaurada para apurar novas mensagens divulgadas pelo periódico eletrônico The Intercept, que revelariam que o recorrido e outros procuradores da Operação Lava Jato teriam atuado de forma ilegal no compartilhamento de informações e em diligências com agências policiais estrangeiras. Não houve decisão;

(a.2) Reclamação Disciplinar 1.001382021-04: objeto similar. Não houve decisão;

(a.3) Reclamação Disciplinar 1.00099.2021-08: formulada pelo Presidente do Superior Tribunal de Justiça para, em contexto similar, apurar infrações funcionais do recorrido e de outros procuradores da Operação Lava Jato. Não teve andamento após a juntada da portaria de exoneração;

(a.4) Sindicância 1.00145.2020-16: instaurada pelo Corregedor Nacional do CNMP com base na Reclamação Disciplinar n. 1.00834/2019-97, que apurava potencial violação ao dever de resguardo de informações e relações protegidas por sigilo profissional pelos coordenadores da Operação Lava Jato. Não havia relatório conclusivo no momento da exoneração;

(b) Reclamação Disciplinar 1.00232.2021-18: instaurada a partir do Pedido de Providências 1.00723/2019-53 para apurar ato de improbidade administrativa e lesão aos cofres públicos, puníveis com demissão (art. 240, V, a e b, da LC 75/93). Os fatos dizem respeito à celebração, pelo recorrido, como coordenador da Operação Lava Jato, de acordo de assunção de dívidas com a Petrobrás cuja ilegalidade foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 568. O feito foi arquivado ante a exoneração;

(c) Reclamação disciplinar 1.00484.2020-39: instaurada para apurar infração aos deveres de tratar com urbanidade as pessoas com as quais se relacione em razão do serviço e do decoro pessoal (art. 236, VIII e X, da LC 75/93), da mesma natureza daquela que já havia ensejado a aplicação de penalidade de advertência no PAD 1.00898/2018-99. A apuração originou-se de postagens do recorrido, na data de 21/7/2020, em sua conta pessoal na rede social Twitter, com críticas a uma decisão judicial do então Presidente da Suprema Corte. Arquivada diante do pedido de exoneração.

É indiscutível, como se vê, que não se trata no caso de procedimento administrativo isolado ou fundado em condutas de menor gravidade.

Ao contrário, foram inúmeras as apurações iniciadas com esteio em indicações robustas de práticas irregulares, que, inclusive, ensejaram provocação ao CNMP por diversas autoridades da República (como parlamentares e Ministros de Tribunais Superiores), e que potencialmente ensejariam processos administrativos disciplinares com eventual penalidade de demissão caso o recorrido não tivesse requerido de forma antecipada sua exoneração.

Em outras palavras, esse conjunto de elementos demonstra que o recorrido estava plenamente ciente de que a instauração de novos processos administrativos disciplinares em seu desfavor, culminando em ulterior e eventual demissão, não era apenas uma hipótese remota, mas uma possibilidade concreta.

Em terceiro lugar, um dos procuradores da República que atuou com o recorrido na Operação Lava Jato sofreu penalidade de demissão em 18/10/2021, no âmbito de processo administrativo disciplinar instaurado pelo CNMP a partir de anterior reclamação disciplinar.

O fato que ensejou a mencionada sanção consistiu na contratação e instalação, pelo então procurador, de outdoor em homenagem à Operação Lava Jato na cidade de Curitiba/PR, contendo fotografia na qual o recorrido também aparece, concluindo-se pela prática de ato de improbidade administrativa.

Essa circunstância, isoladamente, não teria maior liame com o caso dos autos se não fosse o quarto elemento revelador da fraude, qual seja, o fato de o recorrido ter sido exonerado a pedido próprio apenas 16 dias depois, em 3/11/2021.

Em quinto e último lugar, a mencionada exoneração do recorrido, ainda faltando onze meses para as Eleições 2022, ganha relevância no contexto da fraude à lei.

Com efeito, na linha do art. 1º, II, j, da LC 64/90, os membros do Ministério Público que pretendam se candidatar só precisam se exonerar faltando seis meses para o pleito, o que, para as Eleições 2022, recaiu na data de 2/4/2022.

Mais uma vez, trata-se de aspecto que, de modo isolado, não seria capaz por si só de evidenciar fraude à lei. Contudo, na somatória de todo o entrelaçamento dos fatos apresentados na espécie, representa mais uma face da conduta de frustrar a aplicação da lei eleitoral.

Acerca de todos esses cinco elementos, impende salientar que, nos termos do art. 23 da LC 64/90, “o Tribunal formará sua convicção pela livre apreciação dos fatos públicos e notórios, dos indícios e presunções e prova produzida, atentando para circunstâncias ou fatos, ainda que não indicados ou alegados pelas partes, mas que preservem o interesse público de lisura eleitoral”.

Trata-se de dispositivo cuja constitucionalidade foi expressamente reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal em sede de controle concentrado, como se vê abaixo:

PROCESSO – ELEITORAL – ARTIGO 23 DA LEI COMPLEMENTAR Nº 64/90 – JUIZ – ATUAÇÃO.

Surgem constitucionais as previsões, contidas nos artigos 7º, parágrafo único, e 23 da Lei Complementar nº 64/90, sobre a atuação do juiz no que é autorizado a formar convicção atendendo a fatos e circunstâncias constantes do processo, ainda que não arguidos pelas partes, e a considerar fatos públicos e notórios, indícios e presunções, mesmo que não indicados ou alegados pelos envolvidos no conflito de interesses.

(ADI 1.082, Rel. Min. Marco Aurélio, DJE de 29/10/2014) (sem destaque no original)

Constata-se, assim, que o recorrido agiu para fraudar a lei, uma vez que praticou, de forma capciosa e deliberada, uma série de atos para obstar processos administrativos disciplinares contra si e, portanto, elidir a inelegibilidade.

Dito de outro modo, o candidato, para impedir a aplicação da inelegibilidade do art. 1º, I, q, da LC 64/90, antecipou sua exoneração em fraude à lei.

É importante reiterar: a inelegibilidade em apreço aplica-se no caso dos autos não com base em hipótese não prevista na LC 64/90, o que não se admite na interpretação de disposições legais restritivas de direitos.

Na verdade, o óbice incide porque o recorrido, em fraude à lei, utilizou-se de subterfúgio na tentativa de se esquivar dos termos da alínea q, vindo a se exonerar do cargo de procurador da República antes do início de processos administrativos envolvendo condutas na Operação Lava Jato.

Por conseguinte, valendo-me das palavras do eminente Ministro Eros Grau, cumpre à Justiça Eleitoral afastar o erro, ou seja, desconsiderar, na seara eleitoral, a eficácia do ato praticado unicamente para afastar a inelegibilidade.

1.3. Não Aplicação do Princípio da Segurança Jurídica no Caso dos Autos (Art. 16 da CF/88; REspEl 0600957-30/PR)

O recorrido, em contrarrazões, aduz a impossibilidade de negativa da sua candidatura também com justificativa na segurança jurídica.

A esse respeito, sustenta que, no REspEl 0600957-30/PR, Rel. Min. Raul Araújo, publicado em sessão em 15/12/2022, esta Corte decidiu que a inelegibilidade do art. 1º, I, q, da LC 64/90 não incidiria em hipótese extremamente similar à dos autos, envolvendo o registro de candidatura de Sergio Moro ao cargo de senador também pelo Paraná nas Eleições 2022.

Assim, entende o recorrido ser incabível aplicar, no contexto de uma mesma eleição, posições diametralmente opostas.

Entretanto, a irresignação não merece prosperar por duas razões fundamentais interligadas, uma de ordem jurídica e outra de caráter fático.

Rememoro de início que, nesse precedente, decidiu-se que a expressão “processo administrativo disciplinar”, contida na parte final da alínea q, não pode ser interpretada extensivamente para abranger outros procedimentos como o Pedido de Providências e a Reclamação Disciplinar. Confira-se, no ponto, trecho esclarecedor da ementa do Relator:

[...]

11. Não há falar na incidência da causa de inelegibilidade delineada no art. 1º, I, q, da LC nº 64/1990. Articula-se tal tese por força do pedido de exoneração da magistratura federal formulado pelo recorrido, ainda na pendência de pretensos expedientes disciplinares instaurados no CNJ.

12. Os preditos expedientes correram sob a forma de Pedido de Providências e de Reclamação Disciplinar. É forçosa, portanto, a conclusão pela ausência de instauração de Processo Administrativo Disciplinar, elementar reclamada pela legislação eleitoral para a configuração do impedimento temporário. Isso porque não é qualquer espécie de procedimento disciplinar que leva à aplicação de penalidades ao magistrado.

13. É iterativa a jurisprudência deste Tribunal Superior no sentido de que normas delineadas na Lei de Inelegibilidade (LC nº 64/1990), por serem de ordem restritiva, também devem ser interpretadas restritivamente, sob pena de se incorrer em indevida analogia, desnaturando o comando legal. Precedentes.

(sem destaques no original)

No presente caso, todavia, o cerne da controvérsia não reside neste ponto. Não se pretende na espécie revisitar a tese da necessidade de processo administrativo disciplinar (PAD), em sentido estrito, para atrair a inelegibilidade.

O que se discute, no presente julgamento, é a prática de um ato – pedido voluntário de exoneração – anterior à própria instauração dos processos administrativos e que teve como propósito frustrar, em manifesto abuso de direito, a incidência do regime de inelegibilidades.

Em outras palavras, o objeto da controvérsia em apreço não é, como quer fazer crer o recorrido, a possibilidade ou não de se conferir interpretação ampliativa ao termo “processo administrativo disciplinar”. O que aqui se tem é uma conduta anterior e contrária ao Direito para evitar a instauração desses processos, ou seja, fraude à lei.

Entrelaçada a essa primeira constatação, também se observa que no mencionado precedente restou claro não ter havido qualquer fraude pelo candidato ao cargo de senador naquela oportunidade.

Ao contrário, extrai-se de forma clara do acórdão paradigma que aquele candidato pediu exoneração da magistratura para exercer cargo na equipe de transição do presidente da República eleito em 2018 e, posteriormente, assumir o Ministério da Justiça e Segurança Pública, não se tendo notícia naqueles autos de manobra para burlar a inelegibilidade.

Assim destacou o eminente Ministro Raul Araújo no REspEl 0600957-30/PR:

[...] Nesse norte, é de conhecimento geral que a razão pela qual optou o recorrido por seu afastamento definitivo da atividade jurisdicional foi de caráter eminentemente político (e não de cunho funcional-disciplinar), a fim de poder se dedicar a futuro cargo público no Executivo Federal.

Isso porque o recorrido foi convidado pelo então recém-eleito Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, a exercer cargo na equipe de transição, a fim de, ulteriormente, assumir o cargo de Ministro da Justiça e Segurança Pública.

Não há falar, portanto, em afronta à segurança jurídica, haja vista a incontroversa ausência de similitude fática e jurídica entre as hipóteses.

Concluído o exame da inelegibilidade do art. 1º, I, q, da LC 64/90, passo à segunda inelegibilidade aventada no caso dos autos.

2. Inelegibilidade por Rejeição de Contas Públicas (Art. 1º, I, g, da LC 64/90)

Consoante o art. 1º, I, g, da LC 64/90, são inelegíveis, para qualquer cargo, os candidatos que tiverem contas rejeitadas quanto ao exercício de cargo ou função pública, mediante decisum irrecorrível do órgão competente, em decorrência de falha insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa. Confira-se:

Art. 1º São inelegíveis:

I – para qualquer cargo:

[...]

g) os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se esta houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes, contados a partir da data da decisão, aplicando-se o disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição;

[...]

Inicialmente, verifica-se que, de fato, o recorrido teve contas públicas rejeitadas, em tomada de contas especial do Tribunal de Contas da União, na condição de coordenador da Operação Lava Jato, por irregularidades no pagamento de diárias e passagens a membros do Ministério Público Federal que atuaram na referida força-tarefa, o que ocasionou dano ao erário de R$ 2.831.808,53 (ID 158.592.302).

Contudo, é indene de dúvida que os efeitos desse pronunciamento foram suspensos mediante tutela de urgência concedida em 18/9/2022 nos autos de demanda proposta perante a 6ª Vara Federal de Curitiba, como se verifica da seguinte passagem (processo 5053024-83.2022.4.04.7000; ID 158.592.480):

[...]

3. Diante das manifestas ilegalidades acima apontadas, não me resta outra alternativa a não ser deferir a liminar, sobretudo porque o prazo recursal encerra-se na próxima segunda-feira. Além disso, e conforme assinalado na inicial, já “se noticia a intenção da Corte de Contas de julgar eventual recurso do Autor em cerca de 30 (trinta) dias contados do Acórdão nº 4117/2022-2ªCâmara, mesmo antes de ter sido interposto recurso de reconsideração pelo ex-membro do Ministério Público. (...) Logo, antes mesmo de o Autor apresentar seu recurso, já se debate a possibilidade de o ex-membro do Ministério Público Federal se tornar inelegível nas próximas semanas, situação que mais uma vez atesta o perigo da demora ensejador da tutela liminar requerida, haja vista a necessidade de atuação urgente em defesa dos direitos do Sr. Deltan Martinazzo Dallagnol.”

Por isso, determino a imediata suspensão do Acórdão nº 4117/2022-2ªCâmara, complementado pelo Acórdão 5040/2022- 2ªCâmara e de seus efeitos, inclusive do prazo para a elaboração do Recurso, até o julgamento desta ação.

[...]

(sem destaques no original)

Ademais, o agravo de instrumento interposto pela União (AI 5044896-25.2022.4.04.0000) contra o referido decisum liminar não foi recebido com efeito suspensivo. Confira-se (ID 158.592.596):

Desse modo, tendo em vista os princípios do contraditório e do colegiado, não é o caso de ser concedida a medida liminar requerida pela parte agravante, sendo que a presença ou não dos requisitos para a concessão de medida liminar pelo Juízo “a quo” será examinada por ocasião do voto a ser levado ao Colegiado desta 12ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.

Ante o exposto, indefiro o pedido de atribuição de efeito suspensivo.

(sem destaques no original)

Assim, incide no caso o art. 11, § 10, da Lei 9.504/97, segundo o qual “as condições de elegibilidade e as causas de inelegibilidade devem ser aferidas no momento da formalização do pedido de registro da candidatura, ressalvadas as alterações, fáticas ou jurídicas, supervenientes ao registro que afastem a inelegibilidade”.

Ademais, não cabe à Justiça Eleitoral exercer juízo de valor no sentido do acerto ou do desacerto dessas decisões, sob pena de invadir a competência de outros órgãos jurisdicionais. Nesse sentido:

ELEIÇÕES 2020. RECURSO ESPECIAL. REGISTRO DE CANDIDATURA. PREFEITO. INELEGIBILIDADE (ITEM 3 DA ALÍNEA E DO INCISO I DO ART. 1º DA LC 64/90). EXCLUDENTE. ART. 1º, § 4º, DA LC 64/90. INFRAÇÃO DE MENOR POTENCIAL OFENSIVO. CONCEITO. STJ. COMINAÇÃO DE MULTA ALTERNATIVAMENTE À PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE.

[...]

8. Nos termos da Súmula 41/TSE, não cabe à Justiça Eleitoral decidir sobre o acerto ou o desacerto das decisões proferidas por outros órgãos do Judiciário ou daquelas prolatadas pelos tribunais de contas que configurem causa de inelegibilidade.

[...]

(REspEl 0600084-15/MG, Rel. Min. Sérgio Banhos, DJE de 14/3/2023) (sem destaque no original)

Na mesma linha, o parecer da d. Procuradoria-Geral Eleitoral (ID 158.651.420):

A decisão do Poder Judiciário suspendendo os efeitos da rejeição de contas impede a caracterização da inelegibilidade em apreço. A jurisprudência do TSE é firme a esse respeito [...]

A existência, no TRF-4, do agravo de instrumento com pedido de efeito suspensivo (autos n. 50448962520224040000) interposto pela União Federal em 24 de outubro de 2022, não é suficiente para neutralizar o efeito da suspensão judicial dos efeitos da condenação pelo Tribunal de Contas. Não se exige, como visto no precedente acima, que a decisão judicial se tenha tornado definitiva para que o registro de candidatura se isente dos efeitos da deliberação da Corte de Contas. Além disso, os autos não dão notícia de deferimento da suspensão de liminar ocorrido antes da diplomação. Assim, estando vigente a tutela provisória que suspendeu a rejeição das contas, a inelegibilidade em causa não recai sobre o recorrido.

(sem destaques no original)

Desse modo, estando vigente a tutela provisória que suspendeu a rejeição das contas, não há falar em “decisão irrecorrível do órgão competente”, como exigido na alínea g, motivo pelo qual não incide a inelegibilidade em comento.

Mantém-se, no ponto, o acórdão regional.

3. Conclusão

Ante o exposto, dou provimento aos recursos ordinários para indeferir o registro de candidatura de Deltan Martinazzo Dallagnol ao cargo de deputado federal pelo Paraná nas Eleições 2022.

No que se refere à destinação dos votos dados ao recorrido, verifica-se que, na data do pleito (2/10/2022), o registro de candidatura ainda não havia sido julgado pelo TRE/PR, o que ocorreu somente em 20/10/2022. Incide, assim, o art. 20, III c/c § 2º, da Res.-TSE 23.677/2021, mantendo-se o cômputo dos votos em favor da legenda do candidato. No mesmo sentido, ADI 4.513, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, sessão plenária virtual de 31/3/2023 a 12/4/2023.

De outra parte, comunique-se ao TRE/PR para fim de imediata execução deste acórdão, independentemente de publicação, nos termos da jurisprudência desta Corte (nesse sentido, dentre outros: REspEl 0600084-15/MG, Rel. Min. Sérgio Banhos, DJE de 14/3/2023; RO-El 0603975-98/PR, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJE de 10/12/2021).

É como voto.

O SENHOR MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES (presidente): Agradeço ao eminente Ministro Relator, Ministro Benedito Gonçalves, que deu provimento aos recursos ordinários.

 

MATÉRIA DE FATO

 

O SENHOR MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES (presidente): Doutor Leandro Souza Rosa, é questão de fato?

O DOUTOR LEANDRO SOUSA ROSA (advogado): Questão de fato, Senhor Presidente.

O SENHOR MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES (presidente): Por favor.

O DOUTOR LEANDRO SOUSA ROSA (advogado): Só a referência feita a quinze processos pendentes. Eu só queria esclarecer que eram processos anteriores ao apenamento dos dois PAD’s. Portanto, por força da Lei Complementar 75, não consumavam reincidência, art. 240.

O SENHOR MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES (presidente): Agradeço, Doutor.

Há alguma divergência?

 

VOTO

 

O SENHOR MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES (presidente): Senhores Ministros, trata-se de registro de candidatura de Deltan Martinazzo Dallagnol, Deputado Federal eleito em 2022.  

Em 20/10/2022, o Tribunal Regional Eleitoral do Paraná deferiu o registro do candidato, nos seguintes termos:

REGISTRO DE CANDIDATURA. AÇÕES DE IMPUGNAÇÃO. ARTIGO 1º, INCISO I, ALÍNEA “G”, DA LEI COMPLEMENTAR N. 64/1990. REJEIÇÃO DE CONTAS PELO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. ACÓRDÃO SUSPENSO POR DECISÃO LIMINAR PROFERIDA PELA JUSTIÇA FEDERAL. AUSENTE REQUISITO OBRIGATÓRIO. INELEGIBILIDADE AFASTADA. ARTIGO 1º, INCISO I, ALÍNEA “Q”, DA LEI COMPLEMENTAR N. 64/90. NORMA RESTRITIVA. INTERPRETAÇÃO ESTRITA. AUSÊNCIA DE PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR STRICTO SENSU NO MOMENTO DO PEDIDO DE EXONERAÇÃO. INELEGIBILIDADE AFASTADA. ARTIGO 14, § 9º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. EFICÁCIA LIMITADA. NORMA NÃO AUTOAPLICÁVEL. INELEGIBILIDADE AFASTADA. CONDENAÇÃO EM LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. PEDIDO INDEFERIDO. AÇÕES DE IMPUGNAÇÃO AO REGISTRO DE CANDIDATURA JULGADAS IMPROCEDENTES. REGISTRO DE CANDIDATURA DEFERIDO.

1. O artigo 1º, inciso I, alínea “g”, da Lei Complementar n. 64/1990 exige, para a sua configuração, a presença cumulativa dos seguintes requisitos: a) exercício de cargo ou função pública; b) rejeição das contas pelo órgão competente; c) insanabilidade da irregularidade verificada; d) ato doloso de improbidade administrativa; e) irrecorribilidade do pronunciamento de desaprovação das contas; e f) inexistência de suspensão ou anulação judicial do aresto de rejeição das contas.

2. O provimento liminar de suspensão dos efeitos do acórdão desaprovador de contas afasta a inelegibilidade prevista no artigo 1º, inciso I, alínea “g”, da Lei Complementar n. 64/1990, eis que ausente um dos pressupostos essenciais para sua caracterização, sendo desnecessária aferir a presença dos demais requisitos.

3. Para configuração da inelegibilidade prevista no artigo 1º, inciso I, alínea “q”, da Lei Complementar n. 64/1990 é necessário que, ao tempo do pedido de exoneração do cargo, o membro do Ministério Público esteja respondendo a processo administrativo disciplinar stricto sensu, entendido como aquele do qual possa resultar aplicação de sanção administrativa legalmente prevista, com garantia do devido processo legal.

4. As normas que restringem direitos fundamentais, como é o caso das inelegibilidades, que limitam a capacidade eleitoral, devem ser interpretadas de modo estrito, a fim de que alcancem, tão somente, as situações expressamente positivadas, garantindo a máxima efetividade do respectivo direito.

5. O artigo 14, § 9º, da Constituição Federal é norma constitucional de eficácia limitada, na medida em que não produz efeitos concretos, enquanto o legislador ordinário não estabelecer outras causas de inelegibilidade por meio de lei complementar.

6. Incabível a análise da incidência dos parâmetros abstratos postos no artigo 14, § 9º, da Constituição Federal, como a moralidade e a probidade, com o suposto intuito de configurar possível causa de inelegibilidade, pois cumpre a esta Justiça Especializada tão somente subsumir os fatos apresentados às hipóteses objetivas de inelegibilidade previstas na Lei Complementar n. 64/1990.

7. Não há se falar em litigância de má-fé, em razão do exercício do direito de petição, a partir de premissa jurídica equivocada, de modo que não merece acolhimento o pedido de condenação a esse título.

8. Ações de impugnação ao registro de candidatura julgadas improcedentes. Registro de candidatura deferido.

A Federação Brasil da Esperança interpôs recurso ordinário, no qual sustenta, em suma, a) a incidência da inelegibilidade prevista no art. 1º, I, q, da LC 64/1990, diante da “(1) pendência de julgamento de mérito em relação aos Processos Administrativos Disciplinares n. 1.00898/2018-99 (Pet. 8614/STF) e 1.00982/2019-48 (Pet. 9068/STF) em face de DELTAN DALLAGNOL; bem como das (2) numerosas investigações disciplinares instauradas para apurar condutas infracionais cometidas pelo ex-Procurador da República, as quais foram/serão arquivadas tão somente em razão da exoneração do IMPUGNADO, deixam apenas uma conclusão possível: o registro de DELTAN MARTINAZZO DALLAGNOL merece ser indeferido por esta D. Justiça Especializada”. No caso, “a preocupação do legislador em tornar inelegíveis aqueles que buscam burlar as normas eleitorais se exonerando antecipadamente não é exclusividade de magistrados ou membros do Ministério Público”. Ou seja, “haverá incidência da hipótese de inelegibilidade, mesmo que ocorra antes da instauração efetiva de procedimento administrativo disciplinar stricto sensu”.

Alega que os fatos evidenciam “(1) gravidade suficiente para ensejar a perda do cargo ou a aposentadoria compulsória, e (2) indícios de manobra de escape ‘ao crivo de procedimento de controle de responsabilidade política ou disciplinar’, mediante exoneração”. Além disso, “não há trânsito em julgado da decisão de mérito quanto à regularidade/irregularidade do Procedimento Administrativo Disciplinar” (Pets. 8614 e 9068, ambas em tramitação perante o STF).

Indica que o Recorrido ainda responde por 16 ações disciplinares perante o CNMP, todas de natureza grave, que ensejam o reconhecimento da sua restrição à capacidade eleitoral passiva, entre elas, “atos de improbidade administrativa; desvio de verbas públicas; violação ao dever de sigilo profissional; interceptações telefônicas ilegais; irregularidades em diárias concedidas na Operação Lava Jato; recebimento de recursos de empresas delatoras na Operação Lava Jato; recebimento de vantagens indevidas; quebra de decoro profissional”.

Soma-se aos fatos narrados a incidência da hipótese de inelegibilidade do art. 1º, I, alínea g, da LC 64/1990, pois, embora suspensos os efeitos do decreto condenatório que podem ser revistos a qualquer tempo, o Recorrido teve contas rejeitadas em Tomada de Contas pelo recebimento de “passagens, diárias e gratificações indevidas”.

De igual modo, o Partido da Mobilização Nacional, em suas razões recursais, defende que “ao Recorrido já haviam sido aplicadas duas penalidades diversas em Procedimentos Administrativos Disciplinares, de sorte que eventual nova condenação poderia ensejar sua exclusão dos quadros do Ministério Público Federal - sendo a sua exoneração anterior ao período necessário para sua candidatura demonstração clara de que não foi realizada apenas para concorrer ao pleito 2022, mas sim para se furtar de eventual punição”. Desse modo, incide o art. 1º, I, q, da Lei Complementar 64/1990.

O Vice-Procurador-Geral Eleitoral opina pelo desprovimento dos recursos ordinários.

É o relatório.

O caso importa o exame das inelegibilidades previstas no art. 1º, inciso I, alíneas q e g, da Lei Complementar 64/1990.

i. Art. 1º, inciso I, alínea q, da LC 64/1990

Nos termos do art. 1º, I, q, da LC 64/90, são inelegíveis os magistrados e os membros do Ministério Público que forem aposentados compulsoriamente por decisão sancionatória, que tenham perdido o cargo por sentença ou que tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar, pelo prazo de 8 (oito) anos.

O art. 242 da LC 75/1993 dispõe que “as infrações disciplinares serão apuradas em processo administrativo; quando lhes forem cominadas penas de demissão, de cassação de aposentadoria ou de disponibilidade, a imposição destas dependerá, também, de decisão judicial com trânsito em julgado”.

Já o art. 88 do CNMP estabelece, na mesma linha, que “o processo administrativo disciplinar, em que se assegurarão o contraditório e a ampla defesa, é o instrumento destinado a apurar a responsabilidade de membro ou servidor do Ministério Público por infração disciplinar.

Desse modo, descaberia o exame das reclamações disciplinares ou sindicâncias instauradas pelo CNMP em desfavor do candidato, por constituírem procedimentos prévios, assim conceituados pelo regimento interno do CNMP:

Art. 74 A reclamação disciplinar é o procedimento investigativo de notícia de falta disciplinar atribuída a membro ou servidor do Ministério Público, proposta por qualquer interessado, nos termos do artigo 130-A, § 2º, III e § 3º, I, da Constituição Federal.

[...]

Art. 81 A sindicância é procedimento investigativo sumário destinado a apurar irregularidades atribuídas a membro ou servidor do Ministério Público, com prazo de conclusão de trinta dias, contados da publicação da portaria inaugural, prorrogável, motivadamente, por prazo certo, a juízo do Corregedor Nacional, que disso dará ciência ao Plenário na sessão imediatamente após sua decisão. [Grifos nossos].

Idêntico entendimento foi recentemente chancelado pelo Plenário do TSE, nos autos do RO 0600957-30, de relatoria do Min. RAUL ARAÚJO, DJe de 15/12/2022.

A hipótese dos autos, entretanto, é diversa, pois patente o desvio de finalidade decorrente do pedido de exoneração do candidato Recorrido, publicado em 3/11/2021.

Qualquer restrição à capacidade eleitoral passiva obrigatoriamente deve ter substrato constitucional. O art. 14, § 9º, da Constituição Federal autoriza excepcionalmente o legislador ordinário a criar hipóteses de inelegibilidades, mediante limitações formal (Lei Complementar) e materiais (“proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta”). 

Em outras palavras, esse standard criado constitucionalmente paira sobre qualquer inelegibilidade. Assim, na interpretação da norma não é possível diminuir o seu campo de incidência, zelando, portanto, em aferir o conceito de probidade administrativa e a moralidade para exercício de mandato, considerada a vida pregressa do candidato, à luz do abuso do exercício de função, contido no art. 14, § 9º, da Constituição Federal.

Sob esse aspecto, pelo princípio da moralidade administrativa, não bastará o cumprimento da estrita legalidade; será imprescindível, no exercício de sua função pública, respeitar os princípios éticos de razoabilidade e Justiça, pois a moralidade constitui, a partir da Constituição de 1988, pressuposto de validade de todo ato da Administração Pública (BASTOS, Celso. O princípio da moralidade no direito público. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 6, n. 22, p. 44, jan./mar. 1998; AGUIAR, Joaquim Antonio Castro. O princípio da moralidade administrativa. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 6, n. 22, p. 265, jan./mar. 1998; MUKAI, Toshio. Da aplicabilidade do princípio da moralidade administrativa e do seu controle jurisdicional. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 1, n. 4, p. 211, jul./set. 1993).

O Poder Judiciário, ao exercer o controle jurisdicional, não se restringirá ao exame estrito da legalidade do ato administrativo, devendo entender por legalidade ou legitimidade não só a conformação do ato com a lei, como também com a moral administrativa e com o interesse coletivo, em fiel observância ao “senso comum de honestidade, equilíbrio e ética das Instituições”, como ensinado por MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO:

“não é preciso penetrar na intenção do agente, porque do próprio objeto resulta a imoralidade. Isto ocorre quando o conteúdo de determinado ato contrariar o senso comum de honestidade, retidão, equilíbrio, justiça, respeito à dignidade do ser humano, à boa-fé, ao trabalho, à ética das instituições. A moralidade exige proporcionalidade entre os meios e os fins a atingir (...); (se) o ato em si, o seu objeto, o seu conteúdo, contraria a ética da instituição, afronta a norma de conduta aceita como legítima pela coletividade administrada. Na aferição da imoralidade administrativa, é essencial o princípio da razoabilidade”. (Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988. São Paulo: Atlas, 1991. p. 111).

A obrigatoriedade de respeito ao princípio da moralidade por toda a Administração Pública foi consagrada pelo SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, como bem destacado pelo Ministro MARCO AURÉLIO, ao lembrar que:

“O agente público não só tem que ser honesto e probo, mas tem que mostrar que possui tal qualidade. Como a mulher de César” (RE 160.381/SP, SEGUNDA TURMA, DJ de 12/8/1994).

O Poder Judiciário, portanto, deverá exercer o juízo de verificação de exatidão do exercício da discricionariedade administrativa perante os princípios da administração pública (CF, art. 37, caput), verificando a realidade dos fatos e também a coerência lógica do ato administrativo com os fatos. Se ausente a coerência, o ato administrativo estará viciado por infringência ao ordenamento jurídico e, mais especificamente, ao princípio da proibição da arbitrariedade dos poderes públicos que impede o extravasamento dos limites razoáveis da discricionariedade, evitando que se converta em causa, de opções desprovidas de justificação fática e, consequentemente, arbitrárias, pois o exame da legalidade e moralidade, além do aspecto formal, compreende também a análise dos fatos levados em conta pelo membro do Ministério Público ao requerer sua exoneração.

Como salientam CANOTILHO e VITAL MOREIRA,

“como toda a actividade pública, a Administração está subordinada à Constituição. O princípio da constitucionalidade da administração não é outra coisa senão a aplicação, no âmbito administrativo, do princípio geral da constitucionalidade dos actos do Estado: todos os poderes e órgãos do Estado (em sentido amplo) estão submetidos às normas e princípios hierarquicamente superiores da Constituição”. (Constituição da República Portuguesa anotada. 3. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1993. p. 922).

Dessa forma, a Constituição Federal permite a apreciação dos atos administrativos discricionários pelo Poder Judiciário, quando o órgão administrativo utilizar-se de seu poder discricionário para atingir fim diverso daquele que a lei fixou, ou seja, quando, ao utilizar-se indevidamente dos critérios da conveniência e oportunidade, o agente desvia-se da finalidade de persecução do interesse público.

Nos atos discricionários, a opção conveniente e oportuna deve ser feita legal e moralmente pela Administração Pública, ou seja, é na legalidade e na moralidade que a oportunidade deve ser apreciada pelo Poder Judiciário.

GEORGES VEDEL aponta, em relação a todos os atos administrativos discricionários, a existência de um controle judicial mínimo, que deverá ser realizado sob o ângulo de seus elementos, pois, embora possa haver competência do agente, é preciso, ainda, que os motivos correspondam aos fundamentos fáticos e jurídicos do ato, e o fim perseguido seja constitucional e legal (Droit administratif. Paris: Presses Universitaries de France, 1973. p. 320).

O Estado de Direito exige a vinculação das autoridades ao Direito, e, portanto, os motivos que ensejaram o pedido de exoneração devem respeito aos princípios constitucionais regentes da Administração Pública, podendo, excepcionalmente nesse aspecto, o Poder Judiciário analisar a veracidade dos pressupostos fáticos para a sua celebração (motivo).

Conforme ensina SEABRA FAGUNDES, “a atividade administrativa sendo condicionada, pela lei, à obtenção de determinadas consequências, não pode o administrador, ao exercê-la, ensejar consequências diversas das visadas pelo legislador. Os atos administrativos devem procurar atingir as consequências que a lei teve em vista quando autorizou a sua prática, sob pena de nulidade.[...] A lei previu que o ato fosse praticado visando a certa finalidade, mas a autoridade o praticou com finalidade diversa. Houve uma burla da intenção legal. A autoridade agiu contrariando o espírito da lei” (FAGUNDES, M. Seabra. O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário. Rio de Janeiro: Forense, 1967, p. 78-79).

A JUSTIÇA ELEITORAL, portanto, tem o dever de analisar se determinado pedido de afastamento definitivo dos quadros públicos, no exercício do direito legalmente conferido ao membro do MP, está vinculado ao império constitucional, uma vez que a opção conveniente e oportuna para o requerimento deve ser feita legal e moralmente pelo agente, podendo sua constitucionalidade ser apreciada pelo Poder Judiciário, pois, na sempre oportuna lembrança de ROSCOE POUND,

“a democracia não permite que seus agentes disponham de poder absoluto” (Liberdade e garantias constitucionais. Ibrasa: São Paulo, 1976, p. 83).

Nesse contexto, o candidato tinha, à época, contra si 52 (cinquenta e dois) procedimentos administrativos e, atualmente, 16 (dezesseis) ainda pendentes de exame definitivo.

Somam-se a isso dois processos administrativos (1.00898/2018-99 e 1.00982/2019-48), ambos sob discussão perante o STF (Pet 8614, de relatoria do Min. LUIZ FUX, e Pet 9068, de relatoria do Min. NUNES MARQUES, respectivamente), nos quais condenado às penas de censura e advertência, respectivamente.

A partir da cronologia dos fatos, fica evidente que a exoneração do Recorrido teve como único propósito afastar a inelegibilidade prevista no art. 1º, I, q, da LC 64/1990, o que, à vista dos preceitos constitucionais é incabível, caracterizada clara fraude à lei.

No caso, conforme consta do voto do e. Relator, o pedido de exoneração veio logo após a imposição de pena de demissão a seu colega, Sr. Diogo Mattos Castor, por fato do qual o próprio candidato teve participação, porque figurava em outdoor em homenagem à Operação Lava Jato.

Além disso, o recorrido já havia sido condenado à pena de censura e advertência e pretendeu evitar a instauração de outro processo, cuja sanção imposta seria mais rigorosa, conforme se depreende do art. 239 da LC 75/1993:

 Art. 240. As sanções previstas no artigo anterior serão aplicadas:

I - a de advertência, reservadamente e por escrito, em caso de negligência no exercício das funções;

II - a de censura, reservadamente e por escrito, em caso de reincidência em falta anteriormente punida com advertência ou de descumprimento de dever legal;

III - a de suspensão, até quarenta e cinco dias, em caso de reincidência em falta anteriormente punida com censura;

IV - a de suspensão, de quarenta e cinco a noventa dias, em caso de inobservância das vedações impostas por esta lei complementar ou de reincidência em falta anteriormente punida com suspensão até quarenta e cinco dias;

V - as de demissão, nos casos de:

     a) lesão aos cofres públicos, dilapidação do patrimônio nacional ou de bens confiados à sua guarda;

     b) improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4º, da Constituição Federal;

     c) condenação por crime praticado com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública, quando a pena aplicada for igual ou superior a dois anos;

     d) incontinência pública e escandalosa que comprometa gravemente, por sua habitualidade, a dignidade da Instituição;

     e) abandono de cargo;

     f) revelação de assunto de caráter sigiloso, que conheça em razão do cargo ou função, comprometendo a dignidade de suas funções ou da justiça;

     g) aceitação ilegal de cargo ou função pública;

     h) reincidência no descumprimento do dever legal, anteriormente punido com a suspensão prevista no inciso anterior;

VI - cassação de aposentadoria ou de disponibilidade, nos casos de falta punível com demissão, praticada quando no exercício do cargo ou função.

De forma bastante similar, o art. 241 ainda prevê que “considerar-se-ão os antecedentes do infrator, a natureza e a gravidade da infração, as circunstâncias em que foi praticada e os danos que dela resultaram ao serviço ou à dignidade da Instituição ou da Justiça”.

Ou seja, à época dos fatos, além dos dois processos administrativos já julgados, o candidato ainda respondia a outros 52 (cinquenta e dois) procedimentos administrativos de natureza grave.

Para além disso, o largo período em que a exoneração foi requerida, 3/11/2021, demonstra a intenção do Recorrido de que nenhum dos procedimentos prévios (entre sindicâncias e reclamações) pudesse motivar a instauração de processo administrativo, o que, de fato, possibilitaria a instauração de ação interna cuja sanção máxima seria de demissão. O pedido de exclusão dos quadros, portanto, impediu que os procedimentos já inaugurados seguissem seu curso comum, inclusive com a instauração de processos administrativos.

Tal condição está plenamente comprovada a partir do vídeo publicado pelo próprio candidato em 4/11/2021, um dia após a sua exoneração, cujo conteúdo possui nítidos contornos eleitorais, sendo, diante da notoriedade do fato, plenamente válida sua utilização no presente julgamento (https://www.youtube.com/watch?v=FlQiQPDk5_U):

Olá pessoal! Eu tô pedindo meu desligamento definitivo do ministério público e nesse vídeo eu quero colocar o porquê para você que tem criado comigo uma Jornada Contra a corrupção ao longo dos últimos anos. Desde a faculdade eu carrego comigo em sonho de um país mais justo e melhor e eu encontrei Ministério Público caminho para construir esse sonho fazendo lá o trabalho técnico e amor ao próximo e em serviço à sociedade e ao longo de 18 anos. Foi esse mesmo sonho que me motivou a dar o meu melhor na operação lava-jato e quando ela estava nas ruas nós alcançamos juntos, com o seu apoio, algo inédito no Brasil: bilhões foram recuperados e por um momento, por um momento, aqueles que nos roubam há décadas foram punidos pelos seus crimes. Ela nos trouxe esperança de que nós podemos sim construir um país mais justo e melhor em que a lei vale para todos em todos os momentos, em que os impostos são investidos na educação, na saúde, na segurança e na nossa prosperidade como nação. Contudo, nos últimos anos, nós passamos a sofrer muitos retrocessos no combate à corrupção. Nós vemos notícias cada vez piores sobre processos anulados, leis desfiguradas e corruptos alcançando a impunidade. A sensação é de que o que nós fizemos está sendo desfeito e a impunidade dá uma carta branca para que quem nos rouba continue roubando. Isso precisa parar! Esse momento difícil nos desafia a fazer tudo o que está ao nosso alcance e pelos democráticos para desfazer os retrocessos do combate à corrupção e restaurar a Justiça. Nós precisamos manter a esperança viva e lutar pela transformação que nós queremos. Essa decisão de sair do Ministério Público não foi fácil. Eu tenho muito orgulho do Ministério Público e do trabalho que ele faz pela sociedade brasileira em diferentes áreas. Contudo, os nossos instrumentos de trabalho para alcançar a Justiça vem sendo enfraquecidos, destruídos, e nós temos sido impedidos até mesmo de comunicar a sociedade, envolver a sociedade nesse debate por meio da opinião e da crítica. Por isso, eu creio que agora eu posso fazer mais pelo país, fora do Ministério Público, lutando com mais liberdade pelas causas que eu acredito. Às vezes é necessário dar um passo de fé na direção dos nossos sonhos. Eu tenho várias ideias sobre como que eu posso contribuir e eu serei capaz avaliar, refletir e orar sobre essas ideias depois de eu sair do Ministério Público. Assim que essas ideias se concretizarem em plano e ações, eu vou compartilhar com vocês por aqui, porque a transformação só virá pela soma dos nossos esforços. Nesse momento eu quero que você guarde isso na sua mente e no seu coração: nós podemos sim transformar o Brasil por meio do exercício da cidadania, do voto consciente e da participação de cada um de nós na solução dos problemas sociais. Me siga nas redes sociais para continuar recebendo informações sobre como nós podemos juntos fazer essa transformação que nós sonhamos no nosso país.

Não é possível o afastamento dos quadros da Administração cuja finalidade seja atentar contra a moralidade administrativa, em franco desvio de finalidade da norma eleitoral.

A inelegibilidade “é um impedimento de ordem pública que visa, sobretudo, a moralização do voto e o interesse social, amparando consequentemente dita ordem pública. Daí a importância que as Constituições ou as legislações eleitorais lhe atribuem por toda a parte e em diversas épocas” (FERREIRA, Pinto. O problema da inelegibilidade. Revista Forense, vol. 186, ano 56, nov./dez., 1959, p. 20-28).

Tal como bem enfatizou o eminente Ministro JOAQUIM BARBOSA, as causas de inelegibilidade da LC 64/90, notadamente com as alterações da LC 135/2010, devem ser interpretadas “sob a ótica da valorização da moralidade e da probidade no trato da coisa pública, sob a ótica da proteção ao interesse público, e não para o fim de proteção preferencial ao interesses puramente individuais e privados. [...] Nessa ordem de ideias, incumbe sempre dar prevalência à ótica interpretativa que privilegie a proteção dos interesses maiores de toda a coletividade, que afirme a probidade e a moralidade administrativas como valores superiores da nossa polis, que coíba o abuso no exercício de funções públicas, pois são estes vetores, em última análise, os mais elevados valores a serem preservados quando se tem em jogo o exercício dos direitos políticos, especialmente na perspectiva passiva” (ADI 4.578, Rel. Min. LUIZ FUX, Voto Min. JOAQUIM BARBOSA, Pleno, DJe de 29/6/2012).

A exoneração, para fins eleitorais, visa resguardar a imparcialidade do agente público, que deve estar a serviço da “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (art. 127 da Constituição), o que patente não estar mais acondicionado o Recorrido, tendo em vista a circunstância de que a ordem jurídica e a interpretação das causas de inelegibilidade da LC 64/90 não autorizam que agentes públicos, visando à futura disputa a cargo eletivo, adotem comportamentos e subterfúgios com a finalidade de, por via oblíqua, afastar a restrição à sua capacidade eleitoral passiva, frustrando a legítima aplicação da lei e, consequentemente, subvertendo os princípios que lhe conferem respaldo.

Assim, “a ordem jurídica não pode permanecer indiferente a condutas de quaisquer autoridades da República, inclusive juízes, que hajam eventualmente incidido em reprováveis desvios éticos no desempenho da elevada função de que se acham investidas. O sistema democrático e o modelo republicano não admitem nem podem tolerar a existência de regimes de governo sem a correspondente noção de fiscalização e de responsabilidade, que representam fatores de preservação da ordem democrática e que constituem elementos de concretização da ética republicana, por cuja integridade todos, sem exceção, devemos velar, notadamente aqueles investidos em funções no aparelho de Estado, quer no plano do Poder Executivo, quer na esfera do Poder Legislativa, quer, ainda, no âmbito do Poder Judiciário” (MS 28.891-MC-AgR, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno, DJe de 26/11/2012).

No momento em que o promotor atenta contra a independência, a imparcialidade e a moralidade, fica evidente o desvio de finalidade da norma eleitoral, havendo, para tanto, o extravasamento dos limites razoáveis do exercício da discricionariedade.

Na hipótese, o candidato foi mais além, diante de confissão expressa do desvio de finalidade, ao justificar seu pedido de afastamento definitivo dos quadros com nítido propósito eleitoral, fato esse concretizado posteriormente com sua filiação partidária e lançamento de candidatura.  

Aliás, a condição de pré-candidato foi amplamente noticiada nos meios de comunicação:

https://oglobo.globo.com/politica/deltan-dallagnol-pede-exoneracao-do-mpf-deve-sair-candidato-25264191

https://crusoe.uol.com.br/edicoes/185/moro-dallagnol-lava-jato-urnas/

https://www.gazetadopovo.com.br/republica/deltan-dallagnol-pede-exoneracao-e-pode-entrar-para-politica/

https://www.cartacapital.com.br/cartaexpressa/deltan-dallagnol-e-exonerado-do-ministerio-publico-federal/

https://www.metropoles.com/brasil/politica-brasil/deltan-dallagnol-ex-coordenador-da-lava-jato-pede-exoneracao-do-mpf

Há, portanto, dois vícios evidentes, no caso: flagrante atentado à moralidade administrativa; e um segundo vício, que é o desvio de finalidade da norma. O candidato fraudou a Lei da Ficha Limpa.

Na hipótese dos autos, portanto, o candidato se valeu da faculdade da exoneração para fins de afastar eventual inelegibilidade que lhe acometeria.

Tal prática importa o reconhecimento da inelegibilidade pelo desvio de finalidade à norma imposta, não se podendo admitir que o ilícito praticado seja benéfico a quem o praticou.

Desse modo, o caso atrai a inelegibilidade do art. 1º, I, q, da LC 64/1990, por não se tratar de nova interpretação à norma, mas efetivamente de sua aplicação ao caso concreto.

Além disso, aplicáveis os arts. 175, § 4º, do Código Eleitoral e 16-A da Lei 9.504/1997, recentemente julgados pelo Plenário do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, para que permaneçam válidos os votos atribuídos à legenda, uma vez que o pedido do candidato ainda não estava apreciado no dia das eleições.  

ii. Art. 1º, inc. I, alínea g, da LC 64/1990     

Para a configuração da causa de inelegibilidade do art. 1º, I, g, da LC 64/1990, faz-se necessária a presença dos seguintes requisitos cumulativos: i) o exercício de cargos ou funções públicas; ii) a rejeição das contas por órgão competente; iii) a insanabilidade da irregularidade apurada, iv) o ato doloso de improbidade administrativa; v) a irrecorribilidade do pronunciamento que desaprovou as contas; e vi) a inexistência de suspensão ou anulação judicial do aresto condenatório.

No caso, o Recorrido tem contra si Tomada de Contas Especial julgada irregular, em virtude de falhas na gestão administrativa da força-tarefa da Operação Lava Jato, do Ministério Público Federal (MPF), particularmente quanto aos valores despendidos com diárias, passagens e gratificações de desoneração de membros da carreira de procuradores do órgão para atuarem com exclusividade na aludida Operação.

Inicialmente, o TRE/PR, em 19/10/2022, afastou a incidência da respectiva hipótese de inelegibilidade diante da existência de “decisão liminar proferida pelo Juízo da 6ª Vara Federal de Curitiba, suspendendo os efeitos do Acórdão nº 4.117/2022.

Entretanto, nos autos da Suspensão de Liminar e de Sentença 3133, o Min. HUMBERTO MARTINS, Presidente do STJ à época, sustou “os efeitos da decisão proferida no Procedimento Comum n. 5033048-90.2022.4.04.7000/PR, em trâmite na 6ª Vara Federal de Curitiba, mantida pela decisão prolatada na Suspensão de Liminar e de Sentença n. 5025349- 96.2022.4.04.0000/PR, em tramitação no Tribunal Regional Federal da 4ª Região, até o trânsito em julgado do mérito da ação principal, e, por conseguinte, restabeleceu a tramitação da Tomada de Contas Especial n. 006.470/2022-0 em relação a DELTAN MARTINAZZO DALLAGNOL”.

A despeito da interposição de Agravo Regimental, este se encontra pendente de julgamento definitivo, em virtude de pedido de vista do Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, conforme se extrai do andamento processual daquela Corte (https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?tipoPesquisa=tipoPesquisaNumeroRegistro&termo=202201959296&totalRegistrosPorPagina=40&aplicacao=processos.ea):

Nesse cenário, permanece vigente, portanto, a decisão proferida pelo Tribunal de Contas da União na Tomada de Contas Especial 006.470/2022-0, julgada em 9/8/2022.

Entretanto, consta do sítio eletrônico do TCU o seguinte andamento processual (https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/#/documento/processo/*/NUMEROSOMENTENUMEROS%253A647020220/DTAUTUACAOORDENACAO%2520desc%252C%2520NUMEROCOMZEROS%2520desc/0/%2520):

Daí se infere que inexiste o trânsito em julgado na esfera administrativa, de modo que tal condição impede o exame da restrição eleitoral, por ausência dos requisitos impostos na alínea g.

Nesse sentido é a jurisprudência do TSE: “ausente trânsito em julgado na esfera administrativa, não há falar em decisão irrecorrível, requisito indispensável à incidência da inelegibilidade da alínea g. Desse modo, inexiste na seara eleitoral circunstância impeditiva ao exercício do cargo” (AgR-RCED 060189569, Rel. Min. JORGE MUSSI, DJe de 18/9/2019).

Ante o exposto, ACOMPANHO integralmente o voto do Relator, Min. BENEDITO GONÇALVES, e DOU PROVIMENTO aos Recursos Ordinários da Federação Brasil da Esperança e do Partido da Mobilização Nacional para INDEFERIR o registro de candidatura de Deltan Martinazzo Dallagnol, candidato ao cargo de Deputado Federal nas eleições de 2022, observados, entretanto, os arts. 175, § 4º, do Código Eleitoral e 16-A da Lei 9.504/1997, que autorizam a preservação de seus votos à legenda, nos termos das ADI 4.542, ADI 4.513 e ADPF 223, recentemente apreciadas pelo SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.

É como voto.

 

PROCLAMAÇÃO DO RESULTADO

 

O SENHOR MINISTRO ALEXANDRE DE MORAES (presidente): Proclamo o resultado: O Tribunal, por unanimidade, deu provimento aos recursos ordinários para indeferir o registro de candidatura do recorrido Deltan Martinazzo Dallagnol ao cargo de Deputado Federal, comunicando-se, de imediato, ao Tribunal Regional Eleitoral do Paraná, para imediata execução do acórdão, independentemente de publicação, mantendo-se o cômputo dos votos em favor da legenda.

 

EXTRATO DA ATA

 

RO-EL  nº 0601407-70.2022.6.16.0000/PR. Relator: Ministro Benedito Gonçalves. Recorrente: Federação Brasil da Esperança – Fé Brasil (PT/PCdoB/PV) – Estadual (Advogados: Luiz Eduardo Peccinin – OAB: 58101/PR e outros). Recorrente: Partido da Mobilização Nacional (PMN) – Estadual (Advogados: Michel Saliba Oliveira – OAB: 18719/PR e outros). Recorrido: Deltan Martinazzo Dallagnol (Advogados: Leandro Souza Rosa – OAB: 30474/PR e outro). Recorrido: Podemos (PODE) – Estadual (Advogado: Paulo Roberto Gongorra Ferraz  – OAB: 37315/PR).

Usaram da palavra, o Dr. Luiz Eduardo Peccinin, pela recorrente Federação Brasil da Esperança; o Dr. Michel Saliba Oliveira, pelo recorrente Partido da Mobilização Nacional (PMN) – Estadual; e o Dr. Leandro Souza Rosa, pelo recorrido Deltan Martinazzo Dallagnol.

Decisão: O Tribunal, por unanimidade, deu provimento aos recursos ordinários para indeferir o registro de candidatura do recorrido ao cargo de deputado federal, mantendo o cômputo dos votos em favor da legenda, e determinando a comunicação ao TRE/PR para imediata execução do acórdão, independentemente de publicação, nos termos do voto do relator. 

Composição: Ministros Alexandre de Moraes (presidente), Cármen Lúcia, Nunes Marques, Benedito Gonçalves, Raul Araújo, Sérgio Banhos e Carlos Horbach.

Vice-Procurador-Geral Eleitoral: Paulo Gustavo Gonet Branco. 

SESSÃO DE 16.5.2023.