JUSTIÇA ELEITORAL
052ª ZONA ELEITORAL DE SÃO LUIZ GONZAGA RS
AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL (11527) Nº 0600762-74.2024.6.21.0052 / 052ª ZONA ELEITORAL DE SÃO LUIZ GONZAGA RS
AUTOR: ALBERTO LUBAS ESPINDULA
Advogados do(a) AUTOR: AUGUSTO PESSIN CORREA - RS109753, VICENTE SILVA SARAIVA - RS85593
REU: LEOMAR MANOEL FERREIRA, ANA FABIA SANTOS COSTA
Advogados do(a) REU: FAGNER FELIPE ROCKEMBACH - RS102695, GRACIELA GENRO OJOPI - RS45609
Advogados do(a) REU: FAGNER FELIPE ROCKEMBACH - RS102695, GRACIELA GENRO OJOPI - RS45609
Alberto Lubas Espíndula, já qualificado no processo, ajuizou Ação de Investigação Judicial Eleitoral em face de Leomar Manoel Ferreira e de Ana Fábia Santos Costa, igualmente já qualificados.
Para tanto, narrou que os investigados tiveram suas candidaturas registradas e concorreram ao Poder Legislativo de Bossoroca pelo Partido Movimento Democrático Brasileiro, sendo que o representado Leomar foi eleito vereador. Apontou que, embora formalmente satisfeito o percentual mínimo de 30% de candidaturas femininas, conforme art. 10, § 3º, da Lei n.º 9.504/97, a candidatura de Ana Fábia consistiu em candidatura fictícia. Disse que a candidatura da investigada foi lançada exclusivamente para a satisfação da cota de gênero, uma vez que alcançou votação diminuta no pleito - 4 votos -, bem como apresentou ínfima movimentação financeira e padronizada, em R$ 1.362,00, além de não ter praticado atos efetivos de campanha.
Ao final, requereu a procedência do pedido, para o fim de: a) serem cassados os registros ou diplomas, bem como a nulidade dos votos obtidos pelos representados, com o recálculo do quociente eleitoral; e b) sejam os investigados tidos por inelegíveis, bem como imposta multa. Acostou documentos.
Notificados, os investigados ofereceram defesa, suscitando, preliminarmente, a ilegitimidade ativa e passiva e inadequaçao da via eleita. No mérito, defenderam a legalidade do procedimento adotado pelo Partido MDB no repasse dos recursos destinados ao financiamento de campanha, que optou por direcioná-los a outros candidatos. Apontaram ainda que, embora a representada Ana Fabia não tenha alcançado número significativo de votos no pleito, praticou atos efetivos de campanha, justificando que era gestante à época, circunstância que acabou dificultando sua participação de forma mais ativa no período de propaganda. Sustentaram a inexistência de qualquer tipo de abuso de maculasse a conduta praticada durante o registro ou campanha eleitorais. Ao final, postularam a improcedência do pedido. Acostaram documentos.
Em sede de instrução, procedeu-se à oitiva das testemunhas arroladas pelas partes.
Em alegações finais, as partes, examinando a prova produzida durante a instrução, ratificaram seus posicionamentos originais.
O Ministério Público opinou pela improcedência dos pedidos formulados na Ação de Investigação Judicial Eleitoral.
É o relatório. Passo a decidir.
1. Preliminar de ilegitimidade ativa e passiva:
A preliminar suscitada na defesa deve ser rejeitada, uma vez que as partes são dotadas de pertinência subjetiva para figurarem tanto no polo ativo quanto passivo.
Nesse sentido, doutrina e jurisprudência são pacíficas no sentido de que o polo ativo pode ser ocupado por qualquer personagem do processo eleitoral, a exemplo de candidato, independentemente do proveito imediato que possam vir a colher, pois o objetivo é tutelar a lisura do pleito eleitoral (cf. GOMES, José J. Direito Eleitoral - 20ª Edição 2024. 20th ed. Rio de Janeiro: Atlas, 2024). Na espécie, o autor concorreu ao cargo de vereador pelo Partido Progressistas, conforme comprovado pela documentação acostada, de sorte que inequívoca a legitimidade ativa para a propositura da demanda.
No tocante ao polo passivo, deve ser reconhecida a legitimidade dos investigados, uma vez que, consoante a jurisprudência do TSE, nas ações que buscam apurar fraude à cota de gênero, devem constar obrigatoriamente do polo passivo os candidatos eleitos, porquanto detentores de mandato eletivo passível de cassação na hipótese de procedência do pedido. No caso sob análise, a investigada Ana Fábia supostamente teria sido a responsável pela fraude à cota de gênero, sendo que o investigado Leomar foi eleito ao concorrer pela mesma sigla partidária da candidatura feminina tida por fictícia, motivo pelo qual figuraria como suposto beneficiário da fraude defendida na incial. Logo, correta suas indicações ao polo passivo da demanda.
A corroborar, destaco a jurisprudência do TRE-RS:
RECURSOS. AÇÕES DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL - AIJEs. IMPROCEDÊNCIA. FRAUDE NO PREENCHIMENTO DA COTA DE GÊNERO. IDENTIDADE DOS FATOS, PARTES E CAUSAS DE PEDIR. JULGAMENTO CONJUNTO. PRELIMINARES SUPERADAS. SUPLENTES. LITISCONSÓRCIO PASSIVO FACULTATIVO. ILICITUDE DA PROVA. PROCEDIMENTO PREPARATÓRIO ELEITORAL PPE. CARÁTER INQUISITORIAL. PARTIDO POLÍTICO. ILEGITIMIDADE PASSIVA DO PARTIDO REPRESENTADO. EXTINÇÃO DO FEITO. ART. 485, INC. VI, DO CPC. LEGITIMIDADE PASSIVA DO PRESIDENTE DO PARTIDO. MÉRITO. COTA DE GÊNERO. LEI N. 9.504/97. PROMOÇÃO DA PARTICIPAÇÃO FEMININA. SUPOSTAS CANDIDATURAS FICTÍCIAS. CONTEXTO PROBATÓRIO INSUFICIENTE PARA DEMONSTRAR A OCORRÊNCIA DE FRAUDE NAS CANDIDATURAS. PROVIMENTO NEGADOS AOS RECURSOS. 1. Recursos contra sentença que julgou improcedentes as AIJEs reunidas em conjunto no juízo de origem em razão de pedido comum: reconhecimento da fraude envolvendo candidaturas femininas na nominata para o cargo de vereador do partido nas eleições de 2020. 2. Matéria preliminar 2.1. Da legitimidade passiva dos candidatos e da decadência. Segundo a jurisprudência atual do Tribunal Superior Eleitoral, nas ações ajuizadas com base na existência de fraude à cota de gênero devem constar, obrigatoriamente, no polo passivo da ação, todos os candidatos eleitos e, portanto, detentores de mandato eletivo passível de cassação em decorrência da procedência da ação, na condição de litisconsortes passivos necessários. Recentemente, a Corte Superior afastou a configuração da decadência por ausência de integração dos candidatos suplentes no polo passivo em AIMEs e AIJEs que têm como objeto suposta fraude à cota de gênero. Eventuais suplentes das vagas parlamentares podem figurar como litisconsortes passivos facultativos e, caso não integrados à demanda oportunamente, não resta inviabilizado o prosseguimento da ação por tal motivo. Dessa forma, o entendimento mencionado afasta a necessidade de integração de todos os candidatos da chapa às lides e justifica a circunstância de não haver coincidência no polo passivo das demandas, ora analisadas conjuntamente, em relação aos candidatos demandados, quais sejam, os candidatos suplentes, considerados litisconsortes facultativos. As ações foram propostas, em face de todos os candidatos eleitos, em 30.11.2020 (AIJE n. 0600584-12) e 09.12.2020 (AIJE n. 0600585-94), portanto antes da cerimônia de diplomação, não havendo como se falar em decadência. 2.2 Da ilicitude da prova. O procedimento preparatório eleitoral instaurado tinha natureza eminentemente administrativa e inquisitorial, cujo intuito era trazer subsídios para formar o próprio convencimento do Parquet sobre os fatos e permitir a obtenção de um substrato mínimo de prova a amparar ações eleitorais viáveis. Ademais, a prova produzida restou submetida à ampla defesa e ao contraditório no curso do processo judicial. 2.3. Da ilegitimidade passiva do partido e de seu presidente. Considerando que o inc. XIV do art. 22 da Lei Complementar n. 64/90 prevê, em caso de procedência da ação, a declaração da inelegibilidade do representado e de quantos hajam contribuído para a prática do ato, além da cassação do registro ou diploma do candidato diretamente beneficiado pela interferência do poder econômico ou pelo desvio ou abuso do poder de autoridade ou dos meios de comunicação, é de reconhecer a impossibilidade, no caso concreto, de atribuição de qualquer sanção ao partido político. Ainda que inicialmente aceita a inclusão da agremiação na lide, é de ser reconhecida a sua ilegitimidade para a causa. Extinção dos feitos, sem resolução do mérito, nos termos do art. 485, inc. VI, do Código de Processo Civil, em relação ao partido representado. O mesmo não ocorre em relação ao presidente partidário, em razão da viabilidade, em tese, de que se declare sua inelegibilidade, se confirmada a condição de agente do abuso. 3. Contexto fático. Alegada fraude em duas candidaturas femininas, uma vez que estas não teriam realizado campanha eleitoral em benefício próprio e teriam sido lançadas na disputa à Câmara Municipal de forma fictícia, apenas para viabilizar a obediência ao percentual mínimo de 30% de cada gênero. A cota de gênero, instrumento legal de incentivo à participação feminina na política, posta sob o fomento e a proteção da Justiça Eleitoral, está prevista no art. 10, § 3º, da Lei n. 9.504/97. O preenchimento fraudulento das reservas de gênero frustra o intuito da norma e, ao invés de promover a participação feminina, apenas reforça a exclusão da mulher da política, em prejuízo do pluralismo e da representatividade política, pressupostos para uma democracia plena. 4. Conforme a jurisprudência, os indícios que apontariam uma candidatura falsa seriam o baixo investimento financeiro na campanha, com operações voltadas apenas a demonstrar a regularidade da candidatura; a relação de parentesco com outros candidatos a mesmo cargo, sem nenhuma notícia de eventual animosidade familiar ou política que justificasse a disputa; a ausência de propaganda por parte da candidata e/ou a realização de campanha em benefício de outro candidato; e a contabilização de poucos votos em seu favor. Nesse sentido está o Enunciado n. 60, de caráter doutrinário, aprovado na I Jornada de Direito Eleitoral promovida pela Escola Judiciária Eleitoral do Tribunal Superior Eleitoral, em fevereiro a maio de 2020. 5. Acervo probatório. 5.1. Demonstrada a regularidade de uma das candidaturas, uma vez que, embora tenha obtido a quantidade inexpressiva de seis votos, comprovou interesse em realizar campanha eleitoral, relatando as dificuldades havidas no pleito de 2020 em relação à disputa anterior, em que havia concorrido e angariado um número substancial de votos. Ademais, ainda que modestamente, realizou divulgação da sua candidatura na internet. 5.2. Em relação à segunda candidata, o conjunto probatório não confere a certeza da existência de fraude em relação à candidatura. Os elementos dos autos conduzem à conclusão de que a recorrida desejava ser candidata e realizou atos de campanha no município, vindo a desistir de divulgar seu nome no decorrer do período eleitoral por fatores alheios à sua vontade. Necessidade de se considerar as peculiaridades locais a fim de verificar as alegações das partes. Dessa forma, o exame da realidade das candidaturas no município, que se extrai tanto dos depoimentos quanto da sentença recorrida, permite concluir pela inexistência de fraude ou abuso de poder. 6. Para o julgamento de procedência do pedido, a prova de fraude na cota de gênero deve ser robusta e levar em conta a soma das circunstâncias fáticas do caso a denotar o incontroverso objetivo de burlar o mínimo de isonomia entre homens e mulheres que o legislador pretendeu assegurar no art. 10, § 3º, da Lei 9.504/97, na linha de precedente do Tribunal Superior Eleitoral (Recurso Especial Eleitoral n. 060085995, Relator Min. Benedito Gonçalves, publicado em 25.05.2022), o que não é o caso dos autos. Prestigiada a vontade popular. 7. Extinção de ambos os feitos, sem resolução de mérito, nos termos do art. 485, inc. VI, do Código de Processo Civil, em relação ao partido. Rejeitadas as demais preliminares. Provimento negado aos recursos.Recurso Eleitoral nº060058594, Acórdão, Des. DES. VANDERLEI TERESINHA TREMEIA KUBIAK, Publicação: DJE - Diário de Justiça Eletrônico, 07/07/2022.
Por conseguinte, reconhecida a legitimidade ativa e passiva, repilo a preliminar.
2. Falta de interesse processual:
Igualmente não prospera a preliminar de falta de interesse processual pela inadequação da via eleita.
Isso porque pacífico o entendimento, no âmbito jurisprudencial, no sentido de que a discussão relacionada à suposta fraude na quota de gênero é matéria passível de ser ventilada em sede de ação de investigação judicial eleitoral.
A corroborar, destaco a jurisprudência do TSE e do TRE-RS:
ELEIÇÕES 2020. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL (AIJE). FRAUDE À COTA DE GÊNERO. CIRCUNSTÂNCIAS INCONTROVERSAS QUE DENOTAM A CONFIGURAÇÃO DO ILÍCITO. AUSÊNCIA DE VÍCIOS EMBARGÁVEIS. PRETENSÃO DE REJULGAMENTO. INOVAÇÃO DE TESE RECURSAL. NEGATIVA DE PROVIMENTO. 1. No acórdão embargado, foi assentado que a candidata não aplicou recursos financeiros em sua campanha, apoiou candidatura masculina diversa e obteve um único voto, fora de sua seção, ou seja, nem mesmo ela votou em si, elementos que, somados, demonstram a ocorrência de fraude à regra disposta no art. 10, § 3º, da Lei nº 9.504/97. 2. Nos aclaratórios, aponta-se a incidência de vício embargável, pois não teria ocorrido a análise do acervo probatório, apto a justificar a obtenção de um único voto e o apoio à candidatura concorrente. 3. O reenquadramento jurídico da prova se deu nos estritos limites da moldura fática traçada no acórdão recorrido. Providência diversa, com vertical incursão no acervo probatório, acarretaria ofensa à Súmula nº 24/TSE. 4. Com efeito, do que se depreende das razões recursais, os presentes embargos de declaração objetivam tão somente promover novo julgamento do recurso, providência inviável em âmbito aclaratório, consoante a jurisprudência desta Corte Superior. 5. No que concerne à alegação de omissão quanto ao não enfrentamento da tese de inadequação da via eleita, uma vez que a AIJE não se prestaria à análise de casos envolvendo candidaturas supostamente fraudulentas, observo que o tema, além de estar em descompasso com a orientação atual do Tribunal Superior Eleitoral, não foi enfrentado na origem, consubstanciando indevida inovação de tese recursal em sede de embargos de declaração.6. Embargos de declaração rejeitados.
(Embargos de Declaração no Agravo em Recurso Especial Eleitoral nº060086270, Acórdão, Min. André Ramos Tavares, Publicação: DJE - Diário de Justiça Eletrônico, 26/02/2024).
RECURSO. ELEIÇÕES 2020. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL (AIJE). IMPROCEDENTE. PRELIMINARES SUPERADAS. AUSÊNCIA DE DIALETICIDADE. ADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. MÉRITO. SUPOSTA FRAUDE NO REGISTRO DE CANDIDATURA. COTA DE GÊNERO. ACERVO PROBATÓRIO INAPTO PARA CARACTERIZAÇÃO DA FRAUDE. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA. DESPROVIMENTO.
1. Insurgência contra sentença que julgou improcedente ação de investigação judicial eleitoral, por entender não comprovada a ocorrência de fraude ao atendimento da cota de gênero nas candidaturas.
2. Matéria preliminar superada. 2.1. Ausência de dialeticidade. Abordadas de forma satisfatória as razões de irresignação com o sopesamento dos fatos apontados como provas da ocorrência de fraude ao atendimento da cota de gênero nas candidaturas. 2.2. Preliminar de ofício. Adequação da via eleita. O Tribunal Superior Eleitoral evoluiu no entendimento sobre o cabimento da ação de investigação judicial eleitoral para exame de alegações de existência de fraude cometida após a análise do DRAP, em especial quando se questiona fraude à cota de gênero.
3. Matéria fática. Alegada a prática de fraude no registro de candidatura de candidata, em relação à nominata de candidaturas da agremiação à Câmara de Vereadores no pleito de 2020, no tocante ao cumprimento da cota mínima de 30% por gênero.
4. Da análise do caderno probatório, verifica-se um quadro fático bastante comum, de tentativa de candidatura feminina que se inicia de forma legítima, mas que esmorece com o decorrer da campanha eleitoral - diante de dissabores e dificuldades naturais, sobretudo a quem não tem experiência no campo político, ou pessoais. Ademais, muitos candidatos, mulheres e homens desistem no decorrer da corrida eleitoral, sem que a situação caracterize fraude eleitoral, a qual impõe prova robusta diante da gravidade das sanções. Movimentação financeira compatível com candidato de posse modesta e sem maior potencial na conquista de votos, em pequenos municípios do interior. Manutenção da sentença.
5. Desprovimento.
(RECURSO ELEITORAL nº060023317, Acórdão, Des. Jose Vinicius Andrade Jappur, Publicação: DJE - Diário de Justiça Eletrônico, 27/01/2023).
Portanto, refuto a preliminar.
3. Mérito:
No mérito, cinge-se a controvérsia à definição se a candidatura da investigada Ana Fábia Santos Costa ao pleito proporcional de Bossoroca efetivamente consistira em candidatura fictícia, isto é, registrada com o objetivo exclusivo de satisfazer o percentual da quota eleitoral de gênero estabelecido na legislação.
De início, importante destacar que a legislação eleitoral, objetivando concretizar o princípio da igualdade, em razão dos ínfimos índices de participação feminina na política brasileira em comparação com a masculina, consagrou, no art. 10, §3º, da Lei n.º 9.504/97, ação afirmativa para corrigir ou amenizar tal distorção. Assim, o referido dispositivo estabelece, na seção relativa ao registro das candidaturas, que cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo.
Tal é a relevância da temática que, no ano de 2022, foi aprovada a EC n.º 117, responsável por disciplinar, no âmbito constitucional, o direcionamento de recursos especificamente às candidaturas femininas, senão vejamos:
Art. 17. É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os seguintes preceitos:
(...)
§ 7º Os partidos políticos devem aplicar no mínimo 5% (cinco por cento) dos recursos do fundo partidário na criação e na manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres, de acordo com os interesses intrapartidários. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 117, de 2022)
§ 8º O montante do Fundo Especial de Financiamento de Campanha e da parcela do fundo partidário destinada a campanhas eleitorais, bem como o tempo de propaganda gratuita no rádio e na televisão a ser distribuído pelos partidos às respectivas candidatas, deverão ser de no mínimo 30% (trinta por cento), proporcional ao número de candidatas, e a distribuição deverá ser realizada conforme critérios definidos pelos respectivos órgãos de direção e pelas normas estatutárias, considerados a autonomia e o interesse partidário. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 117, de 2022).
Sucede que, a partir da determinação legal de fomento das candidaturas femininas, passou a ser observado um novo fenômeno, responsável por reforçar a exclusão da mulher da política, em prejuízo ao pluralismo e à representatividade política, que é pressuposto para uma democracia plena. Cuida-se da denominada fraude à quota de gênero a partir de candidaturas femininas fictícias ou laranjas. Veja-se, nesse diapasão, a lição de José Jairo Gomes:
13.1.7.2 Fraude na quota de gênero
A dificuldade em lançar candidaturas de mulheres em ordem a preencher a quota mínima de gênero tem levado partidos políticos a fraudar o regime e o processo de registro de candidatura.
Consiste a fraude em lançar a candidatura de mulheres que na realidade não disputarão efetivamente o pleito. São candidaturas fictícias. Os nomes femininos são incluídos na lista do partido tão somente para atender à necessidade de preenchimento do mínimo de 30%, viabilizando-se, com isso, a presença do partido e de seus verdadeiros candidatos nas eleições. Trata-se, portanto, de burla à regra legal que instituiu a ação afirmativa direcionada ao incremento da participação feminina na política.
Embora esse tipo de fraude se perfaça na fase de registro de candidatura, em geral os indícios de sua ocorrência ficam mais palpáveis depois do pleito, sendo evidenciados por situações como a ausência de votos à suposta candidata (ou seja: a candidata não teve o próprio voto), a não realização de campanha própria, dedicação à campanha de outro candidato, prestação de contas sem registro de receita ou despesa (ou seja: a prestação de contas aparece zerada). Em um caso concreto, foram destacados indícios de padronização e maquiagem contábil como a “extrema semelhança dos registros nas contas de campanha de cinco candidatas – tipos de despesa, valores, data de emissão das notas e até mesmo a sequência numérica destas” (TSE – REspe no 19392/PI – DJe 4-10-2019). A respeito, dispõe o art. 8o, § 2o, da Res. TSE no 23.735/2024: “A obtenção de votação zerada ou irrisória de candidatas, a prestação de contas com idêntica movimentação financeira e a ausência de atos efetivos de campanha em benefício próprio são suficientes para evidenciar o propósito de burlar o cumprimento da norma que estabelece a cota de gênero, conclusão não afastada pela afirmação não comprovada de desistência tácita da competição”.
(GOMES, José J. Direito Eleitoral - 20ª Edição 2024. 20th ed. Rio de Janeiro: Atlas, 2024. E-book. p.323. ISBN 9786559776054. Disponível em: https://app.minhabiblioteca.com.br/reader/books/9786559776054/. Acesso em: 26 fev. 2025).
A partir da análise de uma série de situações de supostas fraudes às quotas de gênero, o TSE editou a Súmula n.º 73, estabelecendo critérios que devem ser avaliados no caso concreto para a configuração da burla. Eis o conteúdo do enunciado sumular:
Súmula n.º 73 do TSE: A fraude à cota de gênero, consistente no desrespeito ao percentual mínimo de 30% (trinta por cento) de candidaturas femininas, nos termos do art. 10, § 3º, da Lei n. 9.504/97, configura-se com a presença de um ou alguns dos seguintes elementos, quando os fatos e as circunstâncias do caso concreto assim permitirem concluir: (1) votação zerada ou inexpressiva; (2) prestação de contas zerada, padronizada ou ausência de movimentação financeira relevante; e (3) ausência de atos efetivos de campanhas, divulgação ou promoção da candidatura de terceiros. O reconhecimento do ilícito acarretará: (a) a cassação do Demonstrativo de Regularidade de Atos Partidários (Drap) da legenda e dos diplomas dos candidatos a ele vinculados, independentemente de prova de participação, ciência ou anuência deles; (b) a inelegibilidade daqueles que praticaram ou anuíram com a conduta, nas hipóteses de Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE); (c) a nulidade dos votos obtidos pelo partido, com a recontagem dos quocientes eleitoral e partidário (art. 222 do Código Eleitoral), inclusive para fins de aplicação do art. 224 do Código Eleitoral.
Depreende-se da jurisprudência, portanto, três importantes vetores, dentre outros, para a aferição de fraude: (1) votação zerada ou inexpressiva; (2) prestação de contas zerada, padronizada ou ausência de
movimentação financeira relevante; e (3) ausência de atos efetivos de campanhas, divulgação ou promoção da candidatura de terceiros.
Estabelecidas tais premissas, adianto que a solução é pela improcedência dos pedidos veiculados na inicial.
Isso porque os elementos de prova legalmente produzidos foram insuficientes a demonstrar que a candidatura Ana Fabia ao pleito eleitoral proporcional de Bossoroca consistiu em candidatura fictícia ou laranja, efetivada com o objetivo exclusivo de satisfazer a regra estabelecida no art. 10, §3º, da Lei n.º 9.504/97.
A propósito do raciocínio, vejamos a prova oral colhida durante a audiência de instrução.
Em sede de depoimento especial, Leomar Manoel Ferreira afirmou que concorreu ao cargo de vereador em Bossoroca pelo Partido MDB, sendo eleito. Mencionou que, segundo a legislação eleitoral, e considerando o número de candidatos a vereador pela sigla na cidade, havia a necessidade de que a nominata contasse com duas candidatas mulheres para atender às exigências das cotas de gênero. Informou que o partido, por meio de seu presidente, Luís Carlos, convidou Ana Fábia para concorrer. Ressaltou que não acredita que Ana tenha participado de forma fictícia, isto é, apenas para cumprir a cota, pois já havia disputado a eleição anterior. Esclareceu que seis pessoas se candidataram pelo partido MDB em Bossoroca, sendo que, em relação à verba de campanha, apontou que os candidatos Anderson e Eliane receberam valores do partido. Disse que, inicialmente, estava prevista a distribuição de R$ 2.500,00, para as candidatas mulheres e R$ 1.500,00, para os candidatos homens. No entanto, referiu não ter recebido a verba, por ter perdido o prazo referente à solicitação. Por fim, afirmou não recordar do valor total gasto em sua campanha.
Ana Fábia dos Santos Costa, em seu depoimento pessoal, relatou que esta foi a sua segunda candidatura e que, em ambas as ocasiões, estava grávida. No entanto, nas eleições de 2024, enfrentou complicações na gestação, o que resultou na redução das atividades de campanha. Relatou que, no início, tudo transcorreu tranquilamente, mas posteriormente foi diagnosticada com eclâmpsia, sendo que, mesmo com atestado médico contraindicando, continuou participando de algumas atividades da campanha. Em relação às conversas mantidas pela rede social Facebook, esclareceu que havia realizado um “chá-rifa”, ocasião em que foi indagada sobre sua participação na eleição, respondendo que, naquele momento, não sabia se concorreria, afirmando que não queria prejudicar ninguém. Destacou que sempre teve o desejo de se candidatar e que pretende concorrer novamente pelo MDB nas próximas eleições. Referiu que, na eleição anterior, de 2020, obteve oito votos e, na de 2024, quatro votos, sendo que não recebeu auxílio do partido, contando apenas com doações de pessoas naturais para custear materiais de campanha, a exemplo de “santinhos” e de combustível. Explicou que, pelo receio de perder o bebê, cogitou desistir, mas decidiu seguir na candidatura por ser seu sonho. Atribuiu o baixo número de votos ao fato de estar grávida e declarou que ninguém recebeu valores do partido. Justificou a falta de divulgação nas redes sociais pelo fato de não as utilizar com frequência, embora tenha mantido sua participação nas atividades presenciais da campanha. Asseverou que recebeu uma ligação telefônica do autor Alberto, questionando-a se sua candidatura era fictícia e se havia recebido valores para participar da eleição, acrescentando que, caso dissesse a verdade, receberia ajuda com advogados. Negou ter recebido qualquer valor via pix ou em espécie para concorrer ao cargo de vereador e afirmou desconhecer que a ligação estava sendo gravada. Esclareceu que utilizou um carro emprestado durante a campanha, mas não o adesivou, pois produziu apenas “santinhos”. Informou que seus projetos eram voltados para melhorias nas áreas da saúde e da educação. Além disso, afirmou que “Beto”, candidato a prefeito da cidade de Bossoroca lhe ofereceu dinheiro para “entregar” Leomar, conhecido como Maninho. Sobre a declaração, extraída das conversas mantidas por telefone, de ter cometido erro, esclareceu que se referia ao fato de ter se candidatado durante a gestação. Destacou que diversas pessoas auxiliaram em sua campanha, incluindo Vanusa e “Vasco”, pois é conhecida na cidade. Afirmou não acreditar que Valerie tentaria prejudicá-la, mas esta mencionara que, caso desistisse da campanha, receberia ajuda com fraldas para o bebê. Por fim, declarou que sofreu discriminação por estar grávida, acentuando situação de vulnerabilidade.
Vladimir da Silva Hörs, testemunha arrolada pela parte autora, narrou que reside em Bossoroca e que não viu campanha de Ana Fábia durante as eleições, seja nas redes sociais, seja por meio da distribuição de materiais. Afirmou ter acompanhado a campanha de quase todos os candidatos do MDB, porém não constatou nenhuma atividade política vinculada à candidatura de Ana. Declarou que teve conhecimento de que a representada cogitava desistir da candidatura. Por fim, respondeu que foi casado com a também candidata a vereadora pelo Partido PP, Valerie.
Raulina Elizete Sanabria disse que é vizinha de Ana Fábia, a qual, em determinada oportunidade, foi até sua casa, informando que era candidata a vereadora pedindo votos. No entanto, respondeu a Ana que votaria em sua prima, Elis Regina, também candidata pelo PSDB. Relatou que recebeu a visita dos vereadores Cantini e Nedi, informando a ambos que já tinha intenções de votar em sua prima. Afirmou não recordar se havia materiais de campanha ou adesivos da candidatura de Ana. Mencionou acreditar que o filho de Ana tenha deixado material de campanha em sua residência, mas, como estava trabalhando, a empregada doméstica acabou descartando o material. Disse ter questionado Ana sobre a preocupação de realizar campanha gestante, ressaltando que não deixaria de votar nela por esse motivo caso sua prima já não fosse candidata.
João Alberto Prestes da Silva narrou que não sabia que Ana Fábia era candidata, pois não a viu pedir votos. Afirmou recordar apenas da visita de um candidato a vereador, de nome Paulo. Mencionou que Alberto Espíndola lhe pediu voto em uma oportunidade em que se encontraram. Declarou não ter presenciado movimentações de campanha vinculadas à candidatura de Ana Fábia. Esclareceu que reside a aproximadamente cinco quadras da casa da representada, mas não tem conhecimento se exerceu atos de campanha. Por fim, destacou que, em cidades pequenas, as campanhas ainda podem ser realizadas presencialmente, sem a necessidade do uso de redes sociais.
Vanusa Gonçalves Dutra, testemunha arrolada pelos investigados, referiu que trabalhou durante as eleições, entregando “santinhos” dos candidatos “Maninho” (Leomar), Ana Fábia e “Pico”. Esclareceu que atuava como voluntária, com o objetivo de ajudar o partido. Afirmou que recebia o material no diretório partidário e distribuía nas residências. Relatou que a representada participava das carreatas a partir de carona, em razão da gestação. Destacou que uma mulher grávida ostenta condições de realizar algumas atividades de campanha. Por fim, mencionou que foi a primeira vez que distribuiu material político.
Paulo César Chaves da Rosa narrou desacreditar que a candidatura de Ana tenha sido fictícia, uma vez que emprestou seu carro para que ela pudesse divulgar sua candidatura nas residências. Afirmou que transportou Ana em três oportunidades, em razão das dificuldades de locomoção decorrentes da gestação.
Francisco Nenete Trindade Rodrigues disse que Ana foi candidata a vereadora e participou ativamente da campanha, a exemplo de caminhadas, reuniões do partido, carreatas e visitas ao diretório. Afirmou que, apesar da gestação, não houve impedimento para sua participação. Declarou, ainda, que algumas pessoas trabalhavam para Ana durante a campanha, distribuindo materiais de propaganda nas residências.
Elói Andrades Batista relatou que Ana Fábia, assim como outros candidatos, participou ativamente da campanha, embora tenha enfrentado dificuldades devido à gestação. Informou que esteve na residência de Ana e constatou que ela realmente não apresentava condições de realizar atividades de rua. Mencionou que a representada solicitou votos pelo Facebook, participou de visitas ao diretório e carreatas, mantendo-se ativa dentro de suas possibilidades, considerando seu estado de saúde. Declarou lembrar da candidatura anterior de Ana, confirmando sua participação naquela eleição. Além disso, afirmou que os candidatos a prefeito e vice pelo PP, “Beto” e Rogério, pressionaram pessoas a declarar apoio às suas candidaturas, perseguindo aqueles a que optavam por não aderir. Relatou que Ana demonstrou medo após receber visitas de candidatos do PP. Informou que existem registros de postagens nas redes sociais em que Ana pede votos. Por fim, destacou que, embora as redes sociais desempenham um importante instrumento para divulgação política, os eventos presenciais ainda ocorrem e são eficazes.
Analisada a prova documental e testemunhal produzida no processo à luz dos critérios elencados pela jurisprudência do TSE para a caracterização de fraude, clara a inexistência de elementos seguros e inequívocos de que a candidatura feminina do Partido MDB foi artificial. Pelo contrário, afinal a prova judicializada sinaliza que, apesar do insucesso, a candidata não apenas desejou a participação no pleito eleitoral, como efetivamente se engajou, na medida de suas possibilidades físicas, de saúde e financeiras, em prol da vitória a partir de atos efetivos de campanha.
Nessa linha, em relação ao primeiro critério - votação zerada ou inexpressiva -, destaco que tal conceito deve ser analisado a partir do contexto local, isto é, do porte do município em que registrada a candidatura, do número de eleitores aptos a votar e votos válidos e, ainda, do resultado obtido pelos demais candidatos ao mesmo cargo. Especificamente quanto a Bossoroca, a partir das estatísticas da eleição disponíveis no sítio do TRE-RS (https://www.tre-rs.jus.br/eleicoes/estatisticas/estatisticas), a contabilização dos votos do pleito de 2024 revelou um total de 4.210 votos, sendo apenas 4.052 destes válidos, distribuídos entre 28 candidatos às 9 cadeiras do Legislativo. Ainda, apenas 18 candidatos a vereador obtiveram resultado superior a 50 votos, de sorte que 10 candidatos não alcançaram tal patamar.
A partir desse cenário, principalmente do total de votos válidos, desponta evidente o pequeno porte do município, bem como que os números de votos recebidos não só pelos candidatos não eleitos, mas também pelos eleitos, não poderia se mostrar excessivo. Apenas para efeitos de comparação, observo que a candidata ao Legislativo com mais votos alcançou aproximadamente 7,5% dos votos válidos (309 votos), ao passo que Ana Fábia alcançou 0,1% dos votos válidos, a partir dos 4 votos recebidos.
Veja-se, a propósito, que Ana Fábia sequer foi a candidata menos votada no pleito, afinal a votação menos expressiva ao Legislativo recebeu 2 votos.
Diante desse contexto, por mais que a votação atingida pela candidata apontada como suposta candidatura fictícia não tenha sido elevada, certamente não pode ser considerada como suficiente à caracterização de fraude. Nessa esteira, pela proximidade do quantitativo de votos ao se comparar o resultado dos cinco candidatos menos votados (Claudete de Souza - 19 votos, PDT; Chico do PT - 16 votos, PT; Elvanir Piko - 10 votos, MDB; Ana Fábia Costa - 4 votos, MDB; e Ledomar - 2 votos, PT), fica clara a conclusão de que o resultado da investigada não decorreu de uma suposta natureza artificial da candidatura, mas de um resultado natural do pleito eleitoral. Não bastasse, é de se ver que Ana Fábia obteve votação extremamente semelhante à alcançada nas eleições de 2020, em que também concorreu ao Legislativo bossoroquense, quando recebeu 8 votos.
O segundo vetor - prestação de contas zerada, padronizada ou ausência de movimentação financeira relevante - igualmente não ampara a versão esposada na inicial. Isso porque, em análise às prestações de contas trazidas ao processo, constato que os gastos, embora não sejam significativos, se mostram compatíveis com o porte da campanha e da eleições em um município com as já mencionadas características de Bossoroca, que conta com população de 5.890 habitantes (2022) e que contou com apenas 4.052 votos válidos.
Quanto à destinação do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, não se pode olvidar que, ressalvada as hipóteses de destinação obrigatória de recursos consoante estabelecido na legislação, a distribuição dos valores que compõem é questão ínsita à autonomia partidária, razão pela qual compete à agremiação a decisão quanto ao emprego da verba, inexistindo imposição de divisão uniforme entre as diversas circunscrições. Assim, é plenamente possível e assegurado ao partido o encaminhamento de recursos de acordo com os interesses partidários, com eventual prestígio a candidatos que apresentem maior viabilidade eleitoral.
No ponto, destaco a doutrina de Rodrigo López Zílio:
Os recursosdo FECF ficarão à disposição do partido político apenas após a definição de critérios para a sua distribuição; esses critérios devem ser aprovados pela maioria absoluta dos membros do órgão da direção executiva nacional dos partidos e serão amplamente divulgados (art. 16-C, §7º, da LE). Vale dizer, é o órgão de direção executiva nacional do partido quem tem o poder de de definir sobre os critérios utiizados para a distribuição interna dos recursos do FECF. O legislador prestigia a autonomia do partido político para deliberar sobre a distribuição de recursos destinados ao financiamento de campanha de seus candidatos. O órgão partidário não tem a obrigação de observar uma divisão uniforme dos valores entre as mais diversas circunscrições, possuindo liberdade de encaminhar os recursos de acordo com seus interesses partidários, prestigiando circunscrições ou candidatos que apresentem uma maior viabilidade eleitoral. Há, contudo, obrigatoriedade de determinada parcela dos recursos do FEFC seja destinada a candidaturas femininas e negras (art. 6º, §1º, da Res.-TSE nº 23.605/2019; art. 17, §4º, da Res.-TSE nº 23.607/19).
(ZÍLIO, Rodrigo Lopez. Manual de Direito Eleitoral: volume único. 10.ed. São Paulo: Editora Juspodivm, 2024, p. 597).
Depreende-se, assim, que por mais que a legislação estabeleça a obrigatoriedade da destinação de percentual de recursos para as candidaturas femininas, o partido goza de discricionariedade para encaminhar os recursos para as candidaturas que apresentem maior potencial de vitória. Além disso, o cálculo da distribuição deve ser avaliado em um panorama geral das candidaturas, não de forma específica, restrita a determinada circunscrição ou candidatura. Inclusive, estas questões foram objeto de veto pelo Presidente da República quando do debate e aprovação do Projeto de Lei n.º 8.703/2019 (Projeto n.º 206/17 no Senado Federal).
A corroborar, destaco novamente a doutrina de Rodrigo López Zílio:
Cabe observar, ainda, que diversos artigos que constavam no projeto de lei nº 8.703/2017 (nº 206/17 no Senado Federal) foram vetados pelo Presidente da República, através da mensagem nº 379, de 06 de outubro de 2017 (publicado no DOU de 06.10.2017, seção extra). Assim, foram vetados, por exemplo, dispositivos que determinavam a distribuição do FECF para todas as circunscrições partidárias (§6º do art. 16-C); estabeleciam percentuais mínimos para serem distribuídos, igualitariamente entre os candidatos do mesmo partido na circunscrição (§8º do art. 16-C); previa percentuais de distribuição dessas verbas conforme os cargos em disputa (§9º e §10 do art. 16-C). A mensagem nº 380, de 06 de outubro de 2017, também vetou outros dispositivos que constavam do projeto de lei que redundou na última reforma eleitoral.
(ZÍLIO, Rodrigo Lopez. Manual de Direito Eleitoral: volume único. 10.ed. São Paulo: Editora Juspodivm, 2024, p. 602).
Nota-se, assim, que a distribuição do FECF para todas as circunscrições partidárias e em percentuais mínimos para serem distribuídos igualitariamente entre todos os candidatos do mesmo partido na circunscrição foram vetados no processo legislativo correspondente. Logo, inequívoco que a análise de eventuais irregularidades deve se dar de forma global em relação às contas do partido, não a partir de candidaturas individualizadas em determinada circunscrição, como pretende o requerente. Por outras palavras, a questão relativa ao financiamento de candidaturas femininas deve ser aferida no momento e pelo procedimento adequados, isto é, no âmbito da prestação de contas partidárias, oportunidade em que se poderá averiguar com maior precisão eventual descumprimento das normas eleitorais. Tal circunstância, no entanto, não se confunde com a apuração de fraude à cota de gênero, o qual consiste no objeto específico da presente investigação.
Por fim, registro que, para ter acesso aos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, a legislação é expressa no sentido de que o candidato deverá fazer requerimento por escrito ao órgão partidário respectivo (art. 16-D, §2º, da Lei n.º 9.504/97).
Por conseguinte, diante das razões explicitadas, o aspecto relacionado à destinação de recursos pertencentes ao MDB para a campanha eleitoral das candidatas igualmente não consiste em vetorial suficiente à configuração da suposta fraude às quotas de gênero.
No tocante ao terceiro critério - ausência de atos efetivos de campanhas, divulgação ou promoção da candidatura de terceiros - a documentação acostada pelos requeridos, associada aos depoimentos prestados pelas testemunhas durante a audiência de instrução, revela que, diferentemente do apontado na inicial, Ana Fábia participou da campanha na medida de suas possibilidades físicas, considerando o período de gestação e o alegado quadro de eclâmpsia.
Nesse sentido, as fotografias e printscreens demonstraram os materiais de propaganda eleitoral confeccionados. Além disso, a testemunha Raulina, arrolada pelo próprio requerente, foi enfática no sentido de que Ana Fábia, em determinada oportunidade, foi até sua casa informando que era candidata a vereadora, oportunidade em que pediu seu voto. De igual modo, a testemunha Vanusa, na condição de voluntária, esclareceu que distribuiu "santinhos" em nome de Ana Fábia, bem como Paulo César asseverou ter emprestado seu carro para que a investigada pudesse divulgar sua candidatura nas residências, o que aconteceu em pelo menos três oportunidades.
Daí que, em que pese as algumas testemunhas arroladas na inicial não tenham percebido ou recebido material de campanha das candidatas, fato é que Ana Fábia efetivamente envidou esforços para o êxito no pleito, promovendo e divulgando sua candidatura, sem que se possa cogitar de burla ao art. 10, §3º, da Lei n.º 9.504/97.
Ainda sobre o critério ausência de atos efetivos de campanha, imprescindível ressaltar que a análise deve necessariamente ser realizada a partir do contexto vivenciado pela investigada, gestante à época, circunstância que lhe impôs limitações de variadas ordens, principalmente física. A esse propósito, destaco que o caso deve ser interpretado a partir de uma perspectiva de gênero, de sorte que os atos efetivos de campanha não podem ser simplesmente comparados com a atuação de demais candidatos, especialmente do gênero masculino, ou até do gênero feminino, porém não gestantes.
Na linha do raciocínio aqui desenvolvido, destaco que o o Conselho Nacional de Justiça, a fim de evitar a chamada violência institucional, elaborou, em 2021, o “Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero” (disponível em https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/10/protocolo-para-julgamento-com-perspectiva-de-genero-cnj-24-03-2022.pdf). Por meio desse protocolo, o CNJ buscou estabelecer “um guia para que os julgamentos que ocorrem nos diversos âmbitos da Justiça possam ser aqueles que realizem o direito à igualdade e à não discriminação de todas as pessoas, de modo que o exercício da função jurisdicional se dê de forma a concretizar um papel de não repetição de estereótipos, de não perpetuação de diferenças, constituindo-se um espaço de rompimento com culturas de discriminação e de preconceitos”. Trata-se, assim, de uma série de orientações para que os processos envolvendo mulheres sejam avaliados a partir de novas lentes, para que a legislação seja interpretada pela perspectiva de que as relações sociais entre homens e mulheres são assimétricas.
Por essa premissa, é natural que Ana Fábia tenha atuado de forma mais comedida em razão do quadro apresentado, até porque não se lhe poderia exigir outro comportamento, dado o risco de perda do bebê.
Remanesceria como possíveis alicerces à tese de fraude: a) as conversas mantidas por Ana Fábia via redes sociais com Valerie Nascimento, candidata a vereadora no mesmo município pelo PP; e b) a conversa mantida com o requerente Alberto por ligação telefônica.
Quanto ao primeiro diálogo, tenho, na linha apontada pelo Ministério Público, que insuficiente a amparar a procedência da AIJE. Isso porque o contexto da comunicação e o real sentido das declarações de Ana Fábia remanesceram controvertidos. Não bastasse, o diálogo ocorreu no mês de agosto de 2024, anteriormente ao período de campanha, não sendo possível descartar mudança de postura dos pretensos candidatos, situação ainda mais plausível em virtude da gestação da requerida.
O segundo, por sua vez, decorreu de gravação telefônica realizada pelo autor, sendo que a captação se deu sem o conhecimento da investigada, consoante por ela apontado em seu depoimento pessoal. Em razão disso, tenho que o conteúdo da conversa deve ser desconsiderado, porque obtido de forma ilícita. Com efeito, a referida temática foi objeto de análise recente pelo STF em sede de repercussão geral (RE n.º 1.040.515/SE, Tema n.º 979), oportunidade em que reconhecida a ilicitude do referido meio de prova. Destaco, a propósito, a tese fixada em sede de repercussão geral: "No processo eleitoral, é ilícita a prova colhida por meio de gravação ambiental clandestina, sem autorização judicial e com violação à privacidade e à intimidade dos interlocutores, ainda que realizada por um dos participantes, sem o conhecimento dos demais. - A exceção à regra da ilicitude da gravação ambiental feita sem o conhecimento de um dos interlocutores e sem autorização judicial ocorre na hipótese de registro de fato ocorrido em local público desprovido de qualquer controle de acesso, pois, nesse caso, não há violação à intimidade ou quebra da expectativa de privacidade".
Sublinho que por mais que o precedente tenha sido formado a partir de gravação ambiental clandestina, o caráter sub-reptício da captação observada na espécie permite a adoção dos mesmos fundamentos determinantes daquela decisão (ratio decidendi) - gravação sem autorização judicial e com violação à privacidade e à intimidade dos interlocutores - ao caso sob exame.
De se ver, portanto, após exame pormenorizado de cada um dos critérios estipulados pela jurisprudência do TSE, que inexistem provas suficientes à caracterização de fraude à quota de gênero na espécie. E por impactar de forma sensível no resultado das eleições, tal contexto apenas pode ser reconhecido quando estreme de dúvidas.
Nessa esteira:
RECURSO. ELEIÇÕES 2020. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ELEIÇÃO PROPORCIONAL. ALEGADA PRÁTICA DE FRAUDE À COTA DE GÊNERO. CANDIDATURA LARANJA. AFRONTA AO ART. 10, § 3º, DA LEI N. 9.504/97. ACERVO PROBATÓRIO INSUFICIENTE. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA. IMPROCEDÊNCIA DO FEITO. DESPROVIMENTO.
1. Recurso interposto por diretório municipal de partido político contra a sentença que julgou improcedente ação de investigação judicial eleitoral (AIJE), por alegada fraude às cotas de gênero nas eleições de 2020.
2. As cotas de gênero são um mecanismo de política afirmativa que têm como finalidade promover, fomentar, a participação de mulheres nos pleitos eleitorais e favorecer a representatividade desse grupo de cidadãs. Tanto a AIME quanto a AIJE são meios processualmente adequados para discutir a fraude à cota de gênero, ainda que sob fundamentos distintos. Por ser uma espécie de abuso de poder, correto o processamento e julgamento da ação de investigação judicial eleitoral como forma de verificação da alegação de fraude ao § 3º do art. 10 da Lei n. 9.504/97.
3. Suposta apresentação de duas candidaturas femininas, postuladas de forma fictícia e com a finalidade exclusiva de cumprir o percentual de 30% (art. 10, § 3º, da Lei n. 9.504/97) de preenchimento de mulheres candidatas na eleição proporcional. Candidatura laranja. O preenchimento fraudulento das reservas de gênero frustra o intuito da norma e, em vez de promover a participação feminina, apenas reforça a exclusão da mulher da política, em prejuízo ao pluralismo e à representatividade política, que é pressuposto para uma democracia plena.
4. Entretanto, na hipótese, os fatos apontados não podem ser considerados como determinantes para a conclusão de ocorrência de ilícito eleitoral, não restando comprovado que as candidaturas foram registradas com intuito de fraude. Acervo probatório demonstrando que as candidatas pretenderam concorrer ao cargo de vereadora e praticaram atos com a finalidade de angariar votos, mesmo sem o alcance do êxito esperado na campanha. Circunstâncias fáticas incapazes de corroborar as alegações no sentido da existência de propósito em burlar a política de cotas de gênero.
5. Provimento negado.
(RECURSO ELEITORAL nº060101659, Acórdão, Des. Voltaire De Lima Moraes, Publicação: DJE - Diário de Justiça Eletrônico, 10/08/2023).
ANTE O EXPOSTO, julgo improcedentes os pedidos formulados por Alberto Lubas Espíndula em face dos investigados Leomar Manoel Ferreira e Ana Fábia Santos Costa.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Após o trânsito em julgado, arquive-se.
Régis Souza Ramalho
Juiz Eleitoral da 52ª Zona Eleitoral