TRIBUNAL REGIONAL ELEITORAL DE MINAS GERAIS

68ª Zona Eleitoral -  Carandaí - MG

 

SENTENÇA

 

           Vistos, etc.

 

       Cuidam-se de embargos de declaração (ID 124714339) interpostos por CHARLES LOPES MOREIRA em face da sentença prolatada, pelos quais intenta efeitos infringentes para que seja deferido o pedido de registro de candidatura pela admissibilidade de documento acostado ao recurso, ausente dos autos quando da prolação do provimento final.

          Afirma que agiu com boa-fé, a despeito de não ter apresentado aos autos protocolo de pedido de afastamento ao Município de Capela Nova – MG.

           Sustenta o entendimento jurisprudencial de conhecimento de prova acostada após a prolação da sentença.

            As alegações do embargante gravitam, em resumo, na prevalência do exercício dos direitos políticos sobre questões meramente processuais.

          Pleiteia o acolhimento do recurso, com efeitos modificativos e de alteração de apontado erro material.

           Dada vista ao Parquet, afirma não existir vício na decisão proferida. Sublinha a desídia da parte ao deixar de acostar aos autos, no momento oportuno, prova de sua desincompatibilização. Nessa linha, opina pelo acolhimento dos embargos, tão somente para correção de erro material.

            Eis o essencial. Decido.

           Incialmente, é preciso avaliar a possibilidade de conhecimento de documento novo em sede de embargos de declaração.

           Sabidamente, as hipóteses de cabimento previstas pelo art. 275, caput do CE c.c art. 1.022 do CPC, restringem seu escopo ao esclarecimento de obscuridade, ao afastamento de contradição, para suprir omissão ou corrigir erro material.

            O texto do dispositivo parece indicar não ser possível o conhecimento de documento a essas alturas, haja vista que, no momento de prolação da sentença, apreciou-se suficientemente a causa de inelegibilidade relativa, sem outros elementos capazes de serem subsumidos aos demais casos de interposição.

            Entretanto, a norma processual deve ser lida sistematicamente, sobretudo pela ótica dos modernos postulados processuais.

          Conforme dispõe o art. 267, §6º, do Código Eleitoral, o recurso eleitoral possui efeito regressivo. Nesse sentido, não seria razoável que o órgão julgador pudesse exercer juízo de retratação e, simultaneamente, fosse impedido de conhecer documento novo acostado aos embargos. Além disso, quer as condições de elegibilidade, quer as causas de inelegibilidade são matérias cognoscíveis de ofício, a teor do enunciado da Súmula nº 45 do TSE. Esses elementos aliados ao preceito da razoável duração do processo (art. 5º, inciso LXXVIII, da CR), permitem concluir sobre a possibilidade de conhecimento de documento novo acostado aos embargos de declaração.

            Esse, inclusive, é o entendimento da Corte Eleitoral Mineira:

            

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO INTERPOSTOS CONTRA ACÓRDÃO QUE NEGOU PROVIMENTO AO AGRAVO INTERNO. ELEIÇÕES 2022. REGISTRO DE CANDIDATURA DEFERIDO. RRC. DEPUTADO ESTADUAL. VAGA REMANESCENTE. DESINCOMPATIBILIZAÇÃO COMPROVADA. EMBARGOS DECLARATÓRIOS ACOLHIDOS COM EFEITOS INFRINGENTES.

   - Conheço do documento de Id 70809163, juntado em sede de embargos declaratórios, por tratar-se de documento novo, assim definido pelo art. 435, do Código de Processo Civil.

   - De acordo com a jurisprudência do c. Tribunal Superior Eleitoral, em processo de registro de candidatura, as circunstâncias fáticas e jurídicas supervenientes ao registro de candidatura que afastem a inelegibilidade, com fundamento no que preceitua o art. 11, § 10, da Lei nº 9.504/97, podem ser conhecidas em qualquer grau de jurisdição, inclusive nas instâncias extraordinárias, até a data da diplomação, última fase do processo eleitoral, já que em algum momento as relações jurídicas devem se estabilizar, sob pena de eterna litigância ao longo do mandato (RO nº 96-71/GO, Rel. Min. Luciana Lóssio, PSESS em 23.11.2016).

   - Considerando-se o novo documento, a embargante comprova, de forma satisfatória, sua desincompatibilização do cargo público, nos 3 (três) meses anteriores ao pleito, afastando-se a inelegibilidade prevista no art. 1º, inciso II, alínea "l", da LC nº 64/90.

   - Embargos Declaratórios acolhidos, com efeitos infringentes, para deferir o registro da candidatura de RITA APARECIDA MARQUES, ao cargo de Deputado Estadual, sob o nº 10005.

 

 REGISTRO DE CANDIDATURA nº060324532, Acórdão, Des. Cassio Azevedo Fontenelle, Publicação: PSESS - Publicado em Sessão, 05/10/2022.

                       

            Diante disso, conheço dos embargos, pois presentes os pressupostos de admissibilidade.      

 

  1.   ASPECTOS PREFACIAIS

 

         O indeferimento do pedido de registro de candidatura fundou-se, exclusivamente, na ausência de complementação probatória do afastamento, no momento oportuno.

        A tese defendida neste recurso suscita tormentosa discussão há muito travada no âmbito jurídico e mesmo filosófico acerca do conteúdo da verdade real e da verdade formal. Há correntes de pensamento que conferem maior valor processual àquela; outras, ao contrário, sem negar a existência da primeira, enfatizam a segurança jurídica promovida pela segunda.

         Ao contextualizar o problema, surge a indagação acerca da prevalência da prova constante do caderno processual, sobretudo presente na fase própria de sua produção e cognição, sobre a verdade refletida por documento, naquele instante, inexistente nos autos.

          Em termos práticos, o conhecimento ou não da prova possui reflexos relevantes sobre direitos fundamentais, a higidez do interesse público e, ainda, sobre a promoção do regime democrático.

            Sobretudo nesse quadro de intersecção de princípios e de regras, a aplicação do direito está vinculada e até condicionada pela hermenêutica. Em decorrência disso, o antigo brocardo de que a clareza do texto legal dispensa a interpretação torna-se extremamente esmaecido. As infinitas possibilidades do real na medida em que impedem o legislador de regular todas as variáveis fáticas, exigem do aplicador do direito a construção de normas a partir do texto capazes de alcançar a justiça do caso concreto.

            Essas nuances serão as linhas mestras do exame recursal.

 

  1.  POSSIBILIDADE DE PRODUÇÃO DE DOCUMENTO NOVO

 

         A dialética processual indaga acerca do conteúdo probatório suficiente para se aferir o efetivo afastamento do autor do cargo de farmacêutico no Município de Capela Nova - MG. Nesse contexto, é importante delinear as diferenças entre as noções de presunção, indício e prova.

      Sempre houve entre os processualistas pátrios debates acerca do posicionamento dessas três categorias no conjunto maior de elementos de convicção judicial. Para alguns todos eles correspondem a meios de prova, a outros, porém, os fatos a serem provados somente estão representados nos elementos de prova propriamente ditos, v.g. depoimento testemunhal ou documento.

       De toda sorte, parece mais adequado à realidade das coisas conceber a presunção e o indício como fruto de operações mentais desenvolvidas pelo órgão julgador na apreciação dos fatos refletidos pelos elementos de prova.

           Nessa linha, transcrevo as lições de BARBOSA MOREIRA[1]:

      “Em termos sintéticos, poder-se-ia dizer que a prova (documental, testemunhal, etc.) é um ponto de partida, é algo que permite ao juiz adquirir o conhecimento de certo fato, ao passo que a presunção judicial é um ponto de chegada, já corresponde ao conhecimento adquirido.”

       [...]

       No itinerário percorrido entre a produção do documento ou o depoimento da testemunha e a presunção judicial, o indício obviamente se situa como etapa intermediária. [...]

      Fica patente que a atividade mental do juiz não tem a mesma natureza nas duas etapas do itinerário descrito. A passagem da prova (documental, testemunhal etc.) ao indício faz-se através de operação intelectual de estrutura diversa daquela através da qual se passa do indício à presunção. Na primeira, trata-se de examinar e valorar um quid material, sensível, em que, por hipótese, se acha representado certo fato, exatamente para alcançar o conhecimento do fato representado. Na segunda, trata-se apenas de efetuar um raciocínio do tipo silogístico: [...]” Grifos no original.

          Sob essas premissas, o conceito de documento novo, conquanto possa trazer alguma dificuldade de entendimento se tomado no sentido ordinário do termo, tecnicamente possui regência segundo os parâmetros do art. 435 do Código de Processo Civil, que transcrevo para melhor clareza:

 

Art. 435. É lícito às partes, em qualquer tempo, juntar aos autos documentos novos, quando destinados a fazer prova de fatos ocorridos depois dos articulados ou para contrapô-los aos que foram produzidos nos autos.

Parágrafo único. Admite-se também a juntada posterior de documentos formados após a petição inicial ou a contestação, bem como dos que se tornaram conhecidos, acessíveis ou disponíveis após esses atos, cabendo à parte que os produzir comprovar o motivo que a impediu de juntá-los anteriormente e incumbindo ao juiz, em qualquer caso, avaliar a conduta da parte de acordo com o art. 5º .

 

                  A parte final do parágrafo único faz alusão à necessária boa-fé prevista pelo art. 5º do CPC.

          Atento às especificidades do processo cível eleitoral, a jurisprudência do e. TSE, embora admita a juntada posterior de documentos no âmbito do processo de registro de candidatura, fez submeter a admissibilidade da produção posterior de prova, especificamente, à ausência de desídia ou de má-fé do interessado. Nesse sentido, veja-se:

DIREITO ELEITORAL. AGRAVO INTERNO EM RECURSO ESPECIAL ELEITORAL. ELEIÇÕES 2016. REGISTRO DE CANDIDATURA. DEPUTADO FEDERAL. CONDIÇÕES DE REGISTRABILIDADE. JUNTADA DE CERTIDÃO FALTANTE ANTES DO ESGOTAMENTO DA INSTÂNCIA ORDINÁRIA. POSSIBILIDADE. DESPROVIMENTO.

1. (omissis);

2. (omissis);

3. Como forma de privilegiar o direito fundamental à elegibilidade, deve ser admitida a juntada de documentos faltantes enquanto não esgotada a instância ordinária, desde que não haja prejuízo ao processo eleitoral e não fique demonstrada a desídia ou a má–fé do candidato. Precedentes.

4. Agravo interno a que se nega provimento.

(Recurso Especial Eleitoral nº 060517394, Acórdão, Relator(a) Min. Luís Roberto Barroso, Publicação:  DJE - Diário de justiça eletrônico, Tomo 148, Data 02/08/2019) (original sem grifos).

               Em suma, para que se admita a produção posterior do documento, na especificidade do processo de registro de candidatura, é necessária a presença cumulativa dos seguintes pressupostos: (I) posição processual na instância ordinária; (II) ausência de prejuízo ao processo eleitoral; (III) inexistência de má-fé; e, (IV) ausência de desídia.

             O primeiro e o segundo requisitos encontram-se presentes. O feito permanece na via ordinária, isto é, na instância capaz de analisar fatos por meio de provas. Por outro lado, neste momento está-se no início do segundo terço do período eleitoral, sendo certo que a eventual admissibilidade da prova não subverterá a vontade do eleitor, pois ainda não manifestada, tampouco será prejudicial à representatividade democrática, como se verá adiante. Desse modo, deixa-se de divisar efeitos negativos sobre a legitimidade do pleito.

              No tocante ao terceiro, observa-se que o interessado fez juntar ao seu requerimento de registro de candidatura (ID 122829840) documento que demonstra ter manifestado a vontade de se afastar do cargo de farmacêutico, sem, contudo, revelar a aceitação do pedido pelo destinatário. Entretanto, cuida-se de indício de que tenha se afastado.

               Intimado a complementar prova (ID 124048673), manteve-se inerte.

               De fato, qualquer elemento delineador da recepção do pedido pelo órgão poderia ser admitido. Em ID 124673617 o interessado acostou portaria de afastamento e, em ID 124714342, apresentou protocolo do pedido em ID 122829840. Esses documentos foram juntados após a sentença.

             Aprofundando-se o exame, é possível, até mesmo, presumir que a portaria apresentada fora, como de ordinário, publicada no diário oficial do ente. Essa circunstância seria geradora de presunção de publicidade do ato, oponível, inclusive, à Especializada. De toda sorte, segundo o documento permite inteligir, (ID 124673617), seus efeitos independem da sua publicação.

           Vê-se, por outro lado, que a conduta processual do requerente deixa de demonstrar má-fé. Com efeito, o observado no cotidiano revela o uso de expedientes eivados dessa torpe motivação com a finalidade de obter vantagem própria ou de prejudicar interesse alheio. Não seria razoável supor tenha o requerente agido na intenção de omitir-se sendo certo que o prejuízo decorrente seria exclusivamente próprio. Portanto, nessas circunstâncias presume-se a boa-fé.

           A essas alturas, algumas linhas merecem ser traçadas acerca da caracterização da desídia.

         Em primeiro lugar, assumir que todo decurso de prazo seja indubitavelmente prova inconteste de desídia significa o imediato não conhecimento de toda e qualquer prova produzida após escoado o momento próprio de sua inserção nos autos. Não haveria qualquer possibilidade de cognição dos demais elementos indicados pela jurisprudência para a admissão do documento novo. A própria discussão da tese sustentada nos embargos seria inócua.

           Por isso, o término do prazo aliado à inação da parte consiste apenas em indício da existência de desídia, sem torná-la manifesta. É preciso observar a conduta da parte de modo abrangente.

        A inércia quanto ao ônus de apresentar prova de efetiva desincompatibilização vinculou-se à complementação do documento anteriormente acostado em ID 122829840. Em outras palavras, agiu o requerente ao exibir o pedido, mesmo que desacompanhado da sua recepção pelo órgão. Houve, portanto, início de prova tendente à edição do ato jurídico administrativo de afastamento.

        Desse modo, sem embargo de opiniões contrárias, não se observa desídia capaz de opor-se à cognição do documento apresentado junto ao recurso.              

 

  1. PRECLUSÃO, DIREITOS FUNDAMENTAIS E INTERESSE PÚBLICO        

       O objeto do processo de registro de candidatura transcende o mero interesse privado do autor em ver-se como candidato nas eleições vindouras. Na realidade, é e sempre foi essencialmente ligado ao interesse público especialmente refletido na legitimidade do processo eleitoral, esta, por seu turno, indissociável da verdade real.

         Ao mesmo tempo, o feito abrange o resguardo de direitos fundamentais, quais sejam, os direitos políticos. Esses historicamente conheceram tempos de elevada restrição e, por vezes, absoluta inexistência. O Estado, nesse sentido, deve ser o primeiro a garantir o seu pleno exercício, segundo a moldura constitucional própria.

        Apesar dessas constatações, a rigor, houve preclusão temporal quanto à comprovação do afastamento. Esse ponto não é de menor importância, pois a efetividade da jurisdição vincula-se à vedação ao retrocesso processual, favorecendo-se a contínua progressão de sua marcha.

         Está-se diante, portanto, de conflito entre o interesse público e a preservação de direitos fundamentais de um lado e a observância de norma processual, de outro.

       Nesse quadro, a solução reside na incidência dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, consideradas as peculiaridades deste feito.

          Na realidade, conforme pontifica ÁVILA2, tanto um quanto outro são postulados orientadores da aplicação de regras e princípios.

        A concepção de razoabilidade como equidade e da proporcionalidade como adequação entre meios e fins lança luzes sobre o tema. A primeira fora delineada como a diretriz de que, na aplicação das normas jurídicas, seja considerado aquilo que normalmente acontece. Quanto à última o autor realça seus aspectos nesses termos:

 

"O exame da proporcionalidade aplica-se sempre que houver uma medida concreta destinada a realizar uma finalidade. Nesse caso devem ser analisadas as possibilidades de a medida levar à realização da finalidade (exame da adequação), de a medida ser a menos restritiva aos direitos envolvidos dentre aquelas que poderiam ter sido utilizadas para atingir a finalidade (exame da necessidade) e de a finalidade pública ser tão valorosa que justifique tamanha restrição (exame da proporcionalidade em sentido estrito)."3 (grifos do autor).

            No contexto excepcional dos autos em que se reúnem os pressupostos de aceitação de documento novo, conforme dito alhures, e sendo esta admissão essencial ao resguardo da verdade real e de direitos fundamentais, a estrita e literal aplicação do texto do art. 36 da Resolução TSE nº 23.609/2019 cede lugar, inclusive por sua natureza instrumental.

 

            Isto posto, acolho os embargos de declaração, com efeitos modificativos, para:

 

     1. DEFERIR o pedido de registro de candidatura formulado por  CHARLES LOPES MOREIRA para concorrer ao cargo de prefeito no Município de Capela Nova – MG, nas Eleições de 2024;

 

       2. Corrigir erro material na sentença proferida, nos seguintes termos:

Onde se lê: “[...] para concorrer ao cargo de vereador no Município de Capela Nova – MG;

Leia-se: “[...] para concorrer ao cargo de prefeito no Município de Capela Nova – MG;

 

           Dê-se ciência ao MPE.

           Com o trânsito em julgado, arquivem-se os autos.

           P.R.I.

 

          Carandaí,  data registrada no sistema.

 

Marié Verceses da Silva Maia

Juíza Eleitoral

 

 

[1] MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de direito processual. São Paulo: Saraiva, 1977. p. 58.

[2] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4ª Ed. Rev. Malheiros Editores: São Paulo, 2005.

[3] Op. cit. p. 150.