JUSTIÇA ELEITORAL
069ª ZONA ELEITORAL DE AURORA CE
AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL (11527) Nº 0600134-51.2024.6.06.0069 / 069ª ZONA ELEITORAL DE AURORA CE
AUTOR: COLIGAÇÃO PRA CUIDAR DO NOSSO POVO
Advogados do(a) AUTOR: FILIPE MACEDO CRUZ TAVARES - CE48039, LUCIANO ALVES DANIEL - CE14941
REU: MARCONE TAVARES DE LUNA, GLORIA MARIA RAMOS TAVARES
Advogados do(a) REU: CICERO CARPEGIANO LEITE GONCALVES - CE17888, LEONARDO ROBERTO OLIVEIRA DE VASCONCELOS - CE18185-A, CASSIO FELIPE GOES PACHECO - CE17410-A, LIVIA CHAVES LEITE - CE40790
Advogados do(a) REU: CICERO CARPEGIANO LEITE GONCALVES - CE17888, LEONARDO ROBERTO OLIVEIRA DE VASCONCELOS - CE18185-A, CASSIO FELIPE GOES PACHECO - CE17410-A, LIVIA CHAVES LEITE - CE40790
RELATÓRIO
Cuida-se de Embargos de Declaração opostos por Marcone Tavares de Luna e Glória Maria Ramos Tavares contra a sentença proferida nos autos da Ação de Investigação Judicial Eleitoral nº 0600134-51.2024.6.06.0069 (ID 124751611), que julgou parcialmente procedente os pedidos formulados na demanda, reconhecendo a prática de abuso do poder político e econômico do primeiro (Marcone Tavares de Luna), nas eleições municipal de 2024, com benefício direto à vitória eleitoral da segunda (Glória Maria Ramos Tavares).
A sentença cassou os diplomas de Marcone Tavares de Luna e Glória Maria Ramos Tavares, eleitos, respectivamente, prefeito e vice-prefeita, e declarou, ainda, a inelegibilidade do primeiro pelo período de 8 anos subsequentes às eleições municipais de 2024, fundamentada no art. 22, XIV, da LC 64/90, pelas seguintes razões jurídicas:
i) Realização reiterada de contratações temporárias, em contratos assinados pelo próprio candidato à reeleição (Marcone Tavares de Luna), sem concurso público ou justificativa factual excepcional e válida, especialmente durante o ano eleitoral (2024);
ii) Sucessivas admissões e exonerações das mesmas pessoas, em contratos assinados pelo próprio candidato à reeleição (Marcone Tavares de Luna), amparadas genericamente em suposto "excepcional interesse público";
iii) Criação de dependência financeira e psicológica dos contratados em relação ao gestor em razão das condutas encimadas, com influência natural sobre o resultado eleitoral;
iv) Aumento injustificado nos gastos com pessoal em R$ 4.994.101,74 em ano eleitoral (13,82% acima de 2023), significativamente superior à inflação anual (4,62%), violando os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade;
v) Gravidade e impacto relevante no resultado eleitoral da conduta devido à pequena diferença de votos entre candidatos (983 votos; 5,9%), considerando ainda a média de 2,81 moradores por domicílio em Aurora-CE e o volume das contratações subjacentes;
vi) Manutenção ilegal de pessoas contratadas temporariamente, cujos contratos foram assinados pelo candidato à reeleição (Marcone Tavares de Luna), em período vedado pela legislação eleitoral;
vii) Uso indevido de recursos públicos para despesas com pessoal sem critérios técnicos razoáveis, caracterizando práticas patrimonialistas e comprometendo transparência e legalidade administrativas.
Concretamente, os embargantes alegam erro material e omissões da sentença. Argumentam que as contratações de pessoal ocorreram por processo seletivo regular, autorizadas por lei e sem objetivo eleitoral explícito, além de afirmarem que o aumento salarial foi proporcional e semelhante aos anos anteriores. Pedem, ainda, a inclusão dos secretários municipais como litisconsortes passivos necessários, já que estes seriam diretamente responsáveis pelas solicitações das contratações temporárias.
Intimados, Ministério Público e autor apresentaram manifestação e contrarrazões, respectivamente, infirmando a pretensão deduzidas nos embargos de declaração.
Sintetizadas as balizas da lide.
Processo em mesa para julgamento.
Julgo.
FUNDAMENTAÇÃO
Considerações gerais:
Os embargos de declaração destinam-se a esclarecer obscuridade, eliminar contradição, suprir omissão ou corrigir erro material (art. 275, caput, do CE, c/c o art. 1.022 do CPC).
Não se prestam os embargos, a rigor, à rediscussão de matéria suficientemente analisada ou à inovação artificial da lide.
Isso dito, julgo os embargos hodiernos adotando, como corte metodológico o modelo cartesiano, mediante análise do merecimento jurídico da pretensão submetida a exame, considerando individualmente as alegações apresentadas pelos embargantes, buscando, sempre que possível, fundamentar as razões desta decisão nos próprios elementos expostos na sentença embargada em contradita com a matéria objeto dos embargos.
Da formação do litisconsórcio passivo necessário: desnecessidade (Art. 114 do CPC).
A alegação de ausência de formação de litisconsórcio passivo necessário com secretários da administração municipal constitui inovação recursal, extemporânea, pois não discutida previamente nos autos pelos embargantes, aportada agora como matéria de ordem pública.
Sobre o mérito do pedido, não há fundamento jurídico para incluir os secretários municipais como litisconsortes passivos necessários, já que eles não são agentes eleitos, e, conforme o disposto art. 114 do CPC, a eficácia da sentença não depende, e não dependia quando do protocolo e da contestação, da citação de todos que poderiam figurar nessa condição.
Causa espécie que os nomes destes secretários municipais sequer foram mencionados pelos embargantes na peça, o que demonstra com nitidez que esta tese é manifestamente infundada e o embargante aqui procedeu de modo notoriamente temerário (art. 80, V, do CPC).
A pretensa inclusão dos secretários inominados, a rigor, também não aproveitaria ao embargante, que se beneficiaria da própria inércia ao não levantar tal questão antes, coisa vedada pela Lei Adjetiva (art. 276 e 278 do CPC).
Como se não bastasse, a sentença deixou evidente que a conduta ilícita partiu, e teve como beneficiário direto, o primeiro embargante (Marcone Tavares), responsável por assinar a extensa pilha de contratos de admissão de pessoal reconhecidos como ilegítimos e caracterizadores de abuso de poder político e econômico. Tal circunstância beneficiou a segunda embargante, Glória Maria Ramos Tavares, razão pela qual justificou-se a cassação de seu diploma.
A matéria assume um caráter ainda mais insensata quando não há comprovação objetiva dos atos materiais dos secretários, nem a indicação de quem os praticou, pois não foram estes quem subscreveram os contratos de trabalho ilegais em ano eleitoral.
Com o respeito devido e merecido, a matéria trazida à lume é inovadora e extemporânea, possui a intenção artificial de causar nulidade de algibeira1, frisando que os secretários inqualificados sequer foram arrolados como testemunhas, o que revela o nítido intento dos embargantes de causar chicana processual, em atitude violadora da boa-fé processual e da lealdade, deveres das partes e de todos aqueles que participam do processo (arts. 5° e 77 Incs. I a VII, do CPC).
Por fim, considerando o caráter nitidamente protelatório dos embargos, aplico aos embargantes multa de 2 salários-mínimos, na forma do 275, § 6°, do Código Eleitoral.
Não há matéria de ordem pública a ser acolhida.
Rejeito.
Do aumento da folha de pagamento nos anos 2021 a 2024:
Os embargantes pretendem que este Juízo se manifeste sobre os supostos aumentos ocorridos nas folhas de 2021, 2022, 2023 e 2024.
Sobre isto, ponderam que: “(...) o aumento dos gastos municipais com a folha de pagamento tem tido, durante os anos da gestão, um acréscimo linear, todos acima de 4 milhões anuais e sempre com percentuais semelhantes ou superior aquele encontrado por V. Excelência quando fez a comparação entre os anos de 2023 e 2024” (pág. 25 dos embargos).
Neste campo, não houve omissão por parte deste Juízo, pois não estava em questão, para se decidir o merecimento jurídico se houve ou não abuso dos poderes econômico e político (art. 22 da LC 64/90), as contas de anos anteriores a 2023, em grau comparativo.
Tal matéria constituiria coisa lateral à ratio decidendi.
Analiso tais alegações agora, em atenção à completude, fazendo-o obiter dictum.
Concretamente, os aumentos dos anos 2021 e 2022 nas folhas de gastos de pessoal podem – devem – ser justificados por um fato notório (artigo 374, inciso I, do CPC): a pandemia.
Neste período (2021 e 2022), os poderes públicos, das três esferas de governo, tiveram que desprender recursos bilionários para salvar vidas, o que ocasionou gastos com vacina, medicamentos e contratações de pessoal.
Considerando este fato excepcional dos anos anteriores (2021 e 2022), este Juízo, no âmbito do despacho de ID 124622983, indagou ao município de Aurora “se houve situação excepcional como emergência ou calamidade pública a legitimar possível gasto com a folha de pessoal” (item ix do despacho indicado).
O Município de Aurora — assim como a defesa, em alegações finais — não apresentou informações ou provas de que, no ano de 2024, tenha ocorrido, em âmbito nacional, estadual ou municipal, pandemia, emergência, guerra, calamidade pública ou outra situação excepcional que legitimasse o aumento vertiginoso da folha de pessoal, o qual, somado a outros fatos, fundamentou a cassação e a declaração de inelegibilidade.
Assim, não é possível comparar coisas incomparáveis: anos de pandemia (2021 e 2022), com necessários investimentos e gastos com pessoal para salvar vidas, com anos de normalidade (2023 e 2024).
Há evidências acadêmicas de que a pandemia da COVID-19 impactou significativamente as finanças dos municípios brasileiros, afetando tanto as receitas quanto as despesas públicas. Com a desaceleração econômica e as medidas de distanciamento social, houve uma redução na arrecadação de tributos municipais, como o Imposto sobre Serviços (ISS), devido à diminuição da atividade econômica local. Essa queda na arrecadação aumentou a dependência dos municípios em relação aos repasses federais para manter suas operações e serviços essenciais2.
Em termos de despesas, os municípios brasileiros enfrentaram a necessidade de aumentar os gastos em áreas críticas para o enfrentamento da pandemia, como saúde e assistência social. Um estudo realizado em municípios do Rio Grande do Norte, Estado com características e dificuldades parecidas com o Ceará, revelou que, apesar da redução na arrecadação própria, houve um aumento significativo nos gastos com assistência social e saúde, enquanto as despesas com educação diminuíram devido ao fechamento das escolas3.
No que diz respeito aos gastos com pessoal na administração pública municipal, a pandemia trouxe desafios adicionais. A necessidade de reforçar as equipes de saúde e assistência social para atender à crescente demanda por serviços resultou em contratações emergenciais, elevando os gastos com pessoal. Por outro lado, a queda na arrecadação e as restrições fiscais limitaram a capacidade dos municípios de manter ou expandir seus quadros de funcionários em outras áreas.
Além disso, medidas de contenção de despesas foram adotadas em alguns casos, como a suspensão de concursos públicos e a postergação de reajustes salariais, visando equilibrar as contas públicas em um cenário de receitas reduzidas.
É importante destacar que a Lei Complementar nº 173/2020 estabeleceu o Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus SARS-CoV-2 (COVID-19), que, entre outras medidas, proibiu a concessão de aumentos salariais para servidores públicos até o final de 2021. Essa medida visou conter o crescimento dos gastos com pessoal durante a crise sanitária e econômica.
Se o primeiro embargante, na condição de prefeito em primeiro mandato, elevou ilegitimamente os gastos com pessoal entre 2021 e 2022 fora das áreas de saúde e assistência social, o fez de forma ilegal, em notório contraste com a Lei Complementar nº 173/2020, que modificou a redação do art. 21 da Lei Complementar nº 101/2000, para estabelecer uma série de restrições em relação ao gasto de pessoal.
Tal fato não pode ser trazido em seu benefício, pois equivaleria o benefício da própria torpeza, coisa negada por todos os povos civilizados à glosa do axioma latino: Nemo auditur propriam turpitudinem allegans.
Em resumo, a pandemia de COVID-19 impôs desafios significativos à gestão dos gastos com pessoal na administração pública municipal, exigindo dos gestores públicos a adoção de medidas equilibradas para atender às demandas emergenciais sem comprometer a sustentabilidade fiscal dos municípios.
No entanto, a pandemia durou até meados de 20224, com alguns impactos reflexos até o fim deste ano.
Sem razão jurídica, assim, rejeito.
d) Aumento injustificado de R$ 4.994.101,74 nos gastos com pessoal (13,82% superior a 2023), superando amplamente a inflação anual (4,62%) e violando os princípios da razoabilidade e proporcionalidade:
Além do já reconhecido galopante aumento injustificado de R$ 4.994.101,74 na folha de pessoal em 2024 (ano eleitoral), a sentença abordou outras irregularidades relevantes, indeléveis à compreensão da decisão tal qual tomada, tais como:
i) Contratações temporárias reiteradas, realizadas pelo próprio candidato à reeleição (Marcone Tavares de Luna), sem concurso público ou justificativa válida, especialmente em 2024, ano eleitoral;
ii) Admissões e exonerações sucessivas das mesmas pessoas, com base genérica em “excepcional interesse público”, com a natural criação de dependência financeira e emocional dos contratados em relação ao gestor, com reflexos eleitorais diretos;
iii) Impacto eleitoral relevante diante da estreita diferença de votos (983 votos; 5,9%), considerando ainda a média de 2,81 moradores por domicílio e o volume expressivo de contratações;
iv) Manutenção ilegal de contratos temporários durante o período vedado pela legislação eleitoral;
v) Utilização indevida de recursos públicos com pessoal, sem critérios técnicos claros, revelando práticas patrimonialistas e comprometendo a transparência administrativa.
Portanto, a conclusão da sentença, segundo a qual houve um expressivo aumento dos gastos com pessoal em ano eleitoral, associado à contratação adicional de 70 pessoas, considerando-se a média ponderada entre o último semestre de 2023 e o primeiro semestre de 2024, permanece válida.
Ademais, o modus operandi do embargante Marcone Tavares, caracterizado pela prática de admitir e readmitir várias pessoas durante período eleitoral, subscrevendo pessoalmente os contratos, não se mostra infirmado pelas alegações apresentadas nos embargos.
Portanto, rejeito.
e) Alegada legalidade das contratações:
De todas as alegações, talvez esta seja a mais contrafactual, pois a própria parte embargante trouxe a juízo diversos documentos que apenas - e tão somente – ratificam a conclusão da sentença.
Neste ponto, há tentativa de rediscutir o mérito do que decidido, avençando-se que este Juízo partiu de premissa fática equivocada para sentenciar da forma que sentenciou.
Mantenho a conclusão do decisum pelos seus próprios fundamentos, evidenciando, porém, em obiter dictum, em atenção à completude, o que se segue, com base nos novos documentos juntados pelos embargantes extemporaneamente, mas que se mostram essenciais à ratificação da conclusão da ilicitude e das consequências eleitorais danosas subjacentes, cujas circunstâncias foram notoriamente graves (art. 22, Inc. XVI, da LC 64/90).
O entendimento do qual partiu a sentença tem respaldo na jurisprudência do TSE e pode ser bem assim sintetizado: A contratação de várias pessoas, para o exercício de cargos prosaicos (motorista, vigia, etc), ainda que justificadas por lei municipal, não estão abrangidas pela exceção do excepcional interesse público (art. 2º da LEI Nº 8.745/1993), conforme precedentes do TSE, mencionado na sentença (RESPE nº 27563 - CUIABÁ - MT. Acórdão de 12/12/2006. Relator(a) Min. Ayres Britto. Publicação: DJ - Diário de justiça, Data 12/02/2007, Página 135).
As contratações em ano de eleição, segundo os próprios embargantes, alcançaram mais de 4 centenas de pessoas, POUCO MENOS DE 50% de todos os servidores do município de Aurora-CE no período.
Não houve demonstração, pelos embargantes, dos requisitos autorizadores e excepcionais à contratação (art. 2º da LEI Nº 8.745/1993), pois, como dito alhures, não houve pandemia, guerra, calamidade pública ou outra situação excepcional a legitimar o aumento galopante da folha de pessoal em Aurora-CE, em ano eleitoral.
Analisando detidamente as leis municipais trazidas à lume, que fundamentariam as contratações (Ids 124780841, 124780844, 124781104, 124781106, 124781107, 124781109, 124781110, 124781111 e 124781263), tenho que os embargantes não possuíam qualquer, friso, qualquer fundamento jurídico à contratação de pessoal por processo seletivo simplificado.
Isso porque a Lei Municipal n° 331/2019 (ID 124780841) teve eficácia temporal expressa, limitada de 02/01/2019 a 02/05/2020, referente, exclusivamente, ao processo seletivo de 2018 (art. 2º) e aos serviços públicos expressivamente mencionados (CRAS, CRAS volante, CREAS, Programa Bolsa Família, Programa Criança Feliz, Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculo, CAPS, SAD, NASF, CEO) (art. 1º).
Já a Lei Municipal nº 362/2019, por sua vez, previu apenas a possibilidade de prorrogação dos contratos temporários vinculados ao processo seletivo de 2018. Esses contratos poderiam ser celebrados a partir de 03 de maio de 2020, com duração máxima de um ano, prorrogável por igual período em caso de vacância temporária, conforme a necessidade, a conveniência e o interesse da administração pública municipal.
Ao mesmo tempo, a Lei Municipal n° 575/2024, que teria legitimado a contratação “retroativa” de cuidadores escolares, em pretenso cumprimento à decisão judicial proferida num processo de 2016 (Processo n° 5349-57.2016.8.06.0041/0), igualmente não legitima a conduta do primeiro embargante (Marcone Tavares), que excedeu, até mesmo, a autorização legislativa para tanto, contratando 126 pessoas, em vez de 98.
Ora, a decisão judicial proferida no Processo n° 5349-57.2016.8.06.0041/0, cumprida extemporaneamente apenas no ano eleitoral, não determinou a contratação de cuidadores de forma ilegal, sendo certo que o requerido teve 3 anos de mandato para cumprir tal decisão, mas o fez, ainda assim de forma excedente, apenas no ano eleitoral.
Sem prejuízo da constitucionalidade duvidosa destas leis, não havia autorização normativa à realizar processos seletivo em 2023, muito menos a realizar numerosas contratações entre os anos em 2024, com indelével impacto eleitoral, como reconhecido na sentença.
Não estamos falando em empresa privada, onde tudo é permitido até que haja restrição. Cuida-se da administração pública, cujas regras postas obedecem ao princípio da legalidade, o que nem de longe foi atendido na hipótese.
Se até a sentença as contratações passavam por um filtro de legalidade/constitucionalidade com base em precedente do TSE5, aqui, após as evidências trazidas pelos próprios embargantes6, ficou comprovado que não há qualquer, friso, qualquer fundamento jurídico às contratações, que não se limitaram aos órgãos mencionados nas normas, conforme bem assentado na sentença.
Existe, aqui, indelével lacuna confessada pelo próprio embargante, que ocupa o cargo de prefeito, que pode – e deve – ser preenchida por providências urgentes do Ministério Público, pois não há opção do administrador municipal descumprir a Lei Federal nem a Constituição.
Ao contrário do que pretendido pelos embargantes, que chegam a supor que há necessidade de providências apenas no campo administrativo contra si, houve, tal qual estabelecido na sentença, relevância e gravidade eleitoral das contratações ilegais no pleito (art. 22, Inc. XVI, da LC 64/90).
Não se cuida de 10, 15 ou 20 pessoas; são mais de 400 pessoas, contratadas em ano eleitoral, com ferimento das normas mais comezinhas, com impacto eleitoral relevante à lisura do pleito.
Se havia um “costume” administrativo, este era errado e, ratificado em ano eleitoral, teve impacto ainda mais relevante na disputa.
Em outras palavras: o fato de a prática moderna clientelista ter sido feita antes, não abona a conduta dos embargantes.
À luz da lógica elementar e dos princípios do determinismo, dois equívocos não resultam em um acerto, do mesmo modo que um erro pretérito não serve de justificativa para um erro subsequente.
Em mais de uma década e meia trabalhando diretamente com administração pública com matérias similares a esta, nunca presenciei um modus operandi similar a este: o administrador, com base num processo seletivo, faz vários e vários contratos durante o ano com a mesma pessoa, renovando-os. Além disso, usa processos seletivos antigos, com leis retroativas, para legitimar condutas em anos eleitorais.
A conduta narrada não encontra amparo em qualquer, friso, qualquer legislação. Nem na constituição federal, que privilegia o concurso público (art. 37, II). Nem na Lei Federal n° 8.745/1993, que prevê que os contratos devem ser firmados por tempo determinado (art. 1°), limitando-se aos objetos especificados (art. 2° e incisos). Nem nas próprias Leis Municipais, a exemplo daquelas de números 331/2019 e 362/2019.
Ou seja, ficou ainda mais evidenciado que os processos seletivos não tiveram qualquer base legal, que o modus operandi de contratar e exonerar sucessivamente a multicentenária quantidade de pessoas também não encontra qualquer fundamento jurídico, para além da afirmação, que agora restou confirmada pelo embargante, de que houve aumento de cerca de cinco milhões de reais no ano eleitoral, o que até então era negado.
A serem verdadeiros os números mencionados pelos embargantes quanto às pessoas contratadas à glosa de “excepcional interesse público” entre os anos de 2021 a 20247, a sentença cassatória ganha ainda mais sentido jurídico, pois, excluídos os anos da pandemia (2021 e 2022), cujas contratações nas pastas de saúde e assistência social podem ser justificáveis, restaram comprovadas as práticas patrimonialistas modernas, desafiando o próprio conceito de rule of law.
A citação do nome de várias pessoas contratadas ilicitamente ao longo das páginas 35-49 dos embargos de declaração, com a pretensão de justificar a legalidade das contratações, apenas demonstra que as contratações de centenas e centenas de pessoas ocorreram no ano eleitoral, não se comprovando que as mais de 2200 páginas de contratados assinadas pelo embargante Marcone Tavares (ID 124653882 até 124653924) inexistiram.
Apenas para fins demonstrativos e para validar a gravidade da conduta constatada na sentença, segue um quadro com cerca de 75% das pessoas confessadamente contratadas e recontratadas no ano de 2024, com especificação dos períodos, da autoridade nomeante e do cargo exercido (Anexo 1).
Portanto, a decisão combatida abordou todas as questões relevantes com fundamentos lógicos, jurídicos e factuais sólidos e coerentes, motivo pelo qual, mantenho-a, em todos os seus termos, sem prejuízo das considerações ora lançadas em obiter dictum.
Dispositivo
Ante o exposto, NEGO PROVIMENTO aos embargos de declaração.
Considerando o caráter nitidamente protelatório dos embargos, conforme fundamentação outrora lançada, aplico aos embargantes multa de 2 salários-mínimos, na forma do 275, § 6°, do Código Eleitoral.
Publique-se. Intime-se.
Aurora, data da assinatura eletrônica.
JOSE GILDERLAN LINS
Juiz Eleitoral da 69ª Zona Eleitoral de Aurora - CE.
1 A expressão “nulidade de algibeira”, cunhada e difundida pelo Alagoano Humberto Gomes de Barros, Ministro do Superior Tribunal de Justiça, refere-se à prática estratégica da parte que, podendo alegar uma possível nulidade em momento oportuno, omite-se propositalmente para invocá-la posteriormente. A expressão foi empregada pela primeira vez no julgamento do REsp 756.885, ocorrido em 14 de agosto de 2007, perante a Terceira Turma do STJ.
2 TINTINO, Fransueldo da Silva. Análise do impacto provocada pela pandemia da COVID-19 nas receitas e despesas públicas nos municípios do Rio Grande do Norte. 2023. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Ciências Contábeis) – Universidade Federal Rural do Semi-Árido, Mossoró, 2023. Disponível em: https://repositorio.ufersa.edu.br/server/api/core/bitstreams/7ebb5fee-4063-4d51-ab50-ac90bfeaf9df/content. Acesso em: 25 mar. 2025.
3 TINTINO, Fransueldo da Silva. Análise (...)
4 Fonte: Após dois anos, chega ao fim estado de Emergência em Saúde Pública por conta da Covid-19 no Brasil, em 22/05/2022, https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2022/maio/apos-dois-anos-chega-ao-fim-estado-de-emergencia-em-saude-publica-por-conta-da-covid-19-no-brasil
5 RESPE nº 27563 - CUIABÁ - MT. Acórdão de 12/12/2006. Relator(a) Min. Ayres Britto. Publicação: DJ - Diário de justiça, Data 12/02/2007, Página 135
6 Ids 124780841, 124780844, 124781104, 124781106, 124781107, 124781109, 124781110, 124781111 e 124781263.
7 Números: 2021: 377 contratos realizados; 2022: 384 contratos realizados; 2023: 443 contratos realizados; 2024: 412 contratos realizados.